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O surgimento do princípio da juridicidade no Direito Administrativo

O surgimento do princípio da juridicidade no Direito Administrativo

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O histórico da legalidade administrativa demonstra que ela nunca foi aplicada da forma em que foi idealizada. A crise da lei explica a perda do prestígio da legalidade como instrumento legítimo de manifestação da vontade popular.

1. A gênese da legalidade administrativa

O princípio da legalidade administrativa foi forjado a partir da Revolução Francesa, com a subordinação do poder à lei. Na monarquia absolutista, não existiam limites à manifestação de vontade do rei, que justificava seu poder por origem divina. O poder estava, então, subordinado às leis de Deus e não às leis do homem. Já no Estado de Direito, inaugurado com as revoluções burguesas, o fundamento do poder era a vontade do povo.

Pode-se afirmar que a legalidade administrativa foi fruto do iluminismo e das revoluções do século XVIII (ARAGÃO, 2001; MOREIRA NETO, 2009). Os teóricos deste período tiveram a pretensão de que a lei seria um produto da razão, capaz de regular todos os fatos relevantes da vida administrativa, possuindo legitimidade por ser emanada pelos representantes do povo. Na Europa, desenvolveu-se um positivismo legalista, que, assumindo o pensamento de Montesquieu, vinculava a ação jurisdicional e administrativa aos dispositivos legais (BINENBOJM, 2008). A Revolução Francesa dotou a lei de uma superioridade moral sagrada, caracterizada como a manifestação da vontade dos verdadeiros donos do poder: o povo. Clemerson Merlin Cléve (2011) afirma que:

Entendiam os revolucionários que o parlamento produziria a lei pelo trabalho dos representantes da nação orientados pela razão. Na medida em que a lei era, a um tempo, regra criada pela nação pelos seus representantes (questão de forma) e orientada pela razão (questão de fundo), não poderia atentar contra a justiça ou contra a liberdade. (2011, p. 46)

Neste contexto, cabia ao juiz e ao administrador público aplicar a lei ao caso concreto, sem uma margem de livre apreciação ou discricionariedade. A razão para este apego à lei é uma reação ao regime absolutista. No antigo regime, o monarca tinha vasta competência legislativa e administrativa. Além disso, o judiciário, no período monárquico francês, era subserviente ao rei. Com a tripartição dos poderes, pretendeu-se dotar os representantes mais significativos do povo (o legislativo) do poder de definir as normas da vida em sociedade.

Com fundamento na tripartição de poderes, verificou-se na França o desenvolvimento dos tribunais administrativos, competentes para julgar litígios que envolvessem a Administração. Além disso, não existia naquele país uma corte constitucional (pelo menos até a reforma constitucional de 2008[1]). Para os franceses, era inaceitável a ideia de o Poder Judiciário invalidar uma lei emanada pelos representantes do povo, mesmo que contrária à Constituição. Somente o Poder Legislativo poderia invalidar seus próprios atos. Esses dois fatos demonstram a força do princípio da legalidade na França e o papel de destaque destinado Legislativo.

Situação distinta ocorre na Inglaterra e nos Estados Unidos. Na Inglaterra vigora a preponderância do juiz no contexto da common law. Por isso, verifica-se nesse país o desenvolvimento do princípio da razoabilidade[2]. Nos Estados Unidos, marcado pela desconfiança em relação ao parlamento inglês, que no período colonial impôs às colônias inglesas leis odiosas e exploratórias, verifica-se um maior controle ao Poder Legislativo, com a invenção do veto presidencial e da possibilidade da judicial review no controle da constitucionalidade das leis.

Mesmo com a mitigação da lei na common law, o princípio da legalidade da administração passou a ser de grande relevância para a atuação da Administração Pública.

