Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/25040
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Revendo o conceito de sociedade civil para a construção de uma nova esfera pública no Brasil

Revendo o conceito de sociedade civil para a construção de uma nova esfera pública no Brasil

|

Publicado em . Elaborado em .

Apresentam-se teorias sobre participação social, direito e cidadania, no contexto das manifestações que levaram às ruas do Brasil milhares de pessoas neste junho de 2013, interessadas em debater a estrutura política do Estado e, ao mesmo tempo, reivindicar por novas formas de participação direta da população na política institucional.

Resumo: O artigo em questão, partindo das análises sobre Sociedade Civil e Estado presentes no livro Estado, Governo e Sociedade, do cientista político Norberto Bobbio, trouxe para o debate diferentes linhas teóricas que se debruçaram sobre as ideias de “participação social, direito e cidadania”, que a todo instante são colocadas em questão por processos históricos em conflito, como bem demonstram as manifestações que levaram às ruas do Brasil milhares de pessoas neste junho de 2013, interessadas em debater a estrutura política do Estado e, ao mesmo tempo, reivindicar por novas formas de participação direta da população na política institucional.


Introdução

Enquanto o calor dos protestos tomam as ruas do Brasil e as instituições públicas são colocadas em xeque pelas vozes dos manifestantes, estudiosos de diversos campos do conhecimento se esforçam em compreender os fenômenos que alimentam a participação da sociedade brasileira, principalmente no que tange às relações na construção da esfera pública. Este artigo – longe de qualquer pretensão conclusiva – interpreta as questões levantadas no livro Estado, Governo e Sociedade, do cientista político Norberto Bobbio, a respeito das diversas conceituações de Sociedade Civil. Este exercício se monstra central para que possamos entender como através dos séculos a participação de uma sociedade civil crítica, autônoma e atuante foi percebida e entendida de formas distintas, e até mesmo complementares, por variadas correntes interpretação da própria concepção de organização social.

Diferente do que se sugere, nem sempre “sociedade civil” e Estado estiveram separados, e em contraposição as suas concepções como se verifica hoje. Em determinados momentos – mais especificamente até a idade média -, o Estado era o “prosseguimento natural da sociedade familiar, doméstica e que correspondia a uma sociedade natural, no sentido de que corresponde perfeitamente à natureza social do homem” (Bobbio, 2005; p. 45). Em um momento mais à frente, sociedade civil não compreenderá mais o Estado, sendo vista inclusive como a esfera das relações materiais ou econômicas, que mesmo tendo aparência de conteúdo universal, era apenas a expressão da emancipação de uma determinada classe social.

Com isso, o processo histórico de construção de uma esfera pública – em seu sentido mais amplo – nos demonstrará que a própria definição sobre sociedade civil está atrelada a uma visão estrita do mundo em que determinados valores – mais especificamente burgueses – se impuseram como definidores de um padrão de interação, comunicação e participação política.

Neste sentido, no que diz respeito aos mecanismos de participação destes espaços públicos, os conceitos desenvolvidos por Norberto Bobbio serão fundamentais para que pensemos as possibilidades apresentadas na teoria sobre esfera pública. Será possível criar uma força sociointegrativa da solidariedade, numa sociedade pensada a partir do “homem egoísta”? (Bobbio, 2005)

Uma sociedade que contrabalancei os dois recursos que suprem a “carência de integração e coordenação” das sociedades modernas que são o dinheiro e o poder, em favor de uma coletividade de fato? Até que ponto uma maior inserção do Estado na sociedade significou maior grau de participação e fortalecimento das organizações de massa - em todas as suas dimensões -, direta ou indiretamente no poder político do Estado? Até que ponto, hoje, há reais possibilidades de atuação e perticipação direta da sociedade civil na construção das normas políticas, como campo de conhecimento e ação?


Conceito de Sociedade Civil em Bobbio

Diante das discussões sobre as acepções de “Sociedade Civil” e “Estado”, Bobbio, em seu livro Estado, Governo e Sociedade, afirma a necessidade de se redefinir os dois termos no que refere-se às extensões e relações entre si. Inicialmente, a partir de uma definição negativa de “Sociedade Civil” que seria a “esfera das relações sociais não reguladas pelo Estado”, baseado nos trabalhos de August Ludwig Von Schlozer (onde a dicotomia entre as esferas de poder ainda não prevalece), o autor identifica o surgimento da noção positiva a partir do nascimento do mundo burguês, onde o Estado passa a exercer uma ação coativa - separada da ideia de sociedade civil. Neste ponto o próprio sentido positivo do Estado está atribuído ao seu poder de coação em relação ao direito privado que se estabelece a partir de então.

