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Aspectos semânticos de uma contradição pragmática.

O garantismo processual sob o enfoque da filosofia da linguagem

Aspectos semânticos de uma contradição pragmática. O garantismo processual sob o enfoque da filosofia da linguagem

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A ampla defesa fica enfraquecida/esvaziada quando oprimida pela atuação ativista do Poder Judiciário. O texto desenvolve seus fundamentos a partir do garantismo processual, analisado na perspectiva da filosofia da linguagem, em especial da semiótica.

Resumo: Trata-se de texto-base de palestra onde se enfrentou a questão de ser, ou não, o ativismo judicial uma contradição diante do garantia fundamental da ampla defesa. A partir daí concluiu-se que realmente a ampla defesa fica enfraquecida/esvaziada quando oprimida pela atuação ativista do Poder Judiciário. O texto desenvolve seus fundamentos a partir do garantismo processual, aqui analisado na perspectiva da filosofia da linguagem, em especial da semiótica.

Palavras-chave: Constituição e processo – ativismo judicial – garantismo processual – ampla defesa – direito e linguagem – modelos processuais semântico e pragmático.

Sumário:  1.  Direito, linguagem e os três planos fundamentais da semiótica: sintática, semântica e pragmática. 2. Dimensão semântica da Constituição e dessintonia pragmática na utilização do processo. 3. Ativismo judicial e distorção do modelo pragmático de processo. 4. Ativismo judicial versus ampla defesa. 5. O garantismo processual como fator de (re)equilíbrio entre os modelos semânticos e pragmáticos de processo 6. Fechamento.


1. DIREITO, LINGUAGEM E OS TRÊS PLANOS FUNDAMENTAIS DA SEMIÓTICA: SINTÁTICA, SEMÂNTICA E PRAGMÁTICA.

O Direito é pura linguagem. A compreensão das estruturas linguísticas torna-se relevante para que se possa melhor compreender a dimensão e o alcance de seus fenômenos. O ordenamento jurídico positivo (=Constituição, Leis, contratos etc) é um emaranhado de enunciados prescritivos que, muito embora voltados a orientar e a determinar condutas, apresentam-se rigorosamente inertes diante da vida social. O Direito tornar-se-á algo concreto quando materializado através da linguagem (=ato de fala) externada pela autoridade estatal competente, por meio da sentença judicial e do ato administrativo. Quando isso acontece, torna-se norma individual e concreta de observância obrigatória devido à força vinculativa própria do ontologicamente jurídico. Portanto, o Direito NÃO é algo dado (=entregue) pelo ordenamento jurídico, mas SIM algo construído através de um caminho dialético constitucionalmente marcado pela ampla defesa e pelo contraditório. Eis aí a função do PROCESSO: ser um caminho regrado por ampla defesa e contraditório através do qual será construído o Direito que deverá imperar num determinado caso concreto. O Direito não teria vida sem o processo; este, seria inútil se não fosse para criar aquele. E tudo isso passa pela dinâmica da linguagem.

Ferramenta importante no estudo da linguagem em geral, e da jurídica em especial, a SEMIÓTICA apresenta três planos fundamentais: a sintática, a semântica e a pragmática. Grosso modo, a sintática procura explicar o conceito do enunciado prescritivo; a semântica, por sua vez, explica os vários e possíveis conteúdos que pode assumir o enunciado prescritivo; a pragmática, por fim, procura explicar as relações havidas entre o conceito, seu(s) conteúdo(s) e a forma como se lhes aplicam seus utilizadores no mundo da vida. Deixando de lado a estrutura sintática que aqui não nos interessa, foquemos nosso discurso na análise semântica e pragmática do processo jurisdicional voltado à criação do Direito.


