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Da responsabilidade civil dos estabelecimentos de saúde

Da responsabilidade civil dos estabelecimentos de saúde

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Sumário:1.Da Responsabilidade Civil dos Hospitais Particulares; 1.1Conceito; .2Natureza Jurídica; 1..3.Distinção entre responsabilidade do médico e responsabilidade da sociedade comercial hospitalar; 1.4.A responsabilidade decorrente do Código de Defesa do Consumidor; 2. Da Responsabilidade Civil dos Hospitais Públicos; 2.1Fundamento da Responsabilidade Civil dos Prestadores de Serviços Públicos; 3. Da Responsabilidade Civil das Empresas de Assistência Médica (convênios médicos); 3.1 Espécies; 3.2 Responsabilidade Civil.


1.- Da Responsabilidade Civil dos Hospitais Particulares

1.1.Conceito

Segundo observa Ruy Rosado de Aguiar Júnior(1)" o hospital é uma universalidade de fato, formada por um conjunto de instalações, aparelhos e instrumentos médicos e cirúrgicos destinados ao tratamento da saúde, vinculada a uma pessoa jurídica, sua mantenedora, mas que não realiza ato médico".

1.2 Natureza Jurídica

O Hospital encerra uma vasta área de confluência jurídica pelo poliedrismo funcional. Além das implicações civis e penais que envolvem cada funcionário, somam-se fatores interligados na dimensão de contrato hospitalar com o paciente e o médico. A verificação desses dados e o ordenamento processual resultarão da própria natureza: público, particular, de associados ou de convênios. Neste amálgama de imbricações técnico- adminstrativas, o hospital se salienta como órgão de profunda e multifacetada responsabilidade.

Não há como se olvidar que a natureza jurídica da responsabilidade dos hospitais em face de seus pacientes, internos ou não, é contratual.

Como monstra José de Aguiar Dias (2), trata-se de obrigação semelhante à dos hoteleiros, pois "na realidade, essa obrigação participa do caráter das duas responsabilidades com que se identifica, isto é, tanto compreende deveres de assistência médica, como de hospedagem, cada qual na medida e proporção em que respondem, isoladamente, os respectivos agentes.

E prossegue: "Assim, para dar exemplo expressivo, a direção de um hospital é responsável pelos danos decorrentes de ter o médico do estabelecimento deixado, por vários dias, de verificar o estado de um cliente aí internado, do que resultou agravação do seu estado e anquilose da perna, por ter ficado na mesma posição por tempo prolongado. Não procede a defesa fundada em que se trata de erro técnico, que a direção do hospital não pode impedir, nem mesmo criticar, porque o caso é de negligência, cujas consequências ela poderia evitar, se empregasse fiscalização mais severa. Admitido o doente como contribuinte, forma-se entre ele e o hospital um contrato, que impõe ao último a obrigação de assegurar ao primeiro, na medida da estipulação, as visitas, atenções e cuidados reclamados pelo seu estado".

1.3 Distinção entre responsabilidade do médico e responsabilidade da sociedade comercial hospitalar

A questão mais polêmica que surge é a que pertine à seguinte indagação: quando a responsabilidade deve ser carreada ao médico, pessoalmente e quando deve-se atribuí-la ao hospital?

Segundo o escólio de Rui Stoco(3) " deve-se examinar primeiro se o médico é contratado do hospital, de modo a ser considerado como seu preposto".

Argumenta o autor, "se tal ocorrer, aplica-se a surrada e vestuta regra de que o patrão responde pelos atos de seus empregados, serviçais ou prepostos". (Código Civil art.1521,III).

A regra da responsabilidade do comitente sofre restrições, conforme salienta Mário Júlio de Almeida Costa(4) "quanto a certas profissões, como a dos médicos e dos advogados, pois não se admite uma subordinação para com os clientes nos termos indicados (vínculo de autoridade e subordinação). Mas isso no que concerne às relações entre o cliente e o médico, conforme esclarece em nota o eminente professor português, porque se admite a relação de comissão de médico a médico, e de hospital para médico".

O hospital responde pelos atos médicos dos profissionais que o administram (diretores, supervisores, etc.), e dos médicos que sejam seus empregados. Não responde quando o médico simplesmente utiliza as instalações do hospital para a internação e tratamento dos seus pacientes.

Segundo Ruy Rosado de Aguiar Jr(5). "em relação aos médicos que integram o quadro clínico da instituição, não sendo assalariados, é preciso distinguir: a) se o paciente procurou o hospital e ali foi atendido por integrante do corpo clínico, ainda que não empregado, responde o hospital pelo ato culposo do médico, em solidariedade com este; b)se o doente procura o médico, e este o encaminha à baixa no hospital, o contrato é com o médico e o hospital não responde pela culpa deste, embora do seu quadro, mas apenas pela má prestação dos serviços hospitalares que lhe são afetos.

No entender de Orlando Gomes (6)"a responsabilidade pela ação do integrante do corpo clínico, na situação primeiramente referida, explica-se porque a responsabilidade por ato de outro, prevista no art. 1.521, III, do CC (é responsável o patrão, amo ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos), abrange também aquelas situações onde não existe uma relação de emprego, bastando que a pessoa jurídica utilize serviços de outra através de uma relação que gere o estado de subordinação É o caso do hospital que para seu funcionamento necessita do serviço do médico, o qual, por sua vez, fica subordinado, como membro do corpo clínico, aos regulamentos da instituição".

Deve-se portanto, perquerir se o médico atua no respectivo hospital mediante contrato de prestação de serviços, sendo neste caso, considerado seu preposto, devendo aquele responder pelos atos culposos deste. O hospital, contudo, terá direito de reaver o que pagar através de ação regressiva contra o causador direto do dano.

Mas se o médico não for preposto mas profissional independente sem vínculo de subordinação com o hospital, usando as dependências do nosocômio por interesse ou conveniência do paciente ou dele próprio, em razão de aparelhagem ou qualidade das acomodações, ter-se-á de apurar a culpa de cada um.