Com o desenvolvimento desta relação dicotômica, Bobbio aponta para três possibilidades de acepções sobre uma noção de não-estado: primeira - a partir de uma doutrina interpretativa jusnaturalista, o Estado funciona como um regulador dos interesses diversos da sociedade, estabelecendo uma relação de superestrutura (Estado) e infra-estrutura (Sociedade Civil); segunda - a Sociedade Civil adquire conotação positiva, tendo em sua dinâmica a possibilidade de superar instâncias de relação de dominação, como “contra-poderes” em favor de uma emancipação política; ou adquire conotação negativa, sendo vista como “germes de desagregação”; terceira - Assume tanto um significado cronológico (1ª) quanto axiológico (2ª), contudo representando um ideal de sociedade sem Estado. Uma “reabsorção da sociedade política pela sociedade civil” (Gramsci apud Bobbio, 2005; p. 35).

Logo, partindo destas definições, uma definição positiva para Sociedade Civil será sempre mais difícil, pois trata-se do “lugar onde surgem e se desenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que as instituições estatais têm o dever de resolver ou através da mediação ou através da repressão”. (2005; p. 36).

Como possibilidade de interação entre as duas esferas, Bobbio aponta os partidos políticos como sujeitos que estão com “um pé na sociedade civil e um pé nas instituições”, demonstrando que os mesmos atuam como mediadores entre a sociedade civil e o Estado. Eles seriam responsáveis por absorver as demandas – input da sociedade civil - e transmiti-las para que se tornem objetos de decisão política – output do Estado. O conceito de governabilidade estaria diretamente ligado à capacidade do Estado em atender as demandas da sociedade. Quanto mais aumentam as demandas e o Estado com menor capacidade de atendê-las, maior será o ambiente de ingovernabilidade, causando uma crise de legitimidade. 

Ainda no âmbito da sociedade civil se encontra o que se entende como opinião pública que seria a “pública expressão de consenso e de discenso com respeito às instituições”, transmitida através dos meios de comunicação, ferramenta indispensável para que a própria sociedade civil exerça sua função – emitir sua opinião.

A partir disto, Bobbio discorre sobre as interpretações marxianas, hegelianas e da tradição jusnaturalista sobre o conceito de Sociedade Civil, no qual atribui ser indispensável ao trabalho, o entendimento sobre a distinção entre relações sociais e relações políticas, que possibilite estabelecer um debate atual sobre o tema.


A tradição jusnaturalista

Bobbio inicia fazendo uma distinção sobre a origem do que se entende como Estado a partir de duas concepções: a que remete como um prosseguimento da organização familiar – aristotélica, e outra partindo da ideia de antítese ao estado de natureza – jusnaturalista. A primeira como extensão de uma comunidade independente e autossuficiente, onde as relações entre o público e o privado se davam naturalmente na mesma ordem, e a segunda como um acordo de indivíduos que decidem sair deste estado de natureza, influenciado principalmente pela leitura hobbesiana do ser humano.

Conseqüentemente, o fato do modelo jusnaturalista ter persistido na Idade Média, “de Hobbes a Kant”, fez com que a contraposição de “sociedade civil” à sociedade natural conferisse uma ideia de “sociedade artificial” à primeira, pois o Estado se constituía como entidade que se sobrepõe às relações naturais, ou melhor “como regulamentação voluntária das relações naturais”. Outro ponto fundamental para que a tradição jusnaturalista se fizesse prevalecer foi à concepção de um Estado que distinguisse os âmbitos de competência do próprio Estado e da Igreja ou do poder religioso, que historicamente partia de uma leitura aristotélica de organização do mundo. 


O sistema hegeliano

No sistema hegeliano, o modelo de sociedade civil se dá na relação dicotômica entre o modelo aristotélico família / Estado, e o jusnaturalista, baseado na dicotomia estado de natureza / estado civil, e está divida em três momentos: o sistema das necessidades, a administração da justiça e a política. As relações econômicas se encontram inseridas no sistema de necessidades, enquanto a administração da justiça e a política compreendem partes tradicionais da doutrina do Estado.

