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A constitucionalização dos direitos humanos

A constitucionalização dos direitos humanos

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A inserção dos direitos humanos como direitos fundamentais no ordenamento pátrio é de suma importância para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana.

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo entender como se deu a constitucionalização dos direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro, a partir da contextualização histórica e conceitual do surgimento dos mesmos na órbita internacional. Para tanto, analisou-se os momentos em que se deu a evolução das dimensões de direitos ao longo da história, sem olvidar, contudo, da reconstrução e reafirmação dos valores dos direitos humanos que se fez necessária no período pós Segunda Guerra como resposta às atrocidades cometidas. E, enfim, ressaltou-se a importância de se constitucionalizar os direitos humanos no documento pátrio para concretização dos direitos fundamentais. O método empregado foi o dedutivo e indutivo, com a utilização de artigos científicos, material bibliográfico, legislação e sites da Internet. Do exposto, foi possível constatar a relevância da inserção dos direitos humanos na Constituição Federal de 1988 como forma de se alcançar a proteção e promoção do princípio da dignidade da pessoa humana a todos os brasileiros.

Palavras - chave: Direitos Humanos; Constitucionalização; Direitos Fundamentais; Dignidade da Pessoa Humana.

Sumário: Introdução. 1. As dimensões dos direitos humanos 2. A reconstrução dos direitos humanos 3. Os direitos humanos na Constituição Federal de 1988. Considerações finais. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O processo de constitucionalização dos direitos humanos é extremamente importante no que se refere à concretização dos direitos fundamentais no Brasil. Entretanto, o estudo deste fenômeno somente foi possível a partir da contextualização histórica e conceitual do surgimento dos direitos humanos na órbita internacional.

Para tanto, os fundamentos teóricos dos direitos humanos foram abordados no intuito de sedimentar o assunto. Dessa forma, conceituaram-se as dimensões de direitos levando-se em conta o contexto histórico e político, bem como as necessidades da população que ensejaram a evolução da proteção legal.

Nesse passo, a questão da reafirmação dos valores dos direitos humanos foi abordada uma vez que a positivação legal não foi suficiente para proteger a vida e a dignidade do ser humano.

O método utilizado foi o dedutivo, com as considerações particulares baseadas em argumentos gerais, como também se utilizou o método indutivo, quando da análise de decisões de casos concretos pelos tribunais. O material empregado na elaboração do trabalho foi jurisprudência, artigos, material bibliográfico, legislação, sites da Internet.


1.    AS DIMENSÕES DOS DIREITOS HUMANOS

Para entender como se deu a constitucionalização dos direitos humanos, isto é, sua incorporação à Constituição, é preciso fazer uma contextualização histórica e conceitual do surgimento dos mesmos.

De acordo com o doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet (2010, p. 41) a “Magna Charta Libertatum” ou “Magna Carta de João Sem-Terra”, elaborada na Inglaterra no século XIII, é o principal documento encontrado para o estudo da positivação de direitos, mesmo que adstritos ao clero e a nobreza, como bem aventado por Fábio Konder Comparato (2008, p. 80):

O sentido inovador do documento consistiu, justamente, no fato de a declaração régia reconhecer que os direitos próprios dos dois estamentos livres – a nobreza e o clero – existiam independentemente do consentimento do monarca, e não podiam, por conseguinte, ser modificados por ele.

A “Magna Carta” promulgou direitos subjetivos aos governados tais como o “habeas corpus”, o devido processo legal e o direito de propriedade. Por conseguinte, importantes declarações de direitos foram formuladas, notadamente a “Petition of Rights” (1628), o “Habeas Corpus Act” (1679), e o “Bill of Rights” (1689) (COMPARATO, 2008, p. 81-83).

Todavia, de acordo com Sarlet (2010, p. 43) a origem dos direitos humanos não pode ser atribuída à positivação de direitos nestes documentos ingleses, por não traduzirem o atual sentido dos direitos fundamentais. O fato é que em tais declarações os direitos e as liberdades careciam da supremacia e da estabilidade necessárias para vincular o Parlamento.