2. DIMENSÃO SEMÂNTICA DA CONSTITUIÇÃO E DESSINTONIA PRAGMÁTICA NA UTILIZAÇÃO DO PROCESSO.

As Constituições políticas ocidentais positivadas após o flagelo da 2ª Guerra Mundial – via de regra – estabelecem enunciados prescritivos voltados a estabelecer garantias em favor do indivíduo e da sociedade contra a natural arbitrariedade que rege a condição humana. E sendo o Poder estatal exercido por pessoas humanas, é necessário que se estabeleçam garantias e que elas sejam concretizadas quando do exercício do Poder, de modo a se evitar, tanto quanto possível, que o Direito seja criado pela autoridade estatal fora dos padrões garantistas estabelecidos na Constituição.

A Constituição brasileira de 1988 foi pródiga em estabelecer um modelo semântico onde o exercício do Poder só se justifica na perspectiva republicana e democrática por ela estabelecido. Em seu núcleo duro de prescrições de direitos, deveres e garantias fundamentais individuais e coletivas (=artigo 5º, incisos I até LXXVIII), a Constituição de meu país prescreve no mesmo nível jurídico-hierárquico a jurisdição (=Poder) e o devido processo legal (=Garantia). E mais. Também estabelece e garante ao indivíduo e à sociedade o direito fundamental à liberdade (=art. 5º, caput).

Portanto, Jurisdição, Devido Processo e Liberdade são valores jurídicos fundamentais prescritos na Constituição que devem orientar o desenvolvimento do processo jurisdicional de criação do Direito que será representado na sentença criadora da norma individual e concreta a ser aplicada em determinada situação.

Tornou-se comum na doutrina brasileira a utilização do sintagma modelo constitucional de processo, cuja influência direta remonta à obra de ITALO ANDOLINA e GIUSEPPE VIGNERA (=Il modelo costituzionale de processo civil italiano, 1990). Este modelo constitucional de processo não é outra coisa senão o respectivo modelo semântico que se projeta da Constituição e que deve – ou deveria – orientar o modelo pragmático de processo praticado pelo Poder Judiciário, seja no civil, seja no penal.

Em miúdos: da Constituição transborda um modelo semântico de processo jurisdicional de inequívoco perfil garantista exatamente para que o exercício do Poder pelos juízes o seja efetivado dentro do marco republicano e democrático estabelecido nas prescrições constitucionais. Do contrário, será Poder exercido com subjetivismo. Do contrário, será Poder exercido com arbitrariedade. Do contrário, será Poder exercido conforme o sentimento pessoal de “justiça” de quem o exerce. Do contrário, será Poder exercido sem a garantia da imparcialidade. Do contrário, será Poder exercido em violação ao devido processo. Do contrário, será Poder exercido à margem do modelo acusatório (=autor pede, réu defende-se, juiz julga). Do contrário, será Poder exercido com violação à garantia da ampla defesa.  E così via!

Pergunta-se: -- se o modelo semântico constitucional garante um processo republicano e democrático, (?) por que então o modelo pragmático do dia-a-dia do Poder Judiciário tantas vezes nos mostra que no iter de criação do Direito via due proces of law, a autoridade judicial “resolve” o processo da maneira que subjetiva e arbitrariamente lhe parece mais conveniente? Por que os juízes e os tribunais tantas vezes se esquecem da Constituição e da República em que vivem, e às quais estão subordinados, para “justiçar” o caso concreto – e respectivo procedimento decisório – conforme o próprio arbítrio?

Eis aí o aspecto semântico da uma CONTRADIÇÃO pragmática que, ao menos no plano do jurídico, não deveria ser usual. Ou, em outras palavras, o modelo pragmático de processo se contradiz quando posto à prova diante do modelo semântico de processo estabelecido pela Constituição.