Diante das dificuldades de se interpretar as concepções de Hegel sobre sociedade civil para resultados posteriores aos seus escritos, Bobbio descreve que:

“a sociedade civil hegeliana representa o primeiro momento de formação do Estado, o Estado jurídico-administrativo, cuja tarefa é regular relações externas, enquanto o Estado propriamente dito representa o momento ético-político, cuja a tarefa é realizar a adesão íntima do cidadão à totalidade de que faz parte, tanto que poderia ser chamado de Estado interno ou interior”. (Bobbio, 2005; p. 42).

Mais que isso, representa a distinção entre um Estado superior e um Estado inferior, onde o primeiro caracterizado pela constituição e pelos poderes constitucionais, tais como o poder monárquico, tem a função negativa de dirimir os conflitos de interesse e de reprimir as ofensas ao direito estabelecido, e o segundo, através dos poderes judiciário e administrativo, tem a função de “prover a utilidade comum, intervindo na fiscalização dos costumes, na distribuição do trabalho, na educação, na ajuda aos pobres... o Estado que provê o bem-estar externo de seus súditos”. (2005; p. 43).

Bobbio ressalta a importância da dimensão histórica que Hegel atribui as suas categorias de análise. Sociedade civil para Hegel é uma figura histórica não encontrada em Estados antigos – despóticos orientais e cidades gregas -, logo se constituindo como figura do mundo moderno. A essência do Estado não está na sociedade civil, onde estaria fundamentada, principalmente pelos escritores políticos e juristas, a forma inferior de Estado no conjunto do sistema, tendo como função maior:

“dirimir conflitos de interesse que surgem nas relações entre privados através da administração da justiça e, sucessivamente, a de garantir o bem-estar dos cidadãos defendendo-os dos danos que podem provir da atitude de dar livre curso ao particularismo egoísta dos singulares” (p. 43).

Segundo Bobbio, a razão que levou Hegel a colocar o conceito de Estado acima do conceito que os contratualistas haviam desenvolvido é justamente para explicar “porque se reconhece ao Estado o direito de solicitar dos cidadãos o sacrifício de seus bens (impostos) e da própria vida (quando declaram guerra)... em um acordo que os próprios contraentes podem romper quando conveniente...”. (p. 44).

O que leva a conclusão que para Hegel este contrato se estabelece somente porque é o Estado sujeito da história universal com o qual “se conclui o movimento do Espírito objetivo”. Somente o Estado estabelece relações com os outros Estados, e não a sociedade civil. Logo, atribui-se a legitimidade deste corpo representativo a “soberania” de se colocar superior à sociedade civil, em Hegel.


A interpretação marxiana

Em Marx, na sociedade civil os homens livres criariam vínculos entre eles visando apenas seus interesses privados, tendo como princípio fundador uma base natural. É nesta esfera que se estabelecem às relações econômicas atribuindo uma concepção pré-estatal ao conceito. Tinha a convicção, estudando Hegel, que “as instituições jurídicas e políticas tinham suas raízes nas relações materiais de existência” (Bobbio, 2005; p. 38). Conseqüentemente, a própria constituição do Estado seria a conseqüência destas relações materiais e política, o que levaria a constituição de uma superestrutura jurídica e política.

Seguindo a tradição da esquerda hegeliana, esta sociedade civil seria em si a própria sociedade burguesa, tendo em seu significado uma concepção de classe. Ao longo do processo histórico, como sujeito de sua própria história, a burguesia se libertou do Estado absoluto e contrapôs ao Estado tradicional “os direitos do homem e do cidadão que são, na realidade, os direitos que de agora em diante deverão proteger os próprios interesses de classe” (p. 39).

Especificamente no campo do direito, a perspectiva marxista apresenta uma superestrutura jurídico-política de uma sociedade “à qual correspondem formas de consciência social, uma das quais certamente diz respeito ao pensamento dos juristas em suas diversas vertentes.” (Stotz, 2013) A constituição da sociedade de classe é visto por Marx e Engles alimentada pelos aspéctos do direito burguês, o que determina as formas de organização e participação da sociedade civil, neste caso, da sociedade burguesa. Em uma passagem de Engels (1982) é possivel compreender a complexidade do processo de consolidação da sociedade burguesa num contexto de formulação das noções de Estado e Sociedade:

Entende-se melhor a coisa sob o ponto de vista da divisão do trabalho. A sociedade cria certas funções comuns, das quais não pode prescindir. As pessoas nomeadas para elas formam um novo ramo da divisão do trabalho dentro da sociedade. Deste modo, assumem também interesses especiais, opostos a de seus mandantes, tornam-se independentes frente a eles e já temos aí o Estado. Logo ocorre algo parecido ao que ocorre com o comércio de mercadorias, e mais tarde, com o comércio do dinheiro: a nova potencia independente tem que seguir em termos gerais o movimento da produção, porém repercute também, por sua vez, nas condições e na marcha desta, graças à independência relativa a ela inerente, quer dizer, a que foi transferida e que logo se desenvolveu pouco a pouco. É um jogo de ações e de reações entre duas forças desiguais: de um lado, o movimento econômico, e de outro, o novo poder político, que aspira a maior independência possível e que, uma vez instaurado, goza de movimento próprio. O movimento econômico se impõe sempre, em termos gerais, porém se encontra também sujeito às repercussões o movimento político criado por ele mesmo e dotado de relativa independência (…).

Assim, na sociedade moderna, ou melhor, no Estado moderno, o direito e as formas de participação da sociedade “não somente tem que corresponder à situação econômica geral, ser a sua expressão, mas tem de ser, ademais, uma expressão coerente em si mesma, que não se enrede numa luta com as contradições internas.” (Stotz, 2013)

Contudo, Bobbio aponta a leitura de Gramsci como um contraponto a dicotomia marxiana. Enquanto em Marx e Engels o momento da sociedade civil coincide com a base material contraposta a superestrutura onde estão as ideologias e instituições, Gramsci estabelece dois grandes ‘planos’ superestruturais – a sociedade civil (organização dos organismos privados) e sociedade política ou Estado “que correspondem à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’”. (Bobbio, 2005; p. 40).

No fundo, Gramsci agrega a dicotomia sociedade civil / Estado à dicotomia base / superestrutura, onde na primeira se estabelece num embate através dos “instrumentos ativos” da relação – consenso / força ou persuasão / coerção -, e na segunda, os embates se situam numa esfera conceitual, ideológica e momentânea desta mesma relação – momento econômico / momento político, necessidade / liberdade.

Diante destas dicotomias, por exemplo, o momento político seria o resultado da superação de um momento econômico, numa “dissolução da dualidade implícita no segundo momento da primeira: a sociedade civil representa o momento de eticidade, através do qual uma classe dominante obtém o consenso, adquire legitimidade”. (p. 40). Gramsci recupera o significado de sociedade civil pautada no consenso entendendo que “a sociedade do consenso é aquela destinada a surgir da extinção do Estado” (p. 41).


Sociedade civil: expressão de civilidade

Neste item, Bobbio traz a interpretação de Adam Ferguson – Ensaio sobre a história da sociedade civil (1767), de uma sociedade civil que está além da dicotomia com Estado. Ela se opõe às “sociedades primitivas”. Para Ferguson, e autores escoceses, sociedade civil passa a significar sociedade civilizada, onde

“a passagem das sociedades primitivas às sociedades evoluídas, é uma história do progresso: a humanidade passou e continua a passar do estado de selvagem dos povos caçadores sem propriedade e sem Estado ao estado bárbaro dos povos que se iniciam na agricultura e introduzem os primeiros germes de propriedade, ao estado civil caracterizado pela instituição da propriedade, do comércio e do Estado”. (p. 47)

Neste sentido, não se pode excluir totalmente tal interpretação das leituras jusnaturalistas quando, segundo Bobbio, Hobbes faz uma distinção entre barbáries e elegantia em seus textos, assim como Hegel que reitera que sociedades antigas, tanto as despóticas quanto as repúblicas gregas, não tinham uma sociedade civil, “formação característica da idade moderna” (p. 48). Até mesmo em Rousseau – claro, de forma negativa -, quando atribui a necessidade de constituição de um contrato social a partir da própria ideia de civilização, responsável pela corrupção dos homens.

Tendo em vista a digressão histórica que nos mostrou a variedade de significados para a expressão “sociedade civil”, Bobbio enfatiza a ideia predominante de “contrafação” que o termo adquiriu em relação ao Estado, mesmo que este Estado tenha se apropriado da sociedade transformando-se de Estado de direito em Estado social, principalmente quando regula e invade por inteiro as relações econômicas na sociedade. Mesmo assim, por outro lado, isto também significou um maior grau de participação e fortalecimento das organizações de massa, que exercem direta ou indiretamente algum poder político que permeia a própria estrutura do Estado.

