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Justiça, vingança, e induzimento ao suicídio em "O veredicto" de Franz Kafka

Justiça, vingança, e induzimento ao suicídio em "O veredicto" de Franz Kafka

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As figuras do pai-tribunal e do pai-vítima parecem estar em um constante duelo durante a narrativa da novela. Duelo em que o embate, porém, não leva a um vencedor.

Resumo: o presente artigo consiste na análise de aspectos jurídicos e filosóficos na obra “O veredicto – Uma história para a senhorita Felice B”, de Franz Kafka, notadamente em relação ao crime de induzimento, instigação ou auxilio ao suicídio, em um exercício de abordagem do direito na literatura.

Sumário: I – Introdução. II – Tema e problemática central. III - Personagens. IV – Desenvolvimento do tema. V – Conclusão. VI - Bibliografia.


Em nenhuma obra de Kafka a aura da idéia infinita desaparece no crepúsculo, em nenhuma obra se esclarece o horizonte.

Theodor W. Adorno


I – Introdução

O conto O veredicto nasceu com o outono de 1912. Aos 29 anos, Franz Kafka o escreveu em um único fôlego, das dez da noite do dia 22 às seis da manhã do dia 23 de setembro.[1] Porém, além de trazer consigo os primeiros gélidos dias na cidade de Praga, a época ainda sob o domínio do Império Austro-Húngaro, O veredicto marca o início de um fantástico processo de criação do autor que viria a culminar nas obras primas A metamorfose, escrita logo em seguida, O processo, e O castelo.

Kafka, já formado em direito, acabara de conhecer, na casa de um amigo, a senhorita Felice Bauer. Provavelmente inspirado pela recente paixão, escreveu e dedicou o conto a Felice. Não à toa, a novela narra uma manhã de domingo na vida de Georg, um homem que há menos de um mês havia ficado noivo de Frieda Brandenfeld – nome com as mesmas iniciais do de Felice – e que decide contar essa novidade, por carta, a um amigo que imigrou para a Rússia. Mostra-se, assim, explícita a projeção pessoal do próprio Kafka na novela. Mais tarde, em seus Diários, Kafka afirmaria que “só assim se pode escrever, só num contexto como esse, com uma abertura tão completa do corpo e da alma.”[2]

Apesar de escrito em 1912, somente em maio de 1913 o conto foi publicado, em razão do atraso da edição do anuário de literatura Arkadia, organizado em Leipzig por Kurt Wolff. A edição de O veredicto a que recorremos para a realização do presente trabalho é da editora Companhia das Letras – São Paulo, de 1998, na 4ª reimpressão de 2004, com tradução de Modesto Carone.

Inúmeros títulos já foram dedicados a análise dos contos de Kafka. Segundo Carone,[3] exclusivamente sobre A metamorfose existem cerca de 128 textos. As análises vão desde as de natureza teológica e sociológica até históricas, estilísticas, filosóficas e psicológicas. O trabalho que se segue, porém, pretende abordar aspectos jurídicos contidos no conto selecionado, uma análise de direito na literatura.


II – Tema e problemática central

O conto tem como tema central a relação do personagem principal, Georg Bendemann, com seu pai. Temática recorrente em Kafka, o conflito pai e filho em O veredicto é qualificado pela figura do pai-tribunal, ou seja, um pai que processa, julga e condena o filho à morte, sem apelação.

A criação da figura do pai-tribunal durante a narrativa aguça e desafia a compreensão do leitor. Como se justificaria o poder, a autoridade de que se investe o pai, e a final condenação capital que impõe ao filho que vive, aparentemente, uma vida regrada, normalizada, e sem qualquer mácula? Ao final do processo conduzido pelo pai-tribunal, o filho é o culpado, e deve ser punido.

Concomitantemente, porém, o pai coloca-se como vítima do filho, abandonado que teria sido durante anos, após a morte da mãe, em razão da alienação, do individualismo e do egoísmo de Georg. Porém, sendo vítima, o pai não poderia julgar, ser tribunal, o terceiro imparcial como necessariamente exige a dogmática jurídica. Como vítima, o pai apenas procura vingança, fazer justiça com as próprias mãos. Ao agir dessa forma, passa ao largo do direito, induz seu filho ao suicídio, pratica um crime. É ele o culpado, não o filho.

