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Do conceito de posse no crime de furto.

A diferença entre as fases de preparação, de início da execução e de consumação no iter criminis para subtração da res furtiva.

Do conceito de posse no crime de furto. A diferença entre as fases de preparação, de início da execução e de consumação no iter criminis para subtração da res furtiva.

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Diferença entre as fases de preparação, de início da execução e de consumação no iter criminis para subtração da res furtiva no crime de furto.

Resumo: A partir de que momento se pode considerar configurada a tentativa no crime de furto? Basta a demonstração de circunstâncias que revelem a intenção do agente ou é necessária a apreensão da coisa? E quando se pode considerar consumado o crime de furto? É necessária a posse mansa e pacífica? O presente estudo visa responder a essa e a algumas outras questões jurídicas que envolvem o iter criminis no  delito previsto no art. 155 do Código Penal brasileiro.

Palavras-chave: Iter criminis – Furto – Apreensão da Coisa.

Sumário: Introdução; 1.A necessária revisitação dos critérios para a distinção entre atos preparatórios, tentativa e consumação; 2. Reflexos da divergência doutrinária na prática judicial: quando os antecedentes dispensam a existência da prova; 3. Repisando o iter criminis no tipo penal de furto: por uma mais precisa e justa delimitação do momento da consumação e do início da execução do crime; Conclusões; Referências.


Introdução

O tema do iter criminis, isto é, do itinerário do crime ou das fases para a configuração de uma conduta criminosa é, muitas vezes, relegado pela doutrina a um segundo plano, tendo em vista que, como regra, só apresentam relevância penal as fases da tentativa e da consumação. Com efeito, os momentos que antecedem o início da execução do crime não são puníveis, salvo se expressamente previstos como conduta incriminada no tipo penal, como é o caso do crime previsto no art. 291 do Código Penal. Definir os limites exatos de cada fase desse caminho com destino à consumação do delito, entretanto, nem sempre é algo simples. No crime de furto, por exemplo, a delimitação dos passos do agente pode representar a sua condenação pela prática do crime na modalidade consumada (que, na forma qualificada, pode chegar a uma reclusão de 8 anos), condenação na modalidade tentada (com redução de até dois terços), a condenação por um fato mais leve (como a violação de domicílio) ou, até mesmo, a sua absolvição, em face de uma possível atipicidade da conduta.

O presente estudo visa debater o tema do iter criminis e seu reflexo na tipificação do crime de furto, com base na doutrina e nos precedentes judiciais pátrios, adotando à guisa de ilustração dois casos concretos ocorridos no âmbito da Justiça Federal em Pernambuco.

Primeiramente, serão apresentados os aspectos teóricos da matéria. Em seguida, serão apresentados os casos concretos que foram julgados na Justiça Federal, bem como o entendimento das Cortes Superiores brasileiras e, por fim, consignaremos a nossa contribuição para o tema.


1.A necessária revisitação dos critérios para a distinção entre atos preparatórios, tentativa e consumação.

De acordo com a teoria tripartite do delito, o crime é toda ação ou omissão típica e antijurídica, atribuível a um indivíduo culpável[1]. O crime pode ser examinado, portanto, sob dois aspectos: o da sua manifestação no mundo dos fatos (a ação) e o da sua estrutura valorativa (os juízos de valor relativos à tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade)[2]. Antes mesmo de se partir para os juízos valorativos sobre a conduta (tipicidade e antijuridicidade) e sobre o suposto autor do fato (culpabilidade), mister é verificar se ocorreu, no caso concreto, comportamento humano que tenha alguma relevância jurídico-penal.

Nos passos da teoria finalista do crime, toda ação é uma vontade determinada a um fim. A vontade sem manifestação é apenas cogitação e, como regra, não pode ser punida e sequer inferida. A vontade se manifesta quando há uma determinação sobre o comportamento humano, comissivo ou omissivo, e passa a ter relevância penal quando é contrária a uma proibição de agir ou a uma determinação para agir. A vontade, portanto, enquanto não executada ou concretizada por meio de comportamentos efetivos, não interessa e não pode ser objeto de cognição pelo Direito Penal.

O conjunto de fatos que se desenvolve desde a ideação criminosa até consumação do crime é o que se denomina iter criminis. Na definição de Aníbal Bruno, o iter criminis é “um caminho que o crime percorre, desde o momento em que germina, como ideia, no espírito do agente até aquele em que se consuma o ato final” [3]. Como esclarece Cláudio Brandão, são quatro as fases do caminho do crime: I – a cogitatio; II – a conatus remotus; III – a conatus proximus; e IV – a consumatio[4].

A primeira delas, como já mencionado, é a fase da cogitação, da ideação do crime. É o momento em que o agente planeja mentalmente a execução da conduta, imaginando quais os meios mais eficazes para a consecução de seu objetivo. Nos crimes culposos, embora a finalidade ou a meta planejada não seja ilícita, os meios eleitos pelo agente nessa fase e manifestados em sua conduta negligente, imperita ou imprudente durante a execução são desvalorados e colocam em perigo ou efetivamente lesionam bem jurídicos, sendo, por essa razão, punidos.

As segunda e terceira fases foram distinguidas, como lembra Brandão, pelos pós-glosadores italianos e, em especial, por Próspero Farinacius, em sua obra Tratactus Criminalis, como modalidades de tentativa[5]. A conatus remotus equivaleria àquilo que denominamos, hoje, de atos preparatórios e pode ser compreendida como o conjunto de atos que antecedem a execução do crime e que têm por finalidade viabilizar a sua realização. È a conduta, por exemplo, de adquirir os instrumentos lícitos para a prática do crime. 