Contudo, nos últimos anos pôs-se a questão de saber se a distinção entre sociedade civil e Estado teria ainda razão de ser. Justamente por considerar que a convivência entre as duas dimensões é contraditória, onde o Estado que faz a sociedade – e em sua finalização teríamos um Estado totalitário, sem sociedade -, e uma sociedade que faz o Estado – que em sua conclusão, teríamos uma sociedade sem Estado -, é que eles estão longe de qualquer conclusão definitiva. Sob este aspecto, Bobbio afirma que “sociedade e Estado atuam como dois momentos necessários, separados, mas contíguos, distintos, mas interdependentes, do sistema social em sua complexidade e em sua articulação interna” (p. 52).

Logo, faz-se necessário tentar investigar como esta relação se desenvolve contemporaneamente – em especial na América Latina, como será apresentado em seguida -, a partir do próprio processo de desenvolvimento da sociedade civil, tendo em mente a constituição de espaços públicos que possibilitam o diálogo entre as duas dimensões políticas.


Da mudança estrutural da Esfera Pública à sociedade de Massas

Com a emergência de um espaço entre a esfera privada e o Estado, caracterizado pela discussão livre e racional do exercício da autoridade política, a partir do desenvolvimento do capitalismo mercantil europeu do século XVII, duas mudanças fundamentais ocorreram (Avritzer e Costa, 2004) :

Primeiro - a separação entre interesses vinculados à economia doméstica e a subjetividade (separação ente necessidade e vontade – individualidade do homem moderno). Há um desacoplamento da capacidade reflexiva do indivíduo da esfera dos interesses materiais, que leva a uma separação entre público cultural e político (ligado à questão mais comercial). Neste primeiro período burguês os públicos culturais não estariam vinculados somente à circulação comercial de ideias (“não reflexivas”), mas também às relações “puramente humanas” uns com os outros, o que mais tarde possibilitaria a emergência de públicos que interpelariam criticamente os meios de comunicação nas sociedades contemporâneas;

Segundo – o surgimento da burguesia como a primeira classe governante cuja fonte de poder é independente do controle do Estado e que se localiza no nível privado. Conseqüentemente, esta classe passa a reivindicar o direito de ter conhecimento do que faz o Estado, fazendo com que tal demanda servisse para conferir um caráter público às relações entre Estado e sociedade.

Com isso, o conceito de esfera pública significou, na segunda metade do século XX, a continuação de uma tradição crítica sobre a cultura de massas iniciada pela Escola de Frankfurt dentro de uma nova perspectiva, estabelecendo uma nova relação nos estudos entre a teoria crítica e a teoria democrática. Esta relação estaria definida em outras duas diferentes dimensões: identificou-se uma nova esfera pública aberta à integração legal dos grupos, associações e movimentos (teoria democrática dentro do debate elitista) e a possibilidade de uma “relação argumentativa crítica” – relação entre racionalidade e participação, numa tensão entre autonomia da crítica cultural e o caráter comercial do processo de produção cultural.

Segundo Avritzer e Costa, Habermas não rompe com a Escola de Frankfurt quando se pensa a separação entre público e privado. Habermas estaria justamente levantando que esta separação cada vez mais no mundo moderno sofre influência mútua. Há tanto uma influência progressiva da sociedade sobre o Estado, quanto uma estatização crescente da sociedade.

Consequentemente, o conceito de esfera pública se divide em duas áreas de investigação: a primeira inclui as teorias sobre movimentos sociais e sociedade civil. Desenvolvimento de uma esfera dialógica e interativa a que pertencem esses grupos, e que desenvolvem, através de um fluxo de comunicação, uma forma específica de ação comunicativa; e a segunda que diz respeito aos meios de comunicação de massa e suas formas de recepção.


A Construção do Modelo Discursivo de Esfera Pública

Na revisão de teses realizada no prefácio da reedição alemã de 1990, Habermas mostra que “o espaço público continua estabelecendo, como órbita insubstituível de constituição democrática da opinião e da vontade coletivas, a mediação necessária entre a sociedade civil, de um lado, e o Estado e o sistema político, de outro”. Avritzer e Costa apontam três questões nesta revisão (2004):

· Relativização da tese anterior de que os cidadãos, ou melhor, os atores da cultura, nas sociedades de massas, se transformaram em meros consumidores de entretenimento. Há um potencial crítico na sociedade;

· Partindo da diferenciação entre sistema e “mundo da vida” (teoria da ação comunicativa), a força sociointegrativa que emana das interações comunicativas não pacifica as disputas (“bem comum” rousseauniano). Pelo contrário. Os interesses e a concepção de “bem comum” são as mais variadas possíveis. As vontades e as opiniões não podem ser construídas a partir de cidadãos individuais. Devem ser construídas de forma coletiva.