Dessa forma, o marco inicial do surgimento dos direitos humanos deu-se com as lutas da classe burguesa pela queda do absolutismo monárquico representado pela nobreza. Nesse sentido, para Norberto Bobbio (2004, p. 24) a positivação dos direitos humanos advém da formação do Estado Moderno:

No plano histórico sustento que a afirmação dos direitos do homem deriva de uma radical mudança de perspectiva, característica da formação do Estado moderno, na representação da relação política, ou seja, na relação Estado/cidadão ou soberano/súdito: relação que é encarada, cada vez mais, do ponto de vista dos direitos dos cidadãos não mais súditos, e não do ponto de vista do direito do soberano, em correspondência com a visão individualista da sociedade […].

Nas palavras de Dalmo de Abreu Dallari (2005, p. 280, grifo do autor) apresentou-se, a princípio, a forma mais liberal do Estado Moderno, o Estado Liberal:

[...] o Estado Liberal, resultante da ascensão política da burguesia, organizou-se de maneira a ser o mais fraco possível, caracterizando-se como Estado mínimo ou o Estado-polícia, com funções restritas quase que à mera vigilância da ordem social e à proteção contra ameaças externas. Essa orientação política favoreceu a implantação do constitucionalismo e da separação de poderes, pois ambos implicavam o enfraquecimento do Estado e, ao mesmo tempo, a preservação da liberdade de comércio e de contrato, bem como do caráter basicamente individualista da sociedade.

Neste contexto de Estado liberal, a Revolução Americana foi a primeira a tratar de direitos humanos na famosa Declaração da Virgínia (1776), como bem ilustrado por Comparato (2008, p. 50, grifo nosso):

O artigo I da Declaração que “o bom povo da Virgínia” tornou pública, em 16 de junho de 1776, constitui o registro de nascimento dos direitos humanos na História. É o reconhecimento solene de que todos os homens são igualmente vocacionados, pela sua própria natureza, ao aperfeiçoamento constante de si mesmos. A “busca da felicidade”, repetida na Declaração de Independência dos Estados Unidos, duas semanas após, é a razão de ser desses direitos inerentes à própria condição humana. Uma razão de ser imediatamente aceitável por todos os povos, em todas as épocas e civilizações. Uma razão universal, como a própria pessoa humana.

A promulgação desta declaração foi de extrema importância, uma vez que impulsionou a luta pela proteção aos direitos do homem em outros países. Prova disso é a revolta da burguesia francesa contra o poder político do clero e da nobreza, estourando em 1789 a Revolução Francesa sob o lema “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Não se pode olvidar que a Revolução Francesa (1789) foi o ápice da garantia de direitos por meio da promulgação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual foi inscrita a primeira dimensão de direitos, consistente na garantia de direitos civis e políticos característicos do Estado Liberal, tais como liberdade, propriedade, segurança e igualdade perante a lei.

Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês), do pensamento liberal-burguês do século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado, mais especificamente como direitos de defesa, demarcando uma zona de não-intervenção do Estado e uma esfera de autonomia individual em face de seu poder (SARLET, 2010, p. 46-47).

Enfim, as Declarações da Virgínia e dos Direitos do Homem e do Cidadão positivaram os direitos individuais, que na visão de Celso Lafer (1988, p. 126) são:

[...] direitos inerentes ao indivíduo e tidos como direitos naturais, uma vez que precedem o contrato social. Por isso, são direitos individuais: (I) quanto ao modo de exercício – é individualmente que se afirma, por exemplo, a liberdade de opinião; (II) quanto ao sujeito passivo do direito – pois o titular do direito individual pode afirmá-lo em relação a todos os demais indivíduos, já que esses direitos têm como limite o reconhecimento do direito de outro.

Como visto, trata-se de direitos inerentes a cada cidadão. Assim, nos dizeres de Maria Paula Dallari Bucci (2006, p. 3) os direitos de primeira dimensão somente serão assegurados nas situações em que o Estado e os cidadãos se abstenham de agir, trata-se de garantias negativas.

