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Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos

Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos

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A questão de atribuir à vítima capacidade processual perante a Corte está em plena consonância com as normas protetivas dos direitos humanos, as quais são dotadas de conteúdo imperativo (jus cogens), de obrigações erga omnes, que devem ser observados por todos Estados.

Resumo: O trabalho tem por objeto de discussão o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. O objetivo da pesquisa é analisar a questão envolvendo o reconhecimento do jus standi in judicio da vítima ou seu representante legal no procedimento perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos como condição necessária ao pleno desenvolvimento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. A metodologia utilizada teve por base de investigação o método dedutivo e como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica. O desafio atual é o de encontrar meios para melhor proteger os direitos humanos, uma vez que estes já se encontram fundamentados em diversos instrumentos normativos internacionais. No âmbito do sistema interamericano de proteção, a Comissão e a Corte Interamericanas têm feito um trabalho inovador, contribuindo para a proteção dos direitos humanos na região. Atualmente, a vítima tem legitimidade para oferecer suas razões e argumentos perante à Corte, desde que a jurisdição desta tenha sido instaurada. No entanto, tal condição não se afigura adequada ao nível atual de internacionalização dos direitos humanos, voltados à proteção da dignidade humana, bem como em relação à crescente demanda por justicialização dos direitos humanos. O reconhecimento do locus standi da vítima ante à Corte Interamericana constitui um avanço importante, mas não a etapa final do aperfeiçoamento do sistema interamericano. É o momento de dar um passo à frente, dotando a vítima de plena capacidade processual internacional no âmbito americano. Tal medida terá por efeito principal fortalecer o sistema interamericano de proteção, uma vez que permitirá à vítima submeter um caso diretamente à Corte, deixando para a Comissão o trabalho de auxiliar da Corte, bem assim o de guardiã da Convenção Americana.

Palavras-chave: Direitos Humanos – Sistema Interamericano de Proteção – Comissão e Corte Interamericanas – Vítima – Capacidade Processual.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. PROBLEMA DA PESQUISA. 2. OBJETIVO. 3. METODOLOGIA. 4. REFERENCIAL TEÓRICO. 5. SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 5.1 INTRODUÇÃO. 5.2 PRECEDENTES HISTÓRICOS NO PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 5.3 CONCEPÇÃO CONTEMPORÂNEA DOS DIREITOS HUMANOS. 6. O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 6.1 INTRODUÇÃO. 6.2 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. 6.3 CORTE INTERAMERICANADE DIREITOS HUMANOS. 7. A IMPOSSIBILIDADE DE A VÍTIMA SUBMETER UM CASO DIRETAMENTE À CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS – NECESSIDADE DE APERFEIÇOAMENTO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 9. REFERÊNCIAS.


INTRODUÇÃO

A crescente universalização dos direitos humanos, iniciada sob o viés contemporâneo a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, exige a criação de instrumentos aptos à concretização material desses direitos.

Nesta perspectiva, é essencial que haja um constante aperfeiçoamento dos sistemas de proteção dos direitos humanos, em especial do Sistema Internamericano de Proteção dos Direitos Humanos, a fim de fortalecer a proteção dos direitos humanos no continente americano.

Neste contexto de afirmação e de reconhecimento dos direitos humanos no cenário internacional, bem como do aumento da justicialização de tais direitos, tem-se que é importante analisar o desenvolvimento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em especial a questão pertinente à capacidade processual da vítima ou de seu representante legal em peticionar diretamente perante à Corte Interamericana, desde o início do procedimento, uma vez que o reconhecimento pleno do jus standi in judicio da vítima se configura como um pressuposto imprescindível ao aprimoramento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.

Com este objetivo, no primeiro capítulo, busca-se apresentar uma noção geral do Sistema Internacional de Direitos Humanos, com enfoque no estudo dos principais fundamentos que dão embasamento à denominada concepção contemporânea de direitos humanos.

Para tanto, num primeiro momento, serão apontados os principais precedentes históricos que contribuíram de modo significativo para o processo de internacionalização dos direitos humanos. Três movimentos internacionais serão destacados: o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Num segundo momento, a análise será centrada em apontar os fundamentos que deram origem à chamada concepção contemporânea de direitos humanos, bem como compreender qual a importância desta concepção dentro do Sistema Internacional de Direitos Humanos.

No segundo capítulo, aborda-se a estrutura jurisdicional do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Inicialmente, serão feitas algumas observações genéricas acerca do sistema interamericano, com destaque para o principal instrumento de proteção deste sistema, qual seja, a Convenção Americana de Direitos Humanos, também denominada de pacto de San José da Costa Rica.

Na sequência do segundo capítulo, serão apresentados, em linhas gerais, os principais aspectos estruturais do funcionamento dos dois órgãos jurisdicionais do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos responsáveis pela apuração dos casos de violações de direitos humanos ocorridos no continente americanos. São eles: a Comissão Interamericana e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Por fim, no terceiro capítulo, trata-se da questão pertinente à impossibilidade de a vítima ou seu representante legal submeter um caso diretamente perante à Corte interamericana. Para tanto, procurar-se-á demonstrar que o reconhecimento do jus standi in judicio da vítima é necessário ao aprimoramento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, notadamente porque o desafio que se apresenta na atualidade não é o de reconhecer direitos, mas, o de protegê-los.

Nesta perspectiva, poderá ser constatado pelos leitores que, a despeito de a sistemática vigente ter contribuído para a proteção dos direitos humanos nas Américas, o acesso direto da vítima à Corte Interamericana permitirá uma maior democratização do sistema, além de fortalecer o crescente processo de justicialização dos direitos humanos.


1. PROBLEMA DA PESQUISA

O não reconhecimento da capacidade processual ampla da vítima (ou seu representante legal) para demandar o Estado violador de uma norma de proteção aos Direitos Humanos perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos constitui-se em um óbice ao aperfeiçoamento do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos?


2. OBJETIVO

O presente trabalho tem por objetivo analisar a questão envolvendo o reconhecimento do jus standi in judicio da vítima ou seu representante legal no procedimento perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos como condição necessária ao pleno desenvolvimento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.


3. metodologia

A metodologia de pesquisa do presente trabalho terá por base de investigação o método dedutivo e terá como procedimento técnico a pesquisa bibliográfica.


4. referencial teórico

A doutrina especializada reconhece que o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos tem desempenhado um papel importante no que se refere à proteção dos direitos humanos no continente americano.

No entanto, esta mesma doutrina entende que, a despeito de o sistema ter avançado na sua atuação, mormente em face do novo Regulamento da Corte Interamericana de 2000 – atualizado em 2009 – o qual possibilitou às vítimas apresentar suas razões perante à Corte quando já instaurada a jurisdição desta, é preciso medidas efetivas com a finalidade aprimorá-lo ainda mais, de molde a ampliar cada vez mais a proteção dos direitos humanos.

Nesta perspectiva, Piovesan (2011, p. 157) aponta algumas propostas com objetivo de permitir o aprimoramento do sistema intermericano. Entre as propostas apresentadas pela autora, está a que imprime maior democratização ao sistema interamericano, por meio do acesso direto da vítima à Corte Interamericana, hoje restrito apenas à Comissão e aos Estados.

Cançado Trindade compartilha do mesmo entendimento:

Do locus standi in judicio dos indivíduos ante a Corte Interamericana teremos que evoluir rumo ao reconhecimento,mais adiante, do direito dos indivíduos de demandarem aos Estados-partes diretamente ante a futura Corte Interamericana, levando diretamente a esta casos concretos (jus standi), como órgão jurisdicional único de proteção por vir (CANÇADO TRINDADE, 2000, p. 148).

De fato, a crescente demanda pela justicialização dos direitos humanos no continente americano exige medidas conducentes ao aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção. Entre elas, está em dotar o indivíduo de capacidade processual plena perante à Corte, reconhecendo-o como verdadeiro sujeito de direitos no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Como observa Cançado Trindade (2000, p. 147), “Não é razoável conceber direitos no plano internacional sem assegurar a capacidade correspondente de vindicá-los”.


5. Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos

5.1 Introdução

Este capítulo visa, tão somente, apontar os principais fundamentos que dão embasamento a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, de modo a melhor justificar as conclusões articuladas no sétimo capítulo, no sentido de que a justicialização dos direitos humanos merece um aperfeiçoamento no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, compatível com a importância dada a tais direitos pela Sociedade Internacional na atualidade.

Entretanto, ressalta-se que o presente capítulo não tem por objetivo fazer uma análise aprofundada acerca das razões e fatos que contribuíram para o fortalecimento e reconhecimento dos direitos humanos no âmbito internacional.

5.2 Precedentes Históricos no Processo de Internacionalização dos Direitos Humanos

Sem desconhecer a importância de outros fatos históricos[1] que contribuíram para processo de evolução e de afirmação dos direitos humanos, notadamente por se constituírem eventos que ajudaram a moldar o conteúdo do princípio da dignidade humana – valor que dá significação e fundamentação a todo e qualquer direito humano – podem-se destacar os seguintes movimentos internacionais como marcos ao processo de internacionalização de direitos humanos: a) o Direito Humanitário; b) a Liga das Nações; c) a Organização Internacional do Trabalho (MAZZUOLI, 2010, p. 757).

De acordo com Swinarski (1988), citada por Mazzuoli (2010), o Direito Humanitário pode ser definido como:

Conjunto de normas internacionais, de origem convencional ou consuetudinária, especificamente destinado a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias, o direito das Partes em conflito de escolher livremente os métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege as pessoas e os bens, ou que possam ser afetados pelo conflito (MAZZUOLI, 2010, p. 755-756).

Logo, considerando lógica de que o Direito Internacional visa precipuamente proteger todas as pessoas pelo simples fato destas ostentarem a condição de ser humano, o Direito Humanitário representou e ainda representa um núcleo mínimo que os Estados devem respeitar, ainda que em situação extrema, de conflito armado, sob pena de negar efetividade prática ao denominado Direito de Genebra.