·  A ambivalência constitutiva da esfera pública: há tanto os fluxos comunicativos do mundo da vida, quanto a utilização dos meios de comunicação que objetivam lealdade política e a influência das preferências de consumo.

Habermas procurou detalhar o papel de uma esfera pública “politicamente influente”. Que a partir da força sociointegrativa da solidariedade contrabalancei os dois recursos que suprem a “carência de integração e coordenação” das sociedades modernas: o dinheiro e o poder. Ao mesmo tempo, chama atenção para a necessidade de autolimitação da influência dos atores da sociedade civil: as organizações da sociedade civil não podem transformar-se em estruturas dominadas pelos rituais burocráticos e os atores da sociedade civil não podem exercer poder administrativo. Não podem assumir funções que cabem ao Estado realizar, sob risco de influência do Estado em núcleos decisórios das organizações.


Correções e Complementações ao Modelo Discursivo

A partir disto, alguns autores desenvolverão críticas a Habermas alegando principalmente que suas teorias estão centradas no modelo alemão de organização social. Para eles, faz-se necessário avaliar o desenvolvimento das “sociedades civis” levando em consideração os contextos sociais, culturais, econômicos e políticos pertinentes a cada sociedade estudada.

Para Cohen e Arato, por exemplo, há hoje o que eles chamam de New Publics. Ao lado do crescimento incontrolado da grande mídia e da penetração da cultura pelas lógicas do dinheiro e do poder, verifica-se o surgimento de novos públicos e locais de crítica a esses padrões, e que pressionam por mudanças no padrão de comunicação.

Em Nancy Fraser, a ideia de uma esfera pública nacional e abrangente não considera as relações assimétricas de poder que marcam, historicamente, os processos de constituição das esferas públicas contemporâneas. Estas relações apresentam, em sua própria formação, “mecanismos de seleção que implicam a definição prévia de quem serão os atores efetivamente ouvidos e quais serão os temas que efetivamente serão tratados como públicos” (Avritzer e Costa, 2004; p. 711), o que geraria um tipo de Subaltern Counterpublics.

Quanto ao Diasporic Publics, Paul Gilroy refere-se ao espaço cultural do “Atlântico Negro”, que para ele, mais que a reivindicação pela igualdade de direitos e por participação política, refere-se à própria representação dos interesses e de visão de mundo (branco dominante). O autor fala que, por conta do próprio jogo político que se desenvolveu ao longo da história, esses grupos não puderam assumir o controle dos mecanismos de produção e reprodução considerados legítimos em cada Estado-nação particular, onde foram inferiorizados em suas formas de expressão cultural, na comunicação (dança e música) em função de uma estética dominante. Logo, há a necessidade e um esforço de construção de um novo discurso, a partir de outras referências.

É importante ressaltar que tanto nas interpretações de Fraser quanto nas de Gilroy há necessidade de construção de estruturas específicas de captação dos interesses e públicos subalternos – como, por exemplo, mecanismos institucionais legais –, além de alertarem também para o risco implícito da ênfase do modelo discursivo na comunicação verbal entre grupos distintos, ou até mesmo para integrantes de um mesmo grupo.

A crítica que Avritzer e Costa farão partindo de outros autores, diz respeito ao que se entende como Deliberative Publics. Para eles, Habermas não considera as possibilidades de ampliação de mecanismos institucionalizados de formação da vontade política, conferindo poderes efetivos aos publics. Faltam referências em seus trabalhos da necessidade de horizontalização dos processos decisórios e de uma suposta “alfabetização política”, no plano local, que dê conta de uma noção de poder. É fundamental considerar e buscar entender a racionalidade comunicativa que permeia os processos decisórios dentro destes fóruns deliberativos.

No fundo, segundo os autores, algumas teorias contemporâneas apontam novas possibilidades de reconstituição dos laços de integração e solidariedade social que funcionem como resposta a noção de integração econômica. Uma espécie de Esfera Pública Transnacional que dê conta da construção de bases de uma “ordem democrática no mundo globalizado”.

Sousa Santos, por exemplo, alerta para a hegemonia de uma Razão Metonímica, que assume a ideia de totalidade sob a forma da ordem. O todo, neste caso,  governaria as partes sob uma única lógica. Esta hegemonia faz com que as partes não tenham existência fora dessa relação com a totalidade. “As formas mais acabadas da totalidade é a dicotomia, porque combina a simetria com a hierarquia. A simetria entre as partes é sempre uma relação horizontal que oculta uma relação vertical” (Sousa Santos, 2010; p.100).

