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Teoria geral da insignificância

Teoria geral da insignificância

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Discorrer-se-á, brevemente, sobre diversos aspectos envolvendo a insignificância, como suas origens, sua caracterização como princípio, seus fundamentos de validade, parâmetros e confronto com a legalidade, dando ao leitor uma visão geral do instituto.

1.1 Conceito

O princípio da insignificância é uma evolução do direito penal moderno. É a superação de um pretenso positivismo jurídico, vencendo o formalismo e voltando os olhos para o plano material, para a realidade. Representa, com efeito, um novo olhar para a realidade penal, inspirado pelos valores do Estado Democrático de Direito.

Vico Mañas, autor que primeiro publicou monografia específica sobre o tema da insignificância no Brasil (1994), narra seus porquês de ter começado a estudar o princípio da insignificância, aos quais nos referimos para ilustrar o leitor. Como defensor de réus carentes e revéis, atuando na 1ª Vara Criminal da Capital Paulista, via diversos casos de parca relevância social preenchendo os escaninhos da justiça penal. Eram pequenos furtos, pequenas apropriações indébitas; um circo, nas palavras do próprio autor.  Não era nada do que ele esperava encontrar trabalhando com direito penal, imaginando fosse ver sangue jorrando dos autos de processos-crime (Mañas; Capez, 2010). Essa situação não o confortava e nem pode confortar ninguém, pelo contrário. Todos esperam que o direito penal e suas duras sanções sejam impostos a condutas graves, não a bagatelas sem importância alguma.

Essa ideia de crime de bagatela[1] é fundamental para poder se compreender o que é o princípio da insignificância. Crimes de bagatela são fatos que, muito embora se enquadrem no tipo legal[2] de um crime, não causam dano ou perigo de dano significativo ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Exemplos de fatos como esses são o furto de uma guloseima por um infante, pequenas equimoses causadas por um esbarrão no trânsito de pessoas, introdução em circulação de cédulas de papel-moeda falsas em valores irrisórios[3], ambos enquadrados, respectivamente, nos artigos 155, 129 e 289, § 1º, do Código Penal (CP).

Condutas como essas, certamente, são reprováveis do ponto de vista moral e social, mas, em verdade, são fatos sobre os quais o direito penal não deve atuar, dados os princípios que o regem, tais como intervenção mínima, fragmentariedade, subsidiariedade, e, sobretudo, da proporcionalidade, a serem expostos mais a frente (item 1.5).[4]

De Claus Roxin, responsável por, nos anos 70, introduzir no direito penal o princípio da insignificância, é a lição:

[...] maus-tratos são uma lesão grave ao bem-estar corporal, e não qualquer lesão; da mesma forma, é libidinosa no sentido do código penal só uma ação sexual de alguma relevância; e só uma violenta lesão à pretensão de respeito social será criminalmente injuriosa. Por “violência” não se pode entender uma agressão mínima, mas somente a de certa intensidade, assim como uma ameaça deve ser “sensível”, para adentrar no marco da criminalidade (2002:47).[5]

Vico Mañas (1994:81), por sua vez, define o princípio da insignificância como um

instrumento de interpretação restritiva, fundado na concepção material do tipo penal, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial e sem macular a segurança jurídica do pensamento sistemático, a proposição político-criminal da necessidade de descriminalização de condutas que, embora formalmente típicas, não atingem de forma socialmente relevante os bens jurídicos protegidos pelo direito penal.

Em resumo, pondo termo a esta explanação inicial, podemos afirmar que o princípio da insignificância é um meio do qual o intérprete da norma incriminadora se vale para afastar a incidência do direito penal em condutas que, por sua escassa reprovabilidade e lesividade aos bens jurídicos tutelados pela norma penal, não se mostram merecedoras de pena e de suas consequências. Como bem disse Assis Toledo (1994:133), o direito penal só vai (rectius: só deve ir) até onde necessário para a proteção do bem jurídico; não deve ocupar-se de bagatelas.

Muito embora as ideias doutrinárias expostas se refiram à insignificância como excludente de tipicidade material[6], ao longo deste trabalho nos referiremos ao princípio como descriminante, algo que exclui o crime ou afasta o direito penal. A razão é bem simples: embora pequena a grande maioria dos autores categorizem o princípio da insignificância como excludente de tipicidade, alguns discordam e a enquadram em outras categorias, como excludente de antijuridicidade ou mesmo de culpabilidade. Como não é nosso objetivo neste breve trabalho tomar partido de um lado ou de outro, preferimos fazer do nosso jeito.

Discorrer-se-á, brevemente, sobre diversos aspectos envolvendo a insignificância, como suas origens, sua caracterização como princípio, seus fundamentos de validade, parâmetros e confronto com a legalidade, dando ao leitor uma visão geral do instituto.


1.2 Origens

Conforme já mencionado acima, modernamente, a formulação do princípio da insignificância foi feita por Claus Roxin em 1964[7] e repetida em 1970, na sua famosa obra  Kriminalpolitik und Strafrechtssystem, traduzida para o português como “Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal” (2002). Na obra, discorre-se sobre o princípio com base em considerações sobre o adágio latino minima non curat praetor (SILVA, I.L. da, 2004:87), insurgindo-se contra alguma jurisprudência alemã que dava interpretação extensiva a alguns tipos penais.

O brocardo invocado é bem simples: de coisas mínimas, pífias, pequenas o juiz (ou o pretor) não deve se preocupar. Interessante anotar que essa máxima era conhecida há tempos pelos juristas, tanto é que Franz Von Liszt, como que formulando um início da teoria da insignificância, já a invocava em 1903, como demonstra a seguinte passagem, citada por Sanguiné (1990:40):

A nossa atual legislação faz da pena, como meio de luta, um emprego excessivo. Se deveria refletir se não mereceria ser restaurado o antigo princípio “minima non curat praetor”, ou como regra de direito processual (superamento [sic] do princípio de legalidade), ou como norma de direito substancial (isenção da pena pela insignificância da infração).

Conquanto boa parte da doutrina reconheça a origem remota do princípio em questão nesse axioma, é certo que esse entendimento não é unânime. Uma corrente, por exemplo, sustenta que, em que pese a existência do aforisma entre os romanos, é certo que entre aquele povo se desenvolveu muito mais o direito privado do que o direito público, não se configurando no brocardo um verdadeiro princípio de direito penal, mas mero aforismo (LOPES, 1997: 38).

Nesse entendimento, o minima non curat praetor seria uma mera referência, mas não a origem histórica do princípio da insignificância, a qual, em verdade, estaria na evolução do princípio da legalidade dentro do pensamento iluminista (op. cit., 41).

Guzmán Dalbora (1996), por sua vez, discorda que o minima non curat praetor seja um brocardo do direito romano. Dentre seus porquês, cita sua ausência no corpus juris civilis, bem como nas glosas de Acúrsio e em coleções de brocardos de antigos estudiosos no direito romano, acreditando que essa expressão tenha surgido no renascimento, em decorrência do movimento humanista. Todavia, admite que, se, de fato, existiu no direito romano, não era brocardo específico do direito penal, mas sim um comando para que o julgador e o legislador não cuidassem de questões mínimas, ínfimas, insignificantes.

Não queremos penetrar mais a fundo no tema, tampouco tomar posições, pois não nos interessa e nem interessa a esta pesquisa. Preferimos concordar com as palavras perfeitas de Foucault (1979:18): “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada na origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A história ensina também a rir das solenidades da origem.”


1.3  Questão de ordem terminológica

Antes de discorrer mais sobre nosso tema, suscito uma questão de ordem referente à terminologia existente e a utilizada nesta obra, face às diversas variações existentes na doutrina.

A primeira distinção a fazer é entre criminalidade de bagatela e princípio da insignificância. Certa doutrina (LOPES, 1997) parece equiparar o crime de bagatela com as infrações de menor potencial ofensivo ou a crimes cujo modelo processual pode ser mais célere ou mesmo de ação penal de iniciativa privada. Já o princípio da insignificância seria o que permitiria afastar a tipicidade de certas condutas apenas formalmente típicas, porém de pouca significação para justificar a imposição de pena criminal.