Nesse sentido, Piovesan (2011, p. 169-170) aponta que o Direito Humanitário “É o Direito que se aplica na hipótese de guerra, no intuito de fixar limites à atuação do Estado e assegurar a observância dos direitos fundamentais”.

Sobre o Direito Humanitário, cumpre registrar, ainda, a sua estreita relação com a Cruz Vermelha, instituto que tem por objetivo prestar assistência a todas as pessoas que são vítimas (militares fora de combate, prisioneiros, feridos, inclusive a população civil afetada pelo conflito) das guerras e a todos aqueles que se encontram em situação de extrema necessidade.

O segundo precedente importante na construção do Direito Internacional dos Direitos Humanos foi a criação da Liga das Nações, em 1920, a qual tinha como principal finalidade a promoção da cooperação, paz e segurança internacional, a fim de evitar agressões externas contra a integridade territorial de seus membros, propiciando, outrossim, a independência política destes (PIOVESAN, 2011, p. 170).

Como é sabido, o esforço em criar um organismo internacional que impusesse limites aos Estados e tivesse a força de evitar uma nova guerra mundial não foi bem sucedido. Embora o foco desta monografia não seja aprofundar os motivos pelos quais a bem intencionada Liga das Nações[2] não atingiu os seus objetivos, saliente-se que ela se constitui em um esforço internacional voltada à proteção dos Direitos Humanos, ao buscar, em alguma medida, relativizar a noção clássica de soberania absoluta dos Estados em prol da paz e segurança mundial.

Por fim, impende tecer algumas palavras relativas à Organização Internacional do Trabalho (OIT), terceiro precedente histórico acima noticiado, o qual, devido a sua atualidade, configura-se como o mais importante, tendo em vista que a atuação deste Organismo no cenário internacional objetiva estabelecer direitos e garantias aos trabalhadores, contribuindo sobremaneira para formação de um núcleo de direitos humanos sociais, cuja finalidade é conferir dignidade ao trabalhador no exercício de sua atividade profissional.

Na visão de Henkin (1993), citado por Piovesan (2011):

A Organização Internacional do Trabalho foi um dos antecedentes que mais contribuiu à formação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A Organização Internacional do Trabalho foi criada após a Primeira Guerra Mundial para promover parâmetros básicos de trabalho e bem-estar social. Nos setenta anos que se passaram, a Organização Internacional do Trabalho promulgou mais de uma centena de Convenções Internacionais, que receberam ampla adesão e razoável obsevância (PIOVESAN, 2011, p.171).

A fim de corroborar a importância impar da Organização Internacional do Trabalho no processo de consolidação dos Direitos Humanos no plano internacional, destaca-se o fato que, nesta seara, a implementação de tais direitos – ditos de segunda geração ou dimensão – se deu antes dos direitos civis e políticos – ditos de primeira geração ou dimensão – uma vez que estes vieram a ser positivados por meio do Pacto Intercional de Direitos Civis e Políticos de 1966, enquanto aqueles, com se sabe, começaram a ser efetivados com a instituição da Organização Internacional do Trabalho, em 1919.

Assim, a partir de algumas considerações acerca dos três institutos, destacados como os principais precedentes históricos ao processo de internacionalização dos direitos humanos, é possível concluir que todos contribuíram de alguma forma para superação de obstáculos ao reconhecimento dos Direitos Humanos como matéria imprescindível à agenda dos Estados, permitindo-se, assim, a fixação da premissa de que a soberania estatal deveria ser vista como uma garantia ao respeito aos Direitos Humanos, e não um escudo para a prática de ações que se constituam em violações sistemáticas a tais direitos.

Nesse particular, oportunas são as palavras de Piovesan:

Vale dizer, o advento da Organização Internacional do Trabalho, da Liga das Nações e do Direito Humanitário registra o fim de uma época em que o Direito Internacional era, salvo raras exceções, confinado a regular relações entre Estados, no âmbito estritamente governamental. Por meio desses institutos, não mais se visava proteger arranjos e concessões recíprocos entre os Estados visava-se, sim, o alcance de obrigações internacionais a serem garantidas ou implementadas coletivamente, que, por sua natureza, transcendiam aos interesses exclusivos dos Estados contratantes. Essas obrigações internacionais voltavam-se à salvaguarda dos direitos do ser humano e não das prerrogativas dos Estados. Tais institutos rompem, assim, com o conceito tradicional que situava o Direito Internacional apenas como a lei da comunidade internacional dos Estados e que sustentava ser o Estado o único sujeito de Direito Internacional. Rompem ainda com a noção de soberania nacional absoluta, na medida em que admitem intervenções no plano nacional, em prol dos direitos humanos (PIOVESAN, 2011, p. 173-174).

Nesta mesma linha de raciocínio, mister transcrever as observações de Mazzuoli acerca dos efeitos positivos dos precedentes mencionados:

É neste cenário que começam a aparecer os primeiros contornos do Direito Internacional dos Direitos Humanos, afastando-se a ideia de soberania absoluta dos Estados, em seu domínio reservado, e erigindo os indivíduos à posição, de há muito merecida, de “sujeitos de Direito Internacional”, dando-lhe mecanismos processuais eficazes para a salvaguarda de seus direitos internacionalmente protegidos. A partir desse momento histórico emerge finalmente a concepção de que o indivíduo não é apenas objeto, mas também sujeito do Direito Internacional Público (MAZZUOLI, 2010, p. 759).

Como se pode observar, os institutos citados tiveram um impacto importante na consolidação da ideia de que o indivíduo merecia uma atenção diferenciada no Direito Internacional Público, porquanto a proteção aos direitos humanos exige o compromentimento da sociedade internacional com um todo, de modo que qualquer fundamento de ordem interna dos Estados não deve se constituir em óbice ao pleno reconhecimento do indivíduo como sujeito de direitos na esfera internacional.

A premissa de que o indivíduo passa a ser considerando como sujeito apto a fazer valer os seus direitos no âmbito internacional é essencial à concretização dos direitos humanos, explorada no decorrer do trabalho, em especial no sétimo capítulo, oportunidade em que será defendida a capacidade processual ampla da vítima perante à Corte Interamericana de Direitos Humanos.

5.3 Concepção Contemporânea de Direitos Humanos

Os precedentes mencionados no capítulo anterior tiveram o mérito de questionar, cada uma ao seu modo, a soberania absoluta dos Estados, introduzindo a pauta dos direitos humanos como um limite à atuação arbitrária destes Estados, permitindo, desta maneira, a formação de uma consciência internacional de que as pessoas devem ter a sua dignidade minimamente preservada, independentemente de sua condição e do local em que se encontrem.

Assim, a forma como os Estados tratam as questões envolvendo a proteção dos direitos humanos passa a ser matéria que interessa a sociedade internacional, motivo pelo qual não devem ser aceitos argumentos de ordem interna como pretexto para descumprir normas de natureza internacional imperativas, elaboradas no intuito de protege a dignidade humana.

O processo de evolução dos direitos humanos, ainda embrionário por assim dizer, foi abruptamente interrompido pela eclosão da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Este período foi marcado pelas mais graves violações aos direitos humanos, dizimando, ao que se sabe, mais de 60 milhões de vidas, em sua grande maioria civis, ou seja, seis vezes mais do que na Primeira Guerra Mundial, em que a maior parte das vítimas eram militares (COMPARATO, 2010, p. 225).

Os fatos que contribuíram para a realização da Segunda Guerra Mundial não têm maior relevância para o andamento do trabalho. No entanto, é preciso destacar que após o seu término efetivamente os Estados resolveram agir[3], ante a imperiosa necessidade da criação de mecanismos que pudessem preservar a própria existência humana, porque o retrato da Segunda Guerra era assustador.

Nesta ordem de ideias, Comparato assevera que:

As consciências se abriram, enfim, para o fato de que a sobrevivência da humanidade exigia a colaboração de todos os povos, na reorganização das relações internacionais com base no respeito incondicional à dignidade humana (COMPARATO, 2010, p. 226)

Nasce, em razão dessa nova perceção, um novo tempo, uma nova ordem, nasce o Direito Internacional dos Direitos Humanos na feição em que hoje é vivenciado, ou seja, em sua concepção contemporânea. Na lição de Piovesan (2000, p.18), “Se a 2ª Guerra Mundial significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução”.

Nas palavras de Buergenthal (1988), citado por Piovesan (2011):

O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção internacional de direitos humanos existisse (PIOVESAN, 2011, p. 175).

Obviamente, como não poderia deixar de ser, o caminho para a consolidação dos direitos não foi fácil, ao contrário, perpassou por inúmeras situações de dificuldades, de lutas e de ações emancipatórias. Nesta esteira, entende-se como Piovesan (2010, p. 16) que “Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer”. Ou como ressalta Bobbio (1988), citado por Piovesan (2010), “os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Nesta mesma lógica, imperioso mencionar a clássica formulação de Hannah Arendt (1979), também citada por Piovesan (2010),  ao afirmar que “os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução”.

Em síntese, o processo de amadurecimento dos direitos humanos como pauta essencial nas relações internacionais foi fruto de luta duras, de alguns retrocessos por vezes, mas, por sua característica de historicidade, permitiu a formação de uma base sólida de valores, que dá fundamento à precitada concepção contemporânea dos direitos humanos.

O grande marco que inaugura concretamente a concepção contemporânea de direitos humanos é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 10 de dezembro de 1948, baseada na ideia de que os direitos humanos são universais e indivisíveis.

A propósito das características da universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, imprescindível trazer à lume a definição de Piovesan:

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada (PIOVESAN, 2000, p. 18).