3. ATIVISMO JUDICIAL E DISTORÇÃO DO MODELO PRAGMÁTICO DE PROCESSO.

Há várias causas que fomentaram o ativismo judicial reinante no processualismo iberoamericano, que nos interessa mais de perto em razão de nossas raízes jurídico-culturais oriundas de Sefarad. A propósito, já há tempo venho pensando, e cada vez mais o tenho para mim, que a falta de sintonia entre o modelo semântico que se projeta da Constituição e o modelo pragmático do processo que praticamos, tem boa parte de sua etiologia radicada nos exatos 356 anos (1478-1834) que durou no mundo iberoamericano a fantasmagórica Inquisição Espanhola – “mãe regente” da Inquisição Portuguesa –, que certamente introjetou em nosso “DNA social” esse temor reverencial que a sociedade externa diante da figura da autoridade judicial, e que por vezes acaba por “justificar” arroubos de arbitrariedade. Apesar de não ser disso que trato aqui, deixo o ponto em suspenso para possível reflexão de quem assim o queria.[1]

Marco objetivo a construir a visão (ultra) publicista e autoritária do processo civil foi o CPC austríaco de 1895, cujo mentor fora FRANZ KLEIN. Assim observou em 1995 o (ex)professor ordinário de direito processual civil da Universidade de Bari – falecido em abril de 2010[2] – FRANCO CIPRIANI, em seu hoje clássico texto Nel centenario del Regulamento di Klein (Il processo civil tra liberta e autorità).

Esse código austríaco inspirou o legislador na elaboração político-ideológica, por exemplo, do CPC alemão, do CPC italiano de 1940 – auge do nazi-fascismo naquele país, vale lembrar –, e, claro, do CPC brasileiro de 1939[3] e de seu sucessor de 1973[4], o Código Buzaid.   

A conformação do modelo arbitrário e autoritário de processo civil incentivou a produção de uma doutrina maciçamente influenciada por esses valores. No Brasil, tanto na perspectiva do CPC-39, como do atual CPC-73, a matiz publicista sempre esteve na pauta das especulações da doutrina e da conseqüente casuística jurisprudencial.  

Contudo, apesar da radical mudança de paradigma ocorrida posteriormente à 2ª Grande Guerra, onde – ao menos no mundo ocidental – criou-se uma ordem constitucional (=Constituições) e internacional (=Pactos Internacionais) democrática, toda essa influência acabou por projetar luzes no processo civil e no papel que o juiz deve exercer por seu intermédio. Daí surge a idéia do devido processo garantida constitucionalmente, com todos os consectários que esta cláusula constitucional impõe: ampla defesa, contraditório, imparcialidade, impartialidade etc.

Mesmo diante de uma nova ordem de coisas, a doutrina tradicional do processo civil seguiu a produzir e a difundir as concepções publicistas do final do Séc. XIX, época em que amadurecia na Europa uma das vertentes do Estado Contemporâneo: o Estado do Bem-estar Social, ou Welfare State.[5]

Acredito que os processualistas do Estado Constitucional Democrático do pós-Guerra (re)incidiram numa confusão conceitual que lhes fez enaltecer o publicismo-arbitrarismo-autoritarismo do direito processual civil. A idéia de Estado do Bem-estar parece-me compatível com a postura – aqui sim – ativa que se espera do Estado-administrador (=Poder Executivo) e do Estado-legislador (=Poder Legislativo) na perseguição e concretização de políticas públicas voltadas ao atendimento das necessidades fundamentais do indivíduo e da coletividade. Agora, quando o problema extrapola o âmbito das prescrições do direito material, e tenha que ser resolvido nos quadrantes do processo jurisdicional, não parece seja correto que a pessoa física detentora do poder que é próprio do Poder Judiciário (=o juiz) possa pautar sua conduta com arroubos ativistas. Ao menos no ambiente republicano e democrático, ativismo é um atributo político do Estado (=Executivo e Legislativo) que não pode corresponder às funções do juiz (=pessoa física). O juiz ativista é juiz político, e “juiz político” ontologicamente não é juiz. Ora, se a função jurisdicional tem como seus atributos a imparcialidade e a impartialidade, tais qualidades não se compadecem com o eventual – e dogmaticamente equivocado, com todo respeito – exercício político da função jurisdicional.