Desenvolveu-se na Europa continental, em especial na Alemanha, o princípio da legalidade da administração sob dois aspectos: o princípio da preeminência (ou preferência) da lei e o princípio da reserva da lei. O princípio da preeminência da lei consiste, em poucas palavras, na impossibilidade de um ato administrativo contradizer uma lei. Ou ainda, que as leis podem disciplinar qualquer matéria já disciplinada por ato regulamentar, pois a lei é um instrumento que prefere aos demais. Já o princípio da reserva da lei determina que certas matérias apenas podem ser disciplinadas por lei, sendo vedado ao Executivo regulamentá-las. Assim, mesmo no silencio da lei, não pode a Administração exercer atividade normativa. Tradicionalmente, essas matérias sujeitas à reserva da lei estão relacionadas com a liberdade e a propriedade (XAVIER, 1972)[3].


2.  A discricionariedade

Apesar desta classificação da legalidade administrativa, é importante adentrar na discussão sobre legalidade e discricionariedade para verificar que a sujeição da Administração à lei ocorria de forma muito limitada. É necessário demonstrar ainda, a diferença do conceito de discricionariedade no período exatamente posterior às revoluções burguesas e o seu conceito atual.

A palavra discricionariedade nasceu no Estado Absolutista como expressão da vontade do soberano, que era a lei suprema. Após as revoluções, a discricionariedade encontrou seu espaço de atuação na ausência da lei. Vigorava assim, uma vinculação negativa à lei, consistente na vinculação apenas quando existia uma lei que regulasse a matéria. Neste caso, não poderia a Administração agir de forma diferente. No entanto, apesar de todo ideário do princípio da legalidade administrativa, “a normatização integral dos atos administrativos sempre foi exceção” (BINENBOJM, 2008, p. 197). Com fundamento na eficiência da atuação estatal, formou-se a ideia de que, quando não existisse regramento legal, a Administração poderia agir com discricionariedade, que na noção clássica era tida como intocada. O sentido da discricionariedade era tido “como o poder conferido à Administração para agir nos espaços livres da regulamentação da lei.” (BINENBOJM, 2008, p. 197).

Por isso, a “sujeição da Administração à lei, operava somente em uma franja estreitíssima da sua atividade, uma vez que a porção mais substancial desta última restava completamente à margem da legalidade e da correspondente fiscalização jurisdicional.” (BINENBOJM, 2008, p. 138).

Somente mais tarde a discricionariedade veio assumir a feição atual, consistente em reconhecer uma liberdade de opção à Administração conforme um dos comportamentos que a lei prescreve (GASPARINI, 2006). Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a discricionariedade é entendida como:

[...] uma técnica jurídica que se destina a sintonizar a ação administrativa concreta à ideia de legitimidade contida na lei, o que a assemelha, de certo modo, ao instrumento da delegação, outorgado pelo legislador ao administrador público, na própria lei, para que este possa fazer a necessária integração casuística, na ocasião e no modo mais adequado, para satisfazer a finalidade pública legalmente imposta. (MOREIRA NETO, 2009, p. 107)

Além disso, a discricionariedade destina-se à opção do mérito do ato administrativo, de acordo com a conveniência e oportunidade. Entretanto, a discricionariedade não se confunde com arbitrariedade, devendo o ato ser exercido com sujeição à lei, com finalidade pública e emanado por autoridade competente (GASPARINI, 2006).

O conceito atual de discricionariedade se adéqua melhor ao princípio da legalidade que a discricionariedade do período após as revoluções liberais. Conforme restou demonstrado, a discricionariedade daquele tempo acabava por mitigar a legalidade, permitindo uma sobrevida à discricionariedade absolutista no silencio da lei.


3. A legalidade administrativa clássica

Continuando com a evolução do conceito da legalidade administrativa, após o normativismo kelseniano, verificou-se a radicalização do princípio da legalidade da Administração. A previsão legal passou a ser exigida como pressuposto de atuação da Administração (positive Bindung)[4].

