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Lei nº 9714/1998: paradoxos em seu ventre

Lei nº 9714/1998: paradoxos em seu ventre

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SUMÁRIO: Introdução. 1.0 – patologia de uma sociedade afetada pelo crescimento do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 1.1 – um clamor sem eco; 1.1.1- Pelo Executivo; 1.1.2- Pelo Legislativo; 1.1.3-Pelo Judiciário. 2.0 – razão filosófica da objetividade jurídica dos tipos penais no ordenamento jurídico-penal brasileiro; 2.1 –Objetividade jurídica do crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 3.0 – 1º paradoxo: incompatibilidade da execução das penas alternativas aplicadas aos praticantes do crime de tráfico ilícito de entorpecente, dada a natureza da objetividade jurídica do mesmo tipo. 4.0 – 2º paradoxo: o equivocado e limitado conceito de violência contido no inciso i do artigo 44 do código penal. 5. 0 – 3º paradoxo: o descaso aos princípios. 6.0 -o verdadeiro limite do poder discricionário do julgador: o direito e a justiça, não a lei. 7.0 -elenco de alguns sofismas adotados para a aplicação das penas alternativas aos apenados por crime de tráfico ilícito de entorpecentes. 8.0 – conclusões. 9.0 – notas. 10 – bibliografia.


INTRODUÇÃO

Com a edição da Lei 9.714, de 25 de novembro de 1998, de apenas dois artigos, vários dispositivos no Código Penal tiveram a sua redação alterada, suscitando pelo menos uma controvérsia, qual seja a de que se é possível ou não a sua aplicação àqueles que forem condenados pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Seu embrião foi o Projeto de Lei nº 2684/96, discutido e aprovado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária em reunião plenária realizada no dia 29 de outubro daquele mesmo ano, no Estado do Paraná.

Compuseram dito Conselho nomes de peso de nosso cenário jurídico, tais como: Damásio Evangelista de Jesus, Julita Tannuri Lemgruber, Heitor Piedade Júnior, Luiz Flávio Borges D’Urso, dentre outros.

A lei em questão surgiu, então, como resposta à necessidade de repensar as formas de punição do infrator, posto que, nos moldes de então, a prisão não vinha cumprindo o principal objetivo da pena, que é o de reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não voltasse a delinqüir (1).

Já se admitia, desde então, que, infelizmente, inexistiam condições de suprir por inteiro a pena privativa de liberdade, mas que se caminhava a passos largos para o entendimento de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do seio social (2).

Portanto, e com o velado propósito de atingir-se aqueles objetivos, a mencionada lei deu à luz novas modalidades de penas alternativas, a par das pré-existentes, trazendo ao nosso texto penal novidades como as figuras da prestação pecuniária, da perda de bens e valores. A de prestação de serviços à comunidade; de interdição temporária de direitos e de limitação de fim de semana já eram nossas antigas conhecidas.

De acordo com a novel lei amplia-se o leque de opções para que seja convertida a pena privativa de liberdade por penas alternativas, e, para que o apenado possa usufruir seus efeitos benéficos deverá ele atender a requisitos tanto de ordem objetiva quanto de ordem subjetiva.

Dentre os requisitos objetivos estão o de a pena privativa de liberdade não ser superior a quatro anos e o da natureza do crime, isto é, quando este não for praticado com violência ou grave ameaça.

Buscou, pois, o governo um meio de atender às necessidades prementes do momento, sancionando a dita lei.

É bem verdade que a preocupação com a ressocialização do sentenciado pertence ao Estado e cabe a ele criar mecanismos para que tal se torne realidade.

A lei posta, então, de caráter inovador em certo ponto, não poderia servir, como o que parece servir, de meio para que o Poder Público fuja da sua responsabilidade no que toca a construção de novos presídios, de criação de grupos profissionais voltados única e exclusivamente para esse trabalho.

Ocorre, porém, que o atendimento de tais mecanismos reclamam pesados recursos financeiros, nunca disponíveis. A melhor solução, portanto, é abrir as portas dos presídios atuais, reduzindo o custo para o governo.

Os governantes não afirmam e nem negam isso. É preferível a via menos onerosa. Basta editar leis que: ou descriminem tipos ou reduzam penas ou que, de qualquer forma, criem benefícios para alcançar o seu objetivo de esvaziar os presídios.

Aliás, já bem antes da Lei 9714/98, em 1977, em plena ditadura militar, ao tempo do governo do General Ernesto Geisel, quando ele acumulava as funções de Presidente com a de Legislador, foi editada a Lei 6416/77, que teve os mesmos propósitos, a qual foi batizada de "lei áurea da marginalidade".

O que se deseja é o que preso, ao sair da Penitenciária esteja, de fato, recuperado e pronto para voltar ao convívio social. Entretanto, na realidade brasileira isto já se tornou utópico, porque o Poder Público não faz o seu papel, satisfatoriamente, cumprindo com a sua parcela de responsabilidade. Prefere deixar a solução para a Sociedade, qual seja a de suportar e acostumar-se a conviver com malfeitores, seja colocando barras de ferro em suas janelas, seja equipando as suas residências com dispositivos contra invasões, seja não mais saindo para ir a um teatro, seja fomentando, indiretamente, a fabricação de veículos blindados, e seja até mesmo buscando proteger-se contra as balas perdidas.

Esse quadro é lamentável, mas é real e ninguém consegue em sã consciência refutá-lo.

A lei 9714/98, como já acentuado acima, veio, então, sob a máscara da preocupação com a ressocialização do apenado, criar novas penas alternativas, mas a verdadeira razão não se encontra aí, mas sim na impotência estatal de facear as despesas com um presidiário. Ignorar isso é o mesmo que querer tapar o sol com a peneira. Nem mesmo uma criança, aluna de primeiro grau, acreditaria nessa preocupação.

Tudo aquilo que vise a aprimorar o ser humano, edificando-o, dignificando-o, é bem vindo e até bíblico, mas não se queira alcançar isso com hipocrisias, passando-se por pseudos Beccarias.

Não se pode negar que a lei em comento traz valiosa contribuição para evitar-se a segregação de alguém que cometeu um crime de pequeno potencial ofensivo, e muitos são eles, porém, não se pode aceitar que essa mesma lei permita que um criminoso que agride a Sociedade por inteiro, colocando-a em risco, permaneça solto para continuar a delinqüir.

É o caso do traficante de substância entorpecente, previsto como crime no artigo 12 da Lei 6368/76. Referido crime tem a sua pena mínima estabelecida em três anos de reclusão e multa.

De acordo com a Lei 9714/98, sendo ele primário, será beneficiado pela substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos. É essa a nova inteligência que se tem dado ao artigo 44 do Código Penal, alterado por aquela lei, posto que o requisito objetivo da pena inferior a quatro anos estará preenchido, além de se entender que não houve violência ou ameaça.

Como se sabe o crime de tráfico ilícito de entorpecentes tem como objetividade jurídica a saúde pública, ou seja é difusa a proteção que o Estado assegura ao apenar a prática de aludido crime. Protege um universo de pessoas não mensurável, mas sabe-se que é um contingente de seres humanos. Não se preocupa somente com uma pessoa, mas com todas.

Paradoxalmente, vem esse mesmo Estado, com a criação da citada lei, permitir que se aplique aos condenados por tais crimes a substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos. E por falar nestas, quais são elas mesmo?

Consoante o artigo 43 do Código Penal, com a nova alteração dada pela Lei 9714/98, tem-se o seguinte conjunto de penas restritivas de direitos:

Prestação pecuniária;

Perda de bens e valores;

Prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas;

Interdição temporária de direitos e

Limitação de fim de semana.

Ora, levando-se em conta que na aplicação de qualquer destas modalidades de penas restritivas de direitos deverá o julgador observar sempre a aptidão do sentenciado e o princípio constitucional da dignidade humana, fica muito claro que não houve a mínima sensibilidade tanto do governo ao apresentar o seu projeto, quanto do legislador que ao aprovar dito projeto em lei não voltou a sua preocupação para com a Sociedade.

Agregue-se a tal permissividade, ofensiva em todos os pontos, a limitação do conceito de violência.

Queremos, assim, neste ponto, delimitar o nosso trabalho e com ele tentar demonstrar que a aplicação da Lei 9714/98 aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes é inadmissível, pois que incompatível com tais penas restritivas, assim como pretendemos apontar que, em assim o permitindo, não se respeita a preponderância de interesses no embate entre princípios. Mais ainda, que o conceito de violência albergado pela novel lei não pode ser analisado de forma tão suave como pretendem alguns doutrinadores.

Tanto não pode que será demonstrada, a seguir, a situação de nossa Sociedade no momento atual.


1.0 – PATOLOGIA DE UMA SOCIEDADE AFETADA PELO CRESCIMENTO DO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES

Num artigo intitulado "Favelas:entre a cruz e a espada", de autoria de Rumba Gabriel (Antonio Carlos Ferreira Gabriel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho e membro do Movimento Popular das Favelas), publicado na Seção Opinião do Jornal "O Globo", do dia 23/8/2001, página 7, afere-se com absoluta firmeza o quadro inquietante por que passa a nossa Sociedade em termos de violência (não só a violência física, mas também a violência pelo simples fato de vender drogas) imposta pelo crime de tráfico de entorpecentes.

Embora o espírito que o norteou na apresentação do artigo tenha sido para revelar, de certa forma, a discriminação por que passa um morador da favela, fato é que, necessariamente, fez uma contribuição valiosa no sentido de adiantar qual a participação que o traficante de drogas tem para colocar o morador numa posição de inferioridade social.