É essa alteração constante de posições que desafia uma interpretação do conto sob uma perspectiva do direito na literatura. Quem de fato é o culpado, o pai ou o filho?


III – Personagens

Georg Bendemann é um jovem comerciante recém-noivado de Frieda Brandenfeld. Após a morte de sua mãe, assumiu a condução dos negócios do pai com grande sucesso, multiplicando os lucros. Também passou a morar e a cuidar do pai já velho e com saúde debilitada.

Georg se corresponde por carta com um amigo que imigrou para a Rússia, a procura de melhores oportunidades de vida. O amigo, porém, não leva a mesma sorte nos negócios como Georg e, em um país estrangeiro, vive isolado, sem perspectivas de fazer amigos ou casar.

Frieda Brandenfeld é uma jovem de família bem situada, noiva de Georg. Ela insiste que Georg deve contar ao amigo sobre o noivado de ambos. Georg, a princípio, não pretendia contar, com receio de que o amigo ficasse com inveja, insatisfeito ou aborrecido com sua melhor fortuna. Diante da insistência da noiva, porém, Georg escreve a novidade na carta que está prestes a enviar ao amigo.

O pai de Georg - não nomeado -, após a morte de sua esposa, ficou mais retraído e, apesar de continuar trabalhando no estabelecimento comercial, não mais comanda os negócios, agora a cargo de Georg. Ao longo da narrativa, o pai diz-se: “esquecido no quarto do fundo, perseguido pelos empregados desleais, e velho até os ossos”.[4] Parece debilitado fisicamente, mas, ainda é um gigante aos olhos do filho.


IV – Desenvolvimento do tema

A narrativa tem início com a introdução do personagem Georg que, em uma manhã ensolarada de domingo, escreve uma carta ao amigo imigrado para a Rússia, preocupado em amenizar-lhe as agruras que passa no estrangeiro, e para mantê-lo a par das novidades.

A situação de pretensa normalidade, porém, se inverte com a entrada do pai na narrativa. Após decidir, por insistência da noiva, que irá contar ao amigo distante que ficara noivo, Georg vai se aconselhar com o pai, que lê o jornal no interior do seu quarto, escuro, apesar da manhã de sol. O pai, então, aparentemente frágil e debilitado, agiganta-se e começa a questionar os atos de Georg. Tem início um julgamento. O pai torna-se tribunal, aparentemente imparcial. E o faz para justamente atribuir-se do poder e da autoridade capaz de impor uma sanção final ao filho, de fazer justiça. Se assim não agisse, o pai passaria a impressão de apenas buscar vingança – e não justiça – sem alcançar, ao final, a força necessária para ver cumprida sua sentença.

Costuma-se afirmar que uma das características de um Estado democrático de direito é a separação entre vingança e justiça. Através do processo, observado o contraditório e a ampla defesa, o judiciário, pela sentença, substitui a vontade das partes, impede a vingança e realiza a justiça. A sanção, assim, só se torna justa, legítima, e com autoridade para ser aplicada, se é atingida através do processo, e não por um ato de vingança, que é eminentemente pessoal. Nas palavras de Paul Ricouer:

No momento da sanção já foi jogado qualquer coisa de essencial: a sentença é pronunciada, o sujeito reputado formalmente inocente e declarado efectivamente culpado, logo punível, logo submetido à pena. Porque a trajectória proposta começa demasiado tarde, deixou para trás o corte que nos preocupa aqui, entre justiça e vingança. A razão disto é que o corte é operado contra a sanção, no processo. E a própria sanção só toma o sentido de penalidade porque ela fecha e corta o processo. É então na estrutura do processo, tal como se deveria se desenvolver na estrutura de um Estado de direito, que é necessário procurar o princípio da separação entre vingança e justiça. Diz-se, por vezes, que vingar-se é fazer justiça a si próprio. Mas não, a palavra justiça não devia figurar em nenhuma definição de vingança, com reserva para um sentido arcaico e sagrado duma justiça de parte a parte vindicativa, vingativa, à qual é necessário prestar contas em última instância.[5]

E a presença do terceiro, da instituição, do judiciário é fundamental para essa separação entre vingança e justiça. O terceiro, imparcial, julgará sem emoção, objetivando justiça, jamais vingança. Ainda segundo Paul Ricoeur, a terceira pessoa seria o primeiro dos quatro componentes estruturais do processo, sendo os demais o sistema jurídico (leis escritas), o debate e a sentença.[6]

A narrativa deixa claro que, com a intervenção do pai, se inicia um verdadeiro processo contra Georg. Encontram-se presentes os quatro componente acima descritos.