Apenas a última assertiva nos parece correta. O princípio da insignificância, com efeito, é uma norma jurídica “aplicável na solução de casos concretos onde se verifica a ocorrência de um crime de bagatela, que é uma infração penal que provoca escasso ou insignificante dano ao bem jurídico atacado” (SILVA, I. L. da, 2004: 82). Vale explicitar: o crime de bagatela é o fato irrelevante[8], nímio, pífio; o princípio da insignificância é a norma jurídica, é o instrumento que nos permite afastar a incidência do direito penal nos crimes de bagatela.

Outra distinção que se faz é a entre crime bagatelar próprio e impróprio, na qual insiste Gomes (2009). Próprio é aquele no qual incide o princípio da insignificância, em razão da insignificância do desvalor da ação ou do desvalor do resultado. Impróprio é aquele no qual incide o princípio da irrelevância penal do fato, que leva em consideração o ínfimo desvalor da culpabilidade e a desnecessidade de pena, concluindo por afastar esta.[9] Neste trabalho, não usaremos o adjetivo próprio, usando a expressão crime ou delito de bagatela (ou bagatelar) indiscriminadamente, referindo-se aos fatos nos quais tem lugar o princípio da insignificância, descriminando a conduta.

Classificação idêntica é feita por Palazzo, citado por Trillo Navarro (2008:23). Nesta, há os delitos de bagatela próprios, que aparecem “ en uma previsión legislativa que contiene en abstracto la insignificancia” e os impróprios, “por um hecho que en general no resulta insignificante, pero que se revela en concreto como um hecho de escassa relevancia”. Os próprios, cremos, seriam os tipos privilegiados como o furto de coisa de pequeno valor, previsto no art. 155, § 2º, do nosso CP. Os impróprios seria o que chamamos de bagatelares. Novamente, esta classificação não será relevante nesta exposição.

A outra e última questão terminológica diz respeito a como se referir ao princípio descriminalizador sobre o qual discorremos. A maioria de nossa doutrina chama-o de princípio da insignificância (v.g. MAÑAS, 1994; LOPES, 1997; ACKEL FILHO, 1988; SANGUINÉ, 1990; e GOMES, 2004), porém alguns, como Tiedemann, valem-se da expressão princípio da bagatela (BITENCOURT, 2011:51). Há, ainda, uma terceira terminologia: princípio da falta de relevância social (BIANCHINI, 2002).

Sem embargo dos demais, preferimos falar em princípio da insignificância. A uma, porque já é uma expressão consagrada em nossa doutrina; a duas, porque falar em princípio da bagatela ou de falta de relevância social talvez leve o estudioso a confundir a norma com o fato sobre o qual ela incide (crime de bagatela ou fato sem relevância social).


1.4  A insignificância como princípio de direito penal

1.4.1 Conceito de princípio

Princípio, a princípio, pode ser entendido como começo ou origem de qualquer coisa, um primeiro momento, o instante inicial. Assim, por exemplo, no Evangelho de João, quando diz, referindo-se ao Cristo, que “no princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus” (THOMPSON, 2001:962. Grifo nosso).

Todavia, não é essa a acepção com a qual trabalharemos. A noção de princípio que interessa a nós é a de “mandamento nuclear de um sistema”[10], ou, melhor dizendo, a de regra estrutural que confere coesão a um sistema, regulando suas normas (FERRAZ JR., 2010:213).

Para melhor elucidar a ideia, valemo-nos do último autor citado, indicando estrutura e repertório como componentes de um sistema, como é o ordenamento jurídico. Veja-se que, dentro de um ordenamento jurídico, existem elementos ditos normativos – regras de conduta, prescrições legais, proibições, tipos penais etc. A esses elementos podemos chamar repertório. Outros elementos, não propriamente normativos, estabelecem relações entre aqueles, estabelecendo regras de estrutura, disciplinando como as normas se relacionam entre si.

Veja-se o exemplo ilustrativo dado por Ferraz Jr. (2011:145):

Note bem a diferença: uma sala de aula é um conjunto de elementos, as carteiras, a mesa do professor, o quadro-negro, o giz, o apagador, a porta etc.; todavia, esses elementos, todos juntos, não formam uma sala de aula, pois pode tratar-se de um depósito da escola; essa disposição depende de regras de relacionamento; o conjunto dessas regras é a estrutura.

Daí porque tem razão quem afirma ser a violação de princípios muito mais grave do que a transgressão de uma norma, tendo em vista que a desatenção àqueles implica ofensa não apenas a um comando específico obrigatório, mas a todo o sistema de comandos (LOPES, 1997).

Essas regras de estrutura são, com efeito, “’núcleos de condensações’ nos quais confluem valores [11] e bens”(CANOTILHO e VITAL MOREIRA, apud SILVA, J.A. da, 2011:92). Podem eles se positivarem ou não, transformando-se, no primeiro caso, em normas-princípio.

Contudo, não podemos deixar de apresentar outra de muitas  explicações para o que seja um princípio. Parte-se da premissa de que as normas se dividem em duas espécies: regras e princípios. Sob essa ótica, um mandamento imperativo encerrador de um dever-ser (uma norma) sempre seria ou uma regra ou um princípio. De acordo com Alexy (2008), as normas são regras se exigem que seja feito exatamente o que elas ordenam, de modo a possuírem uma determinação da extensão de seu conteúdo no âmbito das possibilidades fáticas e jurídicas. Serão princípios se exigem que “algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades fáticas e jurídicas existentes”, não contendo um mandamento definitivo, mas apenas prima facie. De se notar que, nessa ordem de ideias, regras e princípios se distinguem qualitativamente, não havendo, pois, uma distinção de grau.

Essa ideia de princípio, conquanto formulada de um modo diverso da mostrada anteriormente, não diverge quanto ao caráter estruturante dos princípios no ordenamento jurídico. Em suma, ela diz que regras são normas precisas, de aplicação definida e hipóteses de incidência bem delimitada, ao passo que os princípios são normas de caráter mais genérico e, no geral, programático, porém encerram um dever-ser tanto quanto as regras.  Do mesmo modo que a teoria anteriormente mostrada, esta admite que os princípios incidem sobre objetos diferentes das regras ou normas de repertório. A diferença está, precisamente, em colocar os princípios como uma categoria de normas, como se normas fosse tudo que existisse num ordenamento.

Se adentrarmos nas minúcias da conceituação dos princípios, este trabalho seria desvirtuado, não atingiria sua finalidade. Por isso mesmo, dogmaticamente, optamos pela primeira das teorias mencionadas, por considerarmos que os princípios são mais do que normas, e sim fórmulas proporcionadoras de coesão e estruturação sistemática do ordenamento jurídico.

Sintetizando e dando o nosso conceito, podemos bem afirmar que princípio é um enunciado disciplinador das relações entre normas jurídicas, expressando um valor condensado que serve como parâmetro objetivo estruturador de um dado ordenamento jurídico.

1.4.2 É a insignificância um princípio?

Em alguma doutrina europeia, como noticia Ribeiro Lopes (1997:33), a insignificância não é tratada exatamente como um princípio de direito penal. Nessa linha de pensamento, o tratamento dado aos crimes de bagatela não é de direito material, descriminalizando a conduta nímia, mas sim de direito processual, permitindo com que não se exerça a ação penal, com base no princípio da oportunidade.

Pode-se inferir a insignificância como princípio com base na concepção utilitarista moderna das estruturas típicas do direito penal (LOPES, 1997). Quando se passa a não apenas enxergar o crime sob o ponto de adequação típica formal, necessitando de algo mais, de uma lesão concreta, toma corpo o nosso princípio.

O princípio da insignificância, assim, vem a [sic] luz em decorrência de uma especial maneira de se exigir a composição do tipo penal, a ser preenchido, doravante, não apenas por aspectos formais, mas também, e essencialmente, por elementos objetivos que levem à percepção da utilidade e da justiça de imposição de pena criminal do agente.

Não é menos verdade afirmarmos que essa concepção material do crime decorre da própria ideia de dignidade da pessoa humana. Em um Estado que se diz Democrático de Direito, tomando a dignidade humana como fundamento da República, somente se deve limitar a liberdade do cidadão quando necessário (PRESTES, 2003)[12]. Necessário para quê? Para a proteção de bens jurídico-penais que de outro modo não possam ser tutelados.