Contudo, antes de abordar com mais cautela a evolução das categorias de direitos humanos, cumpre salientar que no presente trabalho utilizar-se-á o termo “dimensão” para designá-las ao invés do termo “geração”, uma vez que esta expressão pode ensejar a falsa impressão de substituição gradativa de uma categoria por outra.

O fato é que a teoria dimensional, na visão de Sarlet (2010, p. 45-46), revela o caráter cumulativo do processo evolutivo e afirma a natureza complementar de todos os direitos. Ademais, corrobora sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Portanto, à medida que novas dimensões de direitos humanos surgem, as já existentes não desaparecem. Nesse sentido, Jorge Neto (2009, p. 39) acredita que, além da complementariedade, a dimensão consiste na perspectiva histórico-vertical dos direitos, ou seja, no aprofundamento dos direitos.

Quanto às dimensões, a primeira consiste em direitos de cunho negativo, realizáveis no contexto de Estado Liberal que permite situações de favoritismos e desigualdades. Ocorre que estas situações associadas aos efeitos da revolução industrial como excesso de mão-de-obra, péssimas condições de trabalho e ínfima remuneração percebida pelo trabalhador, propiciam a formação da classe proletária. Souto Maior (2009, p. 247) elucida o contexto em se originaram as reivindicações dos operários perante a classe industrial, a burguesia e o clero:

É relevante lembrar que a consagração jurídica de liberdade, apoiada em preceitos liberais, aplicada a uma realidade de extrema desigualdade econômica e cultural, favoreceu a exploração desenfreada do homem pelo homem, trazendo consigo a produção de ódios que, concretamente, eliminaram qualquer chance para a construção da paz mundial.

Os ideais liberais de não intervenção estatal chocavam-se com as manifestações populares por um comportamento estatal ativo e de justiça distributiva. Desse modo, as reivindicações sociais ganharam força e o Estado Social surgiu. Com isso, ainda que de modo esquivo, a proteção à igualdade aconteceu e o Estado passou a assegurá-la e promovê-la. Surgem então os direitos de segunda dimensão que consistem em direitos a prestações sociais, conceituados por Sarlet (2010, p. 48) nos seguintes termos:

A utilização da expressão ‘social’ encontra justificativa, entre outros aspectos que não nos cabe aprofundar neste momento, na circunstância de que os direitos de segunda dimensão podem ser considerados uma densificação do princípio da justiça social, além de corresponderem à reivindicações das classes menos favorecidas, de modo especial da classe operária, a título de compensação, em virtude de extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente detentora de um maior ou menor grau de poder econômico.

É certo que o Estado Social possibilitou uma maior intervenção do Poder Público na economia, bem como exigiu a prestação de serviços públicos em prol dos titulares de direitos, o povo. Tudo isso em oposição à abstenção que se reclamava quando da reivindicação dos direitos de primeira dimensão, conforme Souto Maior (2009, p. 249):

O Direito Social, que tem por base a visualização do outro, buscando pelo espírito de solidariedade a elevação da condição humana, integrando o homem, sem distinções, ao todo social, está mais afeito aos dilemas postos pela efetivação dos denominados direitos fundamentais (vida, saúde, trabalho, lazer, intimidade, privacidade, liberdade de expressão, de crença religiosa etc.) que o Direito Liberal, voltado para a individualidade egoísta, desvinculada de qualquer interesse social.

Posteriormente, no período pós Segunda Guerra Mundial (1945), outros valores foram colocados em discussão, ensejando, assim o reconhecimento de direitos diversos dos já positivados. São os direitos de terceira dimensão, quais sejam, os direitos de fraternidade, desenvolvimento, paz, solidariedade, direitos dos povos. Sarlet (2010, p. 48-49) conceitua de maneira completa esta dimensão:

[...] trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, consequentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa. […] Dentre os direitos fundamentais da terceira dimensão consensualmente mais citados, cumpre referir os direitos à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação. Cuida-se na verdade do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas contundentes consequências, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais.