A Declaração Universal dos Direitos Humanos traz para o centro das discussões internacionais a importância de se preservar a dignidade do ser humano contra o poder quase que absoluto dos Estados. Fortalece-se a premissa de que o tema direitos humanos não se circunscreve mais aos interesses das fronteiras dos Estados, mas ganha dimensão e preocupação internacional.

Esta nova postura internacional traz, segundo a doutrina, duas importantes consequências, embora se possa afirmar que elas, como já referido anteriormente, se fizeram sentir em alguma medida como efeitos dos precedentes históricos trabalhados no tópico anterior.

No entanto, a afirmação plena destes fatos, com resultados concretos no Direito Internacional dos Direitos Humanos, decorre da concepção contemporânea dos direitos humanos.  Tais fatos são: a) a relativação da noção de soberania absoluta dos Estados, a fim de permitir a intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos; b) a fixação da ideia de que indivíduo possui direitos no plano internacional, possuindo, em razão disso, capacidade processual internacional (PIOVESAN, 2000, p. 19).

Com este novo panorama, começa um crescente processo de codificação de normas objetivando a proteção dos direitos humanos, tendo o indivíduo como preocupação maior. À Declaração das Nações Unidas, seguiu-se a celebração de inúmeros tratados, convenções e pactos de natureza internacional ou regional, acentuando a vocação dos direitos humanos de expandir fronteiras (BRANCO, 2009, p. 288).

Como aponta com precisão Mazzuoli (2010, p. 760), cuida-se de um momento considerado como verdadeiro divisor do processo de internacionalização dos direitos humanos, uma vez que antes disso a proteção dos direitos humanos era mais ou menos restrita às legislações interna dos países e, de outro lado, o Direito Humanitário integrava uma agenda internacional nas hipóteses de guerras.

Nesta perspectiva, oportuno registrar o pensamento de Piovesan sobre este novo sistema de proteção de direitos humanos, formado a partir da universalização dos direitos humanos:

Tal sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos – “mínimo ético irredutível” (PIOVESAN, 2011, .41).

De fato, denotando preocupação ímpar com o indivíduo, o Direito Internacional dos Direitos Humanos colmatou-se em uma realidade impressionante, que buscou proteger o indivíduo, nacional de um Estado ou não, de violações a direitos fundamentais em qualquer lugar em que se encontre (ANNONI, 2009, p. 25).

Esta realidade foi moldada a partir da integração do sistema global de proteção dos direitos humanos com o surgimento dos sistemais regionais de proteção, em especial o sistema Europeu, Americano e Africano. Ao lado disso, é digno de nota, que inúmeros instrumentos específicos[4] de proteção dos direitos humanos surgiram no cenário mundial, conferindo proteção à dignidade de grupos de forma diferenciada. Ainda, faz-se necessário fazer menção, dentro do sistema global, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966.

A necessária interação destes sistemas é medida compatível com uma proteção abrangente e efetiva dos direitos humanos, de modo que quem ganha é o próprio indivíduo, tendo em vista passar a dispor de vários instrumentos juridicamente viáveis à proteção de eventual direito violado.

Dentro deste contexto, Piovesan afirma:

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção dos direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, estes sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito dos Diretos Humanos. (PIOVESAN, 2010, p. 19)

Em complemento a todo este aparato normativo narrado, tem-se como fundamental, ainda, fazer referência à Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, a qual reafirma a concepção da Declaração de 1948, ao ressaltar que os direitos humanos são universais, interdependentes e interrelacionados. Além disso, a Declaração de Viena afirma a interdependência entre os valores dos Direitos Humanos, Democracia e Desenvolvimento (PIOVESAN, 2010, p. 19)

De tudo o que já foi dito, em síntese, pode-se afirmar que a concepção contemporânea dos direitos humanos nasce a partir da consciência dos Estados de que as atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial não poderiam mais se repetir, sob pena de se comprometer a própria existência humana.

Em razão disso, em especial a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, vários instrumentos normativos são pactuados entre os Estatos, tanto no âmbito internacional propriamente, quando nos âmbitos regionais, formando um expectro de normas cujo objetivo principal é a proteção dos direitos humanos, sob as bases do principío da dignidade da pessoa humana.

Um dos efeitos principais desta normatividade é atribuir ao indivíduo a condição de sujeito de direito no cenário internacional, abrindo-se a ele a possibilidade de buscar a defesa de seus direitos perante às Cortes Internacionais.

Como será abordado no capítulo sétimo, a principal questão não é mais a de reconhecer direitos aos invdivíduos, porque hoje é possível dizer que há um sistema normativo consolidado de proteção de direitos humanos, respeitado e reconhecido pelos Estados como arena adequada à discussão de casos que envolvam violações aos direitos humanos, com algumas exceções é claro.

Em suma, o que a moderna concepção contemporânea dos direitos humanos exige dos Estados, e de todas as pessoas que prezam pela primazia dos direitos humanos, é a busca incessante pelo aperfeiçoamento do sistema, de modo que a pessoa que tiver algum de seus essenciais direitos fundamentais violados possa efetivamente protegê-los.

É exatamente isso que o trabalho buscará demonstrar a seguir: necessidade de aperfeiçoamento dos instrumentos de efetivação dos direitos humanos, em particular, os pertinentes ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

 


6. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos

6.1 Introdução

Como é cediço, ao lado do sistema global de proteção dos direitos humanos, existem os sistemas regionais de proteção (v.g o europeu e o africano). Ao presente trabalho, interesse de forma especial o sistema interamericano, formado por quatro principais instrumentos: a Carta da Organização dos Estados Americanos (1948); a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), conhecida como Pacto de San José da Costa Rica; e o Protocolo Adcional à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988), também nominado de Protocolo de San Salvador (MAZZUOLI, 2010, p. 825).

Tendo em vista o desiderato desta pesquisa, na primeira parte deste capítulo serão feitas apenas algumas considerações genéricas, todavia pontuais, acerca do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, e, na segunda parte, serão feitas observações mais detalhadas sobre a estrutura dos órgãos especiais de proteção e de promoção dos direitos humanos no âmbito do continente americano: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Com efeito, a análise do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos dever se feita a partir do contexto geográfico em que está inserido este sistema. Isso porque o sistema interamericano de proteção configura-se em referencial importantíssimo numa região que até pouco tempo atrás era marcada por regimes ditatoriais que, como se sabe, não tinham muito apreço pelos direitos humanos. Desse contexto, advém a preocupação da presente pesquisa: apresentar uma discussão (que não é nova na doutrina, evidentemente) que possa contribuir para o aperfeiçoamento do sistema interamericano, de modo a oferecer às vítimas meios mais celéres e eficazes à proteção dos direitos humanos, minimizando os entraves existentes na maioria dos países do continente americano que lutam para consolidar os valores do respeito à democracia e à dignidade da pessoa humana.

Nesta linha argumentativa, têm-se como relevantes as observações feitas por Piovesan:

A análise do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos demanda seja considerado o seu contexto histórico, bem como as peculiaridades regionais. Trata-se de uma região marcada pr elevado de exclusão e desigualdade social, ao qual se somam democracias em fase de consolidação. A região ainda convive com as reminiscências do legado dos regimes autoritários ditatoriais, com uma cultura de violência de violência e de impunidade, com a baixa densidade de Estados de Direito e com a precária tradição de respeito aos direitos humanos no âmbito doméstico (PIOVESAN, 2011, p. 123).

Efetivamente, foi neste contexto que o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos foi se estruturando, desempenhando, com o passar dos anos, um papel de suma importância na promoção dos direitos humanos. É bem verdade que a onda democrática vivenciada nos países latino-americanos nos últimos tempos tiveram o efeito de fazer com os Estados reavaliassem as suas posturas em relação ao tema direitos humanos, a partir da percepção de que a democracia somente se sustenta se os direitos humanos forem levados a sério.

Nesta ordem de ideias, mister fazer referência ao principal instrumento de proteção do sistema interamericano. Trata-se da Convenção Americana de Direitos Humanos (doravante chamada de Convenção Americana), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, assinada neste país em 1969, tendo, contudo, entrado em vigor em 1978.

A importância da Convenção para a consolidação da democracia nos países latino-americanos é indiscutível, pois, à medida que os Estados passam a aderi-la, assumem o compromisso internacional de respeitar e fazer valer os seus termos.

Como ressalta Mazzuoli (2010, p. 826), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos fortaleceu o sistema regional interamericano de proteção, inaugurado com a Carta da OEA e explicitado pela Declaração Americana, sobretudo por dar mais efetividade à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Ainda, relativamente à Convenção, impende consignar que ela basicamente assegure os chamados direitos de primeira geração ou dimensão, àqueles relativos à garantia da liberdade, à vida, o direito à liberdade, o direito à igualdade, não fazendo referência específica aos direitos econômicos, sociais e culturais, que somente foram objeto de conveção por ocasião da conclusão do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (ANNONI, 2009, p.88-89).

Na Convenção Americana há a previsão de dois instrumentos de promoção e efetivação dos direitos humanos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, acima mencionada, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tais instrumentos serão analisados de forma mais pormenorizada nos tópicos seguintes, notadamente porque a compreensão de como estes organismos funcionam será importante para uma melhor fundamentação das questões a serem abordadas no sétimo capítulo.

Anote-se, por fim, que o propósito não será o de apresentar e discutir casos específicos apreciados e julgados pela Comissão e pela Corte Interamericanas, mas, ao revés, tendo em conta o objetivo do trabalho, apenas tecer observações um tanto quanto genéricas sobre a estrutura de funcionamento destes órgãos.

6.2 Comissão Interamericana de Direitos Humanos

Imprescindível ao desenvolvimento da presente pesquisa é o exame detalhado de como funciona a Comissão Intermericana de Direitos Humanos, com enfâse em sua estrutura.