E essa ideia material do crime não se opõe, de modo algum, ao princípio da legalidade, partindo da premissa de que “a redação do tipo legal pretende certamente apenas incluir prejuízos graves da ordem jurídica e social, mas não pode impedir que entrem também em seu âmbito os casos leves” (ZIPF, 1979:102). Isso ocorre da própria natureza da técnica legislativa. Considerando que os tipos penais são conceitos eminentemente abstratos, é um tanto quanto impossível evitar que sua previsão legal tenha alcance maior do que o desejado (MAÑAS, 1994).

Sendo assim, é evidente que a insignificância possui o caráter de norma estrutural a que aludimos anteriormente. As relações de repertório disciplinadas dizem respeitos às normas penais incriminadoras, determinando sua não incidência nos casos bagatelares.

É possível também uma demonstração de sua carga principiológica mediante o método da colisão de princípios, apresentado por Robert Alexy (apud SILVA, I. L. da, 2004). Essa colisão ocorre, por óbvio, quando dois princípios apresentam situações conflitantes diante de um caso concreto, circunstâncias na quais um dos princípios deverá ceder, sem que isso signifique sua exclusão do ordenamento jurídico. Se isto ocorrer, estar-se-á diante de um autêntico princípio, e não duma simples norma componente do repertório de dado ordenamento.

Para solucionar a colisão, é mister ponderar os interesses opostos envolvidos, sendo aplicado o princípio que tutela o bem jurídico mais relevante no caso concreto. Estando diante de um crime de bagatela, o bem jurídico liberdade preponderará sobre o interesse punitivo estatal. Reformulando, o princípio da insignificância, que determina o afastamento do direito penal em fatos nímios, “vencerá” o princípio da legalidade estrita, o qual manda aplicar-se a norma penal incriminadora quando preenchidos os elementos do tipo penal. Entretanto, nenhum dos dois será excluído do ordenamento jurídico.

Diante dessas considerações, a resposta para o quesito formulado neste subtítulo é positiva, ou seja, a insignificância é, com efeito, um verdadeiro princípio de direito penal.


1.5 Fundamentos de validade

A seguir discorre-se sobre os princípios amplamente reconhecidos do direito penal pelos quais se pode deduzir de modo bastante eloquente o princípio da insignificância e, por que não dizer, pelos quais se torna patente a importância do conceito material de delito. Note-se que os princípios sobre os quais se falará não têm necessidade de demonstração minuciosa, haja vista serem reconhecidos largamente pela doutrina, inclusive com alguns decorrendo de modo lógico de normas-princípio (ver supra, item 1.4.1).

1.5.1Princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade

Esse princípio se dirige, principalmente, ao legislador. Ele “orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico” (BITENCOURT, 2011:43).[13]

Daí se segue, logicamente, o princípio da subsidiariedade. Dado que a sanção penal é a mais brusca, mais violenta, mais drástica intervenção estatal na vida do cidadão, retirando-lhe aqueles bens mais caros (liberdade, propriedade e, em alguns ordenamentos, a vida), tem-se que o direito penal é subsidiário, só atuando quando nenhum outro instrumento de controle social possa desempenhar a proteção de bens jurídicos caros à sociedade.[14]

Se assim é – e é –, vê-se que o direito penal é a ultima ratio do sistema jurídico. Ele só estará autorizado a intervir quando algo realmente significativo e dano para a sociedade ocorra. Com toda a razão está Zipf (1979:98):

se requer que as condições da própria convivência social resultem lesadas de modo intolerável. […] As normas penais podem ser empregadas como reguladoras do acontecer social apenas quando o exijam forçosamente necesidades essenciais de proteção da coletividade e intereses vitais do indivíduo.[15]

Em face dessas considerações, vê-se que o princípio da insignificância encontra fundamento nesses dois outros princípios. Ora, se a intervenção penal não se justifica por qualquer coisa, mas só em último caso, parece certo que nem toda e qualquer lesão a um bem jurídico é caso de intervenção penal.

1.5.2 Princípio da fragmentariedade

De início, frise-se que o “princípio” da fragmentariedade de princípio não tem nada; só falamos dessa forma por tradição. Explica-se: a constatação da fragmentariedade do direito penal decorre de maneira inegável do princípio da intervenção mínima e da legalidade. Com efeito, se é verdade que o direito penal somente atua para proteger bens jurídicos de alguma importância para a sociedade, fazendo-o de modo subsidiário, certamente ele só incidirá sobre um fragmento, uma pequena porção dos bens protegidos pelo direito de modo geral. Com efeito, “o direito penal não sanciona todas as condutas lesivas de bens jurídicos, senão somente as modalidades de ataque mais perigosas”(MIR PUIG, 1982:126)[16]. Usando a expressão de Binding (apud BITENCOURT, 2011), o direito penal se revela como um sistema descontínuo de ilicitudes, uma pequena ilha num mar de liberdade.

Destarte, soa mais correto falar que o direito penal possui um caráter  fragmentário ou uma natureza fragmentária, e não que é regido por um princípio de fragmentariedade. A fragmentariedade é inerente a esse ramo do ordenamento jurídico; é um dado imanente do sistema, uma mera constatação, sem estruturar nada. Entendimento em contrário nos autorizaria a dizer que o ar é regido pelo “princípio da incorporeidade” ou que a água se rege pelo “princípio da liquidez”.

Conhecendo esse dado, é patente que o intérprete da norma penal jamais poderá entendê-la extensivamente em detrimento da liberdade, pois assim estaria indo “contra a natureza das coisas”. A interpretação da lei penal deverá ser feita sempre de maneira restritiva no que toca a normas que cerceiam a liberdade do cidadão; essa interpretação restritiva é, precisamente, o que se faz ao aplicar o princípio da insignificância. Logo, tem-se que a nossa descriminante está respaldada na natureza fragmentária do direito penal; quem a aplica nada mais faz do que agir segundo a “natureza das coisas”.

1.5.3  Princípio da proporcionalidade

Este princípio, que é geral do direito, é, com clara certeza, o mais evidente fundamento do princípio da insignificância. Ele demanda que haja uma justa medida entre o ato praticado e sanção correspondente, ou, em termos penais, que a pena seja proporcional ao delito praticado.[17] Deve-se verificar, como diz Canotilho (apud BIANCHINI, 2002:83),

se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à ‘carga coativa’ da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as vantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Confunde-se, de certa forma, com a própria racionalidade da punição. É irracional que arrancar um cabelo configure lesão corporal, assim como pegar um fósforo para acender um cigarro seja um furto ou levar uma passageiro até o próximo ponto de ônibus seja uma privação de liberdade (ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR, 2000:471). E por que é irracional? Porque é desproporcional considerar essas ações como crimes e, dessa forma, impingir com a pena seus agentes. Na jocosa expressão utilizada por Gomes (2009), não podemos usar um canhão (o direito penal) para acertar um passarinho.

Eis, então, mais uma razão, mais um fundamento para o princípio da insignificância. Deve-se afastar a incidência do direito penal de infrações de pouca monta porque tomar essas condutas como crime seria desproporcional e, por conseguinte, irracional.

1.6 Insignificância e legalidade

Num primeiro momento, desavisadamente, poderíamos pensar que a legalidade é incompatível com o princípio da insignificância. Contudo, uma análise mais profunda é capaz de demonstrar a falsidade dessa conclusão.

O princípio da legalidade, não só em matéria penal, nasce e permanece até os dias hodiernos como uma garantia democrática para o cidadão. Ele corporifica de forma técnico-jurídica o ideal de segurança individual, admitindo como fato punível criminalmente apenas o que for enquadrável numa definição prévia formulada pelo legislador descrevendo condutas criminosas (LOPES, 1997).

A legalidade, traduzida pela máxima nullum crimen nulla poena sine lege, deve, então, ser entendida de acordo com o telos a que visa, qual seja, a garantia de liberdade e segurança do cidadão. Se assim é, não há como opor o princípio da legalidade à insignificância, eis que os dois princípios caminham em direção à liberdade, não o contrário.