Pelo que se percebe das razões do articulista, é na favela que os traficantes encontram seu abrigo, às vezes sem mesmo lá morarem. Transcreve-se, a seguir, por pertinente, um trecho da aludida publicação:

"Embora parte dos traficantes use as favelas como escritórios e escudo, muitos deles, os mais poderosos, os quais trazem as drogas para os morros, não vivem onde nós vivemos. E a imensa maioria dos favelados não tem relação direta com o tráfico, para além do temor, necessário na vida sob qualquer poder armado.

(...)Ficamos, então, entre a cruz e a espada, perplexos e impotentes diante de um Estado que só aparece na forma de violência e da humilhação, e de um poder paralelo que, paradoxalmente, em determinadas ocasiões, até nos protege.

Como se bastassem o desemprego e a má qualidade de vida, as favelas têm esses inimigos internos poderosos. O crescente comércio de drogas forma o quadro mais triste de um conto de fadas ao avesso, em que os adolescentes são as grandes vítimas, iludidos com o dinheiro fácil e demais vantagens ilusórias.

Meninas que se tornam mães aos 10 ou 12 anos, pais alcoólatras ou viciados em drogas, jovens de 15 a 18 anos transformados em reis temporários e depois sumariamente mortos, mas logo substituídos, garotos e garotas fascinados pela potência que as armas inspiram."

Sem fugir do óbvio aspecto da discriminação como ponto central do tema de Rumba Gabriel, e numa interpretação de seu texto, o que se tem de concreto ainda é que, de fato, o traficante constitui um poderoso inimigo interno para os favelados; ele é, sem sombra de dúvida, o desencaminhador dos muitos jovens do local. É ele quem estimula, com o poder das armas, a ilusória sensação de segurança física e financeira. Aliás, nunca vimos traficantes aposentar-se por tempo de serviço! Sempre morre em troca de tiros ou morto a mando de outro traficante na disputa de mando pelo morro.

De acordo com ele, as estatísticas demonstram cabalmente que os indicadores de violência nas favelas são idênticos ou piores que os países em guerra civil.

Nada obstante o presente quadro seja apenas uma amostragem do que efetivamente acontece nas favelas do Rio de Janeiro, não se pode olvidar que ele seja idêntico em toda e qualquer favela do Brasil. Também não se pode negar que a atuação dos traficantes tem as suas ramificações fora do contexto da favela, ou seja, noutro meio social, e com a mesma intensidade de violência.

A violência que se propaga não se resume na troca de tiros, nas mortes doutros traficantes. Não! Ela tem outros matizes, como a escravização dos jovens, como a utilização da mão-de-obra ilícita.

Lembremos que estamos num país neoliberal, que enfrentamos grave crise financeira, com alto índice de desemprego, sofrendo os efeitos da globalização.

Numa situação dessas, o homem decente, que preza pelo seu caráter, pela sua dignidade de homem de bem, ganhando um salário-mínimo de R$180,00 (ainda tem os descontos legais!), e que deve sustentar família, vê-se facilmente tentado a trabalhar para o traficante, ganhando muito mais que o salário que recebia de seu empregador formal e lícito.

Não existe nisso uma forte dose de violência estatal em razão da sua omissão de uma política de empregos mais séria? Entendemos que sim.

O traficante, portanto, percebendo, tal fraqueza, aproveita-se da situação e, por conseguinte, é ele o agente perverso dessa patologia de nossa Sociedade. A doença existe. Só não vê quem não quer.

1.1 UM CLAMOR SEM ECO

Sem embargo das estatísticas, das publicações acima, com cunho de desabafo do seu autor, das inúmeras ponderações no sentido de que alguma coisa seja feita para que o quadro se modifique, a verdade é que a população sofrida vive gritando sem encontrar eco. Lamenta no vazio.

Reclama-se daqui e dali e nada surte efeito.

Mas de onde poderiam vir as soluções? Certamente de alguma política governamental voltada para tanto. Porém, a resposta que se dá à Sociedade é a edição de mecanismos jurídicos, os quais, numa interpretação insólita, permitem a adoção de benefícios para os condenados por crimes de tráfico de drogas.

Na verdade, existe até reconhecimento por parte de nossos governantes de que a situação da violência perpetrada por traficantes é caótica. Contudo, ao darem a resposta, esta se traduz num tiro pela culatra, qual seja, a Sociedade deve sofrer mais do que o traficante, aceitando-o em seu berço. Ele a ofende por inteiro e com ela vai conviver. Não dá para compreender tamanha perversidade estatal.

Quando se disse acima que há um reconhecimento da grave situação vivida em razão da violência dos traficantes, tal se pode afirmar com segurança a partir dos seguintes argumentos, espalhados nos sub-itens adiante.

1.1.1- Pelo Executivo

O Poder Executivo, ao seu tempo, tem se mostrado inerte diante da questão, não a enfrentando como deveria.

Com efeito. Isto se afere e se infere, facilmente, das entrelinhas, da Exposição de Motivos que capeou o Projeto de Lei que se transformou na Lei 9714/98, assinado pelo então Ministro da Justiça, Nelson Jobim, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal.

Nesse sentido, vejamos as seguintes linhas daquele documento, principalmente de seu item 4 (3):

"Mas, se infelizmente não temos, ainda, condições de suprimir por inteiro a pena privativa de liberdade, caminhamos a passos cada vez mais largos para o entendimento de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do seio social."

Desnecessário, portanto, qualquer esforço mental para se chegar à conclusão de que o Executivo participou com expressiva parcela de omissão ao negligenciar a questão da gravidade do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, deixando um buraco negro no Projeto de Lei, cumpliciando-se com a lei aprovada, a qual amplia o poder discricionário dos julgadores. Negligenciou quando não teve a perspicácia reclamada para dizer que tais crimes dita lei não alcançaria.

1.1.2- Pelo Legislativo

Da mesma forma que o Executivo, o Legislativo, por sua vez, pecou na discussão do projeto, também não acenando com a restrição da aplicação da malfadada lei aos traficantes de drogas.

Não levou ele em conta o reclamo da Sociedade, principal fonte material de um ordenamento jurídico. Como sempre, identificando-se como o irmão siamês do Executivo, nesse e em outros projetos, mostrou-se subserviente.

Assim, na mesma proporção daqueloutro Poder, o Legislativo, igualmente, deu às costas para a Sociedade, deixando passar in albis um aspecto de tamanha relevância: Não impediu, ou pelo menos é o que parece, não ouviu a principal parte interessada na aprovação de um instrumento legal cujos efeitos podem levar, e levam na realidade, a uma violência superior àquela praticada pelo agente da conduta do crime de tráfico.

1.1.3-Pelo Judiciário

De todos os poderes da República, o JUDICIÁRIO ainda é aquele que se pode escrever com todas as letras maiúsculas, uma vez que tendo como escopo a dirimência de conflitos - e onde o homem interage estes existirão -, sempre se mostrou dito poder como o bastião da paz e da segurança jurídica de um país. É para ele que até mesmos os seus detratores acorrem na busca de seus direitos.

Infelizmente, com a edição da Lei 9.714/98, alguns julgadores têm se inclinado para a aplicação da mesma aos apenados pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes sob os mais variados fundamentos. Ao nosso ver, no entanto, sem qualquer consistência que justifique praticar um mal maior que o do agente da conduta, e contra a Sociedade.

Não precisa relembrar que, em princípio, todos os crimes têm como sujeito passivo a Sociedade.

Bem de ver, no entanto, que a posição da Sociedade ali é sempre secundária, posto que o legislador, ao priorizar os bens jurídicos para serem tutelados, sempre teve em mira a figura singular do indivíduo e não, diretamente, a Sociedade como um corpo que também sofre.

Mas, se assim é, como um pai poderá ser feliz e tranqüilo se não tem assegurado que seus filhos não serão alvos perfeitos do traficante de drogas?

Não nos consta que as várias interpretações dadas à Lei 9714/98 tenham sido no sentido de garantir a tal felicidade do coletivo. Ao revés, o que tem acontecido é um favorecimento interpretativo individual em detrimento do coletivo, do todo, da Sociedade.

Dizer que o juiz tem o poder discricionário para aplicar as penas alternativas é algo que não se refuta, mas dizer que pode, inclusive, escudado em tal poder, aplicar ditas penas aos traficantes é algo mais do que irrazoável. Aliás, este é um dos pontos básicos ainda a ser tocado neste trabalho.

Logo, da mesma maneira, o Judiciário deve rever as suas colocações em prol da Sociedade, pena de praticar um outro crime maior, penalizando o coletivo e favorecendo o singular quando se esquece que o comum sempre tomou a vez do singular.


2.0 – RAZÃO FILOSÓFICA DA OBJETIVIDADE JURÍDICA DOS TIPOS PENAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO-PENAL BRASILEIRO.

Não se desconhece que o nosso Direito Penal, sob o aspecto formal, está consubstanciado no Código Penal, que, por sua vez, está dividido em duas grandes partes: a Parte Geral e a Parte Especial. A primeira cuida da dogmática penal. É onde se situam os princípios fundamentais do Direito Penal e os fins visados pela legislação penal, adotados pelo País. Nela estão prescritas as bases e as condições da responsabilidade penal, os objetivos da pena, suas espécies, e métodos para a sua aplicação (4).

Percebe-se, assim, que o legislador procurou obedecer a uma certa regra de valores para dizer se determinado fato deve ser considerado com maior ou menor gravidade.