De efeito, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem origem na Resolução VIII da V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, ocorrida em Santiago (Chile) em 1959. Entretanto, a Comissão iniciou seus trabalhos apenas no ano seguinte, em conformidade com o disposto no seu primeiro estatuto, tendo por escopo promover tanto os direitos estabalecidos na Carta da OEA, quanto àqueles relativos à Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (MAZZUOLI, 2010, p. 827).

A Comissão tem competência para conhecer de todos os assuntos relacionados ao cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados ao assinar a Convenção Americana de Direitos Humanos, bem assim em relação aos Estados membros da Organização dos Estados Americanos, relativamente aos direitos consagrados na Declaração Americana de 1948 (PIOVESAN, 2011, p.129).

Nos termos do art. 34 da Conveção Americana de Direitos Humanos, a Comissão compõe-se de sete membros, que deverão ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos. Os membros da Comissão serão eleitos a título pessoal, pela Assembléia Geral da Organização, a partir de uma lista de candidatos propostos pelos governos dos Estados-membros (art. 36-1 da Convenção). Em acréscimo, é preciso registrar que os membros da Comissão serão eleitos para um mandato de quatro anos e só poderão ser reeleitos uma vez (art. 37-1 da Convenção).

Entre as atribuições conferidas à Comissão, a fim de efetivar e promover os direitos humanos no espaço geográfico de sua competência, oportuna a síntese articulada por Mazzuoli. Veja:

No exercício de seu mandato, a Comissão Interamericana tem as seguintes funções e atribuições (art. 41): a) estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América; b) formular recomendações aos governos dos Estados-membros, quando considerar conveniente, no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucionais, bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos; c) preparar estudos ou relatórios que considerar convenientes para o desempenho de suas funções; d) solicitar aos governos dos Estados-membros que lhe proporcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos (podendo, inclusive, realizar inspeções in loco nesses Estados; e) atender às consultas que, por meio da Secretaria Geral da OEA, lhe formularem os Estados-membros sobre questões relacionadas com os direitos humanos e, dentro de suas possibilidades, prestar-lhes o assessoramento que solicitarem; f) atuar com respeito às petições e outras comunicações, no exercício de sua autoridade, de conformidade com o disposto nos arts.44 a 51 da Convenção Americana; e g) apresentar um relatório anual à Assembléia-Geral da OEA (MAZZUOLI, 2010, p. 828).

Como se vê, à Comissão foram conferidas inúmeras atribuições como meio para permitir a este órgão uma atuação destacada e efetiva na proteção dos direitos humanos previstos na Convenção Americana[5], bem como em relação àqueles estatuídos pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.

Dentre as funções da Comissão, importa aprofundar a análise sobre o mecanismo de denúncias individuais ou grupos de indivíduos, ou, ainda, dos outros legitimados, realizadas com o intuito de fazer valer os direitos humanos na América.

A importância do mecanismo de proteção inaugurado pela Comissão é lembrado Galli e Dulitzky, ao afirmarem que:

O uso deste mecanismo deve ser encarado como parte de um processo de lutas políticas e sociais históricas, pela efetiva melhora das condições de vida dos grupos sociais mais vulneráveis da sociedade brasileira (GALLIS e DULITZKY, 2000, p. 54).

Embora a citação faça menção à proteção de direitos humanos no âmbito da sociedade brasileira, é evidente que a função da Comissão representa para toda América, em especial para aqueles países em que a violação aos direitos humanos se deu de forma mais intensa, um espaço no qual as violações aos direitos humanos são tratadas de forma séria, contribuindo, dessa forma, para formação de uma consciência de que os direitos humanos são vitais para o progresso dos Estados.

Dito isso, cumpre examinar o procedimento de justicialização dos direitos humanos perante à Comissão com um grau maior de especificidade, procurando destacar, desde já, a capacidade do indivíduo em apresentar uma denúncia junto à Comissão, tendo em vista que o seu acesso direto à Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda é bastante limitado, que, na linha que é defendida neste trabalho, constitui-se em óbice a uma maior eficiência do sistema, circunstância que será melhor debatida no sétimo capítulo.

Pois bem, o art. 44 da Convenção prevê que qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou determinadas entidades, bem como os Estados-membros da OEA, têm legitimidade para apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violações de direitos humanos por um Estado-parte.

A fim de instaurar a jurisdição da Comissão, faz-se necessária a apresentação de uma petição perante à Comissão, a qual deverá preencher alguns requisitos de admissibilidade, elencados no art. 46, § 1º, da Convenção[6]. Em relação aos requisitos de admissibilidade, ressalte-se que eles são praticamente os mesmos estabelecidos pela Convenção Européia, com exceção ao requisito atinente ao esgotamento dos recursos internos, que no sistema europeu é dito como indispensável, ao passo que no sistema interamericano é considerado mais flexível (ANNONI, 2009, p. 93).

No que se refere ao requisito do esgotamento dos recursos internos, Cançado Trindade, citado por Piovesan (2011, p. 132), assim leciona:

Como se sabe, estamos diante da regra de Direito Internacional em virtude da qual se deve dar ao Estado a oportunidade de reparar um suposto dano no âmbito de seu próprio ordenamento jurídico interno, antes de que se possa invocar sua responsabilidade internacional, trata-se de uma das questões que, com maior freqüência, é suscitada no contencioso internacional, concernente tanto à proteção diplomática de nacionais no exterior, como à proteção internacional dos direitos humanos. (...) O dever de provimento pelos Estados-partes de recursos internos eficazes, imposto pelo tratado de direitos humanos, constitui o necessário fundamento no direito interno do dever correspondente dos indivíduos reclamantes de fazer uso de tais recursos antes de levar o caso aos órgãos internacionais. Com efeito, é precisamente porque os tratados de direitos humanos impõem aos Estados-partes o dever de assegurar às supostas vítimas recursos eficazes perante as instâncias nacionais contra violações de seus direitos reconhecidos (nos tratados ou no direito interno), que, reversamente, requerem de todo reclamante o prévio esgotamento dos recursos de direito interno como condição de admissibilidade de suas petições a nível internacional (PIOVESAN, 2011, p. 132).

Em sendo admitida a petição, porque presentes os requisitos de admissibilidade, abre-se, efetivamente, o procedimento perante à Comissão, que deverá proceder de acordo com as disposições do art. 48 da Convenção, as quais serão pormenorizadas a seguir.

A primeira providência a ser adotada pela Comissão é solicitar informações ao Estado denunciado, de modo que o contraditório seja observado. Com as informações, prestadas em um prazo fixado pela Comissão em atenção às peculiaridades do caso concreto, a Comissão fará uma análise a fim de examinar se existem ou não os motivos descritos na petição ou comunicação. Caso a Comissão conclua pela inexistência dos fatos articulados na petição, esta será arquivada. Ressalte-se que a inadmissibilidade ou improcedência da petição poderá ser declarada por informação ou prova supervenientes.

Ao contrário, se a conclusão for noutro sentido, a Comissão procederá, com o conhecimento das partes, a um exame dos fatos expostos na petição ou comunicação. Em sendo necessário e conveniente, a Comissão procederá a uma investigação, devendo os Estados e as partes interessadas proporcionar todas as facilidades necessárias a esta investigação.

Além disso, a Comissão poderá solicitar aos Estados interessados qualquer informação pertinente e receberá, caso solicitado, as exposições verbais ou escritas dos interessados. Por fim, ainda na primeira etapa do procedimento, a Comissão pôr-se-á à disposição das partes interessadas, a fim de chegar a uma solução amistosa do assunto, fundada no respeito aos direitos reconhecidos na Convenção Americana.

Um exemplo de solução amistosa alcançada a partir da atuação da Comissão é o caso do jornalista argentino Horácio Verbistsky, condenado pelo crime de desacato ao Ministro da Suprema Corte Argentina. Na hipótese, Verbistsky alegou ofensa ao art. 13 da Convenção Americana, que trata da liberdade de pensamento e opinião, bem assim ao art. 8 da Convenção, que garante o direito de um julgamento imparcial e independente pelo tribunal competente. No acordo celebrado, o governo argentino comprometeu-se a revogar os dispositivos da lei de desacato, beneficiando, dessa forma, Verbistsky, em face do princípio da leis posterior mais benéfica. Por outro lado, o peticionante renunciou ao pleito de indenização por danos morais. Ao final, o acordo foi cumprido e o caso arquivado pela Comissão (ANNONI, 2009, p. 96-97).

Importante fazer alusão à previsão contida no art. 48-2 da Convenção, no sentido de que em casos graves e urgentes, é possível a realização de uma investigação, mediante prévio consentimento do Estado em cujo território se alegue haver sido cometida a violação, sendo exigida apenas uma petição ou comunicação que preencha os requisitos formais de admissibilidade.

Quanto a este aspecto procedimental, frise-se que a Comissão já procedeu (e vem procedendo) a inúmeras investigações in loco, com o objetivo de apurar violações ao direito à vida, à integridade física, entre outros direitos assegurados pela Convenção e a Declaração Americana.

Exemplificativamente, cite-se a atuação, neste particular, da Comissão na Colômbia. Neste país, a Comissão vem monitorando a questão dos direitos humanos desde o início da década de 80, quando ocorreu a primeira visita in loco, de 21 a 28.04.1980. Na ocasião, a Comissão teve importante participação na solução do problema envolvendo a invasão da Embaixada da República Dominicana por um grupo guerrilheiro chamado M-19. Tal fato gerou o primeir relatório da Comissão sobre a Colômbia, e a criação de um grupo especial de monitoramento do país desde então (ANNONI, 2009, 100-101).

Alcançada uma solução amistosa para o caso submetido à apreciação da Comissão, esta elaborará um informe que será transmitido ao peticionário e aos Estado-partes da Convenção Americana, sendo comunicado posteriormente à Secretaria da Organização dos Estados Americanos (OEA) para publicação. O informe conterá uma breve exposição dos fatos e a solução alcançada (PIOVESAN, 2011, p. 319).