Desse modo, se o paciente sofreu danos em razão do atuar culposo exclusivo do profissional liberal de sua livre escolha, baseado em laços de pessoalidade e confiança, sendo a obrigação de natureza intuito personae, mesmo estando o médico vinculado ao hospital, a responsabilidade pela reparação do dano, será subjetiva e pessoal do médico, com fundamento no artigo 14, parágrafo 4º do Código de Defesa do Consumidor.

1.4 A responsabilidade decorrente do Código de Defesa do Consumidor

Outra questão importante que surge é se os hospitais, casas de saúde, clínicas e entidades semelhantes subsumem-se na disposição contida no caput do art.14 do Código de Defesa do Consumidor(Lei 8.078/90) que estabelece a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, pela "reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos".

Bem o tema aqui, merece análise aprofundada, observando-se a posição dos que defendem o fundamento da responsabilidade dos hospitais de forma objetiva, aplicando-se o regramento do artigo 14 caput do CDC, bem como, o posicionamente de Aguiar Dias, Ruy Rosado de Aguiar Jr. e Rui Stoco que defendem a tese que os hospitais devem responder a teor do artigo 1521,III do Código Civil, quando o médico apresentar relação de subordinação com o mesmo, aplicando-se a regra da responsabilidade transubjetiva, com a presunção da culpa, do hospital, desde que evidente o atuar culposo do médico-preposto.

Segundo Rui Stoco,(7) "não se pode negar que os hospitais são prestadores de serviços médicos e de hospedagem. O hospital firma com o paciente internado um contrato hospitalar, assumindo a obrigação de meios consistentes em fornecer serviços médicos(quando o facultativo a ele pertence) ou apenas em fornecer hospedagem (alojamento, alimentação) e de prestar serviços paramédicos (medicamentos, instalações, instrumentos, pessoal de enfermaria etc...)".

Prossegue: "No que pertine aos primeiros(serviços médicos), quando o paciente é tratado por seus próprios facultativos, os serviços prestados são aqueles concernentes ao tratamento médico contratado. Constitui uma atividade de meio e não de resultado, de modo que se obriga apenas a propiciar o melhor serviço ao seu alcance, tudo fazendo para cumprir aquilo a que se propôs. Não se obriga efetivamente a curar o paciente, mas em agir com a máxima diligência para obter o resultado querido, sem ser responsabilizado caso o resultado almejado não seja alcançado".

Quanto aos segundos, sua atividade é assemelhada à dos hotéis e pensões. Compromete-se a fornecer acomodações e refeições condignas e condizentes com o preço estabelecido.

Desse modo, se o dano ao paciente é imputado ao hospital em face da atuação de seus prepostos e se decorrer do exercício de sua atividade específica e típica da àrea médica, então incidirá o parágrafo 4º, do art. 14 do CDC (responsabilidade aquiliana).

Assim, só através da comprovação de culpa(8) é que se poderá responsabilizar o hospital e o médico pelo resultado danoso.

O preceito contido no caput do art.14 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), estabelece que "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação de serviços".

Ainda segundo a posição defendida por Rui Stoco(9), "neste ponto parece que o legislador cometeu grave erro lógico e de concepção, eis que, se a responsabilidade do hospital ou da empresa prestadora de serviços é contratual, tal circunstância monstra-se, no caso dos hospitais, em antinomia com a teoria da responsabilidade objetiva, pois se a instituição de saúde se compromete a submeter um paciente a cirurgia, por intermédio de médicos, sob a sua responsabilidade, está a exercer uma atividade de meio e não de resultado".

Assim, só se lhe pode exigir que a atuação de seus prepostos seja normal e que a cirurgia seja feita segundo as técnicas usuais e utilização do instrumental adequado. Se tal ocorrer, o contrato estará cumprido. Do contrário, descumprindo essas condições mínimas, a hipótese é de inadimplemento contratual."

Conforme apontamento de Teresa Ancona Lopez(10) " na responsabilidade contratual há a violação de uma obrigação em sentido estrito, sendo, portanto, a responsabilidade, limitada pelas cláusulas contratuais".

Daí porque, a antinomia acima verberada está justamente em que a responsabilidade objetiva alonga o espectro do dever de indenizar, transcendendo os limites e as barreiras estabelecidas pelas partes na avença contratual.

Assim, sendo a responsabilidade médico-hospitalar, de natureza contratual e sendo o objeto deste contrato uma obrigação de meio, não há como se falar em responsabilidade objetiva do hospital, e sua aplicação ao art.14 "caput" do CDC, mesmo sendo o hospital um prestador de serviços.

A uma, porque o Código do Consumidor não se afastou do conceito clássico de responsabilidade por ato ou fato de terceiro, consagrado em nosso Código Civil.

A duas, porque, sendo a responsabilidade do hospital contratual, responderá por ato de seu preposto nos termos do inc.III do art.1521 do CC, que prevê a culpa presumida ( e não objetiva) do patrão pelos atos de seus prepostos.

Aliás, esse o ensinamento do insigne Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ruy Rosado de Aguiar Jr.(11), em trabalho apresentado no IV Congresso Internacional sobre Danos, realizado em Buenos Aires, Argentina, em abril de 1995, ao obtemperar que pelos atos culposos de médicos que sejam seus empregados, ou de seu pessoal auxiliar, responde o hospital como comitente, na forma do art.1521,III, CC. E acrescenta: não responde quando o médico simplesmente utiliza as instalações do hospital para internação e tratamento dos seus pacientes)

No trabalho acima apontado Ruy Rosado de Aguiar Júnior(12), "deixou expresso que o hospital não responde objetivamente, mesmo depois da vigência do Código de Defesa do Consumidor, quando se trata de indenizar danos produzidos por médico integrante de seus quadros, pois é preciso provar a culpa deste para somente depois se ter como presumida a culpa do hospital".

