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Concursos públicos no divã.

A politicagem é a praga maldita

Concursos públicos no divã. A politicagem é a praga maldita

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Comentários sobre matéria jornalística sobre os concursos públicos no Brasil.

Uma recente matéria sobre o aperfeiçoamento dos concursos públicos no Brasil publicada no jornal O Estado de S. Paulo (04.03.13, p. A3) afirma o seguinte [intercaladas, estão as minhas observações]:

a) que a média salarial no serviço público é de R$ 3.000 (em dezembro de 2012), contra R$ 1.600 da iniciativa privada (segundo dados do IBGE):

Paga-se melhor em razão das responsabilidades da função; o serviço público, com isso, teoricamente, tem a possibilidade de selecionar as pessoas mais preparadas para cada atividade pública.

b) que essa seria a razão principal para a busca do cargo público (pelos milhares de candidatos):

Nem sempre isso é verdadeiro; em muitos casos o candidato procura uma carreira para realizar um sonho, um pendor, ou uma tradição familiar; mas mesmo quando o candidato busca a carreira pelo dinheiro, fundamental é saber se é - ou não - um bom profissional; para isso é indispensável a fixação de um estágio probatório em todas as carreiras.

c) que os candidatos não preparados alimentam o negócio de empresas que se dedicam a treinar os candidatos para as provas:

Se não existissem os renomados e indispensáveis cursos preparatórios, provavelmente o poder público iria selecionar gente muito despreparada para o cargo; os cursos cumprem a função social de melhorar a qualidade do candidato e, em consequência, do próprio serviço público.

d) que um estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pela Universidade Federal Fluminense (UFF) revelou que os testes selecionam não os candidatos mais adequados para os cargos em disputa, sim, os que se preparam melhor para a prova, independentemente do currículo acadêmico ou profissional que tenham. Isso comprometeria a qualidade do serviço público; o concurso virou “um fim em si mesmo”; não afere as competências reais dos candidatos:

Três fatores são decisivos para a formação de um corpo de funcionários qualificado: o concurso público, muito treinamento nos primeiros anos da função e um período de estágio probatório rigoroso e instrutivo, porque é nele que se descobre se o funcionário tem ou não pendor para o exercício da função pública.

e) cerca de 12 milhões de pessoas estariam interessadas em ingressar no funcionalismo público (segundo a Agência Nacional de Proteção e Apoio ao Concurso Público – Anpac):

Num país de regime capitalista egoísta, consumista e individualista, onde o emprego privado não conta com nenhuma garantia, todos que podem, buscam estabilidade e o melhor para as suas carreiras.

f) que o setor movimentaria anualmente mais de R$ 30 bilhões:

Grande parcela desse total vai para os cofres do próprio setor público, que cobra altas taxas para a inscrição nos concursos; outra parcela se gasta com livros e apostilas, com as empresas contratadas para a elaboração das provas, com a logística de segurança para a realização das provas etc.

g) a multidão está atrás dos benefícios associados ao serviço público:

O serviço público tem benefícios, mas também muitas responsabilidades; são cargos procurados porque a economia privada não comporta todos os jovens que buscam trabalho, estabilidade, bons salários etc.

h) o servidor tem estabilidade e um salário inicial acima do oferecido pela iniciativa privada:

Não vejo nada aético na busca das melhores oportunidades na vida; o salário deve sempre ser compatível com o nível de responsabilidades assumidas em função de uma atividade pública, voltada para toda população.

i) pode começar ganhando mais de R$ 10.000; os melhores salários estão vinculados às provas mais difíceis, não às exigências curriculares:

Constitui um erro crasso prescindir das provas difíceis, quando os cargos são relevantes; como dissemos acima, a boa formação da carreira pública exige: concurso exigente, excelente etapa de treinamento e estágio probatório; tem muita gente com excelente currículo, mas que é uma negação de funcionário público.

j) cerca de 400 mil vagas serão oferecidas nos próximos dois anos (em razão das aposentadorias, falecimentos etc.):

Estamos falando de um país com quase 200 milhões pessoas; a rotatividade no serviço público existe em qualquer parte do mundo; depois das reformas da previdência ficou muito mais difícil se aposentar; fundamental é o equilíbrio nas contas da previdência, não as críticas neoliberais ao incremento do funcionalismo público; o Brasil conta com uma das menores proporções do mundo de funcionários públicos por número de habitantes.