Note-se que, apesar da instituição dessa garantia, não se quis dizer que tudo enquadrado no tipo penal seria tido como crime. Além do nullum crimen nulla poena sine lege praevia[18], nullum crimen nulla poena sine lege scripta[19], nullum crimen nulla poena sine lege stricta[20] e nullum crimen nulla poena sine lege certa[21], a evolução do princípio da legalidade chegou à construção da máxima nullum crimen nulla poena sine iuria, ou seja, não há crime nem pena sem a causação de um dano ou perigo de dano relevante a bem jurídico penalmente protegido (LOPES, 199769). É um postulado legitimador do direito penal, decorrente de sua visão sistemática, interpretando a legalidade com os demais princípios, máxime a intervenção mínima, subsidiariedade e seu caráter fragmentário.

Tudo isso implica, como já se fez alusão, numa mudança de visão metodológica apenas. Trata-se de enxergar a infração penal em seus aspectos substanciais, não mais partindo da lei como ponto de partida. Isso porque o delito surge na realidade, no plano concreto, e não no formalismo da lei. Esta, por sua vez, cumpre um papel secundário de operacionalizar, tornar maleável, manipulável o crime, que, repita-se, é um dado concreto surgido contexto social, histórico e político.

De fato,

o legislador constrói os modelos jurídicos a partir da realidade que vem a recortar, elevando ao plano abstrato ações que constituem um todo indecomponível, cujas partes se inter-relacionam e se polarizam em torno de um sentido, de um valor, que se apresenta negado pela ação delituosa (REALE JR., 2009:133).

Se essa lógica está correta, se o crime nasce na realidade é apenas é transformado em tipo penal, em modelo jurídico de conduta punível, só se pensará na lei se, efetivamente, o valor que levou o legislador a incriminar a conduta foi negado pela ação delitiva. Se isso inexistiu, a tipificação legal da conduta se torna irrelevante para o operador do direito, porque a aplicação da lei penal perderá a sua razão de ser.

Como se vê, então, a aplicação do princípio da insignificância não constitui uma negação do princípio da legalidade, mas tão somente uma reformulação e ampliação do modo de operação do direito penal, transcendendo o simples formalismo e dando atenção para uma visão sistemática e dinâmica da teoria do delito, voltando os olhos para os aspectos concretos da ação tida como delituosa.

1.7 Outras técnicas de descriminalização material

A seguir, mostrar-se-ão outras construções doutrinárias que, a exemplo do princípio da insignificância, têm o condão de superar a simples concepção formal do delito, criando técnicas de descriminalização. O rol não é nem pretende ser exaustivo; trata-se de breve exposição que mais visa estremar essas outras construções do princípio objeto deste trabalho do que outra coisa.

1.7.1 Adequação social

Deve-se a Welzel a formulação da teoria da adequação social, segundo a qual, em grossas linhas, estão excluídas da esfera de incidência do tipo penal as condutas que, embora formalmente típicas, não são mais objeto de reprovação social (MAÑAS, 1994:31). Essa regra geral de hermenêutica repousa na ideia de que o tipo penal é um modelo de conduta proibida, algo que vai de encontro à concepção de lícito, de aceitável na esfera social. Daí se segue, por certo, que não é possível interpretar o tipo penal como se estivesse alcançando condutas socialmente aceitas e adequadas (TOLEDO, 1994:131).

No exemplo dado por Toledo (op. cit.), um ferimento causado por um pontapé em uma partida de futebol, se o agente agiu dentro do que é normalmente aceito e tolerado em disputas dessa natureza, desde logo está excluído o crime em seu aspecto material. É uma conduta aceita por todos, logo não pode ser crime.

Um outro exemplo, talvez, seria a eutanásia em uma sociedade mais evoluída. Imaginemos que, superadas as ardentes polêmicas atuais envolvendo a eutanásia, chegue-se a um ponto em que haja certa unanimidade em considerá-la como correta, lícita. Nesse contexto, matar um familiar moribundo a pedido deste, apesar de formalmente se enquadrar no art. 121 do CP (matar alguém), não poderia ser considerado ação típica, segundo a teoria da adequação social.

A adequação social tem o condão de excluir a tipicidade, não sendo mera causa de justificação. Explica-se:

Não se deve confundir “adequação social” com “causa de justificação”, pois a ação aceita pela coletividade está desde o início excluida do tipo, já que se efetiva dentro do âmbito de normalidade social, ao passo que a ação amparada por alguma causa excludente da ilicitude só não é crime, não obstante socialmente inadequada, em razão de uma autorização especial para a realização do comportamento típico. (TOLEDO, op. cit.: 131-132)

Como anota Paliero (apud SANGUINÉ, 1990), a aplicação dessa teoria se mostra necessária, principalmente, nos casos de “esclerotização legislativa”, “quando os velhos esquemas normativos são dificilmente adequáveis, com os só instrumentos exegéticos, à realidade econômica-social em radical transformação”. É o que acontecia, por exemplo, com a exploração de motéis no Brasil antes da nova redação dada ao art. 229 do CP pela lei 12.015/2009 (MAÑAS, 1994:32).[22]

Embora Zipf (1979) considere em parte coincidentes os princípios da insignificância e a adequação social, e Welzel enxergasse sua teoria como suficiente para solucionar os delitos de bagatela, o certo é que há léguas de distância entre as duas coisas. Bem disse Mir Puig (apud SANGUINÉ, 1990:38): “A adequação social supõe a aprovação social da conduta enquanto o princípio da insignificância somente uma relativa tolerância por sua escassa gravidade”. Numa linguagem menos científica, diria que, segundo a adequação social, diz-se “sem problemas!” e, seguindo o princípio da insignificância, “deixa pra lá, não vale a pena”.[23]

1.7.2  Ausência de periculosidade social

A periculosidade social da ação – que não se confunde com a periculosidade social do autor, frise-se – é um conceito tido como núcleo essencial da teoria geral do delito, nos países socialistas (NUVOLONE, 1967). De acordo com essa visão, o fato punível criminalmente deve, além de conter os requisitos típicos descritos normativamente, revelar-se concretamente perigoso à sociedade em medida relevante (SOLNAR apud NUVOLONE, 1967). É, como se vê, outra forma de conceber materialmente o delito.

Em exemplo, diz (ou dizia) o art. 3º do Código Penal da antiga Tchecoslováquia: “o fato, cujo grau de periculosidade social é mínimo, não é punível, embora apresente os caracteres formais de crime”(MAÑAS, 1994:35). Semelhantes dispositivos mantêm (ou mantinham) países como a extinta República Democrática da Alemanha, no art. 3º seu CP de 1968; China, no art. 10 do CP de 1979; Rússia, no art. 7º do CP de 1960, dentre outros.

A diferença entre essa concepção material do delito e a nossa é de que o conceito de periculosidade social da ação possui caráter nitidamente ideológico e político, próprio dos regimes socialistas. Veja-se, como nota Ribeiro Lopes (1997), que nos sistemas socialistas é a classe no poder que estabelece quais fatos se tomam como socialmente perigosos ou não. E, permita o leitor a observação, faz-se classista um regime que pretendia em última instância abolir a dominação de classe...

Mesmo juristas marxistas reconhecem que existe certa inclinação axiológica do juízo de periculosidade social da ação, e admitem, ainda, haver maior interesse do regime socialista na personalidade antissocial ou político-social do agente que no caráter impessoal do crime praticado (GREGORI apud MAÑAS, 1994:37).

Não é apenas e tão somente a imprecisão conceitual que diminui o prestígio da concepção material socialista do delito, pois a mesma crítica – embora respondível[24] - pode ser feita ao princípio da insignificância, e nem por isso o rechaçamos nem deixamos de reconhecê-lo como princípio de direito penal. A grande crítica é que a periculosidade social da ação é uma ideia tão vaga e elástica que pode ser preenchida por juízos político-ideológicos segundo a vontade do poder estatal.

É importante que se estabeleça a precisa diferença entre a exclusão da materialidade do delito pelo princípio da insignificância e pela ausência de periculosidade social, nos ordenamentos em que esta é tida como elemento estrutural do delito. Pelo juízo de insignificância, embora, com efeito, o intérprete julgue subjetivamente o que é ou não insignificante, se o faz com um parâmetro bem claro: a ínfima afetação ou perigo de lesão a bens jurídicos não possui dignidade penal. Já segundo a concepção socialista, baseia-se o intérprete no perigo social da ação, cuja noção não é, nem de longe, intuitiva, mas manipulável.