Esse norte adotado, na verdade representa fator preponderante para retratar a filosofia do Estado, a própria seqüência em que o Código coloca os tipos penais de acordo com sua gravidade. Na China, por exemplo, e outros países socialistas, consideram-se crimes de suma gravidade, punidos até mesmo com a pena de morte, aqueles praticados contra a ordem econômica (5).

Damásio (6) leciona que:

"Já dizia Carrara que a função específica do Direito Penal é a tutela jurídica. Visa o Direito Penal a proteger os bens jurídicos.

Bem é tudo aquilo que pode satisfazer as necessidades humanas. Todo valor reconhecido pelo Direito torna-se um bem jurídico. Os bens jurídicos são ordenados em hierarquia. O Direito Penal visa a proteger os bens jurídicos fundamentais para a vida em sociedade.

Impondo sanções aos sujeitos que praticam delitos, o Direito Penal robustece na consciência social o valor dos bens jurídicos, dando força ´as normas que os protegem".

Para a nossa realidade, pode-se notar que a vida guarda papel de suma relevância para os fins de proteção estatal, conforme se verifica no artigo 121 do Código Penal. A esta classificação decrescente, que notamos no aludido Código, damos o nome de objetividade jurídica, qual seja, que bem o legislador procurou defender e qual o grau de importância ele deu ao citado bem.

2.1 –Objetividade jurídica do crime de tráfico ilícito de entorpecentes.

Anote-se, de imediato, que as considerações anteriores a respeito da objetividade jurídica do crime praticado não estão circunscritas ao âmbito do Código Penal; pelo contrário, também nas leis esparsas ditas regras são obedecidas, sob pena de enfraquecimento do próprio sistema jurídico-penal. As razões filosóficas são as mesmas.

Assim é tratada a Lei 6368/76, também conhecida como Lei Antitóxicos, na qual são catalogados crimes em ordem de gravidade. Tanto isto é real que ela, inicia os crimes pelo artigo 12, que é o comumente chamado de tráfico, considerado o mais grave, passando por outros de menor potencial, e vai até o artigo 18, em cujos incisos se cuida de causas de aumento de pena.

Portanto, também nela o legislador não fugiu do critério filosófico esposado pelo Código Penal, na sua Parte Especial.

De um modo geral, ela procura preservar a saúde pública, pois que, principalmente o traficante, dissemina com o seu comércio de drogas um produto maléfico para a saúde de seus clientes.

Como já apontado antes, o tráfico de drogas tem um universo imensurável de destinatários; ele é difuso; atinge a toda uma coletividade e não foi à-toa que o legislador o classificou como o crime mais grave dentre o rol assinalado pela Lei 6368/76.

Como salienta Paulo Lúcio Nogueira (7)"o traficante deveria ser tratado com mais rigor, assim como punido com mais severidade, pois sua ação além de perniciosa, constitui uma ameaça constante aos jovens e à sociedade".

Esse mesmo autor ainda revela que:

"Na luta das autoridades contra os traficantes só têm levado vantagem os traficantes, que matam sem piedade aqueles que se atrevem a combater sua atividade criminosa, ilícita e destruidora, pois se os países têm escrúpulos em adotar medidas e punições mais severas contra as associações ou quadrilhas de traficantes, estas vão semeando o mal e intensificando o comércio de drogas, sem a correspondente punição, pois a própria interpretação das leis existentes acaba por favorecê-los".(8)

Relembre-se que a droga, e aqui não fazemos qualquer distinção sobre a natureza da mesma, causa motivações externas das mais variadas: inconformismo individual, familiar, profissional, religioso, a necessidade de auto-afirmação, decorrente da imaturidade, a qual encontra os seus adeptos, com mais freqüência, entre os jovens de 15 a 25 anos (9).

Na verdade, ela corroi a moral, inspira para o crime e tudo o mais que se considera nefasto. Ela, portanto, atingindo a sua vítima, não se limita a sujeitá-lo à dependência. Vai além. Estimula-o a praticar crimes, sem se considerar que a dependência comumente o leva também à morte.

O traficante é aquele que se escuda e se utiliza, para atingir os seus fins lucrativos, da mão-de-obra de favelados (os aviões); é ele quem dá a palavra final no morro; quem impõe a lei do silêncio; quem determina ao comércio fechar as portas quando bem lhe aprouver; quem mata os seus concorrentes; quem também mata ou manda matar aquele que não lhe paga o preço da droga por ele vendida; quem procura ser mascarado quando oferece um jogo de camisas de futebol para o time da favela e por aí a fora.

Qual o conceito, ainda que mínimo, que tal homem – o traficante - tem de dignidade humana? Como se pode esperar isso dele ao conceder-lhe a substituição da pena privativa de liberdade por uma das restritivas de direito?

Cabe aqui repetir a seguinte frase colocada em adesivos de automóveis:

"AME O SEU FILHO ANTES QUE UM TRAFICANTE O ADOTE".

De tudo o que foi dito até agora neste tópico é-nos permitido afirmar, seguramente, que: o crime de tráfico ilícito de entorpecentes ofende gravemente a saúde pública, assim como tem os seus tentáculos alcançando as demais pessoas.

As pessoas atingidas, indiretamente, pelo traficante, constituem uma gama de pessoas incontável e, por conseguinte, tal agente deve merecer um tratamento penal mais severo, posto que ele, para atingir a sua meta de comerciante deve, necessariamente, interagir com pessoas predispostas ao uso das drogas, ou mesmo fomentar o uso delas para os usuários já viciados.

Sem medo de errar, tráfico se traduz numa modalidade de câncer para o qual ainda não se encontrou a devida cura e sequer mesmo um meio para reduzir os seus perversos efeitos.

O quadro negativo é real e deve ser combatido. Soluções devem ser buscadas para que se minimize, pelo menos, a sensação de que nada está sendo feito para isolar da Sociedade os agentes de tal crime.

A nossa contribuição, calcada em razões de ordem jurídica e social, caminha com firmeza, como pode ser percebido, no sentido de que não se pode aplicar a Lei 9714/98 aos apenados pelo crime de tráfico de entorpecentes.

Neste sentido é que iremos demonstrar três paradoxos existentes na mesma Lei quando se pretender fazer tal aplicação para o fim de beneficiar àqueles agentes, mesmo em se tratando de primários, o que nos leva, com seriedade e fundamentos, a ser contrários à substituição da pena privativa de liberdade por uma das penas alternativas acima enfocadas.

O primeiro paradoxo é aquele relativo à aplicação de penas alternativas: não pode ser beneficiado o traficante, porquanto as penas em si mesmas são incompatíveis com o crime praticado em termos de correlação com a gravidade do delito e até mesmo de adequação já que o agente irá permanecer em contato diuturno com a Sociedade, sua principal vítima.

Nesse contato, por mais que se queira acreditar na possibilidade de que o agente irá expiar o crime perpetrado, não autoriza dizer que isso realmente irá acontecer; ao contrário, a presunção é de que crescerá nele a crença de que o crime compensa e o incentivará a continuar traficando. Noutras palavras, coloca-se a raposa para tomar conta do galinheiro.

O segundo paradoxo é aquele em que, a despeito do requisito objetivo do quantitativo máximo da pena aplicada – quatro anos -, a referida lei também confere a substituição desde que não tenha ocorrido violência ou ameaça.

Quanto à ameaça, abstraímo-nos de considerá-la, uma vez que desimportante para o propósito deste trabalho. Já a conceituação doutrinária que vem sendo dada à violência para propiciar o benefício é por demais branda, divorciada da realidade e, por assim ser tratada, não guarda consentaneidade com a objetividade jurídica do tipo em causa. Esclarecendo, mias uma vez, pune-se o coletivo em benefício do individual.

Por último, o terceiro paradoxo, que acreditamos ser o mais importante deles, que é justamente o fato de o legislador ordinário, na busca frenética de encontrar soluções políticas para o sistema prisional de nosso país, olvidou princípios constitucionais, sequer mesmo os considerou quando não foi expresso que a lei em questão não deveria alcançar o sujeito ativo do crime de tráfico de drogas.

Sobre estes três pilares será, pois, dado seguimento ao presente trabalho.


3.0 – 1º PARADOXO: INCOMPATIBILIDADE DA EXECUÇÃO DAS PENAS ALTERNATIVAS APLICADAS AOS PRATICANTES DO CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTE, DADA A NATUREZA DA OBJETIVIDADE JURÍDICA DO MESMO TIPO.

Como já apresentadas antes, as penas alternativas existentes em nosso Código Penal, acrescidas a este pela cogitada Lei 9714/98, são, de acordo com o artigo 43 e seus incisos, daquele diploma legal, as seguintes: prestação pecuniária; perda de bens e valores; prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; interdição temporária de direitos e limitação de fim de semana.

Vejamos cada de uma per si e, ao empós, indicaremos as inconveniências práticas de sua aplicação ao agente praticador do crime de tráfico ilícito de entorpecente.

Antes, porém, cabe ainda analisar, sob a ótica do próprio Código Penal, em que consiste cada uma delas.

Comecemos pela ordem do Código:

-A prestação pecuniária que, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo 45 do CP, consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários. Esta é a redação do dispositivo retrocitado.

Consoante a doutrina, existem três critérios para a fixação do valor da prestação pecuniária, que tem como natureza jurídica reparatória (10), vingando aquele que considera o prejuízo da vítima.

Pois bem, aqui já se depara com o primeiro impasse posto pela substituição quando a opção do aplicador for este tipo de sanção. Como poderá o julgador, no caso de tráfico, identificar a vítima, ou seus dependentes, se a tutela estatal é a saúde pública, com vítimas difusas, indeterminadas? Igualmente, ainda que o pagamento seja para entes públicos ou privados, como ficará a força cogente da reprimenda em relação ao apenado? Que efeito terá nele tal substituição? Qual eco será nele encontrado diante do pagamento que irá fazer?