Se em linhas gerais o ativismo judicial fomenta e viabiliza o protagonismo do juiz no processo de criação do Direito, fica fácil de notar que por sobre a liberdade dos litigantes, e até mesmo por sobre o devido processo legal (=Garantia), o leitmotiv que determinará o discurso motivador da decisão judicial será o próprio arbítrio e subjetivismo da autoridade estatal responsável pelo respectivo “ato de fala”. E toda vez que isso acontece oprime-se o modelo semântico do processo jurisdicional garantista, democrático e republicano que da Constituição se projeta.

A partir dessa análise se constata que o modelo pragmático de processo – civil ou        penal – acaba subjugando o modelo semântico prescrito no plano constitucional. Nesse momento, o jurídico transforma-se no político; o juiz, que por definição é a autoridade estatal que deve legitimar sua decisão de criação do Direito a partir de enunciados prescritivos (=constitucionais e infraconstitucionais), transforma-se num agente concretizador das prescrições derivadas do próprio arbítrio. Ou seja, ignora-se o modelo semântico constitucional com subterfúgios juridicamente ilegítimos que consagram um processo jurisdicional refém de um modelo pragmático rigorosamente dissociado dos enunciados prescritivos republicanos e democráticos pré-estabelecidos. E a Constituição, que dentre suas funções também atua – ou deveria atuar – como fator de contenção do Poder, acaba sendo, ela própria, uma justificativa espúria e sofismática para concretização das ideologias da autoridade estatal responsável pelo “ato de fala” por intermédio do processo jurisdicional.

A experiência nos mostra que é mais comum do que deveria ser essa distorção na ordem das coisas, onde o mundo “prático” do processo nem sempre coincide com o mundo “idealizado” na Constituição que, em última análise, representa as próprias diretrizes que a sociedade constitucionalmente organizada se impôs. A realidade do Poder Judiciário, lamentavelmente, nos mostra isso de forma bastante visível.


4. ATIVISMO JUDICIAL VERSUS AMPLA DEFESA.

Não há dúvida de que a ampla defesa é uma das decorrências do princípio maior do devido processo legal, de inequívoco nível constitucional. É ela, a ampla defesa, uma garantia a ser observada-viabilizada-concretizada pela autoridade estatal de maneira prévia ao “ato de fala” representativo do Poder. Insista-se no ponto: o Poder estatal só poderá ser exercido APÓS o exercício da ampla defesa pelo seu destinatário. Foi essa a nossa opção constitucional! Do contrário, é Poder decretado com autoritarismo e arbitrariedade eis que exercido fora do devido processo legal, e isso passa ao largo do modelo semântico de processo prescrito na Constituição.

Daí surge a pergunta: -- o ativismo judicial é constitucionalmente compatível com a ampla defesa? Ou, perguntado de outra maneira, o ativismo judicial é uma contradição diante da garantia constitucional da ampla defesa?

Em primeiro lugar tenhamos em mente – em definitivo – que a ampla defesa não é um favor que o Estado nos confere, mas uma garantia constitucional decorrente do devido processo que é um dos fatores de legitimidade do processo jurisdicional de criação do Direito e do próprio exercício do Poder estatal. Em segundo lugar, tenhamos em mente – também em definitivo – que a ideologia do ativismo judicial viabiliza posturas mais incisivas, autoritárias e arbitrárias do juiz e do Poder Judiciário no curso do processo de criação do Direito, seja quanto ao manejo do procedimento que leva ao “ato de fala” (=sentença judicial) representativo do Poder, seja quanto à própria configuração do Direito criado através desse processo. Em suma, o ativismo judicial afeta o conteúdo dogmático da teoria da decisão judicial republicana e democrática e com isso acaba “criando” um modelo pragmático de processo apartado do modelo semântico decorrente dos enunciados prescritivos contidos na Constituição.  