Estes direitos, portanto, diferem dos outros, pois reclamam a participação dos cidadãos e incitam a existência de uma consciência coletiva na atuação individual de cada membro da sociedade em consonância com o Estado.

Por fim, é importante esclarecer que alguns doutrinadores sustentam a existência de direitos de quarta dimensão composta por direitos que são pensados para solucionar problemáticas jurídicas novas, frutos da sociedade contemporânea. Sarlet (2010, p. 51) expõe em sua obra o posicionamento de Paulo Bonavides acerca do assunto:

Para o ilustre constitucionalista cearense, esta quarta dimensão é composta pelos direitos à democracia (no caso, a democracia direta) e à informação, assim como pelo direito pluralismo. A proposta do Prof. Bonavides, comparada com as posições que arrolam os direitos contra a manipulação genética, mudança de sexo, etc., como integrando a quarta geração, oferece nítida vantagem de constituir, de fato, uma nova fase no reconhecimento dos direitos fundamentais, qualitativamente diversa das anteriores, já que não se cuida apenas de vestir com roupagem nova reivindicações deduzidas, em sua maior parte, dos clássicos direitos de liberdade.

De todo o exposto, é de clareza solar que os direitos humanos se originaram das transformações da sociedade e das necessidades do ser humano, no intuito de materializar a dignidade humana.


2.    A RECONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Ocorre que a mera positivação destes direitos em diplomas legais não é suficiente para garantir a plena proteção ao ser humano. Isto porque ao final da Segunda Guerra Mundial, a despeito do extenso rol de direitos reconhecidos, o ser humano foi vítima de muitas atrocidades e crueldades.

Por conseguinte, várias críticas foram feitas à concepção positivista das normas, e em resposta a isto Piovesan (2012, p. 85) alerta para o surgimento da força normativa dos princípios, bem como ilustra que houve um reencontro com o pensamento kantiano, segundo o qual “as pessoas devem existir como um fim em si mesmo e jamais como um meio, a ser arbitrariamente usado para este ou aquele propósito”.

O fato é que após a fatalidade causada pela guerra, repensa-se o valor do ser humano, que cada vez mais carece de condições mínimas para alcançar sua dignidade. Nesse sentido é a reflexão de Comparato (2008. p. 38):

Pois bem, a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações em massa, pelos massacres coletivos e pelas explorações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos.

Após vivenciar o sofrimento o homem arrepende-se de seus próprios atos e mobiliza-se no intuito de criar normas capazes de evitar novos extermínios e garantir dignidade ao ser humano. Tais normas visam proteger os direitos humanos na esfera internacional, como bem lembrado por Piovesan (2012, p. 185):

Nasce ainda a certeza de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao âmbito reservado de um Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Sob esse prisma, a violação dos direitos humanos não pode ser concebida como questão doméstica do Estado, e sim como problema de relevância internacional, como legítima preocupação da comunidade internacional.

Eis que surge um novo campo do Direito, o denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos, que de acordo com Flávia Piovesan (2012, p. 184), “surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo”.

É, pois, no contexto do pós Segunda Guerra que irrompe a premente necessidade de reconstrução e reafirmação dos valores dos direitos humanos, como bem explicado por Piovesan (2010, p.38):

Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.

Neste cenário surge em 1945 a Organização das Nações Unidas (ONU). Trata-se de uma reconfiguração da antiga Liga das Nações que fora criada em 1919 sob o Tratado de Versailles. A ONU consiste em uma organização internacional constituída pelos países que desejam trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento do planeta (ONU, Disponível em: http://www.onu.org.br/conheca-a-onu/a-historia-da-organizacao/). Em 1948 esta instituição editou a Declaração Universal dos Direitos do Homem que, segundo Borsato (2011, p. 13) surgiu para validar as garantias da humanidade.