Ademais, a transformação do pai em tribunal inicia-se por provocação do próprio Georg, prestes a tornar-se réu. Antes de enviar a carta ao amigo na Rússia, Georg sente a necessidade de contar sua decisão ao pai, de aconselhar-se com ele. Partindo-se do pressuposto que a jurisdição é inerte, o próprio Georg dá início ao seu processo, provocando-a. Dirige-se ao encontro do pai, reconhecendo desde o início o gigantismo, a superioridade do seu genitor, mesmo diante do real estado de debilidade dele:

- Ah, Georg! – disse o pai e caminhou ao seu encontro.

Seu roupão pesado se abriu quando andava e as pontas esvoaçaram em volta dele “Meu pai continua sendo um gigante”, pensou Georg consigo.[7]

O pai, então, já provocado, começa o processo com o interrogatório do filho, exortando-o a dizer toda a verdade. Tem início o debate, oral e contraditório, como afirmado por Ricoeur, mas, conduzido pela figura do pai-tribunal:

- Georg – disse o pai esticando para os lados a boca desdentada - , ouça bem. Você veio a mim para se aconselhar comigo sobre esse assunto. Isso o honra, sem dúvida. Mas não é nada, é pior do que nada, se você agora não me disser toda a verdade. Não quero levantar questões que não cabem aqui. Desde a morte de nossa querida mãe aconteceram certas coisas que não são nada bonitas. Talvez chegue a hora de também discuti-las – e talvez ela chegue mais cedo do que pensamos.[8]

O interrogatório começa com a pergunta que não poderia deixar de ser a mais embaraçosa para Georg, a pergunta que põe em jogo a sua própria integridade, a sua racionalidade, já indicando uma possível desconexão sua para com a realidade que o envolve, e que o pai-tribunal pretende trazer à tona: a existência do amigo na Rússia. O filho é acusado de ser trapaceiro:

(...) Você realmente tem esse amigo em São Petersburgo?

Georg levantou-se, embaraçado.

(...)

- Você não tem nenhum amigo em São Petersburgo. Você sempre foi um trapaceiro e não se conteve nem mesmo diante de mim. Como iria ter justamente lá um amigo? Não posso de maneira nenhuma acreditar nisso.[9]

Prosseguindo em seu processo acusatório, e mantendo a perplexidade de Georg, o pai-tribunal acaba por admitir a existência do amigo, mas, imputa ao filho a traição dessa amizade.

Em que pese não fazer alusão a leis escritas, fica claro que o pai utiliza-se de imperativos morais para fundamentar a culpa de Georg: a traição ao amigo da Rússia por negar-lhe os acontecimentos, as novidades e, notadamente, o seu noivado; além do abandono do pai, que vive fraco, sujo, e sem cuidados básicos, e até a morte da mãe. Em suma, está em questão o egoísmo de Georg, sua alienação diante da realidade:

- Quanto tempo você levou para amadurecer! Sua mãe precisou morrer, não pôde viver o dia da alegria, o amigo se arruinando na Rússia – três anos atrás ele já estava amarelo de jogar fora – e quanto a mim você está vendo como vão as coisas. É para isso que tem olhos![10]

Ao final do processo, o pai-tribunal coloca em cena o seu último componente: a sentença, o veredicto. Diante da culpa imputada, escancarada e revelada, a Georg não resta outra alternativa senão cumprir o veredicto. Mesmo porque, através do processo conduzido pelo pai-tribunal fez-se justiça, e diante do justo não existe a possibilidade do confronto, da não-aceitação:

- Agora portanto você sabe o que existia além de você, até aqui sabia apenas de si mesmo! Na verdade você era uma criança inocente, mas mais verdadeiramente ainda você era uma pessoa diabólica! Por isso saiba agora: eu o condeno à morte por afogamento!