Estabelecidos estes parâmetros (=ampla defesa como garantia prévia; ativismo judicial como fator ideológico determinante a motivar postura mais incisiva, autoritária e arbitrária do titular do Poder jurisdicional), temos que a ideologia do ativismo judicial é capaz de subverter a garantia constitucional da ampla defesa. E isso, a mim me parece, nos é revelado inclusive de maneira intuitiva.

Num processo jurisdicional de arquétipo acusatório (=autor pede; réu defende-se; juiz julga), tal como o é o estabelecido no modelo semântico constitucional, NÃO se pode supor que seja constitucionalmente possível que no processo jurisdicional de criação do Direito possa a autoridade judicial pautar-se de forma incisiva (=verticalmente contundente), autoritária (=ultrapassando os limites do poder que lhe é conferido pela Constituição) e arbitrária (=agindo subjetivamente, fora das prescrições democráticas e republicanas). Atuação da autoridade judicial nesse sentido é motivada pela própria ideologia e configura o ativismo judicial que fomenta o modelo pragmático de processo jurisdicional dissociado do modelo semântico estabelecido constitucionalmente.

O conteúdo semântico da categoria jurídico-processual-constitucional da ampla defesa pode ser vislumbrado sob dois aspectos distintos, porém, complementares: i) defensivo-intersubjetivo e ii) defensivo-jurisdicional.

O aspecto defensivo-intersubjetivo está relacionado à ampla defesa como garantia do litigante (=autor, réu e também terceiro interveniente) contra as alegações e/ou pretensões contra si dirigidas por outros atores da cena processual. Já o defensivo-jurisdicional é a garantia da ampla defesa em sua dimensão voltada ao próprio exercício do Poder representado nos “atos de fala” incidentais (=decisão interlocutória) ou finais (=sentença dos juízes e/ou dos tribunais), e aqui poderá ter o perfil de recurso (=v.g., apelação) ou de ação autônoma de impugnação (=v.g., ação de mandado de segurança, acción de amparo, ação de habeas corpus etc).

A ampla defesa é uma categoria jurídica garantida constitucionalmente para que os demandantes em geral possam voltar-se – no curso do processo jurisdicional – contra a parte contrária (=aspecto defensivo-intersubjetivo) e contra a própria decisão e/ou procedimento de criação do Direito (=aspecto defensivo-jurisdicional). Logo, o ativismo judicial que viabiliza a atuação incisiva-autoritária-arbitrária do detentor do Poder é uma contradição técnica quando confrontado com a ampla defesa. É claro que a ampla defesa também existe para que o jurisdicionado se volte, inclusive, contra posturas judiciais ativistas. Mas o fato é que num processo jurisdicional de perfil constitucional acusatório o único adversário do demandante deve – ou deveria – ser a parte contrária, e nunca o juiz ativistas. Um processo desenvolvido nesse modelo pragmático é um processo de perfil inquisitivo incompatível com as garantias pré-estabelecidas no modelo semântico que as Constituições modernas asseguram ao jurisdicionado.

Portanto, sendo o ativismo um fator de rompimento da impartialidade judicial por autorizar o juiz a investir inquisitivamente sobre a relação processual e respectivos sujeitos (=autor e/ou réu), parece evidente que a ampla defesa constitucionalmente garantida acaba por ter sua força esvaziada. Se levarmos em conta que o processo jurisdicional de criação do Direito desenvolve-se pelo menos em duas instâncias (=perante o juiz e, interposto recurso, perante o tribunal), teremos que aceitar a conclusão de que as atitudes ativistas oprimem a ampla defesa, tornando-a uma garantia constitucional lamentavelmente enfraquecida.

Em suma: o ativismo judicial gera a esqualidez não apenas da ampla defesa, mas de todo o modelo semântico de perfil garantista que a Constituição viabiliza ao jurisdicionado.  