Como visto, é de extrema importância a proteção que se deu aos direitos através da criação de tratados e convenções internacionais. Ocorre que boa parte deles não são ratificados pelos países. Por esta razão é salutar que se promova a constitucionalização dos direitos, uma vez que a Constituição está no topo da escala normativa e possui supremacia perante o ordenamento interno.

Sarlet (2010, p. 29) afirma que a partir do momento em que os direitos humanos são positivados internamente nos Estados ganham forma de direitos fundamentais, que em regra, têm sua força normativa decorrente da norma constitucional e distingue-se pelo reconhecimento positivo no ordenamento jurídico interno.

A constitucionalização no Brasil, de acordo com Flávia Piovesan (2012, p. 80), ocorreu com o advento da Constituição Federal de 1988:

A Carta de 1988 institucionaliza a instauração de um regime político democrático no Brasil. Introduz também indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotados no Brasil.

Foi em decorrência da democratização do país que o campo de proteção dos direitos foi significativamente ampliado. Piovesan (2012, p. 83) descreve a preocupação do legislador constituinte em assegurar os valores da dignidade e do bem-estar aos indivíduos como imperativo de justiça social, uma vez que o conteúdo da Constituição prevê um extenso rol de direitos no preâmbulo da Carta Magna, elenca a cidadania e a dignidade da pessoa humana como os principais fundamentos que alicerçam o Estado Democrático de Direito, e por fim, positiva variados postulados como objetivos fundamentais do Estado brasileiro.

Portanto, a constitucionalização dos direitos humanos no Brasil além de positivar formalmente os direitos no ordenamento jurídico pátrio, previu valores éticos, propósitos e princípios no texto constitucional, sobretudo o princípio da dignidade humana.


3.    OS DIREITOS HUMANOS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

“A priori” é preciso compreender o significado de “direitos humanos”, objeto do presente estudo, em consonância com a expressão “direitos fundamentais”. Isto porque parte da doutrina tem utilizado ambos os termos como sinônimos com o mesmo conceito e conteúdo, sem saber ao certo ao que cada um se refere. A própria Magna Carta de 1988 não é precisa no emprego dos mesmos, conforme constatação feita por Sarlet (2010, p. 27):

[...] a exemplo do que ocorre em outros textos constitucionais, há que reconhecer que também a Constituição de 1988, em que pesem os avanços alcançados, continua a se caracterizar por uma diversidade semântica, utilizando termos diversos ao referir-se aos direitos fundamentais. A título ilustrativo, encontramos em nossa Carta Magna expressões como: a) direitos humanos (art. 4º, inc. II); b) direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e art. 5º, §1º); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, inc. LXXI) e d) direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, inc. IV).

Indaga-se se existe alguma distinção entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, pois ambas tratam de valores ligados à liberdade e igualdade com vistas à proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.

Grosso modo, em termos de conteúdo não há grandes diferenças. Contudo, não se pode olvidar que os direitos fundamentais são aqueles minimamente necessários a proporcionar uma vida digna ao seu titular, ao passo que os direitos humanos têm alcance ampliado, abrangendo, assim, os direitos positivados e os que ainda aguardam para serem positivados.

Entretanto, a maior distinção que existe entre os termos concerne ao plano de positivação, conforme ensinamento de Sarlet (2010, p. 29):

Em que pese sejam ambos os termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira e, diga-se de passagem, procedente para a distinção é que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado, ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional (internacional).

Como visto os direitos humanos estão consagrados no plano internacional, ao passo que os direitos fundamentais estão positivados no plano interno, isto é, nas constituições. Dessa forma, quando os direitos humanos são consagrados na Constituição eles ganham o “status” de direitos fundamentais. Sarlet (2010, p. 32) aborda as consequências desta incorporação:

Nesse sentido, os direitos humanos (como direitos inerentes à própria condição e dignidade humana) acabam sendo transformados em direitos fundamentais pelo modelo positivista, incorporando-os ao sistema de direito positivo como elementos essenciais, visto que apenas mediante um processo de “fundamentalização” (precisamente pela incorporação às constituições), os direitos naturais e inalienáveis da pessoa adquirem a hierarquia jurídica e seu caráter vinculante em relação a todos os poderes constituídos no âmbito de um Estado Constitucional.