A conatus proximus, por seu turno, seria o conjunto de atos que representam o início da execução propriamente do crime e que antecedem proximamente a sua consumação. A maior dificuldade doutrinária encontra-se justamente na definição do que seriam esses atos de execução e quando se poderia considerá-los iniciados. Aqui se encontra também o ponto nodal para a distinção entre atos preparatórios, em regra atípicos, e a tentativa punível.

    Zaffaroni apresentam seis grupos de teorias que buscaram definir critérios para essa distinção[6]. O primeiro deles seriam as teorias negativas, que, em verdade, limitam-se a concluir que a distinção entre atos preparatórios e tentativa é impossível, de modo que a lei não deveria conferir a eles tratamento distinto, punindo todos com a mesma medida. Uma segunda possibilidade de distinção seria a adoção de um critério subjetivo puro com vistas a diferenciar o momento em que a vontade do agente já se destinava definitivamente à prática do crime. Uma terceira corrente buscaria encontrar um critério distintivo na inequivocidade dos atos de tentativa sob a ótica de um terceiro, isto é, no momento em que, para uma terceira pessoa, já não houvesse mais dúvida quanto à intenção do agente de consumar o delito, estaria, então, configurado o início da execução. Uma quarta corrente adotaria um critério objetivo-formal, segundo o qual o início da execução do crime seria identificável a partir da prática de atos que representassem o verbo nuclear do tipo penal. Haveria, ainda, um corrente material-objetiva, que visaria completar a teoria anterior com o exame de ações que colocassem em perigo o bem jurídico. Por fim, o penalista argentino indica o critério que, segundo sua visão, seria o mais completo, isto é, aquele objetivo-individual, que leva em consideração o plano concreto do autor para examinar a ação executiva típica[7].

Essa última teoria, fundamentada nas idéias de Welzel, embora permita uma maior aproximação acerca do objeto da distinção (atos preparatórios e tentativa), não é, como reconhece o próprio Zaffaroni, completamente suficiente para todos os casos, permanecendo a questão da delimitação do momento exato do início da execução do crime ainda um problema em aberto para a doutrina e a prática jurídico-penal[8].

De fato, não é possível acolher, no Brasil, as teorias negativas, pois o nosso Código Penal, em seu art. 14, II, define a tentativa como sendo o início da execução do crime que não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. O início da execução é, pois, um marco entre os atos puníveis (os executivos) e aqueles que, sendo meramente preparatórios e não sendo autonomamente tipificados, não são passíveis de punição. Como esclarece Aníbal Bruno, além de não provocarem riscos imediatos de lesão ao bem jurídico tutelado e não se constituírem propriamente, via de regra, em condutas típicas, os atos preparatórios carecem de antijuricidade e, por essa razão, não podem ser punidos[9].

Por outro lado, não é possível adotar simplesmente um critério puramente subjetivo, pois estar-se-ia conferindo ampla discricionariedade ao Poder Judiciário para definir as condutas típicas, o que violaria o princípio da legalidade, segundo o qual a hipótese típica só pode ser definida por lei em sentido estrito, assim compreendida aquela aprovada pelos legítimos representantes do povo.

Portanto, o critério objetivo relativamente ao início da prática efetiva da ação descrita no tipo parece ser aquele que confere menos insegurança na interpretação dos fatos. Esse critério, contudo, deve ser mesmo completado pelo exame das circunstâncias concretas da conduta e do indivíduo a fim de se poder extrair com a maior aproximação possível a vontade deliberada ou não do agente de violar o bem jurídico. Ademais, a probabilidade de lesão ao bem jurídico também deve ser examinada concretamente. É importante destacar que mesmo a conjugação desses critérios é insuficiente. Como já destacava Basileu Garcia. “reunidos, concorrem como subsídios para afastar dúvidas, que, todavia, perduram em muitos casos, tornando-se então aconselhável se prefira a solução mais benigna”[10]. De fato, como recomenda o princípio da presunção de não culpabilidade, in dubio pro reo.

Por fim, nos termos do próprio art. 14, I, do Código Penal, considera-se consumado o crime “quando nele se reúnem todos os elementos de sua definição legal”. Quanto à definição abstrata de consumação não há, de fato, grandes divergências, subsistindo, contudo, dificuldades semelhantes às observadas nas demais fases, quando necessário é distinguir, em concreto, nos crimes em espécie, o momento exato da consumação, diferenciando-se-o da mera tentativa.

No caso do crime de furto, a divergência quanto à delimitação de cada uma dessas fases permanece viva na prática jurídica, conforme se poderá observar da análise dos casos concretos ocorridos na Justiça Federal e do exame dos precedentes das Cortes Superiores brasileiras a seguir comentados.


2. Reflexos da divergência doutrinária na prática judicial: quando os antecedentes dispensam a existência da prova.

Os dois casos que trazemos à discussão têm em comum o fato de os seus agentes serem jovens pobres, viciados em droga (conhecida como “crack”) e já terem sido anteriormente processados por crimes de furto, o que foi suficiente em nossa compreensão para formação no Juiz, antes mesmo do início do processo propriamente dito, da convicção acerca da “culpabilidade” dos réus.