5. O GARANTISMO PROCESSUAL COMO FATOR DE (RE)EQUILÍBRIO ENTRE OS MODELOS SEMÂNTICO E PRAGMÁTICO DE PROCESSO.

Falar em (re)equilíbrio entre os planos – ou modelos – semântico e pragmático do mundo jurídico deveria ser algo próprio das especulações teóricas, já que a idéia de vinculatividade, ínsita ao que é jurídico, lhe pertence e isso deve gerar correlação entre o que está prescrito e aquilo que é praticado, até mesmo para que se viabilize a segurança jurídica que as coisas do Direito devem proporcionar ao indivíduo e à sociedade democraticamente organizada. Logo, seria natural que o modelo semântico de processo jurisdicional que transborda da Constituição fosse determinante no desenvolvimento e na dinâmica do modelo pragmático operado pelo juiz e pelo jurisdicionado. Mas não é bem assim que o fenômeno processual ocorre, como sabemos.

O baixo grau de intensidade na correlação entre os modelos semântico e pragmático do processo jurisdicional é responsabilidade direta da autoridade jurisdicional competente para o “ato de fala” de criação do Direito num determinado caso concreto. Toda vez que o juiz entende-se autorizado a atuar de maneira incisiva, autoritária e arbitrária, ainda que o faça com a melhor das intenções e para satisfazer seu sentimento pessoal de “justiça”, estará valendo-se do Poder que lhe é próprio fora dos quadrantes limitativos-autorizativos pré-estabelecidos no plano constitucional que foi – como procurei assinalar – pródigo ao prescrever o ambiente democrático e republicano em que optamos por viver.

Deixando de lado os vários aspectos teóricos em torno do garantismo processual, em linhas gerais pode-se entendê-lo como o movimento dogmático voltado a estudar e propor que a utilização e o manejo do processo civil pelo juiz e pelo jurisdicionado, o seja na perspectiva das garantias prescritas no modelo semântico constitucional de processo jurisdicional, sem que por razões outras que não as expressamente previstas na Constituição possa a jurisdição (=Poder) subjugar, tergiversar ou se apartar do rigoroso cumprimento do devido processo legal (=Garantia).

 É verdade que boa parte dos códigos de processo civil dos países latinoamericanos foram legislativamente elaborados na perspectiva (ultra)publicista que caracteriza o ativismo judicial, que continua a orientar o plano pragmático do processo jurisdicional. Contudo, o fato é que as Constituições do período pós 2ª Guerra têm primado pela elaboração de uma ordem constitucional que viabiliza a contenção do Poder estatal, inclusive no que diz respeito ao processo jurisdicional de criação do Direito. A previsão do enunciado prescritivo contido no inciso LIV, do art. 5º, da Constituição brasileira é uma demonstração dessa opção política do poder constituinte originário: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. E ainda que se tenha feito através de representantes, não nos esqueçamos de que o poder constituinte originário emana do povo.

Quanto mais o processo civil for pensado-reformulado-operado-concretizado nas diretrizes dogmáticas do garantismo processual, mais se viabilizará o (re)equilíbrio entre os modelos semântico e pragmático de processo jurisdicional. Mais se estará aproximando o prescrito na Constituição (=democrática e republicana) com o praticado no processo de criação do Direito pelo Poder Judiciário.  


6. FECHAMENTO.

O processo civil com viés autoritário e arbitrário do modelo pragmático que praticamos não gera a solução dos problemas sociais, além de ser antidemocrático, antirrepublicano e de representar um hipertrofismo do Poder Judiciário contrário – ao também constitucional – princípio da Separação dos Poderes.

Nós, os processualistas, precisamos abdicar de nossa soberba e aceitar, uma vez por todas, que nem o processo, nem o juiz, tampouco o Poder Judiciário, podem viabilizar uma pragmática apartada das prescrições constitucionais. Até porque não seremos nós, tampouco o será a autoridade judicial, que redimiremos os “males” da vida em sociedade.

Por certo, há muito que fazer por intermédio do jurídico e do processo de criação do Direito. Mas que se o faça conforme as diretrizes do modelo semântico projetado desde a Constituição. A vida na democracia-republicana impõe que o Poder seja exercido dentro das garantias constitucionais.