1.7.3        Concepção realística do crime ou princípio da ofensividade

Ao passo que a teoria da insignificância seja criação da doutrina germânica, ela encontra seu correlato na doutrina italiana sob a formulação da concepção realística do delito, a qual está expressa na exigência da necessária ofensividade do delito (SANGUINÉ, 1990:39).

Essa concepção nada mais faz do que impor à interpretação das normas penais a evolução do princípio da legalidade à máxima nullum crimen sine iniuria, ou, como escrito no projeto preliminar de reforma do código penal italiano, da chamada Comissão Grosso, em 2000, “as normas incriminadoras não se aplicam aos fatos que não determinam uma ofensa ao bem jurídico” (D'ÁVILA, 2005:51). Vale dizer, embora formalmente típicas, segundo essa concepção, não é crime a conduta que não se mostra “boa o bastante” para ofender o interesse protegido pela norma penal (SANGUINÉ, 1990:39).

Afigura-se um tanto difícil a distinção precisa entre o princípio da insignificância e o da ofensividade, a começar que todos podem se basear na máxima nullum crimen sine iniuria. Em um primeiro momento, poderíamos mesmo pensar que as duas ideias se confundem, mas não é bem assim. Note-se: um crime de bagatela, ao qual se aplica o princípio da insignificância, fatalmente afeta, embora de modo pífio, o bem jurídico tutelado pela norma penal. Não se duvida que furtar uma laranja na feira livre, de uma forma ou de outra, diminui o patrimônio do feirante. Porém, não ofender o interesse tutelado pela norma é coisa bem diferente. Um exemplo dessa situação seria falsificar um documento de identidade por pura “pirraça” e guarda-lo em casa, sem uso algum. Perguntamos: houve um crime? Houve, mais precisamente o descrito no art. 297, caput, do CP. Mas, guardando o documento contrafeito em casa, qual foi a lesão à fé pública, bem jurídico tutelado pelo art. 297? Nenhuma. Descriminalizar-se-ia esta última conduta usando o princípio da ofensividade, não da insignificância.

1.7.4        Irrelevância penal do fato

Pela teoria da irrelevância penal do fato, certos delitos nos quais se preenchessem alguns requisitos, ainda que, formal e materialmente se constituíssem em injusto culpável, não mereceriam pena. A distinção entre esse princípio  e o da insignificância é feita por Gomes (2001), para quem o princípio da insignificância atuaria como excludente de tipicidade, ao passo que a irrelevância penal do fato seria uma causa de dispensa de pena.

A diferença básica entre a insignificância e a irrelevância penal do fato é que esta permite a valoração pessoal do agente, diferentemente do outro princípio. Explica-se: ou determinado fato ou é insignificante ou não é, não se tornando significante porque foi cometido por Tício reincidente ou por Mévio funcionário público.[25] Já seguindo a teoria da irrelevância penal do fato, que não se baseia na afetação do bem jurídico penalmente tutelado, mas sim na necessidade de pena, atendidos os requisitos de desvalor mínimo do resultado, conduta e culpabilidade, poder-se-ia dispensar a pena, com fundamento no art. 59 do CP, já que este fala em estabelecer a pena necessária para prevenção e repressão do delito (GOMES, 2001, grifo nosso).[26] Ora, se a pena se mostrar desnecessária para os fins que visa, sua aplicação perde a razão de ser.

Da distinção entre insignificância e irrelevância penal do fato surge a distinção terminológica a que já aludimos no item 1.3.

1.8 Delimitação entre o significante e o insignificante

Uma das críticas opostas ao princípio da insignificância é, como noticia Sanguiné (1990), é sua imprecisão conceitual. Vale dizer, o conceito de crime de bagatela é por demais impreciso, podendo levar à insegurança jurídica a aplicação indiscriminada do princípio da insignificância.

Essas críticas não prosperam, pois, embora difícil seja, é perfeitamente possível estabelecer critérios científicos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, para precisar o significante do insignificante.

Ensina-se que

A doutrina apresentou dois modelos destinados a concretizar o conceito do crime de bagatela. O "clássico" constituído pelos índices do "desvalor da ação", "desvalor do resultado" e "culpabilidade", para precisar a global insignificância e  com a possibilidade de graduação do ilícito penal. O modelo que utiliza todos os critérios de uma "antecipada medição da pena" (atualmente predominante na doutrina alemã), para estabelecer o "merecimento de pena". Optando pelo modelo clássico, Krümpelmann indica os critérios da "gravidade do dano" (o desvalor do evento) e a "modalidade da conduta" (desvalor da ação), bem como o "grau " e a "intensidade" da culpabilidade. (SANGUINÉ, 1990:45)

Partiremos primeiro do que o autor citado convencionou chamar de “modelo clássico”, estabelecendo como bagatelar o fato formalmente típico cujo desvalor da ação e o do resultado sejam ínfimos. Esclarece Silva (2004:153) que

Ocorre a insignificância do desvalor da ação quando a probabilidade da conduta realizada de lesionar ou pôr em perigo o bem jurídico tutelado apresenta-se material e juridicamente irrelevante, evidenciando que o grau de lesividade do fato típico praticado é qualitativamente e quantitativamente ínfimo em relação ao bem jurídico atacado. [...] Por seu turno, a insignificância do desvalor do evento ocorre quando o resultado do ato praticado é de significado juridicamente irrelevante para o Direito Penal; a gravidade do dano provocado não chega sequer a pôr em perigo o bem jurídico atacado.

Ainda assim, os critérios não se mostram claros o suficiente: o que é uma ação desvaliosa e quando um resultado é irrelevante? Essas perguntas permanecem em aberto, devendo ser respondidas pelo intérprete da norma penal incriminadora.

Demais disso, cada espécie delitiva comporta diferentes ângulos de avaliação sobre sua significância. Não se pode esperar que o ínfimo desvalor do resultado e da ação sempre concorram para tornar um delito de bagatela, pois nem todos os tipos penais incriminam resultados e nem todos dão importância para a ação, ainda que esta seja fundamental na teoria da tipicidade. Por exemplo, nos crimes contra a ordem tributária previstos no art. 1º da Lei 8.137/90[27], a insignificância se mede pelo valor do crédito tributário gerado em decorrência das condutas tipificadas no dispositivo, pouco importando qual foi praticada.[28] Já no crime de injúria, previsto no art. 140 do CP, o que se valora é a ação apenas, mesmo porque se trata de crime de mera conduta.

Partindo dessa premissa, tem-se que não é uma regra absoluta a concorrência do pequeno desvalor do resultado e da ação para se configurar um crime de bagatela, mas apenas em alguns tipos penais cujo desvalor de ambos é incriminado pela norma penal, embora algum prepondere. Pensamos que é valido o exposto por Sanguiné (1990:46) que, com base nas lições de Paliero, leciona:

Adquire importância também a estrutura legal do tipo, a partir das modalidades que adotam seus elementos objetivos. Se o tipo é construído sobre a mera causação do evento, se valoriza a medida da ofensa ao bem encarnado no evento; quando  o tipo dá destaque à forma de comissão de um evento ofensivo é valorizado o grau mais ou menos agressivo da conduta ocorrida, p.ex., no estelionato a modalidade do engano pode decidir sobre o caráter bagatelar do ilícito.

Outro critério para a aplicação do princípio da insignificância seria afastar a incidência do direito penal por “irrelevância do interesse tutelado”. Nessa ordem de ideias, antes de se analisar a lesão ou perigo de lesão, o próprio bem jurídico tutelado pela norma penal deve ser investigado, deve-se indagar sobre a real importância do bem para o direito penal, afastado sua condição de bem jurídico-penal se não for importante (MARTINELLI, 2008:22). Com a devida vênia, esse critério é descabido.