Dependendo da sua capacidade financeira e/ou econômica, para ele poderá até soar como um prêmio, uma vez que pagando, estará ele liberado para continuar na sua atividade profissional. Isso nada mais é do que um escárnio da própria lei.

Não precisa ser muito inteligente para saber que os traficantes quando escolhem esse meio de vida estão imbuídos do ganho fácil e em quantias vultosas. Operam com milhões de reais, fazem lavagem do dinheiro sujo e posam, muitas das vezes, de pessoas honestas. São pessoas que usam a sua inteligência para a prática do mal e querem passar por pessoas de bem. Não existe o traficante ignorante.

Não faz muito tempo a CPI do Narcotráfico, da Câmara dos Deputados, convocou Fernandinho Beira-Mar, considerado um dos maiores traficantes do país, para ser ouvido, após o mesmo ter sido recambiado da Colômbia, onde foi preso. É de se lembrar a postura arrogante dele diante dos Parlamentares, numa demonstração inequívoca de desrespeito e de zombaria a quem o inquiria. A Deputada Laura Carneiro que o diga!

Naquela ocasião, dissera o mesmo que já estava pagando a sua dívida com a Sociedade e iria mudar de vida. Não se passou um mês e eis que a Polícia Federal traz a público a informação de que ele estaria gerenciando o seu negócio, isto é, traficando de dentro da própria prisão.

Nenhum traficante que se preze deixa de ser defendido por bons e caros Advogados. Muito raros são aqueles que procuram uma Defensoria Pública.

Uma coisa é certa, seja aquele que lida com vultosas quantias, ou seja, aquele de classe média, fato é que, embora condenados, pagando suas penas, mesmo as pecuniárias, quando estão de volta não procuram uma atividade lícita, continuam desempregados, mas sempre com dinheiro. Como se explica isso? Quem desacredita disso?

O que desejamos indicar com tais afirmações é que não negamos a razão de ser da aplicação da pena pecuniária como forma alternativa da pena privativa de liberdade, até mesmo porque ela pode atingir o seu propósito em outros tipos de crimes, mas sim dizer que o que nos incomoda é a flagrante inutilidade dela em relação aos traficantes, posto que nenhum efeito pedagógico teria, nenhum alcance psicológico possui e nem mesmo qualquer mudança de comportamento do agente logra obter.

Desta maneira, parece-nos que ficou razoavelmente verificado que, na verdade, quando se sustenta a possibilidade da substituição da pena privativa de liberdade pela modalidade em causa, o que resulta é uma autêntica incompatibilidade. É uma incongruência absurda.

Em seqüência, passamos, agora, para a modalidade de perda de bens e valores:

-Vem ela estabelecida no parágrafo terceiro do mesmo artigo 45 do CP e consiste em: na perda de bens e valores pertencentes aos condenados dar-se-á, ressalvada a legislação especial, em favor do Fundo Penitenciário Nacional, e seu valor terá como teto - o que for maior - o montante do prejuízo causado ou o do provento obtido pelo agente ou por terceiro, em conseqüência da prática do crime. Assim, pois, está escrito.

Aqui temos dois pontos: a perda de bens e a perda de valores.

Parece certo, pois, que ambos reverterão sempre para o Fundo que a lei destina.

Ora, mas acontece que esta modalidade de pena, que aqui opera como sanção única, já que substitutiva, se aplicada ao traficante, desnatura por inteiro os efeitos da sentença condenatória que, de conformidade com a alínea "b" do artigo 91 do CP, impõe, também, a perda em favor da União dos bens ou valores auferidos com a prática do crime.

Percebe-se, assim, que uma das normas deve prevalecer e não as duas ao mesmo tempo. Isto porque: se se adotar que prevalece a da pena alternativa, estar-se-á esgotando nela mesma os efeitos da sentença penal condenatória e isto será mais do que um prêmio para o traficante; ao contrário, se se admitir que prevalece a aplicação conjunta, qual efeito terá a sentença condenatória? Estarão os efeitos absorvidos pela aplicação da pena alternativa?

Podemos estar laborando em equívoco, mas a idéia que nos domina é a de que o traficante sai com um enorme lucro e isto nos força, mais uma vez, a dizer que esta modalidade de pena restritiva de direitos não é compatível para ser aplicada naquele tipo de crime.

Cuidamos agora da prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas:

-As considerações acerca da mesma estão diluídas nos quatro parágrafos do artigo 46 do Código Penal. De acordo, pois, com tais dispositivos, ela será aplicada sempre que a pena privativa de liberdade for superior a 6 (seis) meses, consistente na atribuição de tarefas gratuitas ao condenado; dar-se-á em entidades assistenciais, hospitalares, escolas, orfanatos, e outros estabelecimentos congêneres, em programas comunitários ou estatais e o cumprimento das tarefas deverá obedecer à razão de 1(uma) hora por dia de condenação, fixadas de modo a não prejudicar a jornada normal de trabalho.

Parece mais do que óbvio a incompatibilidade na aplicação de tal pena. Tão óbvio que basta ter em mente aquela idéia de se colocar a raposa para tomar conta do galinheiro.

Averbe-se o seguinte: é pressuposto do cumprimento de tal pena o convívio do sentenciado com diversas outras pessoas nas entidades beneficiadas com o trabalho gratuito. Pois bem. Cuide-se de que ele irá cumprir a prestação de serviços numa escola, por exemplo. Passado algum tempo, estará ele vendendo o seu produto para alunos daquela escola. A arte de vender o seu produto é persuasiva.

Note-se que a incompatibilidade não necessita ser calcada em raciocínio jurídico profundo. Apenas a demonstração da lógica convence que ela é inadequada para casos que tais.

A quarta modalidade de pena restritiva de direitos, que é a interdição temporária de direitos tem como sub-espécies: a) proibição do exercício de cargo, função ou atividade pública, bem como de mandato eletivo;b) proibição do exercício de profissão, atividade ou ofício que dependam de habilitação especial, de licença ou autorização do poder público;c) suspensão de autorização ou habilitação para dirigir veículo e d) proibição de freqüentar determinados lugares. (art.47, incisos de I a IV, do Código Penal).

Pode-se empregar aqui o mesmo raciocínio adotado para a prestação de serviços à comunidade.

Não será difícil encontrar algum dia um traficante que, de fato, seja servidor público, e que, como pena restritiva de direitos receba como sanção justamente não trabalhar. A assertiva serve para as demais sub-espécies.

O que causa estranheza é o legislador achar que inovou quando, na parte final do inciso I do art. 47, proíbe o exercício de mandato eletivo.

Ora, nenhum milagre o fez na medida em que decorre de qualquer sentença penal condenatória a suspensão dos direitos políticos, nos termos do inciso III do artigo 15 da Constituição da República. Qual, então, a razão prática da colocação da proibição com natureza de pena?

Por derradeiro, a limitação de fim de semana. Segundo o artigo 48 do CP ela consiste na obrigação de permanecer, aos sábados e domingos, por 5 (cinco) horas diárias, em casa de albergado ou outro estabelecimento adequado. O parágrafo único desse artigo esclarece que, durante a permanência poderão ser ministrados ao condenado cursos e palestras ou atribuídas atividades educativas.

Duas perguntas podem ser postas: 1) a realidade prisional brasileira contempla, de fato, a casa de albergado, mas qual o número delas? Elas existem em todas as comarcas do país? Qual tem sido a solução na prática? 2) os cursos e palestras (certamente voltados para o fim de reeducar o condenado) são suportados pelo Poder Público? Desde quando? Onde?

Portanto, e encerrando este primeiro paradoxo, a conclusão baseada na lógica, sem sofismas, e na realidade brasileira, é a de que nenhuma das modalidades, ou sub-espécies das penas alternativas não vai ao encontro da intenção do governo;ao revés, serve para estimular a mercancia. Serve para enganar a coletividade. Serve para tripudiar sobre a inteligência do mais ingênuo operador do Direito e, principalmente, não traz em si nenhuma força pedagógica para reeducar o condenado.

Acresça-se, por fim, neste tópico, em reforço do mesmo, o que foi dito pelo Senhor Presidente da República ao vetar a pena de recolhimento domiciliar quando da sanção da Lei 9714/98:

"Senhor Presidente do Senado Federal,

(...)

(...)

Ante tais razões, comunico a Vossa Excelência que, nos termos do § 1º do art. 66 da Constituição,resolvi vetar parcialmente, por contrariar o interesse público, o Projeto de Lei nº 2.684, de 1996 (nº 32/97 no Senado Federal), que "altera dispositivos do Decreto-Lei nº 2,848, de 07 de dezembro de 1940 – Código Penal", incidindo o veto sobre os dispositivos a seguir indicados.

"Art. 43.

III- recolhimento domiciliar;

Razões do veto

A figura do "recolhimento domiciliar", conforme a concebe o Projeto, não contém, na essência, o mínimo necessário de força punitiva, afigurando-se totalmente desprovida de capacidade de prevenir nova prática delituosa. Por isto, carente do indispensável substrato coercitivo, reputou-se contrária ao interesse público a norma do Projeto que a institui como pena alternativa"(11)

É de se concordar em gênero, número e grau com as razões do veto. O que não se concebe é como tais razões, agora, na prática, não tenham servido para operar como exceção da aplicação da malsinada lei ao crime de tráfico de entorpecentes, já que tais razões teriam o mesmo peso para tanto.