Em último lugar, segundo a posição de Ruy Stoco (13)" cabe obtemperar a total ausência de sentido lógico-jurídico se, em uma atividade de natureza contratual em que se assegura apenas meios adequados, ficar comprovado que o médico não atuou com culpa e, ainda assim, responsabilizar o hospital por dano sofrido pelo paciente, tão somente em razão de sua responsabilidade objetiva e apenas em razão do vínculo empregatício entre um e outro".

"Perceba-se, porque importante, que o caput do art.14 do CDC condicionou a responsabilização do fornecedor de serviços à existência de defeitos relativos à prestação de serviços".

"Tal expressão, embora em contradição com o princípio adotado no próprio artigo da lei, induz culpa, máxime quando se trate de atividade médica, cuja contratação assegura meios e não resultado (salvo com relação às cirurgias estéticas e não reparadoras), de modo que, o resultado não querido não pode ser rotulado de defeito."

Segundo o entendimento do mesmo autor, mesmo quando o hospital atuar como mero hospedeiro, e dessa atividade decorrer danos ao paciente consumidor, não se aplica o art.14, "caput do Código de Defesa do Consumidor, por força da supremacia do disposto no art.1521 do Código Civil, que por ser mais abrangente, há de prevalecer diante do enunciado do parágrafo 1º do art.2º da LICC, quando preceitua que a lei posterior (Código de Defesa do Consumidor) só revoga a anterior (art.1521 do Código Civil) quando seja com ela incompatível ou quando regula inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior, e como se verifica, o Código de Defesa do Consumidor não regulou inteiramente a matéria, encontrando-se portanto, o fundamento da responsabilidade civil dos Estabelecimentos de Saúde nos termos do artigo 1521, III do Código Civil.

O não-atendimento do doente pelo hospital pode expressar-se através de simples recusa ou pelo encaminhamento a outro hospital (hospital de referência). No primeiro caso, a falta de assistência por defeito da organização, não mantendo o plantão ou os serviços necessários para atender a uma emergência previsível, é fator determinante da responsabilidade do hospital. No segundo caso, a remessa justificada do doente a um hospital de referência não constitui motivo para a atribuição da responsabilidade: "Em tese, o médico que ordenar o reencaminhamento de paciente por falta de leito ou condições de atendimento age com diligência e não deve ser considerado culpado. Da mesma forma, o hospital não pode ser obrigado a se preparar para todos os casos de emergência, sendo certo que todos são aparelhados com unidades de pronto-socorro, o que elide a culpa e, mais, inviabiliza a técnica da presunção da culpa, que seria uma eterna responsabilização. Ademais, segundo o escólio de Francisco Caramuru Afonso(14) " não é a atividade hospitalar responsável por todos os infortúnios da vida".

A jurisprudência registra os casos de responsabilidade do hospital por falta de plantão (8ª CC, TJRJ, 1981, RT 556/190), por efetuar diagnóstico inadequado (6ª CC, TJSP, 1981, RT 549/72), por demorar no atendimento cirúrgico que se fazia necessário (TJSC, ap. 19.672, 1986).

Quando se aborda este tema, não é possível esquecer a situação dramática em que se encontra a rede hospitalar do País, bem descrita na reportagem de Elio Gaspari,(15) cujas deficiências submetem constantemente os médicos a decidir sobre quem tem direito ao único aparelho, à escassa medicação, ao uso da sala cirúrgica...

A Constituição de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo atendimento a todos. Com isso igualou, perante o serviço público da saúde, o desempregado e o que passa suas férias na Europa, situação injusta que foi recentemente objeto da crítica do Ministro da Saúde (Folha de São Paulo, ed. de 03.03.1995), pois cria uma situação insustentável, não dispondo o Estado de recursos para atender a essa demanda. Em parte, porque não destina à saúde pública recursos suficientes (4% do PIB; enquanto nos EUA é de 12%); em parte, porque não tem médicos em número suficiente (150.000 médicos para uma população de 150 milhões; em Portugal: 23.000 médicos, para uma população de 10 milhões); finalmente, porque tem que atender de graça a quem pode pagar, e fica sem recursos para tratar do necessitado.

Em sentido contrário é a posição do Desembargador Sergio Cavalieri Filho(16), segundo o qual "os estabelecimentos hospitalares são prestadores de serviços e, como tais, respondem objetivamente pela reparação dos danos causados aos consumidores. O art.2º do citado Código conceitua o consumidor como sendo toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Serviço, por sua vez, consoante conceito contido no parágrafo 2º, do art.3º, é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista. Logo, no conceito de serviço enquadra-se perfeitamente a atividade dos estabelecimentos hospitalares, sendo os seus clientes, como destinatários finais desses serviços, consumidores por definição legal. O fundamento dessa responsabilidade, não é mais a conduta culposa, mas sim o defeito do serviço. A lei, vale ressaltar, criou para o fornecedor um dever de segurança- o dever de não lançar no mercado serviço com defeito- de sorte que, ocorrido o acidente de consumo, por ele responde independentemente de culpa. Em conclusão, a responsabilidade do fornecedor de serviços decorre da violação do dever de prestar aos consumidores serviços com a segurança legitimamente esperada (art.14, parágrafo 1º), cujos defeitos acarretam riscos à sua integridade física ou patrimonial. Ocorrido o acidente de consumo, o fornecedor terá que indenizar a vítima independentemente de culpa, só se exonerando dessa responsabilidade se provar- ônus do fornecedor- que o defeito inexiste, culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro". ( Ap. 11.323/98- 2ª Câm- TJRJ, j.15.12.1998)

Segundo o escólio do autor supra mencionado(17), "sempre que se tratar de relação de consumo- fornecimento de produtos ou serviços ao consumidor, não mais será aplicável a norma do art.1521,III, do Código Civil, pois esta regra foi derrogada pelo Código de Defesa do Consumidor. Assim, no regime do Código de Defesa do Consumidor não mais cabe falar em responsabilidade presumida do patrão em relação ao empregado porque o fundamento da responsabilidade civil do fornecedor deixou de ser a relação contratual, bem como, o fato de terceiro, para se materializar na relação de consumo, contratual ou não, respondendo objetivamente o Hospital, como fornecedor de serviços, quando presente o defeito na sua prestação".