Do contrário, continuaremos subservientes ao arbítrio e/ou ao sentimento coletivo que muitas vezes ignora os limites que nos impusemos através de nossas Constituições. Daí, o devido processo legal, tal como a própria “justiça”, passará do mundo terreno ao etéreo como algo que permanecerá guardado dentro de cada um de nós como sentimento pessoal irrealizável.


Notas

[1] Ainda sobre a influência da Inquisição Espanhola no modelo de processo que ainda hoje praticamos no ambiente iberoamericano, notadamente quanto ao protagonismo do juiz no cenário processual, cf. com muito proveito ADOLFO ALVARADO VELLOSO, Garantismo procesal versus prueba judicial oficiosa, Editorial Juris : Rosario, 1ª edição, 2006, pp. 48-70.

[2] Ver a homenagem póstuma que lhe prestou ANDREA PROTO PISANI em “Ricordando Franco Cipriani”, Revista de Processo (RePro) 187/435, set. 2010.

[3] Na Exposição de Motivos do CPC-39, FRANCISCO CAMPOS deixa claro qual foi a opção política que orientou a estruturação daquele código. Uma leitura atenta dessa Exposição de Motivos chamará – creio eu – a atenção do leitor para os tópicos em que o respectivo discurso foi desenvolvido, por exemplo: “Decadência do processo tradicional”; “O processo como instrumento de dominação política”; “A concepção duelística e a concepção autoritária do processo; “Sentido popular do novo sistema”; “A restauração da autoridade e o caráter popular do Estado”; “A função do juiz na direção do processo”; “Chiovenda e a concepção publicística do processo”. Além de outros, sob esses tópicos paradigmáticos o Ministro da Justiça do Estado Novo de Getúlio Vargas sustentou a concepção (ultra)publicista e autoritária que deveria orientar o trato do processo civil de modo a se buscar os fins do Estado.

[4] Quanto ao CPC-73, cf. ALFREDO BUZAID: “(...) ainda no derradeiro quartel do século XIX, dois Códigos – o da Alemanha e o da Áustria – que tiveram grande ascendência sobre os monumentos jurídicos dos tempos atuais. Dado o rigor científico dos seus conceitos e precisão técnica de sua linguagem, impuseram-se como verdadeiros modelos, a que se seguiram as elaborações legislativas dos Códigos do século XX.”, extraído de “Linhas fundamentais do sistema do Código de Processo Civil brasileiro – Conferência proferida na Universidade de Keyo (Tóquio)”, Estudos e pareceres de direito processual civil (com notas de Ada Pellegrini Grinover e Flávio Luiz Yarshell), São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p. 33. Ver, ainda, da pena do mesmo BUZAID, Exposição de Motivos do Código de Processo Civil,   Capítulo II – Do sistema do Código de Processo Civil vigente, nº 3.

[5] Sobre a idéia de Estado Contemporâneo e Estado do Bem-estar, ver NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, Dicionário de política, vol.1. Brasília: Ed. UnB, 1997, 10ª ed., pp. 401-409 (Estado Contemporâneo) e 416-419 (Estado do Bem-estar). 


Autor

  • Glauco Gumerato Ramos

    Glauco Gumerato Ramos

    Mestrando em direito processual na Universidad Nacional de Rosario (UNR - Argentina). Mestrando em direito processual civil na PUC/SP Membro dos Institutos Brasileiro (IBDP), Iberoamericano (IIDP) e Panamericano (IPDP) de Direito Processual. Professor da Faculdade de Direito da Anhanguera Jundiaí (FAJ). Advogado em Jundiaí

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Glauco Gumerato. Aspectos semânticos de uma contradição pragmática. O garantismo processual sob o enfoque da filosofia da linguagem. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3591, 1 maio 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24327. Acesso em: 18 abr. 2024.