Como adverte Bitencourt (2011), não cabe ao juiz decidir se determinado bem possui dignidade penal ou não, eis que a seleção de bens jurídicos tuteláveis pelo direito penal (e como fazê-lo) é tarefa do legislador, não do poder judiciário, em homenagem ao princípio da separação dos poderes, insculpido no art. 2º de nossa Constituição Federal. Com toda a propriedade diz Cornejo (1997:51): “Si entendemos que un bien jurídico es aquel que merece protección por ser socialmente valioso, nunca podrá ser insignificante en sí mismo, sino que lo insignificante residirá en el grado en que se lo haya afectado”.[29]

Não olvidamos, todavia, que o legislador penal pode se exceder na incriminação e, desse modo, ofender a Constituição pátria. O porém é que, constatado esse fato, não se aplicará o princípio da insignificância, mas sim se fará um juízo de inconstitucionalidade, afastando a incidência da norma penal por motivos outros que não a bagatelaridade do ilícito.

Há, ainda, quem associe a tipicidade material à teoria da imputação objetiva[30], adotando como parâmetro a noção de risco criado. Para estes, será insignificante uma ação em que falte a criação de um risco proibido ou intolerável, ou quando esse risco criado for insignificante (CERQUEIRA, 2004:55). Diz-se que

Deparando-se com o caso concreto, o operador do direito deve analisar, primeiramente, se o risco criado pelo agente é relevante ao direito penal por meio de efetiva lesão. Se o resultado lesivo for de pouca relevância, o resultado não se encontrará no alcance da norma (MARTINELLI, 2008:26).

Para os adeptos da teoria da imputação objetiva, o enunciado faz todo o sentido. Nada obstante, não podemos resolver o problema da imprecisão conceitual do princípio da insignificância com a mesma imprecisão de que é dotada a ideia de risco criado...

Outro ponto colocado pela doutrina é que sempre se deve valorar a insignificância no caso concreto e pensando na vítima.  Diz Gomes (2009:19):

O furto de uma garrafa d’água, em princípio, é absolutamente insignificante. Mas para quem está no deserto do Saara não o é. Como se vê, ser insignificante ou não o fato depende de cada situação concreta. Uma bicicleta para um grande empresário é absolutamente insignificante. A mesma bicicleta para quem ganha R$ 200,00 por mês pode não ser.

É arriscada essa valoração. Vale a indagação feita em voto proferido pelo Desembargador Sylvio Baptista, em julgamento de embargos de declaração opostos perante a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) com relação a acórdão julgando a apelação 70007545148. Em uma peça mal humorada (e com razão de assim ser), o magistrado faz uma pergunta retórica ao Ministério Público, que pregava justamente a valoração da condição econômica da vítima para afastar a aplicação do princípio da insignificância: “E   se   o ladrão   furtar   cem   mil   reais   de   um   grande   banco,   teremos   um   crime insignificante?”. Se a resposta for positiva e, consequentemente, a premissa de que se deve pensar na condição econômica da vítima for válida, estaremos diante de um teratológico inaceitável.

Pensamos estar com a razão Zaffaroni, Alagia e Slokar (2000:471), para quem uma lesão usualmente insignificante pode se tornar insignificante para o concreto sujeito passivo quando alguma circunstância particular deste ou de sua situação lhe cobre significação para sua existência, citando como exemplo uma lata de soda no deserto, que não é o mesmo que um café em Paris. Sendo assim, determinada lesão, em geral, ou é insignificante ou não é, independentemente da vítima; porém, a lesão pode se tornar significante, como no exemplo citado. Isso é bem diferente de usar as condições pessoais da vítima sempre como parâmetro para medir a insignificância. Pensando do nosso modo, estabelece-se que certos atos são de bagatela como regra, independentemente da condição econômica da vítima, mas, por exceção, as tradicionais bagatelas podem deixar de sê-lo.

Encerrado esse ponto, é interessante anotar certo entendimento expresso no acórdão do TJRS anteriormente citado. Assinala-se no aresto que, dentre outros fatores, a identificação de uma infração bagatelar depende da verificação, quanto agente, da “a ausência de ambição de sua parte em atacar algo mais valioso ou que aparenta ser”, como que erigindo um desvalor da intenção (CERQUEIRA, 2004) como critério para a aplicação do princípio da insignificância. Com a devida vênia, trata-se de um equívoco dos grandes.

Ora, se o fundamento da descriminalização mediante o princípio da insignificância é a ínfima afetação ao bem jurídico tutelado pela norma penal, que importância real tem a intenção do agente? Se não houve afetação digna de aplicação do direito penal, encerra-se a discussão. E não custa lembrar o velho brocardo: cogitatio nemo poena partitur. Não estando presentes os elementos objetivos e materiais do crime, pouco importa a presença de seu elemento subjetivo.

Resta, por fim, comentar sobre o que a jurisprudência pátria vem entendendo como vetor para aferição do princípio da insignificância. Os vetores usados vêm sendo quatro, desenhados no julgamento do habeas corpus (HC) 84.412-SP, julgado em 19.10.2004 pela segunda turma do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Celso de Mello. Na ocasião, decidiu-se que a desconsideração da tipicidade material pelo princípio da insignificância[31] dependia de: a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesãojurídica provocada.

Como se vê, os itens a e d dizem respeito, respectivamente, ao que chamamos de desvalor da ação e do resultado. Até aí, perfeito aresto. O problema são os itens b e c. O primeiro parece confundir a teoria da periculosidade social da ação, de cunho socialista, com o princípio da insignificância, que tem construção diversa, como já nos referimos. O “reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento” merece algumas reflexões.

Grau de reprovabilidade não pode ser tomado como sinônimo de culpabilidade do agente. Isso porque a insignificância se baseia na afetação do bem jurídico tutelado pela norma penal, e não no autor do fato formalmente típico. O juízo de reprovabilidade a que se refere a jurisprudência, então, só pode ser o resultado da valoração racional dos critérios de aferição da bagatelaridade, que consideramos ser o desvalor da ação e do resultado. Deve-se compreender da seguinte maneira: será de bagatela o delito se o juízo de reprovabilidade do fato, avaliados apenas o desvalor do resultado e da ação, resultar ínfimo, não se confundindo esse juízo com o de culpabilidade.

Pondo as coisas nesses termos, temos que os vetores apresentados no HC 84.412-SP, excluída a ideia de periculosidade social da ação, são condizentes com a formulação teórica da insignificância, desde que a reprovabilidade do comportamento seja entendida conforme a correção que fizemos supra.[32]

Feitas as considerações necessárias, podemos criar uma certa fórmula geral para fugir da casuística e delimitar o significante e o insignificante. Para saber se se tem em foco um delito de bagatela, deverá o intérprete: a) considerar que seu juízo sobre a relevância material da conduta terá por nortes apenas e tão-somente o desvalor do resultado e da ação; b) identificar, no tipo penal, qual o bem jurídico tutelado e a forma pelo qual é tutelado, de modo a precisar se o tipo dá mais relevância à ação ou ao resultado, desprezando o juízo de desvalor da ação ou do resultado se esta ou aquele não for relevante para configuração do tipo penal; c) proceder à avaliação dos desvalores mencionados, de acordo com o tipo, verificando apenas o grau de afetação ou de perigo de lesão ao bem jurídico protegido pela lei penal; d) após essas verificações, informadas sempre pelos princípios de direito penal, concluir se os dissabores da pena são proporcionais e necessários ao fato formalmente típico.


1.9 Insignificância absoluta e relativa?

Encontramos em Ackel Filho (1988:76) uma interessante classificação. Diz o autor:

A Insignificância de que cuida o princípio em estudo [o da insignificância] pode ser classificada em duas espécies: insignificância propriamente dita (absoluta) e insignificância imprópria (relativa).

A primeira é a que exclui a tipicidade. O fato, por deveras ínfimo, não chega a expressar valoração digna de tutela da norma penal, através da subsunção em um tipo. Não há reprovabilidade. A segunda espécie pertine a outros casos de atuações mínimas, de minguada importância que, embora formalmente típicas, tem a sua antijuridicidade esvaziada, ensejando a sua contemplação pela norma penal.