 No primeiro caso, “Anastácio”, o nome fictício para preservar a identidade do acusado, foi denunciado pelo Ministério Público Federal pela prática de crime previsto no artigo 155, §4°, II, c/c 14, II, todos do Código Penal.  De acordo com a denúncia, Anastácio foi preso em flagrante delito, após ter, supostamente, tentado furtar peças de um caminhão do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER), que se encontrava estacionado no pátio do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Constava da peça inquisitorial que Anastácio fora visto por um vigilante, saindo de trás de um caminhão do DNER, “agindo como se procurasse por peças soltas”.

A instrução processual se limitou à oitiva dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante, ao interrogatório do acusado, que negou a intenção de furtar, afirmando que ali tinha comparecido apenas para defecar[11], e à juntada aos autos da folha de antecedentes criminais do acusado.

O réu foi condenado ao cumprimento de pena de 01 (um) ano e 09 (nove) meses de reclusão, a ser cumprida inicialmente em regime semi-aberto e 60 (sessenta) dias-multa, no valor de 1/30 (um trigésimo) do salário-mínimo vigente à época dos fatos. Na fixação do regime, o magistrado levou em consideração os antecedentes do réu e a possibilidade, segundo seu sentimento, de reincidência. Por outro lado, pela ausência de circunstâncias pessoais desfavoráveis ao réu, substituiu a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direito, sendo uma de prestação de serviço à entidade pública e outra de prestação pecuniária.

Em outro caso, Anderson, nome também fictício, foi denunciado pelo Ministério Público Federal em razão da prática do crime de furto qualificado na modalidade tentada. Ele foi preso no momento em que tentava adentrar em sala do campus da Universidade Federal de Pernambuco. Nessa ocasião, vigilantes da Universidade encontraram o acusado com um pedaço de ferro na mão e com a caixa do ar condicionado já quebrada, local onde, após a derrubada do aparelho de ar condicionado, havia se formado um espaço que permitiria a entrada nessa sala, que se localizava no térreo. Ele também possuía antecedentes criminais, figurando, inclusive, como réu em outra ação penal por furto de telas de LCD de computadores da UFPE.

Em nenhum desses casos, é importante registrar foi identificado qualquer bem móvel subtraído nem se constaram digitais do acusados sobre alguns dos bens no local. Apesar disso, ambos foram condenados em primeira instância, não havendo notícia dos julgamentos das apelações interpostas pela defesa.

A respeito da consumação do crime de furto os precedentes do Superior Tribunal de Justiça são vacilantes, ora afirmando que é imprescindível a retirada da res furtiva da esfera de vigilância da vítima, ora afirmando que basta a posse, mansa e pacífica, da coisa subtraída, ora asseverando que é suficiente a apreensão da coisa, ainda que o agente seja perseguido.

Como exemplo da primeira linha de precedentes, cite-se, primeiramente, o julgamento do RESP nº 197.848-DF, de relatoria do Ministro Vicente Leal, publicado em 1999. Nesse caso, embora se tratasse de roubo, ficou assentado o entendimento de que seria necessária a retirada do objeto da esfera de vigilância da vítima, não se consumando o delito quando a perseguição ocorre logo depois da subtração. Confira-se a ementa do julgado:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. ROUBO. SUBTRAÇÃO DA RES FURTIVA, SEGUIDA DE PRISÃO EM FLAGRANTE. CRIME TENTADO.

- O CRIME DE ROUBO CONSUMA-SE NO MOMENTO EM QUE O ASSALTANTE REALIZA A PLENA SUBTRAÇÃO DA "RES FURTIVA", AFASTANDO-A DO CAMPO DE VIGILANCIA DA VITIMA, MESMO QUE DEPOIS VENHA A SER PRESO EM FLAGRANTE PRESUMIDO.

- NA HIPOTESE EM QUE O AGENTE DO CRIME NÃO TEVE, EM NENHUM MOMENTO, A POSSE TRANQUILA DOS BENS, POIS FOI PRESO LOGO EM SEGUIDA A PRATICA DO DELITO, HOUVE APENAS TENTATIVA.

- RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E DESPROVIDO.[12]

Em julgamento mais recente, a Quinta Turma, no julgamento do HC nº 165.866-DF, relatado pela Ministra Laurita Vaz, publicado em outubro de 2012, deixou transparecer que a posse mansa e pacífica é necessária, ainda que por breve espaço de tempo, para a consumação do crime de furto e que a subtração é efetiva quando coisa é retirada da esfera de vigilância da vítima. Interpretou-se que essas exigências são decorrentes da adoção da teoria da apprehensio ou amotio e que são compartilhadas tanto no Superior Tribunal de Justiça como no Supremo Tribunal Federal. Confira-se o seguinte trecho do julgado:

HABEAS CORPUS. FURTO SIMPLES. ALEGAÇÃO DE NULIDADE POR OFENSA AO PRINCÍPIO DA IDENTIDADE FÍSICA DO JUIZ (ART. 399, § 2.º, DO CÓDIGO PENAL). DEFESA QUE NÃO SE DESINCUMBIU DO ÔNUS DE DEMONSTRAR DE QUE FORMA, OU EM QUE PONTO, O POSTULADO FOI OFENDIDO. SUBSTITUIÇÃO DE MAGISTRADOS, NO JUÍZO, QUE DEVE SER TIDA POR VÁLIDA. ERRO DE TIPO. CONSCIÊNCIA DE QUE A RES FURTIVA ERA ALHEIA. CARACTERIZAÇÃO DO DOLO. CONCLUSÃO DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS QUE NÃO PODE SER INFIRMADA.

REEXAME. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ELEITA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. BEM DE VALOR CONSIDERÁVEL (R$ 135,00). PACIENTE REINCIDENTE. NÃO CARACTERIZAÇÃO DA BAGATELA. RES FURTIVAE QUE FOI AFASTADA DA ESFERA DE VIGILÂNCIA DA VÍTIMA. DELITO CONSUMADO. ORDEM DE HABEAS CORPUS DENEGADA.