Até aqui tratamos de medicina privada, prestada por hospitais e clínicas particulares, exercida por médicos profissionais liberais.


2. Responsabilidade Civil dos Hospitais Públicos;

2.1 Fundamento da responsabilidade civil na prestação de serviços públicos

Questão interessante configura-se no fundamento da responsabilidade dos Hospitais Públicos em decorrência da falha ou defeito na prestação do serviço público de saúde. Estaria os Hospitais Públicos enquadrados na sistemática do artigo 14 "caput" do Código de Defesa do Consumidor, respondendo com fundamento objetivo, tendo em vista, a gratuidade dos serviços prestados?

Serviço, por sua vez, consoante conceito contido no parágrafo 2º, do art.3º, "é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista".

O artigo 22 e parágrafo único, ao estender aos órgãos públicos, empresas, concessionárias e permissionárias de serviços públicos a responsabilidade objetiva estabelecida no seu art.14, trata de serviços públicos em que existe uma contraprestação por parte do consumidor através do pagamento de tarifas ou preços públicos pela utilidade dos serviços, tais como ocorre com o serviço de energia elétrica, àgua, telefonia, transporte coletivo de passageiros etc...Segundo Ada Pelegrini Grinover(18) "o dispositivo enfocado pretende assegurar a oferta constante e de boa qualidade dos serviços públicos prestados aos consumidores uti singuli, individualizando o consumidor utilitário do serviço, não se confundindo com os serviços públicos uti universi, ou seja, difusos, decorrentes da atividade precípua do Estado, visando ao bem comum, tal como ocorre com a Educação Pública, saúde, saneamento básico, segurança, construção de estradas etc..."

Assim em se tratando de serviços públicos gratuitos, como ocorre com os Hospitais Públicos e Estabelecimentos de Ensino Público, em que inexiste uma contraprestação por parte do consumidor na utilização do serviço, porém, presentes a qualidade do Hospital Público com fornecedor de serviços e do paciente com consumidor, sendo cristalina a relação de consumo estabelecida entre as partes, não se poderia aplicar a tais instituições a sistemática prevista na lei consumerista, e fundamentar sua responsabilidade com fulcro no art.14 "caput" do Código de Defesa do Consumidor? A resposta a tal questionamento merece análise aprofundada, nos conceitos estabelecidos no CDC, a fim de se adequar o regramento jurídico pertinente para tutelar a relação jurídica estabelecida entre as partes. No meu entender, neste caso, a responsabilidade dos Hospitais Públicos é de rigor em decorrência do dever de incolumidade devido à pessoa humana. Em se cuidando de direito à saúde e à vida humana, resguardados pela Constituição Federal como garantia fundamental irretirável, a circunstância de os serviços prestados serem gratuitos não subtrai o dever de a entidade hospitalar assegurar esses direitos sagrados do paciente, porém, o fundamento jurídico de tal responsabilidade será objetivo, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição Federal de 1.988, não se aplicando portanto, as regras estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor, por se tratar de um serviço público derivado da atividade precípua do Estado, visando ao bem comum, como resultado dos tributos em geral da população, sendo chamados de serviços públicos uti universi.

Segundo a incomparável lição de Aguiar Dias(19) "a responsabilidade civil em casos tais não se prende apenas a uma garantia estabelecida em contrato mas, ainda, ao direito de resguardo concedido e assegurado pela Lei Fundamental, de modo que a ausência de contrapartida pecuniária não confere um "bill" de indenidade."

Também o Tribunal de Justiça de São Paulo já acentuou que (20)"na responsabilidade dos hospitais se inclui a incolumidade, mesmo quando o tratamento seja gratuito".

Conforme ressaltado anteriormente os hospitais públicos, da União, Estados, Municípios, suas empresas públicas, autarquias e fundações, estão submetidos a um tratamento jurídico diverso, deslocadas suas relações para o âmbito do direito público, especificamente ao direito administrativo, no capítulo que versa sobre responsabilidade das pessoas de direito público pelos danos que seus servidores, nessa qualidade, causem a terceiros. Dispõe o art. 37, § 6º, da CF: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa".

Adotou-se o princípio da responsabilidade objetiva, cabendo ao Estado o dever de indenizar sempre que demonstrada a existência do fato, praticado por agente do serviço público que, nessa qualidade, causar o dano (é a responsabilidade pelo fato do serviço), eximindo-se a Administração, total ou parcialmente, se provar a força maior, o fato necessário ou inevitável da natureza, ou a culpa exclusiva ou concorrente da vítima.

O dissídio que lavrou na doutrina sobre a prevalência da teoria do risco integral ou do risco administrativo não tem maior relevância, pois os defensores de ambas as correntes aceitam a possibilidade de exclusão ou atenuação da responsabilidade do Estado sempre que provada a atuação de fatores causais estranhos ao Estado, como a culpa exclusiva ou concorrente da vítima. Neste sentido é o entendimento de Yussef Said Cahali(21), Edmir Netto(22) de Araújo. Apenas corrente minoritária apregoa que o Estado responde sempre, ainda quando a vítima seja culpada pelo evento. O STF tem reiteradamente acolhido a teoria do risco administrativo: Ac. de 24.02.1987, no AI 113.722-3, 1ª T, Rel. Min. SYDNEY SANCHES, na Lex, JSTF, 103/25. No mesmo sentido: RTJ 55/50. (vide HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 1989, págs. 549 e segs).; CARLOS MÁRIO DA SILVA VELLOSO, "Responsabilidade Civil do Estado" RILEG, 1987, nº 96, pág. 233; REVISTA JURÍDICA, 128/5 (AGUIAR JR., RUY ROSADO, "A Responsabilidade Civil do Estado pelo exercício da atividade jurisdicional no Brasil", Ajuris, 59/5, nota 16).