No Brasil, diversos autores são representantes deste pensamento. Em sua clássica definição do princípio da legalidade, Helly Lopes Meirelles (2006) afirma que “enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.” Esse pensamento leva a conclusão de que o administrador é apenas um autômato cumpridor das disposições legais. No silêncio da lei, não seria lícito à Administração Pública executar nenhum ato. Celso Antônio Bandeira de Mello (1993) afirma que somente a lei pode inovar, criando ou restringindo direitos.

Diógenes Gasparini (2006) afirma que a Administração está presa aos ditames da lei. E vai além ao afirmar que:

De fato, este (o particular) pode fazer tudo que a lei permite e tudo que a lei não proíbe; aquela (a Administração) só pode fazer o que a lei autoriza e, ainda assim, quando e como autoriza. Vale dizer, se  lei nada dispuser, não pode a Administração Pública agir, salvo em situações excepcionais (grave perturbação da ordem e guerra quando irrompem inopinadamente).

Esse pensamento de Gasparini, literalmente, congela a atuação da Administração aos ditames legais e representa o pensamento dominante do século XX. Também Carvalho Filho (2007) filia-se a esse conceito do princípio da legalidade, citando a clássica definição de Helly Lopes Meirelles.


4. O princípio da juridicidade

Antes de adentrar no conceito do princípio da juridicidade, necessário se faz colocar as críticas de Paulo Otero e Gustavo Binenbojm sobre a gênese do direito administrativo. Isso se faz necessário para a compreensão da contradição existente no princípio da legalidade da Administração e a necessidade e sua superação pelo princípio da juridicidade.

Paulo Otero (2003) aponta dois equívocos na origem do direito administrativo. O primeiro deles refere-se à criação do direito administrativo pela jurisprudência do Conselho de Estado.  O autor luso afirma que “um activismo normativo do Conseil d’Etat se mostra totalmente incompatível com uma concepção mecanicista de aplicação judicial da lei (...) (OTERO, 2003, p. 269)”. Ora, como poderia ser o direito administrativo objeto de criação do Conseil d’Etat se esse mesmo órgão pertencia ao Executivo? Na verdade, torna-se claro que era o Executivo quem criava suas próprias normas em detrimento do Legislativo.

O segundo equívoco apontado pelo autor mencionado é a ilusão garantística da gênese do direito administrativo. Essa ilusão consiste em entender que o direito administrativo nasce quando o poder se submeteu à lei e que o sistema da jurisdição administrativa serviria para proteger o cidadão contra a Administração. Paulo Otero denuncia que a criação da jurisdição administrativa revela-se uma fuga do Poder Executivo ao direito comum e ao Judiciário. Além disso, aponta que a pretensa ruptura com o antigo regime neste ponto não ocorreu, visto que esse regime foi quem construiu um sistema em que a própria Administração se julga. Nas palavras de Otero (2003):

A invocação do princípio da separação de poderes foi um simples pretexto para que, visando um objetivo político concreto de garantir um efectivo alargamento da esfera de liberdade decisória da administração Pública, tornando a sua actividade imune a qualquer controlo judicial, se construísse um modelo de contencioso em que a Administração se julgaria a ela própria: há aqui uma perfeita continuidade entre o modelo de controlo administrativo adoptado pela Revolução Francesa e aquele que vigorava no Ancien Régime, pois, tal como Tocqueville afirmava “nesta matéria apenas encontramos a fórmula; ao Antigo regime pertence a ideia.” (2003, p. 275)

Para Binenbojm (2008), a criação do direito administrativo pelo Conseil d’Etat subverte  “os dois postulados básicos do Estado de Direito em sua origem liberal: o princípio da legalidade e o princípio da separação do poder.” Esse autor indica que o arcabouço ideológico da Revolução Francesa serviu para subtrair a Administração do julgamento do Judiciário. Como consequência disto, ao contrário de aumentar as garantias do cidadão, as diminuiu. O cidadão não poderia ter acesso a um juiz imparcial, equidistante e independente.