[...]

5. O Supremo Tribunal Federal e esta Corte, no que se refere à consumação do crime de roubo ou furto, adotam a teoria da apprehensio, também denominada de amotio, segundo a qual considera-se consumado o delito no momento em que o agente obtém a posse da res furtiva, de forma mansa e pacífica.

6. A coisa alheia móvel foi efetivamente subtraída, com sua retirada da esfera de vigilância da Vítima. O fato de o Réu ter sido surpreendido, posteriormente, pela ação policial, quando já transportava o objeto furtado na via pública, não descaracteriza a posse mansa e pacífica.

7. Ordem de habeas corpus denegada[13].

Essa exegese, contudo, não é pacífica nem no âmbito do Superior Tribunal de Justiça nem na seara da própria Quinta Turma. Com efeito, em outro julgado no mesmo ano de 2012, desta feita com relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, quando da apreciação do agravo regimental no Habeas Corpus nº 254.399/RS , restou decidido que, para a consumação do crime de furto, não é necessária nem a posse mansa e pacífica nem a retirada da coisa da esfera de vigilância da vítima. Confira-se:

AGRAVO REGIMENTAL EM HABEAS CORPUS. 1. MANDAMUS UTILIZADO COMO SUBSTITUTIVO DE RECURSO. NÃO CABIMENTO. HODIERNO ENTENDIMENTO DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, QUE CONTA COM O LOUVÁVEL REFORÇO DA SUPREMA CORTE. 2. FURTO CONSUMADO. PLEITO DE RECONHECIMENTO DO CRIME TENTADO. POSSE TRANQUILA DA RES FURTIVA. DESNECESSIDADE. 3. MONITORAMENTO DA CONDUTA. VIGILÂNCIA QUE NÃO OBSTA, EM ABSOLUTO, A CONSUMAÇÃO DO DELITO. 4. RECURSO IMPROVIDO.

1. Recentemente, este Tribunal Superior passou a negar seguimento e/ou não conhecer de habeas corpus voltado à correção de decisão sujeita a recurso próprio, previsto no sistema processual penal, por não ser ele substituto de recursos ordinários, especial ou extraordinário, mas sim remédio constitucional voltado ao combate de constrangimento ilegal específico, de ato ou decisão que afete, potencial ou efetivamente, direito líquido e certo do cidadão, com reflexo direto em sua liberdade, entendimento esse que conta com o louvável reforço da Suprema Corte.

2. No caso, inexiste constrangimento ilegal manifesto a ser sanado, pois prevalece no Superior Tribunal de Justiça a orientação de que o crime de furto se consuma no momento em que o agente se torna possuidor da res furtiva, ainda que haja imediata perseguição e prisão, sendo prescindível que o objeto subtraído saia da esfera de vigilância da vítima.

3. Da mesma forma, não há falar que eventual monitoramento da conduta obste, em absoluto, a consumação do delito. Precedentes.

4. Agravo regimental a que se nega provimento[14].

Esse último posicionamento tem encontrado respaldo no âmbito do Supremo Tribunal Federal, conforme se pode aduzir do julgamento do HC 108.678, julgado na Primeira Turma, publicado também em 2012. Nesse caso, tratava-se de furto de uma bolsa na cidade de Porto Alegre-RS, em que o agente foi preso em flagrante delito logo após perseguição policial, tendo a bolsa sido devolvida à vítima. Considerou-se consumado o crime e negou-se a ordem pleiteada no Habeas Corpus, nos termos da seguinte ementa:

HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. FURTO CONSUMADO. RECONHECIMENTO EM SEDE DE RESP. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. PRINCÍPIO DA INDIVIDUALIZAÇÃO DA PENA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO. ORDEM DENEGADA. O Superior Tribunal de Justiça ateve-se à questão de direito para, sem alterar ou reexaminar os fatos, assentar a correta interpretação do art. 14, II, do Código Penal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dispensa, para a consumação do furto ou do roubo, o critério da saída da coisa da chamada “esfera de vigilância da vítima” e se contenta com a verificação de que, cessada a clandestinidade ou a violência, o agente tenha tido a posse da res furtiva, ainda que retomada, em seguida, pela perseguição imediata. Precedentes. O princípio constitucional da individualização da pena não tem relação com a definição do momento consumativo do delito. Writ denegado[15].

É possível observar uma tendência à afirmação do entendimento conservador quanto ao momento de consumação do crime de furto (no sentido de que é desnecessária a retirada da coisa da esfera de vigilância da vítima) pela quantidade de julgados nesse sentido. Iniciou-se, contudo, no âmbito da própria Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal, o assentamento da idéia de que a consumação não ocorre se o agente é a todo tempo monitorado por policiais que se encontravam no local do fato. Esse novo entendimento foi firmado no julgamento do Habeas Corpus nº 104.593, impetrado pela Defensoria Pública da União, no qual figurou como relator o Ministro Luiz Fux. Confira-se o resumo do julgado:

PENAL. HABEAS CORPUS. CRIME DE ROUBO PRÓPRIO. CONCURSO DE PESSOAS. (CP, ART. 157, § 2º, II). MOMENTO CONSUMATIVO. POSSE MANSA E PACÍFICA. PRESCINDIBILIDADE. JURISPRUDÊNCIA DO STF. CASO CONCRETO. INAPLICABILIDADE. PECULIARIDADE. MONITORAMENTO PELA POLÍCIA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA CRIME TENTADO (CP, ART. 14, II). ORDEM CONCEDIDA. 1. A consumação do crime de roubo, em regra, independe da posse mansa da coisa, bastando que, cessada a violência ou grave ameaça, ocorra a inversão da posse; tese inaplicável nas hipóteses em que a ação é monitorada pela Polícia que, obstando a possibilidade de fuga dos imputados, frustra a consumação por circunstâncias alheias à vontade dos agentes, nos termos do art. 14 do Código Penal. 2. É cediço na jurisprudência da Corte et pour cause reclama o uso da analogia com o fato punível julgado pela Segunda Turma no HC 88.259/SP, no qual a ordem foi concedida em acórdão assim ementado: “HABEAS CORPUS. PENAL. ROUBO TENTADO OU CONSUMADO. CONTROVÉRSIA. Ainda que o agente tenha se apossado da res, subtraída sob a ameaça de arma de brinquedo, é de se reconhecer o crime tentado, e não o consumado, considerada a particularidade de ter sido ele a todo tempo monitorado por policiais que se encontravam no cenário do crime. Hipótese em que o paciente subtraiu um passe de ônibus, o qual, com a ação dos policiais, foi restituído imediatamente à vítima. Ordem concedida.” (HC 88.259/SP, Relator Min. Eros Grau, Segunda Turma, Julgamento em 2/5/2006, DJ 26/5/2006). 3. In casu, os pacientes, em união de desígnios e mediante violência física, subtraíram da vítima a quantia de R$ 20,00 (vinte reais), sendo imediatamente perseguidos e presos em flagrante pela Polícia Militar, que passava pelo local durante o ato delituoso. 4. Ordem concedida, para desclassificar o delito para roubo tentado, remetendo-se ao juízo de primeira instância a alteração na dosimetria da pena[16].

Nesse julgamento, em que restou vencida apenas a Ministra Carmen Lúcia, que negava a ordem, tratava-se de hipótese em que duas pessoas, mediante o emprego de violência, teriam obtido R$ 20,00 da vítima, sendo, contudo, perseguidos e presos, logo em seguida, por policiais militares que, estando no local, haviam monitorado o ocorrido desde a abordagem dos réus. Em seu voto, o Ministro Luiz Fux destacou a existência na Segunda Turma do STF[17] de precedente em que também fora concedida a ordem em razão da particularidade de o agente ter sido a todo tempo monitorado por policial militar.

Na impetração a Defensoria Pública da União destacou o posicionamento de Nelson Hungria, que foi reproduzido no relatório do julgamento, segundo o qual: “se após o emprego da violência pessoal não puder o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, executar a subtração, mesmo o ato inicial da apprenhensio rei, o que se tem a reconhecer é a simples tentativa”. No debate havido entre os Ministros da Primeira Turma, ficou registrado o desejo de harmonizar o entendimento da Corte sobre a matéria, destacando essa particularidade. Assim, parece ter sido assentada a idéia de que, nos crimes de furto e roubo, há a consumação com a posse da coisa, ainda que esta não seja mansa e pacífica, exceto se, no caso concreto, o agente foi a todo tempo monitorado por autoridade policial.

 No que tange a delimitação do momento que separaria o início da execução dos atos preparatórios, contudo, o único julgado recente das Cortes Superiores que lança luzes sobre o tema é o julgamento do Recurso Especial nº 1178317/RS, em que se debatia caso em que os agentes foram surpreendidos antes de deixar o estabelecimento comercial, mas depois de já haver praticado o arrombamento, o que, na visão do Ministro Relator Napoleão Maia, configurava o inicio da execução do crime de furto qualificado pelo arrombamento, tendo em vista que, além de já praticado uma das condutas descritas no tipo penal, o bem jurídico já teria sido exposto a perigo de lesão. A ementa desse julgado foi assim lavrada:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. TIPICIDADE. FURTO QUALIFICADO. AGENTES QUE, DEPOIS DE ARROMBADA A PORTA DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL, ATINGIDO O PÁTIO E HAVIDA A APODERAÇÃO DOS BENS CUJA SUBTRAÇÃO PRETENDIA-SE, TÊM SEU INTENTO INTERROMPIDO PELA ATIVIDADE POLICIAL. TENTATIVA CONFIGURADA. SUPERAÇÃO DAS FASES DE COGITAÇÃO E PREPARAÇÃO DO DELITO. PARECER MINISTERIAL PELO PROVIMENTO DO RECURSO. RECURSO PROVIDO, DETERMINANDO-SE O RETORNO DOS AUTOS À INSTÂNCIA DE ORIGEM PARA QUE DÊ CONTINUIDADE AO EXAME DA AÇÃO PENAL, SUPERADO O PONTO AQUI DEFINIDO, COM A FIXAÇÃO DA APENAÇÃO.

1.   Se, na cronografia do fato, a última fase alcançada ultrapassar meros atos de cogitação ou de preparação do delito, há de se dar relevo criminal ao fato e apenar seus agentes pelo crime, ao menos em sua forma tentada.

2.   Na hipótese, arrombada a porta do estabelecimento comercial-vítima, atingido o seu interior e havida a apoderação do bem (embora não cessada a clandestinidade), a subtração - elementar do furto simples - não se concluiu, mas o arrombamento, componente do tipo derivado furto qualificado, sim e o crime só não foi finalizado porque obstado pela intervenção policial tempestiva.

