Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/2394
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Uma análise crítica à Lei n.º 9.099/95.

Lei dos Juizados Especiais

Uma análise crítica à Lei n.º 9.099/95. Lei dos Juizados Especiais

Publicado em . Atualizado em .

           Promulgada em 1988, a Constituição Federal, ao tratar do Poder Judiciário, disciplinou em seu art. 98 a criação dos juizados especiais, conferindo-lhes competência para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade, assim como as infrações penais de menor potencial ofensivo.

          Com o objetivo de desafogar a justiça comum em todo o país, propiciando, ainda, um acesso mais fácil ao Judiciário, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, em setembro de 1995, sancionou a Lei n.º 9.099, instituindo e regulamentando os juizados especiais cíveis e criminais.

          Analisando o diploma legal em questão, nota-se, logo de início, a intenção do legislador em simplificar o processo, na tentativa de acelerar ao máximo a prestação jurisdicional, melhorando a imagem do Poder Judiciário de órgão moroso.

          É o que se afere logo no art. 2º da Lei n.º 9.099/95:

     "O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação."

          Não se discute a importância da instituição dos juizados especiais na persecução de uma prestação jurisdicional mais efetiva por parte do Estado, propiciando aos cidadãos maior instrumental na proteção dos seus direitos.

          Todavia, no afã de regulamentar e implementar a matéria prevista no art. 98, inc. I da CF, o legislador ordinário acabou por atropelar princípios constitucionais, criando, ainda, inúmeros problemas de ordem processual àquele que recorre ao procedimento sumaríssimo dos juizados.

          Tem-se como primeiro ponto de discussão a concessão, em determinadas hipóteses, do jus postulandi à própria parte, tornando a figura do advogado uma peça dispensável na administração da justiça.

          Dispõe o art. 133 da Constituição Federal:

     "O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei"

          Como bem acentuou JOSÉ AFONSO DA SILVA[1], "o advogado é um profissional habilitado para o exercício do jus postulandi", sendo junto ao servidor um dos elementos da administração democrática da justiça.

          Posteriormente, a Lei n.º 8.906/94 dispôs sobre o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, regulamentando o art. 133 da Carta Magna.

          Ao tratar da atividade da advocacia, o estatuto da OAB prescreve com clareza meridiana em seu artigo art. 1º, inciso I, ser privativa ao advogado a postulação perante qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais, completando em seu art. 2º ser o advogado indispensável à administração da justiça.

          O jurista PAULO LUIZ NETTO LÔBO, coordenador e relator dos trabalhos da Comissão de Sistematização do Anteprojeto de Lei que se converteu no Estatuto da Advocacia, ao comentá-lo, comunga da idéia de que a postulação (ato de pedir ou exigir a prestação jurisdicional do Estado) exige qualificação técnica, cabendo esta privativamente ao advogado.

          Como muito bem exposto pelo mesmo, "não há e não pode haver qualquer exceção, dado o amplo alcance do art. 133 da Constituição." O princípio é rígido ao afirmar ser o advogado indispensável à administração da justiça, não admitindo a postulação direta das partes. No mesmo sentido manifesta-se JOSÉ AFONSO DA SILVA.

          Infelizmente, o STF, através de liminar concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1127-8, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, deu interpretação restritiva a vários dispositivos do Estatuto da OAB, dentre eles o art. 1º, inc. I e o art. 2º, excluindo do seu alcance os juizados especiais e a justiça trabalhista.

          Tendo em vista que o julgamento da referida ADIN ainda não ocorreu, espera-se que o pronunciamento definitivo do Excelso Pretório seja norteado, tão-somente, por preceitos jurídicos, ao contrário da decisão concessiva de liminar, de forte caráter político.

          Aplicar eficácia restritiva aos dispositivos legais contidos na Lei n.º 8.906/94 nada mais é do que distorcer o conteúdo do art. 133 da Constituição Federal, já que tal norma não faz qualquer ressalva à indispensabilidade do advogado na administração da justiça.

          Aliás, desde quando não há administração da justiça nos juizados especiais? O art. 9º da Lei n.º 9.099/95, além de violar frontalmente o que dispõe o art. 133 da CF é desprovido de lógica.

          O legislador infraconstitucional estabeleceu como "divisor de águas" entre a dispensabilidade e a obrigatoriedade de advogado nas causas em trâmite perante os juizados o valor atribuído à mesma.

          Ou seja, para lides em que questão fática e jurídica sejam idênticas, poderá se observar ao mesmo tempo a exigência de advogado para o exercício do jus postulandi em uma delas, enquanto que na outra não, o que é um absurdo!

          Em última análise, poder-se-ia dizer que o art. 9º da Lei n.º 9.099/95, em certas hipóteses, fere o princípio constitucional da isonomia, previsto no art. 5º, caput da Constituição Federal.

          Tomando-se como exemplo a situação rotineira de acidente de trânsito, onde um veículo avança o sinal, vindo a abalroar dois outros veículos que tinham a preferência de passagem, visualiza-se perfeitamente o acima exposto.