Essa introdução foi necessária para mostrar que, apesar de toda ideologia democrática e republicana instaurada pela Revolução Francesa, na prática, não foi possível uma desvinculação total do regime absolutista. Ou melhor, não foi possível administrar o Estado com vinculação absoluta na vontade popular expressada pela lei. Foi necessária a invenção de uma normatividade específica fora do controle do Poder Judiciário para possibilitar a gestão da Administração Pública.

A noção do princípio da legalidade do Estado Liberal sofre uma transformação fundamental na passagem para o Estado Social. Essa transformação é fruto do agigantamento do Estado operado pelas novas funções demandadas pela população. O Estado deixa de ser um observador para se tornar protagonista na garantia de uma melhor qualidade de vida aos cidadãos. Levando em conta que já no Estado Liberal não foi possível a realização da legalidade idealmente formulada, no Estado Social essa contradição tornou-se ainda mais explícita.

Segundo Maria João Estorninho (1999) a “primeira dessas novas características traduz-se no fato de a idéia de subordinação à lei ser complementada ou mesmo substituída pela idéia de subordinação ao direito”. No Estado social, o princípio da legalidade passa a ser mais abrangente, incluindo a noção do

princípio da juridicidade da administração, entendido como a subordinação ao direito como um todo, implicando submissão a princípios gerais de direito, à Constituição, a normas internacionais, a disposições de caráter regulamentar, a atos constitutivos de direitos, etc. (ESTORNINHO, 1999)

Continua a autora portuguesa elencando o segundo traço fundamental da evolução do princípio da legalidade, afirmando que, ao contrário da ideia da lei como limitadora da atuação estatal no Estado Liberal, atualmente, a lei é vista como fundamento da atividade administrativa.

Sobre essa evolução do princípio da legalidade, Maria João Estorninho (1999) conclui que:

Em suma, é este hoje o sentido do nosso ordenamento jurídico: o princípio da legalidade deixa assim de ter uma formulação unicamente negativa (como no período do Estado Liberal), para passar a ter uma formulação positiva, constituindo o fundamento, o critério e o limite de toda actuação administrativa.

A Administração deve vincular-se então a um bloco de legalidade, ou seja, ao direito. Assim surgiu o princípio da juridicidade administrativa. Para Gustavo Binenbojm (2008), a “vinculação ao direito não plasmado na lei, marca a superação do positivismo legalista e abre caminho para um modelo jurídico baseado em princípios e regras, e não apenas nestas últimas.”

O que é interessante sobre o surgimento do princípio da juridicidade é que, ao contrário do que parece, a Administração perde liberdade de ação. Na legalidade clássica, como dito, a Administração estava vinculada unicamente aos ditames da lei. Com a juridicidade, além da submissão à lei, deve a Administração observar os princípios constitucionais e os regulamentos que ela mesma produz, aumentando a possibilidade de revisão judicial de seus atos.

A legalidade administrativa pode se manifestar como princípio da preferência de lei, ou seja, que a Administração deverá agir e expedir atos normativos em conformidade com a lei, ou como princípio da reserva da lei, que significa que em determinadas matérias somente a lei pode regular.

Maria João Estorninho (1999) discorre sobre a extensão da reserva da lei, citando a posição da doutrina alemã. Prevalece na Alemanha a distinção entre Administração agressiva e Administração prestadora de serviços. A primeira se caracteriza pela atuação administrativa que limita a atuação do particular ou agride seu patrimônio, sendo exigida a reserva de lei. Já a Administração prestadora de serviços, típica do Estado Social, consiste na prestação de bens e serviços, ampliando e protegendo a esfera jurídica dos indivíduos, sendo permitida uma margem de livre apreciação administrativa, mas sujeita à preferência da lei.