Essa responsabilização do Estado pelo fato do serviço, porém, não pode ser submetida a um regime único. Assim, quando se trata de omissão do Estado em evitar um resultado que deveria impedir, em razão da sua posição de garantidor do bem (ex.: danos decorrentes de inundação), a sua responsabilidade somente se estabelece uma vez demonstrada a culpa do serviço; igualmente, a responsabilização do Estado pelos atos do juiz pressupõe o funcionamento anormal da Justiça. Põe-se, então, a questão sobre a atuação dos serviços públicos de saúde, prestadores de serviços médico-hospitalares.

CANOTILHO(23) classifica a responsabilidade por fato da função administrativa em: a) responsabilidade por atos administrativos lícitos, em que há a imposição de um sacrifício inexigível; e b) a responsabilidade por risco, que pode derivar de danos resultantes de trabalhos públicos, de atividades excepcionalmente perigosas, de vacinações obrigatórias, da ação de presos foragidos ou alienados, do funcionamento de máquinas empregadas na atividade administrativa, do risco social, de necessidade administrativa e de calamidades nacionais.

A responsabilização do Estado pelo risco decorre do próprio fato do desempenho da atividade perigosa que o Estado exerce para a realização dos seus fins e na consecução do bem comum, cujos danos não podem ser transferidos ao indivíduo. Contudo, quando a atividade é exercida para benefício do cidadão, que recebe do serviço público o tratamento para a sua doença, é de se perguntar se o Estado também aí responde objetivamente por todo o dano sofrido pelo paciente, independentemente da regularidade do serviço prestado. Tratando da situação de quem solicita o serviço de vacinação, asseverou CANOTILHO(24): "Nesta hipótese, poderia dizer-se que quem aceita uma atividade perigosa no seu exclusivo interesse deverá suportar o risco correspondente... (mas) será sempre de pôr a questão da omissão de um dever de cuidado por parte dos serviços de saúde na hipótese que estamos analisando. Aceitar-se-ia, pois, a demonstração de uma atividade faltosa dos serviços competentes"). Pode ser indenizado o dano produzido pela morte de um paciente internado em hospital público, para o qual a ciência recomendava a realização de cirurgia, efetuada com todos os cuidados e de acordo com as prescrições médicas, mas que mesmo assim se revelou inexitosa, causando a morte? Melhor incluir tal hipótese no âmbito restrito da responsabilidade pela culpa do serviço, pois não parece razoável impor ao Estado o dever de indenizar dano produzido por serviço público cuja ação, sem nenhuma falha, tenha sido praticada para beneficiar diretamente o usuário. Por isso, e para não fugir do sistema, assim como instituído no texto constitucional, devemos refluir para o exame do requisito da causa do dano.

Na hipótese em que há o resultado danoso, apesar dos esforços do serviço público para o tratamento do doente, elimina-se a responsabilidade do Estado sempre que a administração pública demonstrar o procedimento regular dos seus serviços, atribuída a causa do resultado danoso a fato da natureza. Ao tratar da exclusão da responsabilidade do Estado, leciona o Prof. YUSSEF CAHALI(25), partidário da responsabilidade objetiva do Estado pela teoria do risco: "A segunda regra pode ser estabelecida reconhecendo-se a nenhuma responsabilidade ressarcitória se o dano sofrido pelo particular tem a sua causa no fato de força maior, conseqüência de eventos inevitáveis da natureza: a exclusão de responsabilidade da Administração decorre da não-identificação de nenhum nexo de causalidade entre o evento danoso e a atividade ou omissão do Poder Público" Assim, o Estado se exonera do dever de indenizar por danos decorrentes do exercício de sua atividade médico-hospitalar sempre que demonstrar que a causa não foi posta por médico a seu serviço, mas sim decorreu das condições próprias do paciente.

A jurisprudência se divide quanto à natureza da responsabilidade do Estado por atos danosos praticados nos hospitais públicos, por seus servidores, sejam médicos, enfermeiros ou serviçais, mas a maioria pende para a responsabilidade objetiva. Acórdão de 16.09.1986, do antigo TFR está assim ementado: "Realizada a cirurgia, com técnica adequada, não se atribuindo a negligência, imprudência ou imperícia do cirurgião, o acidente imprevisível de que resulta comprometimento do nervo ciático, com seqüela de redução de movimentos do joelho e paralisação do pé, não há como responsabilizar civilmente, por indenização correspondente, o cirurgião que recomendou o tratamento e o executou. A responsabilidade da entidade empregadora do encarregado do tratamento é, contudo, fundada no art. 107 da CF (de 1967), que adota o princípio da responsabilidade objetiva, pelo risco administrativo, em que a indagação de culpa é pertinente apenas para possibilitar regresso ou para elidir o dever de indenizar, quando, no primeiro caso, haja culpa do preposto e, no segundo, a culpa pelo evento seja exclusivamente da vítima" (AC 80.336, 1ª T). Outro no mesmo sentido: "Responsabilidade civil. Menor hospitalizado às custas e sob a responsabilidade do INAMPS... Causalidade inafastável entre o dano e ato, sem concorrência qualquer do menor ou de seus genitores. Aplicação da teoria do risco administrativo, inserta no art. 107 da CF (de 1967)" (Ac. de 25.06.1985, na RTFR, 124/163). Igual orientação foi reafirmada na AC 35.424-SP, em que a 4ª T do TFR considerou aplicável o princípio da responsabilidade objetiva do Estado para a indenização de dano provocado pelos serviços do INPS. O TRF da 1ª Região (Brasília) tem diversos julgados admitindo a responsabilidade objetiva dos hospitais mantidos pelo INAMPS (AC 89.01.221268-MG, de 17.09.1990; AC 89.01.226480-AM, de 12.09.1990: "As pessoas jurídicas respondem pelos danos que seus agentes, nesta qualidade, causarem a terceiros (art. 37, § 6º, CF), sendo de natureza objetiva a responsabilidade, somente elidível por prova exclusiva da parte contrária"; (AC 92.01.32316-6-MG, de 03.03.1993).