WESSELS destaca a insignificância relativa ao cogitar "do fato que, embora em si não seja um delito de bagatela, é irrelevante quando comparado a outro perseguido pelo autor", ressaltando que "isso pode acontecer quando a propositura da ação penal possa trazer até maiores prejuízos ou desvantagens à República do que o arquivamento do processo". Certamente que um ligeiro entrevero entre marido e mulher, com agressão mútua, em que já tenha ocorrido plena reconciliação se insere no capítulo da insignificância. Nessa hipótese, e em outras análogas, como há tipicidade, pode-se invocar a analogia in bonam partem para integrar a norma penal, com mais uma causa de exclusão da antijuridicidade, decretando-se a absolvição. (1988:76, grifo no original).

Será que essa classificação tem razão de ser? Vejamos.

Classificação é uma “operação de repartir um conjunto de objetos (quaisquer que sejam) em classes coordenadas ou subordinadas, utilizando critérios oportunamente escolhidos” (ABBAGNANO, 1998:147). O critério usado numa classificação de absoluto e relativo é o condicionamento ou o limite do classificado a um dado elemento externo. Absoluto, segundo o uso comum e filosófico, significa “o estado daquilo que, a qualquer título, é desprovido de condições e de limites, ou (como substantivo) aquilo que se realiza a si mesmo de modo necessário e infalível” (ABBAGNANO, 1998:4). Relativo, por sua vez, enquanto oposto de absoluto, é algo que vale apenas em determinadas circunstâncias ou condições e não vale fora delas (ABBAGNANO, 1998:846).

Seguindo os conceitos expostos, uma insignificância absoluta, um delito insignificante de modo absoluto, seria aquele sobre o qual discorremos em todo este trabalho, ou seja, aquele fato que, apesar de formalmente típico, não afeta ou põe em perigo de modo relevante o bem jurídico protegido pela norma penal. Isso seria insignificante incondicionalmente. Condicionalmente insignificante, isto é, de insignificância relativa, seria, na linha dada por Wessels e citada por Ackel Filho (1988), fatos não bagatelares em si, mas de igual forma desinteressantes para o direito penal.

A classificação faria todo o sentido se não fosse um pecado metodológico. Explica-se: a formulação da teoria da insignificância, tal como exposto por Roxin (2002) e seguida em seu rigor, não pretende abarcar em si os fatos ditos como relativamente insignificantes. A insignificância consiste, pedindo perdão ao leitor pela repetição, na ínfima afetação ou perigo de lesão à objetividade jurídica resguardada pelo tipo penal, e não no desinteresse penal apenas ou na desnecessidade da pena. Para os casos em que o fato é desinteressante para o direito penal mas houve relevante afetação ou perigo para o bem jurídico-penal, o princípio que incidirá não é o da insignificância, e tampouco pode se chamar esse fato de insignificante. Incidirá, em tese, o princípio da irrelevância penal do fato (item 1.7.4, supra).

Em síntese, conclui-se que a classificação não tem razão de ser e que inexiste insignificância relativa, apenas absoluta. Em outras palavras, ou o fato é insignificante ou não é.


1.10 Natureza jurídica

Conquanto quase unanimemente a doutrina brasileira reconheça o princípio da insignificância como uma excludente de tipicidade material, autores há que nele enxergam uma excludente de ilicitude, com base na ideia de antijuridicidade material. Uma terceira corrente, da qual encontramos apenas um adepto (CORNEJO, 1997), o vê como uma eximente de pena, fora da tipicidade e da antijuridicidade.

Essa divergência é a razão do presente trabalho, que tem como problema resolvê-la. A seguir, discorrer-se-á brevemente sobre cada uma das visões e suas justificativas, expondo-se brevemente a visão de cada autor. A solução, contudo, só será dada ao final desta investigação teórica.

A doutrina brasileira, como já dito, entende quase unanimemente que o princípio da insignificância é excludente da tipicidade em seu sentido material. Seguem essa linha, por exemplo, Vico Mañas (1994)[33], Ribeiro Lopes (1997), Gomes (2009), Silva (2004)[34] e Toledo (1994). Na doutrina estrangeira, é o que entende Roxin (2002)[35], Zaffaroni (1981)[36], Zipf (1979) e Garcia Vítor (2000).

Vico Mañas, em artigo específico sobre o tema, defende que o correto posicionamento da insignificância está na tipicidade. In verbis:

[...] a natureza jurídica do princípio da insignificância só pode ser a de causa supralegal de exclusão da tipicidade, de acordo com a concepção material desta. É instrumento de interpretação restritiva do tipo penal, consentânea, portanto, com a garantia constitucional da legalidade. Não afasta a ilicitude pela simples razão de que a irrelevância da conduta, pelo desvalor da ação ou do resultado, pode torná-la estranha ao direito penal, mas não leva necessariamente ao  reconhecimento da juridicidade do fato, o que romperia o correto entendimento da ilicitude como contrariedade ao ordenamento jurídico em senti-do amplo. A pequena lesão ao bem jurídico deve ser considerada atípica na sua essência, não constituindo tal postura violação à natureza descritiva do tipo penal, como sustenta Guzmán Dalbora, mas sim a confirmação de seu papel representativo da natureza subsidiária e fragmentária do direito penal. A singeleza ou pequenez da ofensa não retira a sua ilicitude, permitindo, ao contrário, a tão desejada e saudável interferência de outros mecanismos de controle social, jurídicos ou não. (MAÑAS, 2003:150)

Por ora, guardemos este argumento. A solução para o problema, conforme já avisado, só será dada ao final da investigação.

Guzmán Dalbora e Silva Franco enxergam o princípio da insignificância agindo na ilicitude, não na tipicidade[37]. Para o primeiro autor, fazer considerações valorativas no âmbito da tipicidade seria corromper a função eminentemente descritiva que essa categoria do delito possui, daí porque a resposta para o questionamento sobre a insignificância de algo só poderia estar na antijuridicidade (GUZMÁN DALBORA, 1996).

Por fim, Cornejo (1997) formula um raciocínio segundo o qual o princípio da insignificância atua como eximente de pena. Sustenta que “ainda que fossem nímias as condutas que estão descritas formalmente por um tipo penal, não podem ser consideradas atípicas” (CORNEJO, 1997:72).[38] Partindo dessa premissa e considerando que a insignificância como excludente de ilicitude é incompatível com o sistema penal argentino, o autor faz a conclusão a qual aludimos.

Expostas essas posições, resta ao operador pesquisar qual delas se adapta mais ao direito brasileiro e à nossa cultura jurídico. Neste breve trabalho, como já mencionado acima, não há espaço para tal incursão, que exige estudos aprofundados sobre as raízes dogmáticas da teoria da tipicidade e da ilicitude.

Aqui encerramos nosso ensaio, desejosos de que o leitor já possa, a partir de agora, saber do que se trata o princípio da insignificância e como manejá-lo adequadamente.


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TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.

TRILLO NAVARRO, Jesús Pórfilo. Criminalidad de bagatela: descriminalización garantista. La Ley Penal: revista de derecho penal, procesal y penitenciario, Madrid, v. 5, n. 51, p.17-45, jul./ago. 2008.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Tratado de derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 1981. v. 3.

ZIPF, Heinz. Introducción a la política criminal. Madrid: Edersa, 1979.


Notas

[1] Ou fatos insignificantes, como prefere Abel Cornejo (1997). Luiz Flávio Gomes (2009) prefere chamar de infração bagatelar, porquanto, aplicado o princípio da insignificância, não há falar em crime.

[2] Assim como Assis Toledo (1994), não usamos a expressão tipo legal como diferente de tipo penal, algo feito por Zaffaroni em sua teoria da tipicidade conglobante, a ser examinada neste trabalho.

[3] Citamos esse exemplo conscientes de que os tribunais superiores, atualmente, entendem inaplicável o princípio da insignificância a delitos de moeda falsa, salvo se se tratar de falsificação grosseira, caso em que a conduta é desclassificada para estelionato. Discorreremos mais sobre o tema no capítulo sobre a jurisprudência brasileira acerca insignificância.

[4] Esses são apenas alguns dos princípios que regem o direito penal, não todos. Demais disso, conforme será demonstrado, a fragmentariedade não é um princípio.

[5] Anteriormente, embora inspirado na ideia de antijuridicidade material, como relata Zaffaroni (1981:554), Roxin mencionou a insignificância em seu artigo Vewerflichkeit und Sittenwidrigkeit als unrechtsbergrundende Merkmale im Strafrecht, em Juristische Schulung 1964, p. 373 e ss. (pp.376/77).