Concluindo a ideia apresentada, o autor (2010, p. 34) esclarece que os termos não se excluem, mas se inter-relacionam cada vez mais, respeitadas as diferentes esferas de positivação.

No Brasil, a consagração dos direitos humanos no ordenamento jurídico interno como direitos fundamentais deu-se com o advento da Carta Magna de 1988. A positivação destes direitos visa, dentre os fundamentos da República Federativa do Brasil, à dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III). A dignidade figura como “valor constitucional supremo”, o valor mais importante da Constituição. Para Piovesan (2010, p. 48):

A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro. Na ordem de 1988, esses valores passam a ser dotados de uma especial força expansiva, eprojetando-se por todo universo constitucional e servindo como critério interpretativo de todas as normas do ordenamento jurídico nacional. 

A dignidade é, portanto, o fundamento de onde se irradiam todos os direitos fundamentais, pois é ela quem assegura o preenchimento adequado dos mesmos, como bem lembrado por Sarlet (2010, p. 109):

Neste sentido, importa salientar, de início que o princípio da dignidade da pessoa humana vem sendo considerado fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e que com base nesta devem ser interpretados. Entre nós, sustentou-se recentemente que o princípio da dignidade da pessoa humana exerce o papel de fonte jurídico-positiva dos direitos fundamentais, dando-lhes unidade e coerência.

No sentido formal de Constituição, a maioria dos direitos fundamentais está inscrita no Título II “Dos direitos e garantias fundamentais”:

Somente no art. 5º temos 77 incisos dispondo basicamente sobre direitos civis, ou seja, direitos relativos às liberdades, à não-discriminação e ao devido processo legal (garantias do Estado de Direito). Alguns dos direitos relativos às liberdades são retomados a partir do art. 170, que rege nossa ordem econômica. Do art. 6º ao art. 11, por sua vez, temos direitos sociais, que serão ainda estendidos entre os arts. 193 e 217. [...] Por fim, há, ainda, direitos ligados a comunidades e grupos vulneráveis, como a proteção especial à criança, ao idoso, ao índio (arts. 227, 230 e 231), ou, ainda, a proteção ao meio ambiente (art. 225 da CF) (VIEIRA, 2006, p.41).

Além dos direitos fundamentais inscritos no texto constitucional, incluem-se todos os outros necessários para preservar e promover a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, não se pode olvidar que, além das normas constitucionais brasileiras, existe a possibilidade de o Brasil aderir a tratados e convenções internacionais. O disposto no parágrafo 3º do artigo 5º trata da interação entre o ordenamento jurídico pátrio e os tratados internacionais de direitos humanos, possibilitando ao Brasil a constitucionalização de direitos reconhecidos e resguardados no âmbito internacional.

A constitucionalização de tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio, segundo Piovesan (2010, p. 49) elevou os direitos neles enunciados a “uma hierarquia especial e diferenciada, qual seja, a norma constitucional” (PIOVESAN, 2010, p. 49).

Desde o processo de democratização do País e em particular a partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil tem adotado importantes medidas em prol da incorporação de instrumentos internacionais voltados à proteção dos direitos humanos (PIOVESAN, 2012, p. 366).

Do exposto infere-se que, os direitos humanos na Constituição Federal de 1988 são os direitos já positivados, os extraídos do regime e dos princípios constitucionais e os decorrentes de tratados internacionais.

 


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inserção dos direitos humanos como direitos fundamentais no ordenamento pátrio é de suma importância para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Nessa medida, a Constituição Federal de 1988 garantiu um extenso rol de direitos sociais na proteção dos cidadãos brasileiros, o que só foi possível por meio do fenômeno da constitucionalização dos direitos humanos.

 


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOAVENTURA, Alana Duarte dos Santos. A constitucionalização dos direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3703, 21 ago. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25152. Acesso em: 28 mar. 2024.