4.0 – 2º PARADOXO: O EQUIVOCADO E LIMITADO CONCEITO DE VIOLÊNCIA CONTIDO NO INCISO I DO ARTIGO 44 DO CÓDIGO PENAL.

A válvula de escape deixada pelo legislador no mencionado inciso do artigo 44 do Código Penal é outro senão a ser discutido aqui.

Dizer que o traficante merece ser contemplado com a aplicação de qualquer das penas restritivas de direitos justamente porque sua conduta não é carregada de violência é pura inverdade, como iremos demonstrar a seguir.

De acordo com grandes nomes de nosso cenário jurídico-penal, tais como Damásio E. de Jesus (12), por exemplo, a violência que gera o impedimento da aplicação da substituição da pena privativa por restritiva é somente a física. Segundo ele, o critério de interpretação da expressão violência empregada no citado inciso não é ampla, pois exclui a ficta e a imprópria, esta sendo a que consiste em qualquer outro meio que não seja violência física e grave ameaça.

Com todas as vênias possíveis, ousamos discordar desse ícone nacional. A violência vem revelada de várias formas; possui muitas variedades, inclusive a violência oficial, talvez a mais grave de todas.

Para demonstrar que isso é correto, iremos lastrear a assertiva nos ensinamentos doutro grande mestre, que é Paulo Lúcio Nogueira (13), para quem a violência possui muitas formas, a saber:

1.Violência institucional: para ele, as nossas leis, em regra são mal feitas, mal elaboradas e instituídas sem qualquer discussão. Por isso mesmo, não chegam a ser aplicadas, pois se ressentem de vícios de origem.

Os nossos legislativos, integrados por homens sem formação e sem escrúpulos – salvo raríssimas exceções -,comportam-se de maneira violenta contra o povo, ao atuarem conforme as conveniências momentâneas e em função de privilégios de certos grupos e pessoas.(14)

2.Violência legal: para o autor, as leis existentes na esfera penal, que beneficiam flagrantemente os criminosos, têm agido com violência contra a própria Sociedade, que se vê desprotegida, agredida e sem ter a quem recorrer(15). Aduz, ainda, que tal violência, que os defensores dos direitos humanos insistem em não reconhecer, existe para ampliar os direitos dos criminosos. (16)

3.Violência política: para ele é aquela que ocorre quando o fim visado é diverso do bem público.

4.Violência judicial: conforme o autor, há também os juízes, ainda bem que insignificante minoria, que desprestigiam o Judiciário ao proferir sentenças beneficiando políticos corruptos, com argumentação desprovida de conteúdo jurídico. É outra forma de violência para aqueles que ainda acreditam na Justiça. (17)

5.Violência das drogas. Aqui, vale a pena transcrever da obra do autor o trecho pertinente:

"O mundo vem sendo perturbado cada vez mais pelo tráfico de drogas, que tem feito vítimas freqüentes, principalmente entre os jovens, que são a presa mais fácil dos traficantes. O crime de tráfico de drogas em nossa legislação é equiparado aos crimes hediondos (Lei n, 8.072, de 25-7-90); embora punido com benignidade, tem preocupado as autoridades e recebido a devida atenção, ainda que não tenha diminuído. Ao contrário, o uso das drogas tem aumentado consideravelmente, fazendo inúmeras vítimas e propiciando altos ganhos. Como se sabe, o tráfico de drogas é um comércio altamente rendoso.

O pior é que a violência causada pelas drogas e pelo álcool está intimamente ligada à criminalidade, além do mal causado à saúde da própria pessoa. Tanto o uso do álcool, que é droga mantida pelo governo – recebe lucros do seu comércio -, como o das substâncias entorpecentes, são combatidos como crimes"(18).

Fora tais modalidades de violência enfocadas pelo autor lembrado, outras também são de sua indicação, tais como: aquela da publicidade; contra a criança; a da própria criança; a contra a família; na educação; na saúde; no esporte; do dinheiro; no trânsito; a ecológica; a religiosa; a racial; a dos honestos, passando por todos nós para chegar ao linchamento. Nenhuma dessas mostra-se de interesse prático para o desenvolvimento deste nosso trabalho.

Agregue-se a elas mais uma: a da mídia. Esta como canal de veiculação de informações, não raro, incentiva a violência quando faz a inversão de valores, dando maior peso a um determinado fato em detrimento de outro.

Verdade. Não faz muito tempo um dos canais de televisão com grande audiência, numa edição dos seus jornais, divulgou que um grupo do Movimento Sem Terra, num dos Estados do Nordeste, invadiu o prédio da Assembléia Legislativa quando ali estavam reunidos os seus membros, tempo em que os invasores, com faixas e proferindo palavras de ordem, transformaram aquele cenário numa verdadeira balbúrdia.

Foi necessária a intervenção da polícia militar para retirar dali os invasores.

A seguir, ao ser entrevistado, o Presidente daquela Casa disse em tom enérgico que fora obrigado a utilizar a força, posto que aquilo era inaceitável.

Pois bem. Na sua análise, a jornalista, com uma entonação de voz reprovadora, com uma expressão facial de desaprovação sobre o problema, disse que aquele Presidente agiu sem compostura e que usou de violência contra os sem terra.

Moral da história: Os desavisados que ouvem isso acreditam, sinceramente, que toda invasão de prédios públicos é lícita. Isto é o que se pode indicar como exemplo de fomento à desobediência civil através de um veículo de comunicação de massa.

As espécies de violência que nos interessam de perto são aquelas acima destacadas. Elas sim guardam perfeita sintonia com a razão de ser da nossa sustentação contra a aplicação das benesses da Lei 9714/98 ao traficante de drogas.

As cinco primeiras formas de violência se encaixam como luva para a demonstração de que tanto o legislador não se mostrou sensível à agrura da sociedade ao editar a lei em causa como, igualmente, dita sensibilidade passa a ser cobrada com mais veemência do julgador, este sim o verdadeiro e oficial intérprete da norma jurídica.

Por mais que se deixe a ele um certo grau de discricionariedade no aplicar a citada lei, jamais poderá ele fazer ouvido de mercador aos anseios da sociedade. Agindo de tal forma, qual seja contrário à realidade palpável, estará ele placitando a violência das drogas e estará, por seu turno, contribuindo com a sua parcela de violência.


5. 0 – 3º PARADOXO: O DESCASO AOS PRINCÍPIOS

Antes, porém, uma breve noção de princípio.

Ter noção é ter idéia, conhecimento, informação de alguma coisa. Não é a mesma coisa que definir, que significa restringir, delimitar, identificar, o que seja referida coisa, dizendo o que é.

Nos léxicos, estes dizem ser ele a causa primeira, a origem de alguma coisa.

Estreitando mais a idéia, já agora de forma mais simples, mas voltado para um conteúdo mais didático, imagine-se a construção de um prédio no qual podemos visualizar o telhado, as janelas, as portas, etc.

Cada um desses componentes tem a sua importância: o telhado, se não existisse, permitiria que chovesse dentro do prédio, da mesma forma que as janelas; estas, se ausentes, além das chuvas, não permitiriam a entrada de ar e tampouco da luminosidade e por aí afora.

Agora se imagine esse mesmo prédio com todas essas peças, mas sem o alicerce, que é vulgarmente chamada de sapata, na linguagem dos pedreiros. Com certeza de nada adiantariam aquelas peças sem o alicerce. Elas não se sustentariam no ar.

Portanto, aqui está uma idéia básica do que seja princípio: a sustentação de alguma coisa.

Esta mesma idéia, voltada para a Ciência Jurídica, nos autoriza afirmar que os princípios são: "verdades objetivas, nem sempre pertencentes ao mundo do ser, senão do dever-ser, na qualidade de normas jurídicas, dotadas de vigência, validez e obrigatoriedade" (Luiz Diez Picazo, citado por Paulo Bonavides) (19).

De acordo com Bonavides (20), o conceito de princípio deve estar ligado, ainda, ao de normatividade, por ser esta uma característica qualitativa daquele, sem a qual estaria incompleto referido conceito.

Enquanto o princípio tem a sua dimensão de valor, axiológica, portanto, a norma tem a sua dimensão de validade.

Num confronto entre dois princípios, valorizar-se-á um deles para a aplicação a um determinado caso concreto, sem, contudo, perder a validade aquele que foi preterido; na colisão entre normas, uma perde a sua validade em detrimento doutra, isto é, as duas normas não podem continuar a valer diante de determinada situação.

Importa-nos para o presente trabalho tecer considerações acerca dos seguintes princípios: o da individualização da pena e o da dignidade humana, passando ambos pela teoria da defesa social, esta corolário lógico do princípio da convivência justa, cápsula maior dos direitos fundamentais.

O princípio da individualização da pena, consagrado pelo artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição da República Federativa do Brasil, deve encontrar no exame da culpabilidade do agente os elementos necessários à justificação da pena que concretamente lhe é aplicada (21).

Na lei infraconstitucional, ele está assente no artigo 59 do Código Penal, que aponta para o julgador as diretrizes a serem adotadas para ser encontrada a exata medida da culpabilidade do agente praticador do crime.

Neste sentido, ainda com respaldo na mesma obra de Fernando Galvão (22), cita-se o magistério do doutrinador espanhol Juan Córdoba Roda, para quem:

"(...) o critério da culpabilidade é o regulador essencial da individualização da pena e deve impedir que a medida da pena ultrapasse o marco que por ele é estabelecido como justo para censurar o autor do fato punível. Afirma o professor espanhol que o princípio da culpabilidade não permite que sejam tomados em consideração pressupostos distintos da ação culpável para efeitos de criar ou agravar a responsabilidade penal".