A autora portuguesa defende que as prestações não são graças ocasionais, mas a própria essência da Administração. Os indivíduos podem ser prejudicados na formulação de requisitos para concessão de benefícios ou na negativa de prestação de determinado serviço. Por isso, é desejável que exista uma tendência para uniformização e para o tratamento homogêneo de toda a Administração Pública, sem distinção entre preferência de lei e reserva de lei, mas a existência de diferentes graus de intensidade da subordinação da Administração à lei. Deve-se permitir que, às vezes, a lei apenas enuncie princípios gerais e, noutros casos, desça ao pormenor.


5.  Crise da lei

Gustavo Binenbojm (2008) aponta a visão liberal, idealista e mitificadora da lei como a razão para sua crise. Para ele, a lei não foi capaz de atender às demandas do Estado liberal e, muito menos, do Estado social. Eros Roberto Grau (2008) chega a afirmar que “a legalidade é uma das ideologias da modernidade, consubstanciando um fim em si mesma, o da preservação do status quo.”

Para Binenbojm (2008) a crise da lei tem dois ângulos: estrutural e funcional. No ângulo estrutural, a crise da lei confunde-se com a crise de representação, de legitimidade parlamentar. No ângulo funcional, a crise da ideia de legalidade como parâmetro de conduta exigível de particulares e do Estado.

A crise da lei pode ser explicada por cinco razões apontada pela doutrina. A primeira razão é a inflação legislativa. O excesso de leis torna o sistema jurídico complexo e compromete os ideais de segurança e certeza jurídica. A banalização da lei retirou o respeito que o período iluminista lhe conferiu.

A constatação de que a lei não é suficiente para trazer justiça e liberdade, mas que, ao contrário, pode ser fundamento para injustiça e barbárie é a segunda razão. A lei, aprovada conforme o correto procedimento legislativo, não é capaz de assegurar o ideal da moral da Revolução Francesa. Eros Roberto Grau (2008) adverte que “a política da legalidade, desta sorte, conduz à neutralidade axiológica do direito e à anulação do direito de resistência contra o direito ilegítimo”. A concretização da legalidade, neste contexto, é apenas formal. Não importa qual o conteúdo da lei, desde que não confronte a Constituição.

A terceira razão é a consolidação do constitucionalismo como a mais importante forma de manifestação da vontade do povo. Com o fracasso do legalismo, no segundo pós-guerra, as esperanças de garantia da liberdade e da justiça passaram a ser depositadas no constitucionalismo. Como a Constituição é um sistema de princípios que erradia efeitos por todo o ordenamento jurídico, a lei perde importância, pois deve se submeter a sofisticados sistemas de controle de constitucionalidade (BINENBOJM, 2008). A constituição passa a figurar como norma habilitadora da atuação administrativa e como critério da tomada de decisões pelo administrador.

A amplitude do Poder Legislativo da Administração Pública é a quarta razão. Atos administrativos infraconstitucionais são capazes de servir de fundamento à atuação administrativa. A Constituição dá amplo espaço para criação legislativa ao Poder Executivo. Além disso, a função regulatória do estado, com o advento as agências reguladoras, é exercida sem necessidade de se submeter ao moroso processo legislativo.

Por fim, a quinta razão para a crise da lei é o fato de que o Poder Executivo controla o processo legislativo. Esse controle é feito tanto por meios legítimos (quando a iniciativa da lei é do Executivo, por exemplo) quanto por negociações com parlamentares. Assim, a Administração tem o controle dos instrumentos de sua própria vinculação.

A perda de credibilidade do parlamento pode ser apontada como enfraquecimento da legalidade. O parlamento perdeu sua condição de espaço privilegiado de discussão e participação da sociedade em função da existência de outros espaços onde o cidadão pode se expressar diretamente, como a internet, e pela constatação de que os interesses individuais ou de grupos econômicos dominam a agenda legislativa, muitas vezes, em detrimento do interesse coletivo. Neste ambiente, o Executivo e o Judiciário passam a ser alternativas para realização dos anseios da população.