Ademais, a maior certeza de que um veredicto se mostra justo é a sua imediata aceitação pelo réu que, sem pensar em questioná-lo, aceita sua imposição. Nesse aspecto afirma Ricoeur:

Digo que aí reside a idéia reguladora da condenação. Se, de facto, a sanção deve ter um futuro, sob as formas que vamos mencionar da reabilitação e do perdão, não é necessário que desde o dar-se da sanção, o acusado se saiba reconhecido, pelo menos como ser racional, responsável, quer dizer, como autor de seus actos? Hegel, já citado, levava o paradoxo até manter que a pena de morte, à qual apenas um ser humano pode ser submetido, era um modo de “honrar o culpado enquanto ser racional”. (...) Pelo menos, podemos reter do argumento de Hegel que só um ser racional pode ser punido. Enquanto a sanção não tiver sido reconhecida ela mesma como racional, pelo condenado, não atingiu este último como ser racional.[11]

O pai, ao tornar-se tribunal, coloca-se como terceira pessoa frente a Georg, capaz de julgar e condenar, mas, principalmente, fazer justiça e impor a sanção. O pai-tribunal – por sempre fazer justiça – não erra jamais.

Entretanto, essa posição de terceiro assumida pelo pai, em que pese ser clara para Georg, mostra-se ao mesmo tempo frágil ao leitor. Isso porque, o pai também é vítima dos supostos “crimes” de Georg, por ter sido abandonado e largado pelo filho. Situação de descaso que, na visão do pai, ainda pode se agravar com o casamento que se aproxima. Nessa perspectiva, surge o pai-vítima, vingativo, que ao buscar fazer justiça com as próprias mãos induz o filho ao suicídio. Pratica um crime.

Pela perspectiva do pai-vítima, teve curso uma verdadeira vingança perpetrada contra Georg. Tramada durante longo tempo, e que culminou com a sentença de morte. O próprio pai afirma que preparara a vingança em silêncio, sempre dissimulando:

- Estava aguardando há anos que você viesse com essa pergunta. Você acha que eu me preocupava com qualquer outra coisa? Você acha que leio jornais? Olhe aí – e atirou na direção de Georg uma folha de jornal que de algum modo tinha sido carregada para a cama – um jornal velho, com um nome já completamente desconhecido de Georg. [12]

Por se encontrar fora do direito, a sede de vingança não autoriza o pai a fazer justiça com suas próprias mãos, acusando o filho de abandono, traição, trapaças no estabelecimento comercial, e até da morte da mãe. Ao utilizar-se desse expediente, verdadeiro massacre psicológico, valendo-se da força moral que ainda possui sobre o filho – que o vê como um gigante – induz Georg ao suicídio ao aplicar-lhe a sentença de morte por afogamento. Sem sequer contestar o veredicto, Georg sai para cumprir a sentença de modo estabanado, atropelando a criada no caminho para a morte:

- Jesus! – exclamou ela, cobrindo o rosto com o avental, mas ele já tinha desaparecido. No portão do prédio deu um pulo, impelido sobre a pista da rua em direção à água. Já agarrava firme a amurada, como um faminto a comida. Saltou por cima dela como o excelente atleta que tinha sido nos tempos de juventude para orgulho dos pais. Segurou-se ainda com as mãos que ficavam cada vez mais fracas, espiou por entre as grades da amurada um ônibus que iria abafar com facilidade o barulho de sua queda e exclamou em voz baixa:

- Queridos pais, eu sempre os amei – e se deixou cair.

Nesse momento o trânsito sobre a ponte era praticamente interminável.[13]

Ao fazer com que o filho cumpra a sentença de morte sem titubear e de imediato, configura-se o tipo penal de induzimento ao suicídio descrito no art. 122 do Código Penal. O induzimento foi tão convincente que, ao jogar-se da ponte, Georg ainda ressalta seu amor pelos pais, convencido de que fazia a coisa certa, de que era justo, que merecia sua sentença.