3.   Parecer ministerial pelo provimento do recurso.

4.   Recurso provido, determinando o retorno dos autos à instância de origem para que dê continuidade ao exame da Ação Penal, superando o ponto aqui definido, com a fixação da apenação[18].

Embora em seu voto, tenha o Ministro Relator mencionado que no Brasil adotou-se a teoria objetiva para a separação entre atos executivos e atos preparatórios, faz ele também na fundamentação de sua decisão expressa menção ao critério material de exposição do bem jurídico a perigo revelando que, em verdade, foi por ele adotada a teoria material-objetiva.

 Como se demonstrará a seguir, contudo, nos casos concretos supra mencionados esse critério não foi escorreitamente adotado, sendo certo também que a jurisprudência conservadora dos Tribunais Superiores quanto ao momento da consumação do crime de furto tende para um juízo equivocado de tipicidade das condutas por elas qualificadas como consumadas.


3. Repisando o iter criminis no tipo penal de furto: por uma mais precisa e justa delimitação do momento da consumação e do início da execução do crime.

O verbo nuclear do tipo penal descrito no art. 155 do Código Penal é subtrair. De acordo NUCCI, subtrair significa “apoderar-se ou assenhorear-se de coisa pertencente a outrem, ou seja, tornar-se senhor ou dono daquilo que, juridicamente, não lhe pertence”[19].  Portanto, nos termos do art. 14, I, c/c art. 155 do Código Penal, para que haja a consumação do crime de furto mister é que todos os elementos da definição legal do crime estejam reunidos na conduta imputada ao acusado. Portanto, enquanto não ocorrida a subtração da coisa alheia móvel, isto é, enquanto o indivíduo dela não apoderar-se ou assenhorar-se, não se pode considerar consumado o delito de furto.

Nesse ponto, como visto, tanto os Ministros do Superior Tribunal de Justiça como os do Supremo Tribunal Federal afirmam que, para a definição do momento da consumação dos crimes de furto e de roubo, adotam a teoria da aprehensio, isto é, adotam como critério a existência de posse da coisa pelo indivíduo. O entendimento judicial mais recente, contudo, sustenta que, para a verificação da posse, e, por conseguinte, da consumação do furto, não seria necessária a retirada da coisa da esfera de vigilância da vítima, sendo prescindível também que essa posse seja mansa e pacífica.

As decisões que caminham nesse sentido, entretanto, parecem não aplicar corretamente a ideia de posse, que pode ser extraída do Direito Civil. A posse é, como salienta Caio Mário da Silva Pereira, uma situação de fato, “em que uma pessoa, independentemente de ser ou não ser proprietária, exerce sobre uma coisa poderes ostensivos, conservando-a e defendendo-a”[20]. A posse é, para o civilista brasileiro, a “exteriorização da conduta de quem procede como normalmente age o dono”[21], ou seja,  é “a visibilidade do domínio”[22]. Orlando Gomes também destaca os sinais exteriores do domínio como essenciais para caracterização da posse. Consoante suas palavras: “qualquer pessoa é capaz de reconhecer a posse pela destinação econômica da coisa. Sua existência se atesta por sinais exteriores”[23].

 Ora, na hipótese em que alguém detém um bem móvel e tenta fugir sendo imediatamente perseguido por policial ou por pessoa que se diz proprietária do bem que é, ao fim da perseguição, recuperado, não há espaço de tempo suficiente para que o detentor dê qualquer destinação econômica para a coisa e não pode ele, por evidente, manifestar qualquer sinal externo sobre o domínio da coisa e, muito menos, comportar-se como “normalmente age o dono”. Nos casos perseguição imediata pela vítima ou por terceiro ou nas hipóteses em que o agente não consegue sequer abandonar o local onde já se encontrava a res furtiva, isto é, quando esta não é retirada da esfera de vigilância da vítima, não se pode considerar consumado o crime de furto, porquanto não ocorrido o resultado naturalístico, que é a lesão ao bem jurídico. Se o patrimônio da vítima não for afetado (e, à luz dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade do Direito Penal, diríamos mais, severamente afetado), não se pode pretender consumado o crime de furto.

Nesse sentido, Guilherme de Souza Nucci também defende que:

O furto está consumado tão logo a coisa subtraída saía da esfera de proteção e disponibilidade da vítima, ingressando na do agente. É imprescindível, por tratar-se de crime material (aquele que se consuma com o resultado naturalístico), que o bem seja tomado do ofendido, estando, ainda que por breve tempo, em posse mansa e tranquila do agente. Se houver perseguição e em momento algum conseguir o autor a livre disposição da coisa, trata-se de tentativa. Não se deve desprezar essa fase (posse tranquila da coisa em mãos do ladrão), sob pena de se transformar o furto em um crime formal, punindo-se unicamente a conduta, não se demandando o resultado naruralístico[24].

Julgamos, pois, equivocada a mudança de entendimento havida no âmbito do STJ e do STF, que, além da falha dogmática, destoa da política criminal minimalista imposta pela Constituição de 1988, cedendo, ao revés, espaço para o discurso policialesco da defesa social[25].

Do mesmo modo, consideramos juridicamente equivocada a condenação dos réus nos casos apreciados na primeira instância da Justiça Federal em Pernambuco.  Ora, como já dito, no que tange a realização do crime, todo agente percorre um caminho, um roteiro entre o momento da idéia de sua realização até aquele em que ocorre a consumação. A esse caminho se dá o nome de iter criminis, que é composto de uma fase interna (cogitação) e de uma fase externa (atos preparatórios, atos de execução e consumação). Entretanto, nem todas essas fases interessam ao Direito Penal.