Todavia, não solucionado o caso de forma amistosa, a Comissão redigirá um relatório, no qual exporá os fatos e suas conclusões. Acerca do conteúdo do relatório, Buergenthal, citado por Piovesan (2011, p. 320), tece a seguinte observação:

É importante notar que o relatório elaborado pela Comissão, na terceira fase do procedimento, é mandatório e deve conter as conclusões da Comissão indicando se o Estado referido violou ou não a Convenção Americana.

Decorridos três meses da remessa do relatório aos Estados interessados, aliada a circunstância de o caso apresentado à Comissão não ter sido solucionado ou, ainda, não submetido à Corte pela Comissão ou pelo Estado interessado, a Comissão publicará um segundo informe. Por sua vez, neste segundo informe, a Comissão poderá emitir, pelo voto da maioria absoluta dos membros, sua própria opinião e conclusões sobre a questão submetida a sua apreciação. Anote-se que na fase do segundo informe, somente ocorrerá se o assunto não tiver sido solucionado pela Comissão ou submetido à decisão da Corte, na hipótese de o Estado não ser parte da Convenção Americana, ou, em sendo, não ter ainda reconhecido a competência contenciosa da Corte (MAZZUOLI, 2010, p. 831).

Nesta oportunidade, a Comissão fará recomendações que julgar pertinentes ao caso em exame, fixando, outrossim, um prazo dentro do qual o Estado deve tomar medidas que lhe competir para remediar a situação.

Transcorrido o prazo estabelecido pela Comissão, esta decidirá, pelo voto da maioria absoluta dos seus membros, se o Estado tomou ou não as medidas necessárias e se publica ou não seu relatório.

De acordo com Annoni (2009, 98), em relação às violações aos direitos humanos ocorridas no Brasil, há em curso várias investigações levadas a efeito pela Comissão, como destaque para os casos do Carandiru (n.11.291), de Corumbiara (n. 11.556), dos Adolescentes internos do Instituto Padre Severino, no Rio de Janeiro (n. 11.702) e dos Desaparecidos do Araguaia (n.11.552).

Como se pôde verificar, a Comissão desempenha um papel de suma importância na proteção dos direitos humanos previstos na Convenção Americana, bem como quanto àqueles nominados na Declaração Americana de 1948. Registra-se, mais uma vez, a ampla capacidade processual conferida ao indivíduo neste órgão, o que, de fato, possibilita que muitas violações aos direitos humanos que não chegariam ao conhecimento da Comissão sejam apreciadas. No entanto, como será discutido adiante, ao fortalecimento do Sistema Interamericano de Proteção, de modo que cada vez mais os direitos humanos sejam respeitados pelos Estados e pelas pessoas, é essencial que ao indivíduo seja conferida capacidade processual perante à Corte, desde o início do procedimento.

6.3 Corte Interamericana de Direitos Humanos

Como referido alhures, além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Sistema Interamericano de Proteção possui outro órgão com competência para promover e efetivar os direitos humanos no âmbito territorial americano. Trata-se da Corte Interamerica de Direitos Humanos, cuja natureza é de tribunal internacional supranacional, capaz de condenar os Estados-partes na Convenção Americana por violação de direitos humanos (MAZZUOLI, 2010)

 Importante frisar que a Corte Interamericana tem origem na Convenção Americana de 1969, não sendo, pois, órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), como ocorre com a Comissão Interamericana, que a um só tempo é órgão tanto da OEA como da Convenção.

Nos termos do estatuto regulador da Corte Interamericana, esta possui competência consultiva e contenciosa. A competência consultiva está detalhada no art. 64 da Convenção, ao passo que a competência contenciosa tem previsão nos arts. 61, 62 e 63 da referida Convenção.

Antes, porém, de examinar com um pouco mais de acuidade a competência consultiva e contenciosa da Corte, mister fazer uma breve exposição de sua estrutura, bem como do procedimento pertinente ao trâmite de uma demanda que aprecie violações aos direitos humanos.

A organização da Corte esta prevista a partir do art. 52-1 da Convenção, observando, inicialmente, que a Corte é composta por sete juízes, nacionais dos Estados-membros da Organização, eleitos a título pessoal dentre juristas da mais alta autoridade moral e com reconhecida competência em matéria de direitos humanos. Saliente-se que não poderá haver dois juízes da mesma nacionalidade.

A eleição dos juízes dar-se-á em votação secreta e pelo voto da maioria absoluta dos Estados-partes na Convenção, por ocasião da realização da assembléia-geral. A lista de candidatos será elaborada pelos Estados-partes, sendo que se algum destes indicar o número de três, obrigatoriamente um deles deverá ser nacional de um Estado diverso do proponente.

Os juízes serão eleitos para um exercício de seis anos e só poderão ser reeleitos uma vez. O juiz que for eleito para substituir outro, cujo mandato não haja expirado, completará o período deste.

Caso um dos juízes chamados para conhecer do caso for de nacionalidade dos Estados-partes, o outro Estado-parte envolvido poderá designar um juiz ad hoc para integrar a Corte. Por outro lado, se, dentre os juízes chamados a apreciar o caso, nenhum for da nacionalidade dos Estados-partes, cada um destes poderá designar um juiz ad hoc. O quorum para as deliberações da Corte é composto por cinco juízes.

A corte designará um secretário, o qual residirá em sua sede, tendo a responsabilidade de assistir às reuniões realizadas pela Corte em territórios de outros Estados-partes.

A Secretaria da Corte será por esta estabelecida e funcionará sob o comando do Secretário-Geral da Organização em tudo o que não for incompatível com a independência da Corte.

Feitas essas considerações gerais atinentes à organização da Corte, cumpre voltar ao exame de sua competência. Como apontado anteriormente, a Corte possui uma competência consultiva e outra contenciosa. Esta é restrita à Convenção Americana de Direitos Humanos e ao Protocolo Adicional de San Salvador, enquanto a consultiva abarca todo o sistema interamericano, de modo que à Corte é franqueada à interpretação de qualquer tratado sobre direitos humanos em vigor nos Estados americanos  (ANNONI, 2009).

Relativamente aos inúmeros pareceres já emitidos pela Corte no exercício da competência consultiva, merece destaque o parecer (Opinião Consultiva n. 3, de 8 de setembro de 1983) sobre a impossibilidade da adoção da pena de morte no Estado da Guatemala (PIOVESAN, 2011, p. 139).

Especificamente quanto à competência contenciosa da Corte, registre-se ser a jurisdição desta limitada aos Estados-partes que expressamente aceitarem sua jurisdição. Relativamente à competência consultiva, a adesão dos Estados-partes se deu de forma automática, no momento em que estes ratificaram a Convenção (MAZZUOLI, 2010).

Vale dizer que a Corte não pode emitir opiniões de ofício no que se refere a sua competência consultiva. A propósito, sobre o conteúdo dos pareceres emanados da Corte no exercício de sua competência consultiva, Pinto (2002) citado por Bolfer (2010, p. 627), assim leciona:

(...) a Corte tem emitido opiniões consultivas que têm permitido a compreensão de aspectos substanciais da Convenção, dentre eles: o alcance de sua competência consultiva, o sistema de reservas, as restrições à adoção da pena de morte, os limites ao direito de associação, o sentido do termo “leis” quando se trata de impor restrições ao exercício de determinado direitos, a exibilidade do direito de retificação ou resposta, o habeas corpus e as garantias judiciais nos estados de exceção, a interpretação da Declaração Americana, as exceções ao esgotamento prévio dos recursos internos e a compatibilidade de leis internas em face da Convenção.

Quanto ao procedimento consultivo, tem-se que o pedido é recebido pelo Secretário da Corte, cuja importância é a de enviar cópias para todos os Estados-partes, à Comissão, ao Secretário-Geral da OEA e aos demais órgãos cuja competência se refira aos termos da consulta. A opinião consultiva tem efeito vinculante, sob pena de os Estados que não observarem incorrem em responsabilização internacional e, ainda, dotado de validade ergam omnes (ANNONI, 2009).

No que tange à competência contenciosa, inicialmente, observa-se que o art. 61 da Convenção Americana estabelece que somente os Estados-partes e a Comissão têm o direito de submeter um caso à decisão da Corte. Neste momento, a informação que importa é esta. Todavia, mais adiante, em especial no terceiro capítulo, o fato de o indivíduo não possuir capacidade processual autônoma perante à Corte será melhor discutido.

Entretanto, com o intuito de amenizar esta restrição (inadequada como se verá oportunamente), a Corte, no ano de 2001, empreendeu uma revisão substancial em seu Regulamento, de molde a assegurar a participação das vítimas perante à Corte, desde que instaurada a jurisdição desta. Assim, permitiu-se às vítimas e aos seus representantes a possibilidade de submeterem os seus argumentos, arrazoados e provas perante à Corte, o que, de fato, constituiu-se em um avanço importante na proteção dos direitos humanos (PIOVESAN, 2011).

Sobre a competência contenciosa da Corte, Cançado Trindade (1993), citado por Piovesan (2011, p. 142), afirma que:

Os Tribunais internacionais de direitos humanos existentes – as Cortes Europeia e Interamericana de Direitos Humanos – não ‘substituem’ os Tribunais internos, e tampouco operam como tribunais de recursos ou de cassação de decisões dos Tribunais internos. Não obstante, os atos internos dos Estados podem vir a ser objeto de exame por parte dos órgãos de supervisão internacionais, quando se trata de verificar a sua conformidade com as obrigações internacionais dos Estados em matéria de Direitos Humanos.

No que concerne ao procedimento de um caso perante à Corte, impende ressaltar que previamente à instauração de sua jurisdição – na hipótese de o caso ser levado ao seu conhecimento pela Comissão – deve haver o esgotamento das fases estabelecidas nos arts. 48 e 50 da Convenção Americana.