Com efeito, diz o art. 122 do Código Penal Brasileiro: “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena: reclusão, de 2 a 6 anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de 1 a 3 anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.”[14]

Tendo em vista que houve a consumação do suicídio, o pai estaria sujeito a pena de 2 a 6 anos de reclusão. Note-se que, segundo Manzini, citado por Nelson Hungria - ao comentar tipo idêntico no Código Penal italiano - para a tipificação do crime é necessário que o induzimento faça surgir na vítima uma vontade própria, livre e consciente, de suicidar-se.[15] Caso contrário, seria possível discutir-se eventual homicídio doloso praticado pelo induzidor.

O texto de Kafka deixa estreme de dúvida que o pai induz em Georg uma vontade própria e consciente de suicidar-se. Desde o instante em que sai em abalada carreira de sua casa em direção à ponte, Georg está plenamente ciente e decidido a suicidar-se. O pai, por sua vez, possui o necessário elemento subjetivo, o dolo, ou animus de induzir o filho ao suicídio. Ao sacramentar o veredicto: “eu o condeno à morte por afogamento!”, o pai exterioriza sua vontade deliberada de criar no filho a intenção de matar-se.

Segundo Custódio da Silveira, o induzimento se diferencia da instigação, pois, “no induzimento é o agente que faz nascer no espírito da vítima a idéia suicida, enquanto na instigação há o acoroçoamento da ideia preexistente.”[16] A conduta do pai, portanto, subsume-se na ação de indução, uma vez que não há sinais de que Georg possuísse qualquer intenção de suicidar-se antes da fatídica conversa com o pai.

O crime de induzimento ao suicídio gera controvérsias a respeito do seu momento consumativo. Parte da doutrina considera ocorrida a consumação com o eficaz induzimento da vítima ao suicídio. A morte, ou a lesão grave decorrente da tentativa do suicídio, porém, seriam condições de punibilidade. Sem elas, não há aplicação de pena. Essa é a opinião de, Manzini, Nelson Hungria,[17] e Prado, segundo o qual,

embora consumado o delito com o simples induzimento, instigação ou auxílio, a punibilidade encontra-se condicionada à consumação ou tentativa de suicídio, quando desta resulta lesão corporal de natureza grave (condição objetiva de punibilidade).[18]

Todavia, outros doutrinadores consideram a morte da vítima, ou as lesões graves, como elementos do próprio tipo penal, sem as quais, portanto, o fato seria atípico. Sob essa ótica, apenas haveria a consumação do delito com a efetiva morte ou com o surgimento de lesões graves na vítima, tratando-se, portanto, de crime material. Nesse sentido, Roberto Delmanto[19] e Damásio de Jesus.[20]

Na jurisprudência, do mesmo modo, as duas correntes são admitidas. No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, já se decidiu: “O crime do artigo 122 do Código Penal se consuma com o simples induzimento, instigação ou prestação de auxílio, mas sua punição está condicionada à superveniente consumação do suicídio, ou em caso de simples tentativa, à produção de lesão corporal de natureza grave na vítima.” (TJSP – AC – RT 191/64). E também: “Sem que a vítima se mate ou tente se matar, não pode haver tipificação do art. 122.” (TJSP – RT 531/326).[21]

Vale observar que o pai ainda teria sua pena aumentada pela agravante genérica do crime praticado contra descendente (art. 61, II, “e”, do Código Penal).       


III – Conclusão

No ensaio publicado em Prismas, Theodor W. Adorno ressalta o esforço interpretativo ao qual o leitor de Kafka é levado ao se deparar com seus escritos. Mesmo que queira manter, pode-se dizer,  uma distância segura dos textos, a necessidade da interpretação se coloca como insuperável, inafastável:

A violência com que Kafka reclama interpretação encurta a distancia estética. Ele exige do observador pretensamente desinteressado um esforço desesperado, agredindo-o e sugerindo que de sua correta compreensão depende muito mais que apenas o equilíbrio espiritual: é uma questão de vida ou morte. Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dispostos de maneira a não manter uma distância constante com sua vítima, mas si de exercitar de tal forma os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional do cinema mais recente.[22]   

Alertados por Adorno, resta-nos, então, buscar a interpretação, ou melhor, as interpretações que, mesmo se tentássemos nos desviar ou ficar indiferentes a elas, invariavelmente, nos atropelariam.