Uma constatação prática em relação à aplicação limitada do princípio da legalidade pela Administração Pública é o fato de o regramento legal sempre ter sido uma exceção. A Administração age muito mais nos espaço de silêncio da lei, utilizando o poder discricionário e expedindo atos regulamentares.

Além disso, como dito, o constitucionalismo rebaixou a lei a um patamar inferior, colocando-a sob testes de conformidade com os princípios e dispositivos constitucionais. O que importa mesmo à Administração é agir em conformidade com a Constituição. Isso não significa que a lei não tenha mais importância. Pelo contrário, a lei continua sendo a principal definidora da ação estatal, mas não a única.

A crise da lei tem gerado impactos profundos no direito. No direito administrativo, um desses impactos é a substituição do princípio da legalidade pelo princípio da juridicidade ou, como leciona Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a redução da legalidade como um dos elementos da juridicidade.


6. Conclusão

Conclui-se neste artigo, que o princípio da legalidade da Administração está sendo substituído pelo princípio da juridicidade. A juridicidade exige a vinculação ao direito e não apenas à lei, habilitando a Constituição, os princípios e os regulamentos a se tornarem fundamento da ação estatal.

As causas desta mudança são claras. O histórico da legalidade administrativa demonstra que ela nunca foi aplicada da forma em que foi idealizada. A crise da lei explica a perda do prestígio da legalidade como instrumento legítimo de manifestação da vontade popular.

Apesar disso, a lei continua sendo importante fonte do direito administrativo, contida também no conceito do princípio da juridicidade.


7.  Bibliografia

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Notas

[1] A reforma constitucional de 23 de julho de 2008 inseriu na Constituição francesa um sistema de controle de constitucionalidade pela via da exceção, criando uma corte constitucional para este fim.

[2] Diferente do princípio da proporcionalidade, de origem alemã, que exige adequação, exigibilidade e proporcionalidade em sentido estrito, o princípio da razoabilidade exige apenas que a decisão seja razoável, ou seja, que a valoração se situe dentro de standards de aceitabilidade (CARVALHO FILHO, 2007). Por isso, o princípio da razoabilidade é mais favorável ao órgão julgador e aplicador da lei.

[3] Em importante lição sobre a diferença entre preferência da lei e reserva da lei, Alberto Xavier (1972) leciona que “O princípio da preeminência da lei (Vorrang des Gesetzes), princípio da legalidade em sentido amplo, fórmula negativa ou regra da conformidade, traduz-se basicamente na proposição de que cada acto concreto da Administração é inválido, se e na medida em que contraria uma lei material; o princípio da reserva de lei (Vorbehald des Gesetzes), princípio da legalidade em sentido restrito, fórmula positiva, ou regra da compatibilidade, surgiu originariamente com o sentido de que cada acto concreto da Administração que intervém na liberdade ou propriedade do cidadão – a chamada Freiheit-und-Eigentum Klause – carece de autorização de uma lei material, mas veio mais tarde a evoluir no sentido de exigir a mesma autoridade para todo e qualquer acto administrativo, ainda que directamente não contendesse na aludida esfera privada dos particulares.”

[4] De acordo com Gustavo Binenbojm (2008, p. 198), “afirma-se, a partir daí, a doutrina da positive Bindung – vinculação positiva à lei – consubstanciada no artigo 18 da Constituição austríaca de 1920, segundo a qual a Administração Pública não poderia atuar senão auf grund der Gesetze, isto é, tendo a lei por fundamento. Porém a discricionariedade administrativa sobrevive somo espaço de subdeterminação normativa, dentro do qual competiria à Administração exercer a sua liberdade decisória. Percebe-se aqui a nítida influência da obra de Kelsen acerca da interpretação da norma como mera moldura balizadora das decisões do órgão competente.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Huaman Xavier Pinto. O surgimento do princípio da juridicidade no Direito Administrativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3651, 30 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24817. Acesso em: 29 mar. 2024.