Como salientado, os Estados-partes também possuem capacidade processual perante à Corte, desde que previamente tenham consentido com sua jurisdição[7]. Este consentimento pode ser incondicional, válido para todos os casos ou, então em condições de reciprocidade, por determinado tempo ou para um caso específico (BOLFER, 2010).

Voltando à situação de o caso ser encaminhado à apreciação à Corte pela Comissão – hipótese muito mais factível – cumpre anotar que o acionamento daquela será feita por meio de uma ação judicial, tal como se procede com a propositura de uma demanda nos termos do processo civil (MAZZUOLI, 2010).

A questão deve ser apresentada à Secretaria da Corte, por meio de petição, contendo uma série de requisitos, entre os quais se destacam as partes do caso, o objeto da demanda, os fatos, as provas indicadas, as testemunhas e os peritos a serem ouvidos, bem assim os fundamentos de direitos com as consequentes conclusões (PRONER, 2002).

Após esta etapa, incumbe ao Presidente da Corte proceder a um exame prévio acerca da admissibilidade da demanda, verificando o cumprimento dos requisitos fundamentais. Nesta análise, caso o Presidente constate a ausência de alguns dos requisitos, solicitará que o demandante supra as lacunas no prazo de vinte dias. Em seguida, abre-se o prazo para o que Estado demandado ofereça sua contestação, no prazo de quatro meses, contados da notificação, a qual deverá atender os mesmos requisitos da petição inicial. Ato contínuo, dá-se início à fase oral, com a fixação de audiencias (ANNONI, 2009).

É imprescindível salientar, contudo, que antes mesmo de o Estado demandado apresentar sua contestação, as partes podem pactuar um acordo, uma solução amistosa para o caso apresentado à Corte. Nesse sentido, leciona Mazzuoli:

Nada obsta que as partes cheguem a uma solução amigável da disputa, levando ao conhecimento da Corte a solução a que chegaram, caso em que a Corte poderá homologar a conciliação, atuando agora como fiscal das normas de direitos humanos protegidas pela Convenção Americana. Mas nada impede também que a Corte não homologue a conciliação das partes, levando em conta alguns aspectos do acordo concertado entre elas (arts. 54 e 55 do Regulamento da Corte) (MAZZUOLI, 2010, p. 102).

Não havendo acordo e finalizada a fase probatória, o procedimento é encerrado por meio de uma sentença, que deverá ser fundamentada, conforme dicção do art. 66-1 da Convenção Americana. Caso a sentença não expresse no todo ou em parte a opinião unânime dos juízes, há a possibilidade de voto dissidente ou individual ser agregado à sentença, conforme o art. 66-2.

De acordo com o art. 67 da Convenção Americana, a sentença proferida pela Corte será definitiva e inapelável. Na hipótese de divergência quanto ao sentido ou ao alcance da sentença, à Corte compete a tarefa de interpretá-la, a pedido de qualquer das partes, desde que o mesmo seja apresentado no prazo de noventa dias após a notificação da sentença.

Nesta sentença, caso a Corte reconheça que efetivamente ocorreu a violação à Convenção Americana, articulada na petição, ela determinará a adoção de medidas que se façam necessárias à restauração do direito violado. Ainda, poderá condenar o Estado a pagar uma justa compensação à vítima (PIOVESAN, 2011).

Com relação, ainda, às sentenças proferidas pela Corte, importante enfatizar que elas possuem natureza meramente declaratória, não tendo, em razão disso, aptidão para desconstituir um ato interno, como, por exemplo, anular um ato administrativo, revogar uma lei ou determinar a cassação de uma sentença judicial. Há, porém, uma exceção, que ocorre quando a decisão da autoridade da parte contratante é oposta às obrigações derivadas da Convenção e o direito da Parte Contratante não puder remediar as consequências dessa disposição, caso em que a Corte deverá conceder ao lesado uma reparação razoável (ANNONI, 2009).

Para arrematar a discussão atinente à jurisdição conteciosa da Corte, cumpre fazer menção ao conhecido caso “Velasquez Rodriguez”. Neste julgamento a Corte condenou o Estado de Honduras, por violação aos arts. 4, 5 e 7 da Convenção, combinado com o art. 1 deste diploma, em votação unânime, a pagar uma justa indenização aos familiares de Velasquez Rodrigues (PIOVESAN, 2011).

O caso concreto dizia respeito ao desaparecimento forçado de  Velasquez Rodriguez no Estado de Honduras, em um momento de turbulência institucional neste país. Após uma séria investigação, a Corte concluiu ser o Estado de Honduras culpado pelo desaparecimento de Velazquez Rodriguez, tendo em vista não ter adotado as providências necessárias à proteção da vida deste (PIOVESAN, 2011).

 Em relação ao Estado brasileiro, vale o registro do caso Damião Ximenes Lopes. Este caso envolveu a morte, após três dias de internação em hospital psiquiátrico, de pessoa com deficiência mental. O que chama a atenção neste julgamento é o fato de que pela primeira vez a Corte enfrentou um caso de saúde mental. Ademais, neste caso apontou-se a responsabilidade internacional do Estado por omissão, ante a violação aos direitos à vida, à integridade física e à proteção judicial da vítima (PIOVESAN, 2011).

Em linhas gerais, essa é a estrutura organizacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos. E, ainda que analisados apenas alguns casos específicos objetos de julgamento pela Corte, uma conclusão é inarredável, qual seja, a contribuição que ela vem dando para proteção dos direitos humanos no território americano, permitindo, outrossim, a construção de uma democracia que valorize a cidadania e o princípio da dignidade da pessoa humana.


7. A impossibilidade de a vítima submeter um caso diretamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos – necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de direitos humanos

O movimento crescente por justicialização dos direitos humanos exige o aperfeiçoamento dos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, de modo que estes sistemas ofereçam ao indivíduo, que teve um direito humano violado, instrumentos adequados a sua proteção. À proteção efetiva dos direitos humanos não basta uma lista imensa de tratados e convenções que reconheça direitos de toda ordem. É preciso, além de consolidar direitos, efetivá-los no mundo dos fatos.

Nesta ordem de ideias, precisas são as palavras de Bobbio (1992), citado por Piovesan (2011, p. 168), ao ensinar que “o maior problema dos direitos humanos hoje ‘não é o mais de fundamentá-los, e sim o de protegê-los’”.

De fato, a partir das observações feitas nos capítulo anteriores, é possível perceber que hoje em dia existe um grande aparato normativo em matéria de direitos humanos. O processo de internacionalização dos direitos humanos, iniciado após a segunda guerra mundial, pode-se dizer que está consolidado. Prova disso é a existência plena dos sistemas europeu, americano e africano de proteção aos direitos humanos[8], aliada a circunstância, já mencionada no sexto capítulo, de inúmeros tratados e convenções firmados pelos Estados com a finalidade de proteger os direitos humanos.

Como apontado por Bobbio (op.ciy.), a questão atual é encontrar meios para melhor proteger os direitos humanos. Este é o desafio que se apresenta aos Estados e às pessoas envolvidas na defesa dos direitos humanos.

Nesta perspectiva, este trabalho segue a proposta – defendida na doutrina por autores de renome como Piovesan (2011) e Cançado Trindade (2000) – no sentido de que se deve estender à vítima capacidade processual autônoma para propor uma demanda perante à Corte, como uma das medidas adequadas ao aprimoramento do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos[9].

Importante frisar que a expressão “uma das medidas” é utilizada em consideração a existência de outras propostas apresentadas pela doutrina como necessárias ao aprimoramento do Sistema Interamericano de Proteção.

Estas outras propostas, destacadas por Piovesan (2011, p. 157-159), dizem respeito: a) a adoção pelos Estados de mecanismos que garantam a implementação prática e sem entraves de decisões internacionais em matéria de direitos humanos; b) a previsão de sanções para os Estados que, de forma reiterada e sistemática, descumprirem decisões internacionais em matéria de direitos humanos; c) o funcionamento permanente da Comissão e da Corte, com recursos financeiros, técnicos e administrativos suficientes ao atendimento da demanda que certamente aumentará com o fenômeno da justicialização dos direitos humanos.

Como se vê, a preocupação em apontar medidas que tenham o condão de fortalecer o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, de modo a tornar a sua atuação ainda mais destacada e efetiva, demonstra, inequivocadamente, que o atual modelo necessita de avanços.

Registre-se que a defesa por avanços não significa dizer que o sistema interamericano é falho ou inoperante. Ao contrário, é preciso destacar que a atuação da Comissão e da Corte tem contribuído sobremaneira para proteção dos direitos humanos no continente americano.

Nesta linha de raciocínio, Shelton (1992), citado por Piovesan (2011, p. 160) comenta:

Ambas, a Comissão e a Corte, têm adotado medidas inovadoras, de modo a contribuir para a proteção dos direitos humanos nas Américas e ambos, indivíduos e organizações não governamentais, podem encontrar um fértil espaço para avanços futuros.

Ao lado deste fato, também é preciso destacar que, na atualidade, a vítima ou seu representante legal possuem legitimidade para atuar junto à Corte, desde que a jurisdição desta tenha sido provocada pela Comissão ou por um Estado. Isto é, nos termos do art. 25, parágrafos §§ 1º e 2º do atual Regulamento da Corte, reconhece-se o direito da vítima “estar em juízo” – o denominado locus standi in judicio – em todas as fases do procedimento perante à Corte, podendo ela oferecer suas razões por escrito no intuito de convencer os julgadores acerca da violação aos direitos humanos apreciada (MAZZUOLI, 2010).