As figuras do pai-tribunal e do pai-vítima parecem estar em um constante duelo durante a narrativa da novela. Duelo em que o embate, porém, não leva a um vencedor.

A posição de Georg, por sua vez, também parece trilhar uma montanha-russa. Por vezes culpado ao sair tardiamente de seu mundo individual, de alienação frente a realidade, do eu, e só então descobrir o outro, ou os outros ao seu redor. Mas, por vezes inocente, vítima de uma vingança do pai, tramada durante anos, enquanto apenas procurava cumprir e se adequar ao papel social vigente que se esperava dele.  

A decisão final cabe ao leitor, ao intérprete, que mesmo permanecendo indeciso, jamais sairá ileso da leitura de Kafka, mas sim, posicionado em rota de colisão com a locomotiva tridimensional de sua narrativa, como citado por Adorno.[23]

Adorno, entretanto, fornece-nos um indício: assim como os demais personagens de Kafka, Georg não torna-se “culpado por sua própria culpa” – pois não possui culpa alguma – mas porque buscou apoio na justiça:

Os heróis de O processo e de O castelo tornam-se culpados não por sua própria culpa – eles não têm nenhuma -, mas porque procuram trazer a justiça para o seu lado. “O pecado original, a antiga injustiça cometida pelo homem, consiste na censura que o homem faz e não deixa de fazer, ao afirmar que o pecado original lhe foi imposto.”[24]

Ao buscar sua aprovação, Georg de fato procura valer-se da justiça que o pai-tribunal representa. Acaba, porém, imputado de culpa. É condenado, encontra sua sentença de morte, seu veredicto.

Seja qual for o caminho escolhido pelo intérprete, o trânsito sobre a ponte permanecerá praticamente interminável.


VI – Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Prismas. São Paulo: Ática, 1998.

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

DELMANTO, Celso (et al.). Código Penal Comentado. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito & Literatura – Análise de Síntese    Teórica. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2008.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. V, 5ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1979.

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

KAFKA, Franz. O veredicto e A colônia penal. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MACHADO, Angela C. C.; COPELLI, Maria Angela G. (Org.). Repertório de Jurisprudência de Direito Penal e Processo Penal. 4ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2007.

PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

RICOUER, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.

SOUZA, Ricardo Timm de. A justiça, o veredicto e a colônia penal – um ensaio. São Paulo: Editora Perspectiva, 2011.      


Notas

[1] CARONE, Modesto. Posfácio: Duas novelas de primeira. In: KAFKA, Franz. O veredicto e Na colônia penal. 4ª reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 75.

[2] Ibidem. p. 77.

[3] CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 13

[4] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 22.

[5] RICOUER, Paul. O justo ou a essência da justiça. Lisboa: Instituto Piaget, 1997. p. 172.

[6] Ibidem. p. 173-174.

[7] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 15.

[8] Ibidem, p. 16.

[9] Idem, p. 18.

[10] KAFKA, Franz. Op. Cit., p. 24

[11] RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 178.

[12] KAFKA, Franz. Op. Cit., p.  23.

[13] Ibidem, p. 25.

[14] BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848 de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal. Publicado no Diário Oficial da União de 31 de dezembro de 1940 e retificado em 3 de janeiro de 1941.

[15] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Vol. V, 5ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 93.

[16] SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 94-95.

[17] HUNGRIA, Nelson. Op. Cit., p. 93.

[18] PRADO, Luiz Regis. Comentários ao Código Penal. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 407.

[19] DELMANTO, Celso (et al.). Código Penal Comentado. 8ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 464.

[20] JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal – Vol. 2 – Parte Especial. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

[21] MACHADO, Angela C. C.; COPELLI, Maria Angela G. (Org.). Repertório de Jurisprudência de Direito Penal e Processo Penal. 4ª ed. São Paulo: Premier Máxima, 2007, p. 197-198.

[22] ADORNO, Theodor. Anotações sobre Kafka. In: ADORNO, T. Prismas. São Paulo: Ática, 1998. p. 241.

[23] Ibidem,

[24] Idem, p. 269


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MUNERATTI, Rafael Ramia. Justiça, vingança, e induzimento ao suicídio em "O veredicto" de Franz Kafka. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3550, 21 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23974. Acesso em: 28 mar. 2024.