Essa redução a uma razão totalizadora é a forma que o Ocidente desenvolveu para favorecer a expansão capitalista:

“Assim, a multiplicidade de mundos é reduzida ao mundo terreno (não espiritual) e a multiplicidade de tempos (substituição do conceito de salvação e transcendência por conceitos de prograsso e revolução) é reduzida ao tempo linear e econômico” (p.100).

Essas relações que envolvem temporalidade e formas hegemônicas de conhecimento (jurídicos, científicos e políticos) fazem com que as instituições centralizadoras do poder, tais como o Estado e corporações multinacionais, sobressaiam em detrimento da participação social e da organização da sociedade civil no interior de uma esfera pública.


Usos na América Latina

Quanto aos usos destas tradições na América Latina, há certo predomínio de uma tradição da Escola de Frankfurt nas leituras sobre a região. Para esta corrente, os produtores críticos de cultura se transformaram em meros receptores e consumidores da indústria cultural. Alguns trabalhos teóricos deixam subentendido que isso se dá justamente porque faltou à América Latina determinados pressupostos do mundo moderno - uma burguesia de fato liberal -, para constituição efetiva de uma esfera pública política. Nossa sociedade ainda estaria ligada a um tradicionalismo personalista, o que os teóricos da modernização chamam de “Política de auditório” (Avritzer e Costa, 2004).

A Teoria da dependência corrige de certa forma a teoria da modernização: há que se considerar, internamente, a multiplicidade de forças pró e contra a modernização e, externamente, a inserção de cada sociedade no contexto das relações de dependência entre centro e periferia no plano mundial. Para a Teoria da dependência há um movimento cíclico de modernização, onde o primeiro momento se dá através de uma ação exclusiva das elites progressistas, tendo no segundo momento a inclusão do conjunto da população no projeto de modernização da nação.

Na Teoria da transição temos uma contraposição aos anteriores. Para estes teóricos tais elites latino-americanas não são portadoras de tais valores modernos e democráticos. Contudo, segundo Avritzer e Costa (2004), os teóricos da transição não consideram adequadamente o papel da esfera pública na construção da democracia. Dão ênfase no papel das instituições políticas e não na ação de uma esfera pública autônoma.

Estes autores, a partir da análise de Evelina Dagnino, destacam o papel e os contextos dos movimentos sociais nos anos 80 – com seu fortalecimento - e 90 – com sua fragmentação. Observam que tais mudanças na América Latina não podem ser adequadamente lidas estritamente pela sociologia das sociedades de massa. Do ponto de vista político, os cortes orçamentários do Estado em áreas vitais, coincidem com programas efetivos de inovação institucional capazes de dar transparência aos processos políticos e abrir esferas no Estado à participação e à deliberação pública. Do ponto de vista dos meios de comunicação, a mídia conforma um campo das formalidades tradicional-populistas de conquista de lealdade política que se misturam a novas estratégias de conquista de apoio da massa, onde há maior autonomia dos jornalistas e produtores culturais.

Finalizando, enfatizam que

“... a esfera pública diz respeito mais propriamente a um contexto de relações difuso no qual se concretizam e se condensam intercâmbios comunicativos gerados em diferentes campos da vida social. Tal contexto comunicativo constitui uma arena privilegiada para a observação da maneira como as transformações sociais se processam, o poder político se reconfigura e os novos atores sociais conquistam relevância na política contemporânea”. (2004; p. 722).


Esfera pública e os novos caminhos democráticos no Hemisfério Sul

As recentes ocupações dos espaços públicos do Brasil por manifestantes que exigem por mudanças nas formas políticas (e coercitivas) de atuação do Estado - com o questionamento das instituições públicas e mediadoras por um lado e a exigência de novos instrumentos de participação social, por outro - levantou a necessidade de uma revisão das teorias políticas sobre o Estado e a Sociedade Civil - e seus impactos no campo do direito constitucional - que conformam as ideias de cidadania e de nação.

O artigo ao sistematizar diferentes linhas de pensamento demontrou que as possibilidades de participação da sociedade na esfera pública, e as estruturas criadas para tal, são organizadas a partir da constituição de um Estado construído sobre leis e racionalidade burguesas. Neste sentido, duas visões se confrontam na atualidade a respeito da presença da sociedade civil no ambiente da política pública: primeiro, aquela que defende um poder judiciário e legislativo cujos papéis são a preservação e a manutenção das estruturas políticas, constantemente “ameaçadas” por reivindicações de classes e pela “paixão” das massas. A segunda visão, preconizada nas manifestações de junho de 2013, anseia pela a ampliação das formas de participação direta da população nas decisões políticas e divisão de poderes, especialmente, sobre os setores de mobilidade urbana, de saúde e educação.