Os atos preparatórios correspondem ao momento em que o agente começa a movimentar-se executando seu planejamento de acordo com a vontade e a finalidade imaginadas na fase anterior. Ele se cerca dos meios possíveis para a execução do crime, passando de mera cogitação para a ação objetiva; arma-se dos instrumentos necessários à prática da infração penal, procura o local mais adequado ou a hora mais favorável para a realização do crime etc. Tais atos também escapam, regra geral, à aplicação da lei penal, uma vez que exige-se para a punição ao menos o início da execução.

No caso de Anastácio, diante do que fora relatado pelas testemunhas ouvidas no inquérito policial, era possível concluir que o réu não foi flagrado praticando atos executórios do crime de furto, passíveis de configurar a materialidade delitiva, sequer na forma tentada. De fato, tem-se comprovado apenas que ele estava “agindo como se procurasse por peças soltas”.

No caso em análise, o Juízo a quo tipificou a conduta imputada ao acusado como furto na modalidade tentada com base no que dispõe o art. 14, II, do Código Penal. Quando não ocorreu sequer apreensão da coisa, por óbvio, não se pode afirmar, de acordo com o critério da teoria objetivo-formal, que foi iniciado os atos executórios, uma vez que não praticada qualquer conduta efetivamente descrita no núcleo do tipo penal.

De acordo com René Ariel Dotti: “o início da execução do delito é o começo da realização do verbo contido no tipo”.[26] Ora, nos termos do art. 155 do Código Penal, o verbo constante no núcleo do tipo é subtrair. Se o acusado não deu início à realização desse verbo nuclear, não se iniciou, por conseguinte, à execução e, portanto, não há crime.

Convém sempre enfatizar que os atos preparatórios (cogitação, preparação, etc.) não estão incluídos na execução delitiva, fase esta imprescindível para que a tentativa, ao menos, subsista. É interessante notar que também no caso de Anderson, mesmo depois de transcorrida toda a instrução processual, não se logrou identificar qual seria a res furtiva. Qual a coisa alheia móvel que foi ou seria subtraída? É ela insignificante? De pequeno valor? Com efeito, não se pode, com elementos que foram coligidos aos autos, responder a essas indagações, o que leva a crer, efetivamente, que a execução do imaginado crime de furto não chegou sequer a ser iniciada. Anderson poderia, quando muito, responder pelo crime dano.

 Neste sentido, o egrégio Tribunal Regional Federal da 1ª Região tem entendimento que parece mais adequado às teorias mais recentes sobre os critérios para a definição do início da execução:

PENAL. ROUBO QUALIFICADO. ART. 157, § 2º, INCISOS I e II, DO CÓDIGO PENAL. CARGA DE CHARQUE. TENTATIVA. EMPREGO DE ARMA DE FOGO. SUPOSTO ENVOLVIMENTO DE POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL[27]. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. Preliminar de incompetência da Justiça Federal afastada, considerando que consta da denúncia imputação de fato delituoso a servidor público federal (Patrulheiro Rodoviário Federal), no exercício de suas atividades institucionais, fato este que, por si só, atrai a competência da Justiça Federal para o julgamento da causa. 2. Para que o agente seja punido por crime tentado (art. 14-II do CP), necessário se faz que se tenha dado início aos atos de execução, que sejam próprios e adequados a provocar o evento típico, causando um perigo real ao bem jurídico protegido pela norma penal. 3. Não configuração da tentativa, visto que os réus foram detidos quando davam início aos atos preparatórios, que, embora se situem fora da esfera de cogitação (1ª etapa do iter criminis), ainda não se traduzem em início da execução do crime, não sendo, assim, puníveis. 4. Manutenção da sentença absolutória, em relação aos demais denunciados recorridos, à falta de provas consistentes à confirmação da imputação veiculada na denúncia. 5. Provimento às apelações dos acusados ALVACY DE OLIVEIRA e ISRAEL DE ALMEIDA SAMPAIO SANTOS FILHO, para absolvê-los das acusações contra si imputadas, com fulcro no art. 386, III, do Código de Processo Penal. 6. Apelação do Ministério Público Federal improvida.6

Perceba-se que, nesse caso, o Tribunal adotou a teoria objetivo-material, que leva em consideração tanto o início da prática da conduta descrita no tipo penal como a exposição do bem jurídico tutela à situação de perigo concreto. O mesmo haveria de ter sido feito nos casos concretos discutidos neste estudo.


Conclusões

Vimos que o estudo do iter criminis é essencial para a prática judicial em matéria criminal. Saber delimitar com a máxima aproximação possível da realidade os momentos que vão desde a cogitação até a consumação do delito é essencial para controlar o abuso do poder punitivo estatal. Ainda que reconheçamos ser o Direito essencialmente linguagem e mesmo admitindo o uso retórico de qualquer critério hermenêutico construído pela dogmática jurídica, acreditamos ser possível tentar estabelecer limites ou contornos (embora imprecisos ou insuficientes) para o debate judicial que obriguem os intérpretes ou aplicadores do Direito a argumentar em bases que reputamos mais objetivas.

Percebemos que, no crime de furto, há ainda polêmica doutrinária e jurisprudencial acerca dos momentos que separam os atos preparatórios dos executivos e estes da consumação da subtração.

Em relação ao primeiro aspecto, optamos por adotar o critério objetivo-formal, com abertura exegética para o critério material e concreto, desde que, no caso de interpretação extensiva, seja para beneficiar o réu.

Assim, consideramos que, no crime de furto, o início da execução somente ocorre com a apreensão da res furtiva, momento que se pode afirmar iniciada a execução da subtração.