No entanto, tal condição, a despeito de possuir seus méritos, não se afigura adequada com o nível atual de internacionalização dos direitos humanos, voltados à proteção da dignidade humana. Tal como no sistema europeu de proteção, é preciso reconhecer à vítima a possibilidade de acesso direto à Corte, ou seja, o direito de ingresar em juízo, o desejado jus standi in judicio (MAZZUOLI, 2010).

 Como afirma Cançado Trindade (2000), o reconhecimento do locus standi da vítima ante a Corte Interamericana constitui um avanço importante, mas não a etapa final do aperfeiçoamento do sistema interamericano.

Relativamente ao sistema europeu de proteção, impende ressaltar que a partir de 01 de novembro de 1998, com a vigência do protocolo nº 11 (de 1994) à Convenção Européia, a vítima passou a ter acesso direto à Corte Européia de Direitos Humanos (CANÇADO TRINDADE, 2000).

A respeito da vigência do protocolo nº 11 mencionado, Cançado Trindade assim se manifesta:

O início da vigência deste Protocolo, em 01 de novembro de 1998, representa um passo altamente gratificante para todos os que atuamos em prol do fortalecimento da proteção internacional dos direitos humanos. O indivíduo passa assim a ter, finalmente acesso direto a um tribunal internacional (jus standi), como verdadeiro sujeito – e com plena capacidade jurídica – do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Isto tem sido possível sobretudo em razão de uma nova mentalidade quanto à proteção dos direitos humanos nos planos internacional e nacional (CANÇADO TRINDADE, 2000, p. 35).

Efetivamente, ao se permitir que a vítima possa ingressar em juízo e não apenas estar em juízo, há, sem dúvida, um ganho na proteção dos direitos humanos. Por esta razão, além de outras consequências positivas, é inegável que ao se reconhecer a capacidade processual da vítima, o sistema de proteção em questão torne-se-á mais democrático, uma vez que possibilita à vítima, de forma independente, defender seus direitos contra toda forma de arbitrariedade (PIOVESAN, 2011).

Neste sentido, afirma Cançado Trindade (2004), citado por Piovesan (2011):

O direito de acesso à justiça no plano internacional é aqui entendido lato sensu, configurando um direito autônomo do ser humano à prestação jurisdicional, a obter justiça, à própria realização da justiça, no marco da Convenção Americana. Com efeito, o acesso direto dos indivíduos à jurisdição internacional constitui, em nossos dias, uma grande conquista no universo conceptual do Direito, que possibilita o ser humano reivindicar direitos, que lhe são inerentes, contra todas as manifestações de poder arbitrário, dando, assim, um conteúdo é etico às normas tanto de direito público interno, como de direito internacional. (...) ao reconhecimento de direitos deve corresponder a capacidade processual de reivindicá-los, deveno o indivíduo peticionário estar dotado de locus standi in judicio, em todas as etapas do procedimento perante a Corte.     

A premissa relativa ao reconhecimento de direitos deve corresponder a capacidade processual de reivindicá-los demonstra o quanto esta medida fortaleceria o sistema interamericano de proteção. A uma, porque iria franquear à vítima a defesa direta dos seus direitos, afastando, assim, a atuação intermediária da Comissão, de modo que os princípios da ampla defesa e do contraditório seriam efetivamente observados. A duas, por consequência da anterior, possibilitaria à Corte julgar inúmeras violações de direitos humanos ocorridas na América que não chegariam ao seu conhecimento pela atuação apenas da Comissão[10].

De efeito, embora seja indiscutível a relevância da atuação da Comissão, não se pode perder de vista que ela não é propriamente a parte lesada do litígio. Em razão disso, parece inegável que, ao oportunizar à vítma a condução do processo desde o princípio, esse processo será melhor instruído, contribuindo para a realização da justiça notadamente porque o embate se dará entre as partes materiais do caso.

Nesta toada, Cançado Trindade (2000, p. 40) afirma que “É da própria essência do contencioso internacional dos direitos humanos o contraditório entre as vítimas de violações e os Estados demandados”.

Em suma, a abertura da competência da Corte para novos casos concretos levados a sua apreciação por este novo legitimado – a vítima – implicará no fortalecimento do processo de justicialização dos direitos humanos no continente americano. De fato, isso contribuirá para o aprimoramento do sistema interamericano de proteção, produzindo, inclusive, um efeito pedagógico no âmbito interno dos Estados, que se sentirão pressionados a cada vez mais adotar políticas e condutas de respeito aos direitos humanos em seus territórios.

Tal procedimento é devido ao fato de, não raro, os sistemas internos de proteção de alguns Estados não propiciarem uma defesa adequada dos direitos humanos, razão por que, para algumas vítimas, a existência de um direito autônomo de petição para provocar as instâncias internacionais, in casu a Corte Interamericana, seria a única possibilidade concreta de fazer valer o seu direito (PRONER, 2002).

Assim, no entendimento explicitado neste trabalho, esta seria uma outra consequência positiva que o acesso direto da vítima à Corte iria proporcionar, qual seja, fazer com que o Estado respectivo tenha que adotar providências concretas para previnir ou remediar situações de violações aos direitos humanos, sob pena de ter o seu nome exposto de forma habitual em casos a serem julgados pela Corte.

Um debate interessante certamente irá surgir quando o sistema interamericano de proteção reconhecer a capacidade processual autônoma da vítima para propor um caso perante à Corte. Trata-se do papel a ser desempenhado pela Comissão neste novo modelo, tendo em vista que a vítima não precisaria de sua intermediação para fazer chegar um caso à Corte.

 No âmbito do sistema europeu de proteção, a partir da vigência do Protocolo no. 11 anteriormente referido, fixou-se a Corte Européia como único órgão jurisdicional com competência para apreciar os casos de violações aos direitos humanos estabelecidos na Convenção Européia de Direitos Humanos e Liberades Fundamentais. Em razão disso, a Comissão foi extinta.

Sem aprofundar muito esta questão, acredita-se que não seria o caminho mais apropriado para o sistema interamericano. A comissão não é parte no sentido técnico da palavra, de modo que ao se reconhecer a vítima como a principal legitimada para propor uma demanda perante à Corte, pôr-se-ia fim à ambiguidade da função da Comissão, que poderia desempenhar o seu papel natural, que é o de ser guardiã da Convenção Americana, auxiliando a Corte no desempenho de suas funções de proteção (CANÇADO TRINDADE, 2000).

Acerca da importância da Comissão diante da concretização deste novo cenário, Cançado Trindade assim leciona:

Assim concebemos o aperfeiçoamento do mecanismo de proteção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, com ênfase na jurisdicionalização do sistema de petições individuais perante a Corte – sem prejuízo do uso continuado pela Comissão dos outros métodos (missões de observação in loco e elaboração de relatórios), ou seja, com a preservação de suas funções não contenciosas. Em última análise, a solução judicial constitui indubitavelmente a forma mais evoluída de proteção dos direitos humanos (CANÇADO TRINDADE, 2000, p. 148).

Com efeito, como se pôde constatar, a atual sistemática, embora permita o acesso da vítima ou seu representante à Corte, não é compatível com o atual estágio de reconhecimento internacional de proteção de direitos humanos, bem como com a condição do ser humano como sujeito do Direito Internacional.

 Logo, para que este reconhecimento ultrapasse o aspecto formal, é imprescindivel a reformulação da sistemática procedimental do Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos, com enfoque na ampliação da partipação da vítima perante à Corte, permitindo-se um amplo acesso daquele que sofreu uma lesão a sua dignidade à principal instância de julgamento da Convenção Americana.

De mais a mais, a questão de atribuir-se à vítima capacidade processual perante à Corte não é apenas uma medida que irá contribuir para os avanços que o sistema precisa. É uma medida, diga-se, que é compatível que a própria natureza das normas internacionais de proteção aos direitos humanos.

Estas normas são dotadas de conteúdo imperativo (jus cogens), de obrigações erga omnes[11], que devem ser observados por todos Estados. Neste contexto, mostra-se perfeitamente adequado que se permita que a própria vítima possa autonomamente defender sua dignidade quando violada, porque se tratam de direitos que os Estados deveriam proteger com prioridade, razão pela qual a inobservância de tal obrigação enseja uma grave violação de um dever de proteção internacional, passível de punição, por consequência, em um Tribunal Internacional.

Em síntese, como ocorreu no sistema europeu, é o momento de dar um passo à frente, dotando a vítima de plena capacidade processual internacional no âmbito americano. Tal medida, como visto, terá por efeito principal fortalecer o sistema interamericano de proteção, uma vez que permitirá à vítima submeter um caso diretamente à Corte, deixando para a Comissão o trabalho de auxiliar da Corte, bem assim de guardiã da Convenção Americana.


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Direito Internacional dos Direitos Humanos, formado a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e baseado nos princípios da universalidade e indivisibilidade, constitui uma realidade impressionante na busca da proteção da dignidade humana. Isso porque, após tal marco, inúmeros tratados e convenções de proteção de direitos humanos foram publicados, contribuindo, sobretudo, para a formação de uma consciência ética internacional de que os direitos humanos devem ser protegidos por todos os Estados, uma vez que o indivíduo, a partir da chamada concepção contemporânea dos direitos humanos, é um ser dotado, definitivamente, de direitos no plano internacional.

Esta realidade foi moldada, em especial, a partir da integração do sistema global de proteção dos direitos humanos com o surgimento dos sistemas regionais de proteção, em particular o sistema Europeu, Americano e Africano.

A necessária interação destes sistemas é medida compatível com uma proteção abrangente e efetiva dos direitos humanos, de modo que quem ganha é o próprio indivíduo, tendo em vista passar a dispor de vários instrumentos juridicamente viáveis à proteção de eventual direito violado.

Entre os instrumentos de proteção postos à disposição da vítima, mereceram destaque aqueles integrantes do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, em particular, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), conhecida também como Pacto de San José da Costa Rica.