Óbvio, pois, que tal princípio tem um campo restrito de incidência, qual seja, somente o da figura do agente de um determinado crime. Ele tem considerações estanques. Não se espraia por toda a Sociedade. O juiz não o aplica indistintamente, só diante do caso concreto.

Nesse momento, o magistrado leva em consideração a dignidade do ser em julgamento e, certamente, terá em mente o princípio da dignidade humana já que, provavelmente, irá impor uma pena e, como conseqüência disso, provavelmente irá isolá-lo da Sociedade.

É justamente nesse instante que surge o drama de consciência de muitos: como mandar para a cela um ser humano? Será que ele irá ter os seus direitos de preso respeitados? Será que ele terá condições, um dia, de retornar à Sociedade completamente recuperado? Sua dignidade humana será preservada? Ele tem de decidir.

Nesta hora, julgando um praticante do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, primário, vem a falha da lei em seu socorro, por omissa a respeito. A solução então é a seguinte: ora, se a novel lei não me proíbe, e em nome do principio da dignidade humana, irei condená-lo à pena mínima, que é de 3 (três) anos e a substituirei pela de penas restritivas de direitos com opção pela prestação de serviços à comunidade.

Ocorre, porém, que tal raciocínio fere outro interesse maior: o público, o coletivo, o bem-estar de uma Sociedade, a qual deve ser protegida também e que é constituída de pessoas, de seres humanos com os mesmos direitos do apenado. A dignidade humana dos componentes desta é flagrantemente brutalizada.

Com efeito. O princípio da dignidade humana está expresso no inciso III do artigo 1º da nossa Lei Fundamental.

Segundo a Carta Magna, constitui ele um dos seus pilares, além doutros evidentemente. É nele que se insere a idéia de cidadania, numa acepção plena, como ideal de justiça de todos.

Não nos interessa aqui, para os fins deste trabalho, vascular os conceitos de pessoa na filosofia grega, para quem o homem era um animal político ou social, como em Aristóteles, cujo ser era a cidadania, o fato de pertencer ao Estado, que estava em íntima conexão com o Cosmos; não nos interessa, igualmente, o conceito como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo.

Mas nos interessa trazer a lume o conceito de Immanuel Kant (23) que diz que o homem é um fim em si mesmo e, por isso, tem valor absoluto, não podendo, de conseguinte, ser usado como instrumento para algo, e, justamente por isto tem dignidade, é pessoa.

Não nos interessa, outrossim, utilizar a terminologia empregada por Miguel Reale (24) acerca das três concepções da dignidade humana, que são: o individualismo; o transpersonalismo e o personalismo.

Mas é interessante afirmar que a pessoa tem a perspectiva de valor último, de valor supremo da democracia, que a dimensiona e humaniza. É, igualmente, a raiz antropológica constitucionalmente estruturante de um Estado de Direito (25).

Pelo que se depreende disso tudo, quando se afirma que nem todos os princípios constitucionais são absolutos, já que cedem diante de uma valorização, é que o princípio da dignidade humana é, deveras, absoluto e, por mais que se procure reduzir a sua dimensão axiológica nunca ele poderá curvar-se a outro princípio por mais valioso que seja.

Ao nosso aviso, pois, o princípio da dignidade humana seria o canal por onde todos os outros princípios passariam necessariamente, sob pena de a estes serem negados qualquer valor.

Que o juiz se preocupe com a dignidade humana do sentenciado é mais do que louvável, mas que ele se esqueça que do outro lado tem a Sociedade também merecedora da mesma preocupação é fato inaceitável.

Para que tal preocupação se materialize, mister seria o trabalho mental de busca da dimensão axiológica dos princípios a fim de visualizar a preponderância dos interesses em jogo.

Ora, se é cediço que um princípio não revoga outro, mas sim que existe a preponderância de um sobre o outro, é mais do que certo que o princípio da dignidade humana, ao se aplicar as benesses da Lei 9.714/98 ao traficante, foi relegado a segundo plano, ou se o foi, somente houve consideração em relação ao agente infrator. A Sociedade ficou de fora do raciocínio do julgador.

Mas, mesmo que se admita que em tal construção o julgador desprezou a Sociedade, tenhamos em mente que outro princípio se afigura de grande relevância para romper, de vez, com a possibilidade de aplicação da lei 9.714/98 aos casos mencionados, e para demonstrar o terceiro e último paradoxo.

Trata-se do princípio da convivência justa, inserto no inciso I do artigo 3º da Constituição da República Federativa do Brasil, imposto como um dos objetivos fundamentais da citada República.

Essa convivência justa, ideal de todos, encontra maior explicação na defesa social. Esta, ao nosso aviso, constitui um dos corolários lógicos daquele objetivo.

Fernando Galvão (26) assim leciona a defesa social, como teoria:

"Essa concepção parte de uma visão organicista da sociedade e reconhece que esta possui o direito de defender-se de qualquer ofensa que lhe seja dirigida. Enrico Ferri utiliza como comparação a colocação de que, se o homem atacado por uma enfermidade deve procurar o médico, a sociedade, da mesma forma, possui o indiscutível direito de defender-se mediante a aplicação da pena, não da ofensa concretamente individualizada, mas sim da repercussão social dessa ofensa. Ferri sustenta que a primeira e fundamental afirmação de um critério positivo da responsabilidade penal é que o homem vive em sociedade. A responsabilidade penal, assim, é social e não moral. A teoria da defesa social não pode ser entendida separadamente dos postulados do positivismo penal, sendo deste apenas uma das suas engrenagens".

A convivência justa encerra a idéia de participação coletiva de todos aqueles que não praticam o crime e não entre os criminosos com os não-criminosos.

Entrementes, tal assertiva não se mostra real na medida em que o julgador não a tem como objeto na fundamentação de uma decisão penal condenatória que enverede para a aplicação de penas alternativas ao traficante de drogas.

Assim agindo, estará ele relegando a um plano inferior valores maiores de uma sociedade e fugindo daqueles objetivos estampados na Magna Carta.

Esse desvalor constitui, pois, o terceiro e último paradoxo da Lei 9.714/98.

Quer-se dizer que nesse processo mental de busca da dimensão axiológica dos princípios, que têm força de norma, esqueceu-se de que o princípio da individualização da pena não pode entrar na comparação, pois que próprio e exclusivo da lei penal, e obrigatório na aplicação de qualquer pena, e deixando de lado um outro de alta importância social, que é o da convivência justa.

Frise-se ademais que, ainda que não queira o aplicador da lei penal, curvar-se aos princípios para fugir da errada convicção de que se pode aplicar as penas restritivas de direitos aos traficantes de drogas, cabe dizer que o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, que é a norma das normas infraconstitucionais, de super direito, avisa que: "Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".

Trata-se, como visto, de uma imposição, de uma vinculação do magistrado com tais princípios: o fim social e o bem comum.

Logo, qual a finalidade social na aplicação de penas alternativas a um traficante diante de tudo que se apontou de negativo a respeito da sua conduta, tendo como vítima a própria sociedade? Qual o bem comum tutelado com tal aplicação? Aquele entre os traficantes?

Na verdade, a aplicação de uma lei estará sempre e sempre condicionada àqueles propósitos insculpidos no referido artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Qualquer outro raciocínio, por mais brilhante que seja, não conseguirá demonstrar a possibilidade jurídica de aplicação de tais penas aos traficantes de drogas.

Tanto isso é verdade, que trazemos à colação, por inteiro, artigo do eminente procurador de justiça aposentado do Estado de Santa Catarina, Dr. Agamenon Bento do Amaral, mestre em Direito e professor da Universidade Federal daquele Estado, intitulado "Aplicação das penas restritivas aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes, extraído da Internet no site www.jusnavigandi.com.br, cuja essência difere totalmente do que ora comungamos.

Veja-se o artigo, na íntegra, a seguir:

"A recente publicação da Lei nº 9.714, de 25/11/98, trouxe substanciais alterações no cenário jurídico relativamente à aplicação das penas restritivas de direitos e, como já era de se esperar, já está suscitando entre os operadores do direito, dúvidas e controvérsias, as mais díspares possíveis.

 Com efeito, basicamente, algumas dessas dúvidas ou controvérsias, referem-se ao âmbito de incidência dos dispositivos modificadores e às suas aplicações legais supervenientes ante outras disposições de leis especiais ora existentes que, sobre a aplicação das penas correspondentes, contém disposições diversas, umas mais severas e outras mais benignas em relação a lei ora em comento.

Assim, por exemplo, em relação à Lei nº 9.099/95 que prevê a aplicação de penas restritivas de direitos ou multas à infrações consideradas de menor potencial ofensivo ( ameaça, lesão corporal de natureza leve, etc.), a nova lei em certos aspectos, é mais severa porque para os crimes cometidos com "violência ou grave ameaça" não é permitida a alternatividade da sanção a ser imposta e, por isso mesmo, num eventual confronto por parte do julgador entre aplicar as disposições da lei mais branda (Lei nº 9099/95) e a nova disposição, por certo deverá aplicar as disposições da primeira lei antes citada em atenção ao princípio da não retroatividade da lei mais gravosa.

Por outro lado, em relação à Lei nº 8.072/90 ( Lei dos Crimes Hediondos), especificamente quanto aos delitos dos arts. 12, 13 e 14 da Lei nº 6368/76 (Lei Antitóxicos), a situação se passa de modo diferente, ou seja, a possibilidade de aplicação da pena restritiva em substituição à privativa de liberdade segundo a nova diretiva do art. 44, I, do Código Penal, tem sido inadmitida por muitos sob os mais variados argumentos, mormente os relacionados com a repugnância do crime e os seus conhecidos malefícios causados à sociedade e, até, imputando-se aos seus autores a responsabilidade pelo descaminho e crimes praticados por menores de todas as camadas sociais. Além disso, ainda, os defensores dessa tese, sustentam a inaplicabilidade das novas disposições aos delitos de tóxicos porque, estando eles disciplinados em lei especial, mormente no que diz respeito ao cumprimento das penas, não poderiam ser alvo de "disposições gerais" contidas em outra lei.