Por outro lado, em que pese o entendimento jurisprudencial no sentido de que, para a consumação do crime de furto, não se exige a posse mansa e pacífica, consideramos que a manifestação de sinais externos de domínio são essências para a caracterização da posse, de modo que, sendo o agente interrompido no seu intento de se apoderar da coisa antes que  lhe seja possível dela fruir, gozar ou usar, não se pode considerar consumado o delito de furto, o que se estende também para o crime de roubo.

Por fim, deixamos registrado o entendimento de que uma política criminal verdadeiramente minimalista deveria caminhar para a limitação do uso do Direito Penal apenas para os crimes com violência[28], de modo que toda a discussão aqui aventada seria útil apenas para o crime de roubo. De qualquer sorte, enquanto não implementada essa política, é necessário, ao menos, bem conhecer os limites do uso legitimado pela Constituição da violência estatal representada pela pena.


Referências:

·  BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. V. 1. São Paulo: Atlas, 2003.

· BRANDÃO, Claudio. Curso de direito pena: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008.

·  BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo 2ª. Rio de Janeiro: Forense, 1967.

· GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7 ed. (Série Clássicos Jurídicos). São Paulo: Saraiva, 2008.

·  GOMES, Orlando. Direitos reais. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

· NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

· PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. V.4. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

·  ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.


Notas

[1] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. V. 1. 2003. Atlas, p. 144;

[2] BRANDÃO, Claudio. Curso de direito pena: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p 256.

[3] BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. Tomo 2ª. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 229.

[4] BRANDÃO, Claudio. Curso de direito pena: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p 258-259.

[5] Idem, p. 257.

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 7ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 602-603

[7]Idem, p. 603.

[8][8] Ibidem.

[9] BRUNO, Aníbal. Op. Cit. p. 231-232.

[10] GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 7 ed. (Série Clássicos Jurídicos). São Paulo: Saraiva, 2008, p. 332

[11] Embora possa parecer ridículo, o réu afirmou sua intenção sem jocosidade. Registramos deliberadamente a intenção dele para desfazer, na mente daqueles que, por ventura, não tenham contato cotidiano com a Justiça Federal, a idéia de que nesta são apenas julgados casos de grande relevância sócio-jurídica. Urge, de fato, repensar a política e a definição das prioridades persecutórias do Estado.

[12] STJ. REsp 156.775/RJ, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 28/04/1998, DJ 01/06/1998, p. 204.

[13] STJ. HC 165.866/DF, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 17/10/2012.

[14] STJ. AgRg no HC 254.399/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 27/11/2012, DJe 04/12/2012.

[15] STF. HC 108678, Relator(a):  Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 17/04/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-091 DIVULG 09-05-2012 PUBLIC 10-05-2012 RT v. 101, n. 922, 2012, p. 731-735

[16] STF. HC 104593, Relator(a):  Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 08/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-230 DIVULG 02-12-2011 PUBLIC 05-12-2011 RB v. 24, n. 579, 2012, p. 53-56

[17] STF. HC 88.259/SP, Relator Min. Eros Grau, Segunda Turma, Julgamento em 2/5/2006, DJ 26/5/2006.

[18]STJ.  REsp 1178317/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, QUINTA TURMA, julgado em 26/10/2010, DJe 13/12/2010

[19] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 705.

[20] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. V.4. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 13.

[21] Idem, p. 17.

[22] Ibidem.

[23] GOMES, Orlando. Direitos reais. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 22.

[24] NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 705-706.

[25] Entendemos que a Constituição de 1988, ao prever, no seu art. 1º, III, a dignidade humana como um fundamento da República e, no seu art. 5º, a liberdade como direito fundamental de todo cidadão, impôs ao legislador ordinário a limitação ao máximo das hipóteses de violação desses preceitos, determinando, por conseguinte, que a pena (a mais grave forma de intervenção na esfera de liberdade do cidadão) só poderá ser aplicada em casos raros e extremamente necessários. Disso decorre o nosso posicionamento no sentido de que a política criminal ínsita na Carta Política brasileira é, se não abolicionista, no mínimo (a redundância é proposital), minimalista.

[26] DOTTI, René Ariel. Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: 2004, Forense, p. 325;

6 TRF 1ª Região. Quarta Turma. Apelação Criminal—200101000178032. Relator(a):Desembargador Hilton Queiroz; Data da decisão:12/03/07; Data da publicação: 19/04/07.

[28] Numa sociedade idealmente “justa, fraterna e solidária”, que o Brasil não é, apesar do que dispõe a Constituição, talvez, o Direito Penal seria até mesmo desnecessário. O debate em torno do abolicionismo, contudo, é muito mais amplo do que os limites do presente estudo.


Autor

  • André Carneiro Leão

    É Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. É Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Professor convidado do Instituto de Magistrados de Pernambuco-IMP. É Defensor Público Federal. Titular do 9ª Ofício Criminal da DPU/PE. Ex-chefe da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Vice-Diretor da Escola Superior da Defensoria Pública da União (ESDPU). Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Foi professor universitário de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito de Olinda (AESO/BARROS MELO). Foi professor de cursos para concursos. Foi Professor e Coordenador da disciplina Direito Previdenciário da Escola Superior da Advocacia de Pernambuco (ESA/PE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, André Carneiro. Do conceito de posse no crime de furto. A diferença entre as fases de preparação, de início da execução e de consumação no iter criminis para subtração da res furtiva.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3587, 27 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24300. Acesso em: 29 mar. 2024.