A Convenção Americana prevê a existência de dois órgãos jurisdicionais com a incumbência de proteger os direitos humanos no continente americano: a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, reconhece e assegura um rol extenso de direitos civis e políticos.

Entretanto, como se pôde perceber ao longo do trabalho, à proteção efetiva dos direitos humanos não basta uma lista imensa de tratados e convenções que reconheça direitos de toda ordem. É preciso, além de consolidar e prever direitos, efetivá-los no mundo dos fatos.

Como afirma Bobbio (1992), citado por Piovesan (2011, p. 168), “o maior problema dos direitos humanos hoje ‘não é o mais de fundamentá-los, e sim o de protegê-los’”.

Neste contexto, a presente pesquisa buscou demonstrar o quão necessário é reconhecer à vítima ou ao seu representante legal capacidade processual plena para propor uma demanda diretamente à Corte Interamericana de Direitos Humanos, como pressuposto imprescindível ao aprimoramento do Sistema de Proteção Interamericano de Direitos Humanos.

A crescente justicialização dos direitos humanos no âmbito do sistema interamericano de proteção exige medidas que tenham o condão de dotar este sistema de uma estrutura procedimental que assegure à vítima uma proteção adequada e efetiva de sua dignidade.

Importante registrar que a defesa por avanços não significa dizer que o sistema interamericano é falho ou inoperante. Ao contrário, é preciso destacar que a atuação da Comissão e da Corte tem contribuído sobremaneira para proteção dos direitos humanos no continente americano, tendo, inclusive, salvado muitas vidas.

Ao lado deste fato, também é preciso destacar que, na atualidade, a vítima ou seu representante legal possuem legitimidade para atuar junto à Corte, desde que a jurisdição desta tenha sido provocada pela Comissão ou por um Estado. Isto é, nos termos do art. 25, §§ 1º e 2º do atual Regulamento da Corte, reconhece-se o direito da vítima “estar em juízo” – o denominado locus standi in judicio – em todas as fases do procedimento perante à Corte, podendo ela oferecer suas razões por escrito no intuito de convencer os julgadores acerca do caso a ela submetido

No entanto, tal condição, a despeito de possuir seus méritos, não se afigura adequada ao nível atual de internacionalização dos direitos humanos, voltados à proteção da dignidade humana. Tal como no sistema europeu de proteção, é preciso reconhecer à vítima a possibilidade de acesso direto à Corte, ou seja, o direito de ingressar em juízo, o desejado jus standi in judicio.

Efetivamente, ao se permitir que a vítima possa ingressar em juízo e não apenas estar em juízo, há, sem dúvida, um ganho na proteção dos direitos humanos. Por esta razão, além de outras consequências positivas, é inegável que ao se reconhecer a capacidade processual da vítima, o sistema de proteção em questão torna-se mais democrático, uma vez que possibilita à vítima, de forma independente, defender seus direitos contra toda forma de arbitrariedade.

A ideia de que ao reconhecimento de direitos deve corresponder a capacidade processual de reivindicá-los demonstra o quanto esta medida fortaleceria o sistema interamericano de proteção, notadamente porque a defesa direta pela vítima resultaria num processo melhor instruído, o que, em última análise, imprimiria maior eficácia aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Outrossim, embora seja indiscutível a relevância da atuação da Comissão, não se pode perder de vista que ela não é propriamente a parte lesada do litígio. Em razão disso, parece inegável que, ao oportunizar à vítima a condução do processo desde o princípio, esse processo, além de melhor instruído, contribuíra para a realização da justiça, mormente porque o embate se dará entre as partes materiais do caso.

Ademais, partindo da premissa de que a comissão não é parte no sentido técnico da palavra, o reconhecimento da vítima como a principal legitimada para propor uma demanda perante à Corte, pôr-se-ia fim à ambiguidade da função da Comissão, que poderia desempenhar o seu papel natural, que é o de ser guardiã da Convenção Americana, auxiliando, ainda, a Corte no desempenho de suas funções de proteção.

Por fim, ressalte-se que a questão de atribuir à vítima capacidade processual perante à Corte está em plena consonância às normas protetivas dos direitos humanos, as quais são dotadas de conteúdo imperativo (jus cogens), de obrigações erga omnes, que devem ser observados por todos Estados.

Em síntese, como ocorreu no sistema europeu, é o momento de dar um passo à frente, dotando a vítima de plena capacidade processual internacional no âmbito americano. Tal medida terá por efeito principal fortalecer o sistema interamericano de proteção, uma vez que permitirá à vítima submeter um caso diretamente à Corte, deixando para a Comissão o trabalho de auxiliar da Corte, bem assim de guardiã da Convenção Americana.


9. REFERÊNCIAS

ANNONI, Danielle. Direitos Humanos & Acesso à Justiça no Plano Internacional:  responsabilidade internacional do Estado. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2009.

BOLFER, Sabrina Ribas. Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: Piovesan, Flávia (Org). Direitos Humanos Volume I. Curitiba: Jurua, 2010.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. O sistema interamericano no limiar do novo século. In: GOMES, Flávio Luiz; PIOVESAN, Flávia (Org.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da capacidade processual dos indivíduos na evolução da proteção internacional dos direitos humanos: quadro atual e perspectivas na passagem do século. Direitos Humanos no século XXI (editores P.S. Pinheiro S.P. Guimarães), vol. I, Brasília: IPRI:FUNAG, 1998.

COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

GALLI, Maria Beatriz; DULITZKY, Ariel E. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o seu Papel Central no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. In: GOMES, Flávio Luiz; PIOVESAN, Flávia (Org.). O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2000.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Processo Civil Internacional no Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 99, v. 895, maio 2010.

MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público. 4. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2010.

MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos. In: GOMES, Flávio Luiz; PIOVESAN, Flávia (Org.). O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: RT, 2000.

PIOVESAN, Flávia Piovesan. Direitos Humanos: Desafios da Ordem Internacional Contemporânea. In: Piovesan, Flávia (Org). Direitos Humanos Volume I. Curitiba: Jurua, 2010.

PRONER, Carol. Os Direitos Humanos e seus Paradoxos: análise do sistema interamericano de proteção. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002.


Notas

[1] Por exemplo: Magna Carta de 1215; A Paz de Westfália de 1648; A lei do Habeas Corpus da Ingalterra, datada de 1679; Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689; As Declarações de Direitos da Revolução Francesa; A convenção de Genebra de 1864; A Constituição Mexicana de 1917, entre outros.

[2] Para tanto, basta citar o preâmbulo da Convenção da Liga das Nações: As partes contratantes, no sentido de promover a cooperação internacional e alcançar a paz e a segurança internacionais, com a aceitação da obrigação de não recorrer à guerra, com o propósito de estabalecer relações amistosas entre as nações, pela manutenção da justiça e com extremo respeito para com todas as obrigações decorrentes dos tratados, no que tange à relação entre povos organizados uns com os outros, concordam em firmar este Convênio da Liga das Nações.

[3] Como registrado no tópico 1.2, o Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho qualificam-se como institutos importantes para abertura da discussão centrada na necessidade de se proteger os seres humanos contras as arbitrariedades dos Estados. Todavia, fala-se especificamente em relação à Liga das Nações, e não se pode deixar de reconhecer que o seu intento falhou, tendo em vista que sua preocupação maior, qual seja, a manutenção da paz mundial não foi alcançada.

[4]  Por exemplo, Convenção contra a Tortura; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher; Convenção sobre os Direitos da Criança, entre outros.

[5]  A propósito, pertinente ao rol de direitos humanos que estão sob a competência da Comissão, uma importante inovação fora introduzida pelo Novo Regulamento a Comissão Internacional de Direitos Humanos que entrou em vigor em março do ano de 2001. Trata-se da possibilidade de a Comissão analisar violações de direitos sociais, econômicos e culturais previstos no Protocolo Adicional sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também conhecido como Protocolo de San Salvador, entre outros direitos de natureza específica, tais como os previstos no Protocolo relativo á Abolição da Pena de Morte, na Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, entre outros (PRONER, 2011, p.101).

[6] Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela comissão, será necessário: a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente reconhecidos; b) que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d) que no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. 2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando: a) não existir, na legislação interna do estado de que se tratar,  devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; b) não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c) houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.

[7] Esta claúsula é objeto de muita crítica pela doutrina, uma vez que se defende que ao ratificar a Convenção Americana, automaticamente os Estados-partes deveriam estar vinculados à jurisdição da Corte, porquanto tal faculdade não retrata um compromisso efetivo o ideal de proteção de direitos humanos.

[8] É importante registrar que há ainda em formação um Sistema Asiático de proteção aos direitos humanos, bem como um Sistema Árabe de proteção. No entanto, defende-se que, a despeito do caráter embrionários destes sistemas, é possível afirmar que os direitos humanos encontram-se consolidados no âmbito internacional, mormente pela circunstância de estarem reconhecidos em documentos de caráter universal, os quais, devem, em razão disso, serem observados por todos os Estados.

[9] É importante ressaltar que o trabalho não tem por objetivo discutir de que forma seria introduzida formalmente a capacidade processual autônoma da vítima para propor uma demanda diretamente à Corte Interamericana, mas os motivos pelos quais esta medida deve ser adotada neste sistema.

[10] Não se faz menção ao Estado por razões conhecidas, ou seja, no cenário político atual seria muito surpreendente que um Estado denunciasse outro por violações aos direitos humanos ocorridas neste Estado.

[11] O caráter erga omnes das normas protetivas dos direitos básicos das pessoas humanas foi estabelecido pela jurisprudência da Corte Internacional de Justiça em 1970, por ocasião do julgamento do caso Barcelona Traction (MAZZUOLI, 2010, p. 138).


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Ederson Couto da. Breve análise sobre a impossibilidade de a vítima propor uma demanda diretamente perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Necessidade de aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3526, 25 fev. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23812. Acesso em: 28 mar. 2024.