[6] Sobre o que discorremos no estudo da tipicidade e de modo disperso ao longo do trabalho.

[7] Ver nota 5.

[8] Outros conceitos para crime de bagatela são apresentados, como, por exemplo, o que nos dá Gomes (1996:91), apoiado em lições de Krümpelman: “a infração que individualmente considerada produz lesão ou perigo de lesão de escassa repercussão social, razão pela qual não se justifica uma ‘reação’ jurídica grave”. Válido também o de Palazzo (apud TRILLO NAVARRO, 2008:23): “um hecho que, aun siendo típico conforme al tipo abstracto se revela en concreto carente del desvalor que debería expresar o encarnar esse tipo delictivo”.

[9] Na obra, o autor usa o termo infração bagatelar, considerando que, se nesses fatos não se configura nada típico, não haveria porque falar em crime. Concordamos, mas preferimos usar a expressão crime de bagatela, justamente porque crime conota a ideia de infração penal, ao passo que simplesmente infração pode ser a desobediência a norma de qualquer espécie, seja tributária, civil, administrativa etc.

[10] A expressão é de Bandeira de Mello (apud SILVA, J. A. da, 2011:91), que define princípio jurídico como “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico”.

[11] Valores são “símbolos de preferência para ações indeterminadamente permanentes, ou, ainda, fórmulas integradoras e sintéticas para a representação do sentido de consenso social” (FERRAZ JR., 2010:86).

[12] Isso, aliás de há muito foi estabelecido na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, quando diz, em seu artigo 8º: “º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”(grifo nosso).

[13] No mesmo sentido, cf. Luisi (1991).

[14] Greco (2006:171), porém, apoiado em recente corrente doutrinária encabeçada por Tiedemann, na Alemanha, noticia que nem sempre é verdade a premissa de que o direito penal impinge a sanção mais grave do ordenamento jurídico. Se pensarmos, por exemplo, que a alguns crimes se aplicam penas de prestação pecuniária leve (como as infelizes cestas básicas), será possível constatar que, no âmbito civil e administrativo, algumas penas são bem piores, como indenizações altíssimas, multas, perdas de cargo público, proibições de licitar etc. E, diferentemente dos outros ramos do direito, o direito penal dispõe de muito mais garantias individuais. Propõe o autor, então, que o princípio seja encarado como uma regra de ônus argumentativo, “que impõe sobre aquele que defenda a intervenção do direito penal o ônus ou de provar que outros ramos do direito são mais graves, ou de que o direito penal é, apesar de mais grave, estritamente necessário” (GRECO, 2006:173, grifo nosso).

[15] Tradução livre. No original: “se requiere que las condiciones de a propia convivencia social resulten dañadas de modo intolerable. […] Las normas penales pueden emplearse como reguladores del acontecer social sólo cuando lo exijan forzosamente necesidades esenciales de protección de la colectividad e intereses vitales del individuo.”

[16] Tradução livre. No original: ““el Derecho penal no sanciona todas las conductas lesivas de bienes jurídicos, sino sólo las modalidades de ataque más peligrosas para ellos”.

[17] Falamos aqui de proporcionalidade em sentido estrito. Há quem entenda a proporcionalidade em um trinômio composto por necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, do qual falamos. Cf. Magalhães Gomes (2003) e Bianchini (2002:83).

[18] Não há crime nem pena sem lei anterior que os defina – princípio da anterioridade da lei penal.

[19] Não há crime nem pena sem lei escrita, ou seja, direito consuetudinário não pode ser usado para criar ou agravar punições.

[20] Não há crime nem pena sem lei estrita, proibindo-se analogias in malam partem.

[21] Não há crime nem pena sem lei certa, precisa, definida, delimitando claramente a conduta punível.

[22] Em sua redação anterior, sob o nomen iuris de “casa de prostituição”, mantido na redação atual, o art. 229 definia como crime “Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente”, cominando pena de reclusão de dois a cinco anos e multa. A exploração de motéis entrava formalmente no manter lugar destinado a encontros para fim libidinoso. A redação atual fala em manter estabelecimento onde ocorra exploração sexual, expressão bem mais feliz do que a anterior.

[23] Retratando bem essa ideia de “deixa pra lá”, Zaffaroni, Alagia  e Slokar (2000:471) citam uma suposta positivação do princípio da insignificância, feita no § 95 do Código Penal da Índia, sob o nomen iuris de Triviality, in verbis: “Nothing is a offense by reason that it causes, or that is intended to cause, or that it is known to be likely to cause, any harm, if that harm is so slight that no person of ordinary sense and temper would complain of such harm” (Nada é um crime por motivo que causa, ou que se destina a causar, ou que é conhecido por ser susceptível de causar, qualquer dano, se esse dano é tão pequeno que nenhuma pessoa de senso e temperamento comuns iria reclamar de tal dano). Dissemos que é uma suposta positivação por não haver certeza quanto à construção desse dispositivo com base na teoria da insignificância e não em costumes locais ou outras fontes do direito..

[24] Cf. as respostas às críticas feitas ao princípio da insignificância em Mañas (1994:59-70)

[25] Citamos a reincidência e a condição de funcionário público porque denotam, via de regra, maior culpabilidade do agente.

[26] Diz assim o art. 59: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível”.

[27] Diz assim o dispositivo citado: “Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:  I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal; III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável; IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato; V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”

[28] Discorreremos mais sobre o tema quando analisarmos alguma jurisprudência, no item 6.7. Adiante-se, contudo, que há certa pacificação dos tribunais no sentido de que, se o valor do crédito tributário gerado no auto de infração for inferior a dez mil reais, trata-se de crime de bagatela, usando como parâmetro objetivo o art. 20 da Lei 10.522/02. O mesmo raciocínio se aplica ao crime de descaminho, como também veremos no item 6.3.

[29] Tradução livre: “Se entendermos que um bem jurídico é aquele que merece proteção por ser socialmente valioso, nunca poderá ser insignificante em si mesmo, senão que o insignificante residirá no grau com que seja afetado o bem”.

[30] Nos dizeres de Damásio E. de Jesus (2000:33), imputação objetiva significa “atribuir a alguém a realização de uma conduta criadora de um relevante risco juridicamente proibido e a proibição de um resultado jurídico”. Com efeito, como diz o autor no mesmo parágrafo, “trata-se de um dos mais antigos problemas do direito penal, qual seja, a determinação de quando a lesão de um interesse jurídico pode ser considerada ‘obra’ de uma pessoa”.

[31] Cf. item 1.1, in fine.

[32] Souza (2009) se deu ao trabalho de, via correio, questionar o próprio Claus Roxin sobre a pertinência dos vetores criados pelo STF. Na resposta, o autor disse que “os critérios elencados pelo STF na essência estão de acordo com o que se entende por insignificância” (SOUZA, 2009:26).

[33] O qual, aliás, intitulou sua obra pioneira no Brasil como O princípio da insignificância como excludente de tipicidade no direito penal, fruto de sua dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo.

[34] Este, porém, com base na classificação da insignificância feita por Ackel Filho e abordada no item 1.9 supra, vê o princípio da insignificância como tendo natureza ubíqua, ora excluindo a tipicidade, ora a ilicitude. Como visto, a classificação não tem razão de ser e, portanto, o entendimento da natureza ubíqua não pode ser acatado.

[35] Ele não diz explicitamente, mas, considerando formular o princípio como vetor de interpretação restritiva do tipo penal, é implícito que vê o princípio agindo no tipo.

[36] Esclareça-se que este autor encaixa o princípio dentro de sua teoria da tipicidade conglobante (diversa da tipicidade material), a ser abordada mais a frente.

[37] O segundo autor, sustentava esse ponto de vista em suas publicações anteriores a 1994, após o que mudou de posição e acatou o entendimento de que a insignificância atua na tipicidade, como relata Vico Mañas (2003).

[38] Tradução livre. No original:” aunque fuesen nimias las conductas que están descriptas formalmente por un tipo penal, no pueden ser consideradas atípicas.”


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Leilson Roberto da Cruz. Teoria geral da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3627, 6 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24616. Acesso em: 26 abr. 2024.