Já o TJSP, na AC 76.340-1, da 5ª CC, de 23.04.1987, considerou indispensável a prova da falta anônima do serviço.

A melhor solução está no meio: não se atribui ao Estado a responsabilidade pelo dano sofrido por paciente que recorre aos serviços públicos de saúde, ainda quando provada a regularidade do atendimento dispensado, nem se exige da vítima a prova da culpa do serviço: em princípio, o Estado responde pelos danos sofridos em conseqüência do funcionamento anormal de seus serviços de saúde, exonerando-se dessa responsabilidade mediante a prova da regularidade do atendimento médico-hospitalar prestado, decorrendo o resultado de fato inevitável da natureza.

O médico servidor público, pelos atos praticados nessa condição, pode determinar a responsabilidade da entidade pública a que está vinculado. Ele responde regressivamente perante o ente público condenado a indenizar o dano, se demonstrada a sua culpa, pois a falta pode ser anônima, atribuível ao serviço, sem possibilidade de individualização do agente. A responsabilidade direta e primária é do Estado; a do médico, como a de todo servidor público, deveria ser apenas indireta, recompondo o prejuízo sofrido pelo Estado, desde que provada a sua culpa. O STF, no entanto, interpretando a Constituição anterior, que nesse ponto não foi substancialmente modificada, tem reiteradas decisões sobre a admissibilidade de ajuizamento de ação diretamente contra o servidor, em litisconsórcio facultativo com o Estado, desde que o autor se proponha a provar, relativamente ao servidor, ter agido ele com culpa (RTJ 115/1.383; 106/1.182; 96/237).

A responsabilidade que surge para o Poder Público é de natureza extracontratual, submetida aquela às regras do direito administrativo, pois na relação entre paciente e hospital de contrato não se trata. FIGUEIREDO DIAS e MONTEIRO(26) sustentam que, embora entre o doente e o médico que o assiste, por dever de ofício, em hospital público, não haja contrato, deve ser reconhecida a existência de uma relação contratual de fato entre o paciente e a organização hospitalar, pois o doente internado não é um estranho (op. cit., pág. 64). Ocorre que os deveres de cuidado e de proteção que resultam do comportamento social típico da internação derivam do princípio da boa-fé, e o seu descumprimento pode ser examinado, no direito brasileiro, à luz do art. 159, que fixa o dever de indenizar os danos decorrentes de atos praticados com negligência, imprudência ou imperícia (ilícito absoluto).

O Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) pode prestar serviços hospitalares através de seus próprios hospitais, ou entidades conveniadas, e por médicos credenciados. Fazendo ele convênio com hospitais particulares, é dele a obrigação de fiscalizar a prestação desses serviços, é pois dele a responsabilidade pelos danos causados em pacientes, seus segurados. Foi isso o que decidiu o TAMG, no AI 135.591-7, de 24.11.1992: "Ao exame do contrato de fls., dessume-se que a agravada é obrigada a oferecer internação e tratamento a todas as pessoas que o INAMPS (depois substituído pelo INSS) lhe enviar (cláusula primeira), como também o aludido órgão público tem o direito de fiscalizar os serviços médico-hospitalares prestados pela agravada... Deflui dessa circunstância que o referido órgão público é responsável pelo tratamento médico-hospitalar dado aos seus beneficiários, inclusive pelos danos advindos a eles na realização do aludido tratamento... O INAMPS é obrigado a responder pelos danos causados a terceiros, no exercício da sua função, consoante os precisos termos do § 6º do art. 37 da CF".

Também pelos atos dos médicos credenciados, tem sido reconhecida a responsabilidade do Instituto (TRF da 1ª R, AC 89.01.221268; TRF da 1ª R, AC 89.01.226.480; TRF da 3ª R, AC 90.03.12035-8, de 16.12.1991). Respondem os médicos, diretamente, provada a sua culpa, e o Instituto, solidariamente.


3. Responsabilidade Civil das Empresas de Assistência Médica (convênio médico)

3.1. Espécies

A previdência privada assume a cada dia maior importância no País. As dificuldades encontradas pela previdência social para atuação eficaz no âmbito da saúde têm levado grande número de pessoas à proteção complementar na área da previdência privada, que hoje já atinge a 35 milhões de pessoas, das quais 28 milhões são ligadas a empresas. Apesar do custo (US$ 35.00 por pessoa), tende a se expandir

Convém ressaltar, todavia, que os planos de saúde privados não são operados apenas por companhias seguradoras, como muitos pensam (chamam tudo seguro de saúde), mas também por empresas de Medicina de Grupo e por Cooperativas de Serviços Médicos.

O que caracteriza o seguro de saúde, propriamente dito, é o fato de ser operado por companhia de seguro mediante regime de livre escolha de médicos e hospitais e reembolso das despesas médicos hospitalares nos limites da apólice.

Empresa de Medicina de Grupo, de acordo com a Portaria n.3.286/86 do Ministério do Trabalho, é toda pessoa jurídica de direito privado, organizada de acordo com as leis do País, que se dedique a assegurar assistência médica ou hospitalar e ambulatorial, mediante uma contraprestação pecuniária preestabelecida, vedada a essas empresas a garantia de um só evento. A mesma portaria estabelece três maneiras pelas quais pode a empresa de Medicina de Grupo exercer sua atividade: a) através de recursos materiais e humanos próprios ( médicos, hospitais e ambulatórios);b) mediante credenciamento de serviços de terceiros; c) por um sistema misto, que inclua serviços próprios e rede credenciada.

Cooperativas de serviços médicos, como o próprio nome o diz, são entidades organizadas por médicos com o fim de dar amparo econômico e social ao exercício de sua atividade. Prestam serviços médicos- hospitalares e ambulatorias também com recursos materiais e humanos próprios ou credenciados.