k) mais de 40% dos funcionários públicos contam com mais de 50 anos:

Esse é um bom motivo para incentivar os jovens a se prepararem para as carreiras públicas, selecionando, dentre eles, os melhores; com treinamento posterior, podem se converter em excelentes servidores.

l) somente neste ano mais de 120 mil vagas serão abertas:

O serviço público não pode parar; a crítica neoliberal contra o funcionalismo público não se justifica no nosso país, que tem baixa proporcionalidade entre ele e o número de habitantes; o que não é concebível é o abominável inchaço excessivo de funcionários, sobretudo quando tem finalidade eleitoreira.

m) a concorrência é forte (chegando a 217 candidatos por vaga):

Quanto mais concorrência, mais possibilidade de selecionar os melhores, os mais preparados; ser melhor preparado, no entanto, não significa ser melhor funcionário; é a fase de treinamento que vai dizer quem é bom funcionário ou não.

n) muitos candidatos dedicam cerca de 10 horas por dia, durante 2 ou 3 anos:

Para a conquista de um sonho nenhum obstáculo é intransponível; a estabilidade no serviço público e o salário são as recompensas pelo esforço e investimento feitos.

o) a administração pública não utiliza o estágio probatório (como fase obrigatória da carreira):

É lamentável que assim seja; é durante o estágio que se poderia aferir o pendor do concursado, eliminando os que não se mostram capazes para a função; não deveríamos criticar os concursos, sim, a falta de capacitação profissional específica para cada função.

p) os concursos deveriam abandonar o modelo de prova de múltipla escolha; melhores seriam as provas dissertativas, fundadas em situações reais da carreira:

É impossível a eliminação da prova de múltipla escolha, pelo menos como primeira etapa do concurso; com ela são eliminados os menos preparados para a prova; depois de feita uma primeira seleção, é correto cobrar provas dissertativas, inclusive com situações reais da carreira; depois que o candidato mostra habilidade teórica, fundamental é a preparação prática durante o estágio probatório; o poder público vem negligenciando nesse ponto da capacitação específica.

q) deveriam fazer provas práticas:

Concordo; depois de fazer as provas seletivas de múltipla escolha; mais que provas práticas, após o ingresso, são fundamentais os cursos de capacitação profissional.

r) os concursos deveriam buscar os jovens talentos (nas universidades e no setor privado):

Isso já está ocorrendo hoje nos concursos mais difíceis; mas talento para passar numa prova não significa talento para o desempenho da função pública, que só pode ser aferido no estágio probatório, que vem sendo negligenciado pelo poder público.

s) o concurso público é a forma mais adequada para evitar o compadrio e a politicagem:

Sem sobra de dúvida, assim é; porque ele é fundado na meritocracia, na medida em que inexistam fraudes no próprio certame; o preenchimento de vaga pública, ressalvadas umas pouquíssimas exceções, por meio da politicagem é uma das grandes chagas do nosso país, presentes desde a carta de Pero Vaz de Caminha.

t) é indispensável reformar o modelo de concurso, para o aperfeiçoamento do serviço público:

De acordo com a minha opinião é indispensável aperfeiçoar o concurso público como modelo de ingresso na carreira pública por meio da meritocracia; mas o poder público não pode se contentar exclusivamente com ele, para a formação do servidor; o estado está negligenciando na capacitação profissional durante o estágio probatório.

Sou totalmente favorável à aprovação de uma lei na área, que seria uma espécie de Marco Regulatório dos Concursos Públicos. Essa lei deveria instituir uma Agência Nacional que cuidaria da transparência dos concursos, da regularidade dos editais, dos direitos e deveres dos concursandos etc. É impressionante como as entidades, com pouca experiência, acabam cometendo erros triviais nos editais dos concursos, dando margem para amplas discussões jurídicas. Uma agência nacional cumpriria esse papel de prevenção de litígios.


Autor

  • Luiz Flávio Gomes

    Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri – UCM e Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo – USP. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Jurista e Professor de Direito Penal e de Processo Penal em vários cursos de pós-graduação no Brasil e no exterior. Autor de vários livros jurídicos e de artigos publicados em periódicos nacionais e estrangeiros. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Estou no www.luizflaviogomes.com

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOMES, Luiz Flávio. Concursos públicos no divã. A politicagem é a praga maldita. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3549, 20 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23998. Acesso em: 28 mar. 2024.