Data venia, ousamos discordar de tais argumentos. Primeiramente, com relação à natureza dos delitos de tráfico, embora concorde em princípio com o seu aspecto altamente nocivo à sociedade de modo geral e, não especificamente, a um grupo em particular – seja de jovens ou velhos, seja de pobres ou ricos -, entendo que ao intérprete não é justo e nem legal discriminar onde a própria lei não o fez. Toda a discriminação na aplicação da norma legal, gera, obviamente, a parcialidade do julgador, fragilizando e pondo em perigo, por outro lado, o direito da parte que, muitas vezes, contra tal discriminação não tem a menor defesa. Ademais, como meridianamente sabido, as normas que restringem ou diminuem direitos devem ser interpretadas com máxima cautela conforme a melhor orientação da hermenêutica jurídica.

Sob outro prisma, qual seja, o da impossibilidade da aplicação das novas disposições aos delitos de tráficos em razão de estarem esses contidos e disciplinados em lei especial, os argumentos trazidos a respeito são despiciendos e sem consistência jurídica.

 Senão vejamos:

 a)- em primeiro lugar, cabe observar que as novas normas trazidas com a Lei nº 9.714/98, embora se refiram à disposições inseridas na parte geral do Código Penal, alterando-as, representam, todavia, disposições de nítido caráter especial porque vieram a regular de modo diferente ou diverso determinada situação de direito material ou substantivo. Ou ainda, são normas de cunho material que, por dizer respeito ao jus puniendi do Estado quanto ao cumprimento da sanção imposta, revestem-se de caráter especial e, por isso, passam a prevalecer sobre as anteriormente existentes, revogando-as de modo implícito;

 b)- prevalência do princípio da retroatividade benéfica insculpido no art. 5º, XL, da Constituição Federal vigente consubstanciado no parágrafo único do art. 2º, do Código Penal, ora em vigor.

O citado parágrafo único do art. 2º, ora citado, está assim redigido:

 "Parágrafo único: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado". (destacamos).

O emérito Professor E. MAGALHÃES NORONHA, em sua já consagrada obra "Direito Penal"(1), analisando o citado parágrafo único, assim se manifestou:

 "A novidade introduzida pela atual lei está na expressão "de qualquer modo". Qual o seu significado? Abrange todas as hipóteses possí8veis de benefícios, todas as situações que sejam mais benignas. Isto é, tudo o que seja favorável ao réu ou ao condenado. Exemplificando: circunstâncias novas atenuantes, causas extintivas de punibilidade até então desconhecidas, novos benefícios como o sursis e o livramento condicional, causas de exclusão de antijuridicidade introduzidas, penas menos rigorosas, etc." (destacamos).

No mesmo sentido da aplicabilidade da ora estudada lei aos crimes de tráfico, é o pronunciamento do preclaro Procurador de Justiça de São Paulo e Coordenador do CAOPJECrim – Dr. MÁRIO DE MAGALHÃES PAPATERRA LIMONGI (2), que a respeito, deixou clara sua posição:

"Ouso divergir de tal entendimento. Por mais que seja revoltante que um traficante possa cumprir outra pena que não a privativa de liberdade, o fato é que a lei não distingue e sendo a pena não superior a quatro anos, qualquer crime, em que não haja violência ou grave ameaça, a substituição é possível".

 Nesta conformidade, nosso entendimento é no sentido da possibilidade de aplicação do benefício da substituição da pena privativa de liberdade até quatro (4) anos nos delitos de tráfico, atendidas, por certo, outras peculiaridades quando da aplicação da sanção pelo juiz (art. 59, C.P.) e, igualmente, levando em conta outros aspectos eventualmente constantes do processo em exame.

 A questão ainda é recente e, não obstante os debates doutrinários a respeito, suscitará nos Tribunais onde a matéria aportar a discussão jurídica que se fizer mister para elucidação da questão que se afigura importantíssima, qual seja, o status libertatis do condenado".

O articulista, embora reconheça a gravidade do delito em causa, assim como o reconhecem aqueles que ele lembra, adota um raciocínio jurídico-penal que permite tal aplicação da lei sob comento ao argumento de que se o legislador não restringiu dita aplicação é porque é permitida a substituição, e por que a nova lei, com base no parágrafo único do artigo 2º do Código Penal, favorece aqueles agentes infratores.

Com todo respeito ao douto articulista, dele divergimos frontalmente e podemos dizer, com firmeza, que o apoio legal por ele referido, realmente tem a sua consistência, a tê-lo como único e definitivo.

No entanto, diante do que já foi exposto antes, não se pode privilegiar tanto a norma material penal nova em função do princípio da retroatividade desta, se considerarmos que, de par com isso, valores e princípios de maior significado e relevância estarão sendo derruídos.

Permissa máxima vênia, o benefício da retroatividade não pode ser tão elástico a ponto de preponderar sobre outros princípios.

A lei nova não rompeu com tais princípios; não revogou a Lei de Introdução ao Código Civil e estes são nortes mais valiosos do que a simples invocação daquela norma penal. A validade desta, mesmo em jogo o status libertatis, encontra um muro instransponível: o bem comum, o interesse do todo, a convivência justa como objetivo fundamental da República, e como instrumento garantidor da defesa social.


6.0 -O VERDADEIRO LIMITE DO PODER DISCRICIONÁRIO DO JULGADOR: O DIREITO E A JUSTIÇA, NÃO A LEI.

Sob a ótica que até agora estamos a sustentar de que inexiste fundamento jurídico para a aplicação de penas alternativas aos apenados pelo crime de tráfico ilícito de entorpecentes, forçoso é reconhecer, por conseguinte, que quando a doutrina afirma que o juiz, ante a nova lei, passou a ter um maior leque de opções, ou seja, um poder discricionário, o faz desarrazoadamente.

Discricionariedade, ao que se sabe, não se confunde com arbitrariedade e é bom que se esclareça de pronto os limites daquela.

A discricionariedade, conceito imanente ao Direito Administrativo, é liberdade de ação dentro dos limites legais; arbitrariedade é ação contrária ou excedente da lei. Ato discricionário, portanto, quando permitido pelo Direito, é legal e válido; ato arbitrário é sempre e sempre ilegítimo e inválido (27).

Fica claro, assim, que o julgador tem um limite para fazer uso de sua discricionariedade:a própria lei. No caso da Lei 9.714/98 não se pode entender como sinal verde para a aplicação das penas restritivas de direitos aos agentes do crime de tráfico de drogas o simples fato de aquela mesma lei não fazer qualquer ressalva em tal sentido.

Tal limite é demonstrado pela natureza do direito que se fere, ou melhor, o interesse coletivo, o bem-estar comum, a Sociedade como um todo, como imposto pelo artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Pena de estar enfraquecendo a defesa social e de ferir de morte inúmeros princípios consagrados pela nossa Lei Maior como sustentado alhures.

Ao nosso aviso, deve o juiz, diante da bifurcação que a novel lei enseja, ter a percepção de qual será o mal maior: aquele que resulta da aplicação de tais penas, e aí a Sociedade sofreria as conseqüências, ou aquele que resulta da inaplicabilidade, e ai a Sociedade teria assegurado uma convivência justa como objetivo fundamental da nossa República.

Cremos que, em sã consciência, nenhum cidadão optaria pela primeira hipótese.

A questão, portanto, é puramente de hermenêutica. Deve o juiz ter em conta o Direito e a Justiça. Não só a Lei. Ao fazer a opção somente por esta correrá o risco de resultados injustos.

Senão vejamos.

Numa invocação brilhante de Benedito Calheiros Bonfim (in Lei, Direito e Justiça, JCB 06/02/95), Reis Friede (28), eminente magistrado federal, mestre e doutor em Direito, traz à luz as seguintes considerações:

"A expressão Direito é utilizada, freqüentemente, como sinônimo de lei, Direito Positivo. O seu uso em lugar de lei explica-se, não apenas por ser correntemente empregada com esse significado, como ainda porque, em muitos países, como por exemplo, nos Estados Unidos e na Inglaterra, Direito e lei são designados, indistintamente, pela palavra law.

Há que distinguir, conceitualmente, lei e Direito.

A lei é norma jurídica escrita, genérica e obrigatória, emanada do órgão competente do Estado.

O Direito, mais amplo e abrangente que a lei, não se esgota na norma legal. Situando-se além desta, ele contém em si o sentido do justo, do social, do humano, do legítimo.

Por isso mesmo, não se dissocia o Direito do justo, do ético. Não pode, por essa razão, haver conflito entre Direito e justiça. São conceitos que se confundem.

A lei, fórmula abstrata, inanimada, é apenas parte do todo, que é o Direito. Ela está para este como o alfabeto para o idioma, o acorde para a música, a simples escrita para a leitura.

Quando Eduardo Couture, em seu clássico Decálogo do Advogado, recomendou que, no caso de encontrar o Direito em conflito com a justiça, cumpre ao advogado lutar por esta, certamente utilizou o vocábulo Direito como sinônimo de lei.