3.2.- Da responsabilidade Civil

Desses três tipos de operadores de planos privados de saúde, como se vê, apenas as companhias de seguradores funcionam pelo regime da livre escolha de médicos e hospitais e reembolso das despesas médico- hospitalares. As empresas de Medicina de Grupo e as cooperativas de serviços médicos atendem aos seus associados em seus próprios serviços, onde nada têm a pagar. Em contrapartida, não têm o direito da livre escolha, salvo se isso for previsto no contrato para casos de urgência e nos limites ali estabelecidos.

Assim, no primeiro caso- médicos e hospital de livre escolha- a responsabilidade será direta do hospital ou do médico, nada tendo a ver a seguradora de saúde com a eventual deficiência da atuação deles. No segundo caso, - médicos e hospitais próprios ou credenciados- a responsabilidade será também da seguradora. Se escolheu mal o preposto ou profissional que vai prestar o serviço médico, responde pelo risco da escolha.

Sobre o tema observou com pertinência Ruy Rosado de Aguiar Jr.(27), entendendo este ilustre autor com supedâneo na jurisprudência, "que a entidade privada de assistência à saúde, que associa interessados através de planos de saúde, e mantém hospitais ou credencia outros para a prestação de serviços que está obrigada, tem responsabilidade solidária pela reparação dos danos decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados. E mais, excetua dessa responsabilidade as entidades que, em seus contratos de planos de saúde, dão liberdade para a escolha de médicos e hospitais, assim como os seguros- saúde, que apenas reembolsam as despesas efetuadas pelo paciente, e por isso não respondem pelos erros profissionais livremente selecionados e contratados pelo seu segurado.

A entidade privada de assistência à saúde, que associa interessados através de planos de saúde, e mantém hospitais ou credencia outros para a prestação dos serviços a que está obrigada, tem ela responsabilidade solidária pela reparação dos danos decorrentes de serviços médicos ou hospitalares credenciados. A 2ª CC do TJSP, sendo relator o Des. WALTER MORAES, nos EI 106.119-1, assim decidiu: "Empresa de assistência médica. Lesão corporal provocada por médico credenciado. Responsabilidade solidária da selecionadora pelos atos ilícitos do selecionado... Embte.: Golden Cross Assistência Internacional de Saúde". Igualmente, o TJRJ no AI 1.475/92, por sua 2ª CC, admitiu que "se há solidariedade da empresa de assistência médica, do médico por ela credenciado e do hospital, na reparação dos danos, contra qualquer deles pode dirigir-se o pedido". Também em ação de indenização promovida contra a clínica médica e a empresa de saúde Blue Life, ficou reconhecido: "A co-ré também é responsável solidariamente em decorrência do contrato de assistência médica havido com a autora. Tendo aquela credenciado o réu para a prestação dos serviços médicos, assumiu a responsabilidade para a sua perfeita execução" (voto vencido proferido na AC 140.190-1, de 06.12.1990, depois acolhido nos EI julgados em 06.08.1992). Na AC 165.656-2, o TJMG reconheceu a responsabilidade solidária da Golden Cross com o médico por ela contratado (Ac. de 14.12.1993).

Diferentemente ocorre com os planos de saúde que dão liberdade para a escolha de médicos e hospitais, e os seguros-saúde, que apenas reembolsam as despesas efetuadas pelo paciente, e por isso não respondem pelos erros dos profissionais livremente selecionados e contratados pelo seu segurado.

As instituições privadas utilizam-se de contratos de adesão, cujas cláusulas muitas vezes não se harmonizam com o princípio da boa-fé objetiva e com as regras do Código de Defesa do Consumidor. Convém examinar, embora sucintamente, alguns exemplos desse conflito, que tende a se ampliar na medida em que se estende o campo da previdência privada, utilizando informação jurisprudencial coletada, no Estado de São Paulo.

a) não se admitiu como válida cláusula de exclusão de pagamento de seguro de reembolso de despesa com internação hospitalar, quando, apesar da internação, não houver a cirurgia (3ª CC - TJRS, 30.09.1992, AC 592070528);

b) a limitação do número de dias de internação não foi aceita pela 15ª CC - TJSP, na AC 222.217-2/7, em ac. de 22.02.1994, porque "a norma contratual há de ser sopesada ante a realidade da situação individual, sob pena de chegar-se ao absurdo de impor ao próprio paciente que limite a extensão do seu mal ou que estabeleça o prazo da sua internação, tarefa que na realidade está afeta ao médico acompanhante. No caso presente, tem-se que o paciente esteve internado por seis dias, além dos trinta dias, vindo o óbito";

c) julgou-se inadmissível a exigência de apresentação de guia de internação subscrita por médico credenciado, até 24 horas depois da internação de urgência determinada por médico não credenciado: "Se o paciente é atendido por médico particular e nessa situação é internado, é mais do que evidente que nenhum outro médico credenciado interferirá ou assinará requisição de guia, criando-se um impasse que, como bem salientou o julgado, viola a essência do contrato" (AC da 14ª CC - TJSP, na AC 222589-2/3, de 08.03.1994);

d) os contratos de seguro ou de assistência excluem, modo geral, a cobertura para o tratamento dos pacientes afetados pelo vírus da AIDS. A Res. 1.401/93, do Conselho Federal de Medicina, condenou essa prática, mas nos Tribunais as decisões são divergentes. A 5ª CC - TJRS considerou que a mera exclusão de tratamento de moléstia infecto-contagiosa de notificação compulsória não é cláusula abusiva (MS 594012130, de 14.04.1994), invocando outra decisão no mesmo sentido, da 4ª CC - TJRJ, na ap. civ. 6.217/93, e o conteúdo da Circular 10/93, da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP), órgão federal encarregado da fiscalização das companhias de seguros, vedando a inclusão, nos seguros de assistência médica ou hospitalar, de coberturas não particularizadas na apólice. Já a 14ª CC - TJSP, em mandado de segurança impetrado para garantir a continuidade da assistência, afirmou, com melhor razão, que "a supressão de determinados tratamentos como é aquele aqui contemplado configura em princípio uma cláusula abusiva nos termos do art. 51, I, § 1º, da L. 8.079, de 11.09.1990 (CDC)" (MS 224430-2/3, de 03.05.1994). A 18ª CC - TJSP considerou que, já estando sendo prestada a assistência, ela deve de qualquer modo continuar, "na medida em que a suspensão de tratamento médico do paciente aidético, como notório, implica abreviação da morte", reservado à seguradora o direito de, na ação principal, uma vez acolhida a sua tese de exclusão, cobrar-se das despesas efetuadas (MS 231.992-2, de 29.03.1994);