          Diante da recusa do condutor do veículo que infringiu a regra prevista no art. 208 do Código de Trânsito em assumir sua culpa e reparar os danos, os condutores e proprietários dos veículos abalroados propõem isoladamente ação de indenização por danos materiais perante o juizado especial cível.

          Indiscutivelmente, tanto os fatos quanto os fundamentos jurídicos do pedido são idênticos para ambos os autores. Ocorre que o prejuízo causado pelo abalroamento em um dos veículos ultrapassou 20 salários mínimos, o que não ocorreu com o outro.

          Conclui-se, no caso, que àquele cujo valor da causa não excedeu 20 salários mínimos, a Lei n.º 9.099/95 confere poderes ao exercício do jus postulandi, enquanto que para o outro não, "beneficiando" por esse prisma o primeiro, já que não necessita do advogado para fazê-lo.

          Também, por fatores metajurídicos, o STF negou liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1539-7, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, no sentido de suspender a eficácia do art. 9º da Lei n.º 9.099/95.

          Alguns, ao defender a ‘Lei dos Juizados Especiais’, argumentam que a mesma facilitou o acesso à justiça, vez que a indispensabilidade do advogado poderia obstacularizá-lo.

          Tal argumento, como colocou RAYMUNDO FAORO[2], é insubsistente, porque o direito ao advogado e à assistência jurídica integral é garantia de todo o cidadão. A própria Constituição cometeu ao Estado o dever de prestação de assistência jurídica gratuita aos necessitados, mediante a Defensoria Pública, obrigatoriamente disponível.

          Ademais, a própria cidadania sai maculada se não há igualdade de meios técnicos, quando uma parte é defendida por profissional habilitado e outra não, fazendo com que o mais fraco seja entregue à própria sorte, à sua inexperiência e ao desconhecimento dos procedimentos e do aparelho judiciário.

          Merece atenção também a produção de provas perante o juizado, especificamente no cível. Ao contrário do que disciplina o CPC em relação à produção de prova documental (artigos 282, VI, 283 e 396), tornando, via de regra, obrigatória sua juntada desde a propositura da ação, assim não o é na Lei n.º 9.099/95. De igual forma, ao contrário do que prevê o Código de Processo Civil, não se exige nos juizados a indicação do rol de testemunhas seja na inicial, ou em até 5 dias antes da audiência, como ocorre, respectivamente, nos procedimentos sumário e ordinário.

          Enquanto que no CPC o réu, em decorrência dos dispositivos legais ali contidos, tem a possibilidade de elaborar sua defesa, rebatendo todos os argumentos do autor, podendo arguir a falsidade da prova documental através de incidente próprio e contraditar testemunhas, tal faculdade lhe é ceifada no juizado especial cível, já que nenhuma das exigências previstas no diploma processual se faz presente na Lei n.º 9.099/95.

          É da redação do seu art. 33:

     "Todas as provas serão produzidas na audiência de instrução e julgamento, ainda que não requeridas previamente, podendo o juiz limitar ou excluir as que considerar excessivas, impertinentes ou protelatórias"

          Como propiciar a ampla defesa ao réu quando, só na audiência de instrução e julgamento, toma conhecimento da prova documental, tendo de se manifestar de plano, sem poder analisá-la detalhadamente, em virtude da exiguidade de prazo que lhe é concedido?

          Igualmente, como pode o demandado munir-se de provas para contraditar uma testemunha do autor, se não possui conhecimento de quem e quantas são, já que é dispensada a apresentação de rol?

          Certamente que a ampla defesa e o contraditório sofrem severas restrições.

          Outra questão diz respeito a opção das partes pelo juízo arbitral quando não celebrada a conciliação (art. 24). Sem embargo da possibilidade do árbitro decidir pela equidade, criando situações em que a lei é posta em segundo plano, seu pronunciamento, após homologação por sentença pelo juiz togado, é irrecorrível.

          Ou seja, a Lei n.º 9.099/95 confere à decisão proferida pelo árbitro maior poder do que a do juiz de direito, que é passível de recurso.

          Também não se pode deixar de abordar o art. 59 que exclui a ação rescisória nas causas instituídas pela ‘Lei dos Juizados Especiais’, tornando após o trânsito em julgado, decisões eivadas de nulidade e/ou contrárias à lei, imutáveis.

          Mesmo para os que como Ada Pellegrini Grinover, Seabra Fagundes, Calmon de Passos, Lúcia Valle Figueiredo, dentre outros, admitem a possibilidade de impetração de mandado de segurança contra ato judicial, objetivando sua anulação, tal posicionamento encontra fortíssimo obstáculo perante a súmula n.º 268 do STF, segundo a qual, "não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com trânsito em julgado."

          Indubitavelmente, mazela pior do que a lesão a direito entre cidadãos é a lesão causada por quem deveria inibi-la ou contê-la, ou seja, pelo próprio Poder Judiciário.

          Princípio consagrado na lex mater, o princípio da proteção judiciária, mais conhecido como princípio da inafastabilidade do controle juridisdicional (art. 5º, inc. XXXV da CF), constitui a principal garantia dos direitos subjetivos, sejam eles individuais ou coletivos.