Os conflitos enfervecentes que tomam as pautas dos principais canais de comunicação do país desnuda uma democracia que permite alguns avanços da “maioria”, no entanto apenas se exercida dentro do quadro da legalidade (burguesa). Os movimentos sociais de classe média – defensores do fim da corrupção, da derrubada da PEC 37 e da regulamentação das profissões da saúde, e as camadas populares – que reivindicam o direito à vida, tão bem esclarecido pelos gritos (não) ouvidos nos protestos ocorridos nas favelas do Complexo da Maré, Rio de Janeiro -, assumem novamente uma posição central no futuro da política nacional.

É obvio que as manifestações atuais, como todo acontecimento históricos, são alvos de apropriação simbólica por grupos de todos os interesses. Contudo, o momento é de reflexão sobre as possibilidades de participação social e de reforma da política institucional. A compreensão da sociedade civil e do Estado deve ir para além da presença de uma legislação civil organizada sob o poder constitucional. O ponto de partida para o entendimento dos fenômenos atuais (representados pelos protestos) deve apoiar-se sobre o debate do tema da justiça social em nossos territórios.

Antigos temas como a reforma política, a reforma urbana e a reforma agrária devem ser repaginados. A ideia de uma esfera pública nacional e abrangente que não considere as relações assimétricas de poder que marcam, historicamente, os processos de constituição das esferas públicas contemporâneas, simplesmente estará fadada a reproduzir as normas vigentes de funcionamente da legislação e da definição de cidadania hoje em voga em nossa sociedade.

Caso não haja uma mudança em sua própria formação, tanto da esfera pública como o direito civil - pautados pela racionalidade burguesa -, o campo da política (suas relações e estruturas de poder) continuará a apresentar “mecanismos de seleção que implicam a definição prévia de quem serão os atores efetivamente ouvidos e quais serão os temas que efetivamente serão tratados como públicos” (Avritzer e Costa, 2004; p. 711), o que geraria um tipo de Subaltern Counterpublics.

Faltam referências em muitas linhas teóricas da necessidade de horizontalização dos processos decisórios, no plano local e global, que dê conta de uma noção de poder e ação. Ficou claro que os protestos que alcançaram as cidades brasileiras devem ser lidos a partir de uma “racionalidade cosmopolita”, ou seja, em que a sociedade civil e a esfera pública, nas suas funções de construção da política plena, em contradição histórica ou em solidariedade ao Estado, tenham suas experiências ampliadas, garantindo à riqueza das relações sociais o protagonismo para a construção de uma cidadania compartilhada.


Referência Bibliografia:

AVRITZER, Leonardo; COSTA, Sergio. “Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina”, Revista Dados, vol. 47, n°. 4, Rio de Janeiro, 2004;

BOBBIO, Norberto. Estado, Governo, Sociedade: Para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 12ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2005;

COHEN, J., ARATO, A.. Civil Society and Political Theory. Cambridge, Ma./London, MIT Press, 1992;

ENGELS, Friedrich. Carta a Konrad Schmidt de 27 de outubro de 1890. Edição do Marxists Internet Archives de 1982. Disponível em http://www.marxists.org/portugues/marx/1890/10/27.htm;

FRASER, Nancy. (1992), “Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy”, in C. Calhoun (org.), Habermas and the Public Sphere. Cambridge, Ma., MIT Press, 1992;

GILROY, Paul. The Black Atlantic: Modernity and Double Consciouness. Cambridge, Ma., Harvard University Press, 1993;

SOUSA SANTOS, Boaventura. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. 3ª Ed. São Paulo: Cortez, 2010;

STOTZ, Eduardo. A propósito do poder judiciário e da legitimidade do Estado burguês.

Todas as Edições, vol.49, n°2. Disponível em http://www.criticadodireito.com.br/todas-as-edicoes/numero-2---volume-49/a-proposito-do-poder-judiciario-e-da-legitimidade-do-estado-burgues.


Autores


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Bruno Coutinho de Souza; DOMINGUEZ, Marcos Thimoteo. Revendo o conceito de sociedade civil para a construção de uma nova esfera pública no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3705, 23 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25040. Acesso em: 26 abr. 2024.