e) se o segurado procura hospital conveniado com o plano de saúde (Blue Life), considerou-se abusiva a cláusula que condicionava a cobertura ao atendimento por médico credenciado: "A cláusula VI, nº 8º, do mesmo plano de saúde exclui da obrigatoriedade do ressarcimento tratamento e exame de qualquer espécie por médicos não credenciados, mas, como se pode concluir, trata-se de verdadeiro artifício malicioso utilizado pela ré-apelada, porquanto ao credenciar determinado hospital está aceitando o tratamento por médicos a este vinculados, e não seria possível ao autor ficar procurando médico que se dispusesse a atendê-lo nesse hospital" (AC 223.242-2/8, 18ª CC - TJSP, de 09.05.1994);

f) é muito comum cláusula abusiva que permita à entidade de assistência rescindir unilateralmente o contrato, utilizada quando o paciente avança na idade ou começa a aparentar doenças. A 19ª CC - TJSP, na AC 292.337-2/6, considerou inválida a cláusula que permitia à companhia Amil a extinção unilateral do contrato de cobertura de serviços médicos, ainda durante o período de carência (25.10.1993). Já a extinção do contrato por falta de pagamento das prestações somente pode ocorrer "após constituído o devedor em mora, já que não se cuida na espécie de mora ex re, pois as cláusulas contratuais devem ser interpretadas em favor do consumidor" (AC 18ª CC - TJSP, AC 233.323-2/6, de 09.05.1994). Nesse mesmo acórdão, foi excluída a cláusula que estabelecia carência por dias de atraso no pagamento das prestações.

A defesa judicial dos associados de instituição privada de seguro ou assistência médico-hospitalar pode ser individual ou coletiva (art. 80 do CDC). A defesa coletiva (art. 81) será exercida quando se tratar de interesses ou direitos difusos (os transindividuais, indivisíveis, de pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato), de interesses ou direitos coletivos (os transindividuais, indivisíveis, de grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base), e de interesses ou direitos individuais homogêneos (os decorrentes de origem comum). São legitimados, concorrentemente, o Ministério Público, a União, Estados e Municípios, as entidades da administração pública destinadas especificamente à defesa desses interesses e direitos, e as associações constituídas há pelo menos um ano, que tenham por fim a sua defesa (art. 82). Os interesses e direitos dos associados de companhia de seguro ou assistência médica podem ser classificados no grupo dos interesses ou direitos coletivos, cabendo a ação coletiva quando se cuida, genericamente, da eliminação de uma cláusula abusiva usada em contrato de massa, ou da redução dos reajustes de prestações, estando legitimada para promover a ação a associação privada constituída para a defesa do consumidor. No Brasil, a mais ativa e respeitada entidade desse gênero é o IDEC - Instituto de Defesa do Consumidor, com sede em São Paulo, de significativa atuação na área, cuja legitimidade ativa tem sido reconhecida para promover ações civis públicas sobre a validade de cláusulas e práticas nesse âmbito (EI 180.713-8-01, de 20.12.1993).


Notas

1. DE AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado. Responsabilidade Civil dos médicos, Revista Jurídica nº.231, jan/97, pág.122.

2. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, vol. 1, p.382.

3. STOCO,Rui.Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial, p.273.

4. COSTA, Mário Júlio de Almeida. Direito das Obrigações. Coimbra Editora, pág. 405

5. Obra Citada, pág.126

6. GOMES, Orlando. Obrigações. Forense, 1978, pág. 362.

7. STOCO, Rui. A teoria do resultado à luz do Código de Defesa doConsumidor. Revista do Consumidor, n.26, p.212.

8. lato sensu

9. Obra citada.p. 213.

10 O Dano estético, Revista dos Tribunais. São Paulo,1980,p.30.

11 Responsabilidade civil do médico, in RT 718/41.

12. Obra citada.p.41-42

13. Obra. Citada. p.213-214

14. AFONSO, Francisco Caramuru.Responsabilidade Civil dos Hospitais, Clínicas, e Prontos-socorros, in Responsabilidade Civil Médica, Odontológica e Hospitalar, Saraiva, págs. 177/198.

15. in Revista Veja, de 18.08.1993, a insuportável leveza da morte.

16. in RT 768/99.p.355.

17. Sergio Cavalieri FILHO, Programa de Responsabilidade Civil, 2ª edição.p.120

18 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, comentado pelos autores do Anteprojeto. p.89

19. Obra Citada, p.382

20. in RT 522/90 e 652/52.

21. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil do Estado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982,p.30

22. DE ARAÚJO, Edmir Netto. Da Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional. São Paulo: Revista dos Tribunais,1981,p.42

23. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. O problema da responsabilidade do Estado por atos lícitos, Almedina, Coimbra, págs. 231 e segs.

24. Obra. citada., pág. 252, nota 47.

25. Obra. citada., pág. 373.

26. DIAS, Figueiredo e MONTEIRO, Jorge. Responsabilidade Médica em Portugal, RF 289/53.

27. Obra Citada, pág.145


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CINTRA, Lízia de Pedro. Da responsabilidade civil dos estabelecimentos de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2458. Acesso em: 28 mar. 2024.