          Não deve o Poder Judiciário, a quem cabe a precípua função de proteção aos direitos do cidadão, ir de encontro à sua atribuição constitucional. Todavia, por ser composto de pessoas, como nós falíveis, há que se garantir meios para que os erros porventura cometidos sejam corrigidos, não vindo a se perpetuar.

          Nesse passo, merecedor de críticas o conteúdo do art. 59 da Lei n.º 9.099/95.

          No tocante aos meios recursais a questão também não é tão tranquila. Decisões de cunho antecipatório ou mesmo cautelar têm sido concedidas liminarmente por juízes assoberbados e pressionados por uma carga esmagadora de trabalho, sem a devida fundamentação, ignorando-se, em muitos casos, a potencial irreversibilidade do provimento.

          Contrariando nosso sistema jurídico, que privilegia a recorribilidade das decisões, não se admite o recurso de agravo nos juizados especiais, tendo-se aceitando, todavia, o mandado de segurança como sucedâneo recursal.

          Tal posicionamento reflete um retrocesso, já que um dos objetivos do anteprojeto modificativo do agravo de instrumento, elaborado pela comissão de juristas coordenada pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Sálvio de Figueiredo, foi restringir as hipóteses de cabimento do mandado de segurança como substituto recursal.

          Como afirmou o eminente Ministro: "Busca-se, com tal colocação, evitar o hoje encontradiço uso do mandado de segurança como sucedâneo recursal, em ofensa à Súmula n. 267 do Supremo Tribunal Federal e ao próprio ordenamento jurídico."

          Ainda, segundo a ‘Lei dos Juizados Especiais’, da sentença caberá recurso, que será julgado por um colegiado composto de 3 (três) juízes togados, em exercício no primeiro grau de jurisdição.

          Por conta disso, após interpretação do artigo 105 da Constituição Federal, conclui-se não ser cabível qualquer recurso perante o STJ, vez que a decisão objurgada necessita ser proferida por tribunal em última ou única instância e não por colegiado. (v. súmula 203 STJ)

          Como bem assinalou NELSON NERY JÚNIOR[3], não se questiona "o fato de que a segunda decisão proveniente de um recurso vitorioso no segundo grau de jurisdição possa estar errada ou injusta, sendo que a correta seria aquela anulada ou reformada." O fato dos juízes do colegiado apreciarem um recurso não implica, necessariamente, que decidam de melhor forma que o magistrado de primeiro grau.

          Qual seria então, o meio impugnatório cabível contra decisão proferida pelo colegiado recursal que dê a lei federal interpretação divergente, a contrarie ou negue vigência?

          Mais uma vez buscou-se socorro na interposição de mandado de segurança contra a deliberação do colegiado, esbarrando, todavia, na seguinte questão: Qual o órgão competente para apreciá-lo?

          Para o Superior Tribunal de Justiça, o mandado de segurança deverá ser interposto perante o próprio órgão colegiado, negando para si e para os Tribunais de Justiça dos Estados a competência em apreciá-lo, mesmo quando seu objetivo for anular a decisão proferida pelo juizado especial.

          Inegavelmente, esvazia-se toda a possibilidade de um julgamento imparcial, já que o writ será apreciado por aqueles que proferiram a decisão objeto da irresignação.

          É do entendimento da Corte:

     "RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSUAL CIVIL. WRIT CONTRA DECISÃO PROFERIDA POR JUIZADO ESPECIAL. INCOMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, MESMO QUE SEJA PARA ANULÁ-LA.

     Esta Corte já firmou jurisprudência no sentido de que os Tribunais de Justiça não têm competência para rever as decisões dos Juizados Especiais, mesmo que com intuito de anulá-las, muito menos na via mandamental.

     Precedentes.

     Recurso desprovido à unanimidade

     (STJ - ROMS 10164/DF – 5ª Turma - Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca – DJ 05/03/2001 - PG. 184)

          Destarte, só seria admissível, em tese, recurso extraordinário para o STF, já que o texto constitucional não faz qualquer ressalva de que a decisão tenha de ser proferida por tribunal, na exclusiva hipótese de afronta à Constituição Federal.

          Como garantir então, de forma efetiva, a aplicação da lei federal, visto não ser possível a interposição de qualquer recurso para o STJ, guardião das normas infraconstitucionais?

          Após análise da lei que instituiu os juizados especiais, conclui-se que, apesar do seu inegável valor, principalmente social, imperiosa a alteração legislativa em diversos dispositivos, objetivando, assim, corrigir as distorções existentes.


NOTAS

          1. DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. edição revista. 10ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1995, p. 552.

          2. FAORO, Raymundo. A relação do judiciário com o advogado; Revista do Instituto dos Advogados do Estado do Espírito Santo. v.1. n.1, Vitória: IAES, 1990, p. 11/17.

          3. NERY JR., Nelson. Princípios Fundamentais: Teoria Geral dos Recursos. 2ª edição revista e ampliada, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993, p. 245.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Pablo Drews Bittencourt. Uma análise crítica à Lei n.º 9.099/95. Lei dos Juizados Especiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2394. Acesso em: 30 abr. 2024.