A diferença entre lei e Direito é magistralmente explicada por Pontes de Miranda: "O princípio de que o juiz está sujeito à lei é, ainda onde o meteram nas Constituições, algo de "guia de viajantes, de itinerário, que muito serve, mas nem sempre basta (...) Se entendermos que a palavra "lei"substitui a que lá deverá estar, "Direito", já muda de figura. Porque Direito é conceito sociológico, a que o juiz se subordina, pelo fato mesmo de ser instrumento da realização dele. E esse é o verdadeiro conteúdo do juramento do juiz, quando promete respeitar e assegurar a lei. Se o conteúdo fosse o de impor a letra legal, e só ela, aos fatos, a função judicial não corresponderia àquilo para que foi criada: apaziguar, realizar o Direito subjetivo. Seria a perfeição em matéria de braço mecânico do legislador, braço sem cabeça, sem inteligência, sem discernimento; mas anti-social e, como a lei e a jurisdição servem à sociedade, absurda. Além disso, violaria, eventualmente, todos os processos de adaptação da própria vida social, porque só atenderia a eles, fosse a moral, fosse a ciência, fosse a religião, se coincidissem com o papel escrito (...) Pouco importa, ou nada importa, que a letra seja clara, que a lei seja clara: a lei pode ser clara, e obscuro o Direito que, diante dela, se deve aplicar. Porque a lei é roteiro, itinerário, guia (...) O Direito, e não a lei como texto, é que se teme seja ofendido.

(...)

(...)

O magistrado que se escraviza à letra da lei e se mostra obediente a súmulas, mesmo quando flagrantemente contrárias à justiça e não mais atendem "aos fins sociais a que (as leis) se dirigem" abdica de sua independência, despe-se de sua consciência jurídico-social, desveste-se do espírito crítico e criador, renuncia, enfim, à sua função autônoma de interpretar e julgar livremente, de acordo com a sua convicção. Antes de ser um servidor da lei, o juiz é um produtor de justiça.

(...)

(...)

Se a lei está divorciada do Direito – indaga e responde o magistrado Eliézer Rosa -, cruzará o juiz os braços e deixará de lado aquilo que realmente é Direito? Absolutamente, não. Tenha o juiz a coragem cívica e profissional de criticar, até mesmo com veemência, o teor da lei que não expressa o Direito. Crítica respeitosa, criteriosa, fundamentada (...) Quem sabe se uma lei é boa ou má é o juiz e não o legislador. Busque o juiz revelar o Direito na sua sentença, sem importar-se se atendeu ou desatendeu à lei".

O trecho é extenso, mas compensadora a sua transcrição ante a sua pertinência.

Forte, assim, em tão proveitosos ensinamentos, podemos asseverar que, no caso da Lei sob foco, o juiz não atenderá o Direito, e muito menos fará justiça enveredando para a aplicação de penas restritivas de direitos aos praticantes de crimes de tráfico ilícito de entorpecentes. Estará ele fugindo do seu compromisso com o social.

Noutras palavras, e repetimos, a questão é puramente de hermenêutica. Outro sentido dado ao caso seria apoiar-se em sofismas.

Assim, o Direito e a Justiça, esta como fim colimado pelo Estado na busca da convivência justa e duradoura, transcendem até mesmo o princípio da retroatividade da lei penal assegurado pelo parágrafo único do artigo 2º do Código Penal.

À primeira vista pode até parecer uma heresia jurídica o que sufragamos, posto que sempre e sempre se sustentou que a liberdade é a regra e a prisão a exceção. No entanto, no caso da inaplicabilidade das benesses da Lei 9.714/98 aos agentes do crime de tráfico de entorpecentes, isto se torna um mal necessário, sem que isto constitua afronta àquele princípio da retroatividade em função dos paradoxos já exaustivamente enunciados.


7.0 -ELENCO DE ALGUNS SOFISMAS ADOTADOS PARA A APLICAÇÃO DAS PENAS ALTERNATIVAS AOS APENADOS POR CRIME DE TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES

Muitos julgados têm admitido a possibilidade, até então, de aplicação das penas restritivas de direitos aos agentes praticadores do crime de tráfico ilícito de entorpecentes, sob os mais diversos fundamentos.

Trazemos a pelo, para demonstrar a variedade de fundamentações, alguns deles.

O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, em Turma, da Segunda Câmara Criminal, decidiu, por unanimidade de votos, na Apelação Criminal nº 000.210.008-9/00, sobre o tema em questão, da seguinte maneira:

"Ementa: Tráfico ilícito de entorpecentes – crime hediondo – substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos – possibilidade. Em direito penal, diante da rigidez do princípio da reserva legal, não há que se falar em lacunas quanto a normas incriminadoras ou mais gravosas, não podendo, destarte, nesse campo, valer-se o intérprete dos processos científicos de integração da norma penal. Se a lei 9.714/98 é de natureza geral e não há na lei 8.072/90, especial, vedação expressa quanto à concessão da substituição em apreço – ainda que pelo fato de não se cogitar dessa hipótese à época da sua edição -, não pode o operador jurídico negar a aplicação do benefício ao simples argumento de que há incompatibilidade de ordem ideológica entre os dois diplomas legais. O fato de determinar a lei dos crimes hediondos que a pena aplicada por delito nela previsto deva ser cumprida integralmente em regime fechado não é obstáculo à incidência das novas regras introduzidas nos arts. 44 e seguintes do Código Penal. Isto porque a fixação do regime de expiação da pena privativa de liberdade constitui, na escalonada atividade do juiz de individualização da reprimenda, momento posterior ao da análise da viabilidade de sua substituição ou mesmo da sua suspensão condicional. As penas restritivas de direito constituem importante instrumento de política criminal, conferindo ao juiz uma indispensável margem de discricionariedade para que possa dar tratamento adequado aos casos que se lhe apresentem, reduzindo os efeitos negativos da pena e estimulando a reintegração do condenado. Cumpre ao aplicador do direito proceder com redobrado cuidado na concessão de qualquer benefício legal ao condenado pela prática de crimes previstos na Lei dos Crimes Hediondos, devendo restringi-los a hipóteses especiais, quando efetivamente o recomendarem as circunstâncias do delito e as condições pessoais do agente, elementos esses que, evidentemente, somente poderão ser sopesados em cada caso concreto" (29).

Respeitosamente, ousamos afrontar e enfrentar tal pensamento, em que pese a sua origem.

Não se discorda em muito do julgado. O que não se entende é como ele afirma que o crime de tráfico ilícito de entorpecentes é hediondo por excelência, com cumprimento da pena em regime fechado, e ao mesmo tempo, consagra a possibilidade de aplicação das penas restritivas de direito sob o falso argumento de que a novel lei trouxe novas regras.

Teria sido, então, revogada a Lei 8072/90?

Datissima máxima vênia, que existe incompatibilidade entre ambas existe.

Dizer que não com base na ordem ideológica até se compreende. Mas dizer que não pura e simplesmente porque não existe obstáculo para tanto é inversão de valores. É tirar o coletivo de campo, é afastar o bem comum numa simples canetada e escalar o individual.

Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, por sua Sexta Turma, no julgamento do Hábeas Corpus nº 8753, em 15/4/1999, sendo Relator o eminente Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, em questão semelhante, assim se pronunciou:

"HC – Penal – Pena Substitutiva – Lei 9.714/98- Crime hediondo- A Lei 9.714/98, de 15 de novembro de 1998, recomendada pela Criminologia, face à caótica situação penitenciária nacional, em boa hora, como recomendam resoluções da ONU, de que as Regras de Tóquio são ilustrações bastante, ampliou significativamente a extensão das penas restritivas de direitos, conferindo nova redação a artigos do Código Penal brasileiro. O art. 44 relaciona as condições: I –aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido co violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; II – o réu não for reincidente em crime doloso; III – a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. Reclamam-se, pois, condições objetiva e subjetivas; conferem, aliás, como acentuam os modernos roteiros de Direito Penal, amplo poder discricionário ao Juiz. O magistrado, assim, assume significativa função, exigindo-se-lhe realizar a justiça material. crime hediondo não é óbice à substituição. A lei, exaustivamente, relaciona as hipóteses impeditivas (art. 44)".

Como podemos perceber, o STJ reforçou o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de Minas quando diz que o crime hediondo não é óbice à aplicação da Lei 9.714/98 aos crimes de tráfico ilícito de entorpecentes.

A questão da possibilidade de aplicação sustentada pelo venerável acórdão sob o ângulo da inexistência de restrição na lei nos leva a imaginar que Rogério Greco (30) tem razão quando aborda o princípio da adequação social.

Diz aquele autor que:

"Preconiza, em síntese, o princípio da adequação social que, quando não existir qualquer figura típica proibindo ou impondo determinado comportamento sob a ameaça de sanção, é sinal de que a conduta praticada pelo agente, embora possa ser até perigosa, é considerada socialmente adequada.

A vida em sociedade nos impõe riscos que não podem ser punidos pelo Direito Penal, uma vez que essa mesma sociedade com eles precisa conviver de forma mais harmônica possível.

O trânsito nas grandes cidades, o transporte aéreo, a existência de usinas atômicas são expressões de quão perigosa pode se tornar a vida em sociedade. Mas, embora sejam perigosas, são consideradas socialmente adequadas e, por essa razão, fica afastada a interferência do Direito Penal.".

Aproveitando o trecho ora transcrito, e fazendo um raciocínio às avessas, podemos admitir, então, que tudo o que a lei não proíbe é porque é permitido, e nisto louvam-se os julgados trazidos à luz.

Acontece que seria despiciendo lembrar os exemplos mencionados pelo ilustre membro do Ministério Público mineiro, Dr. Rogério Greco, uma vez que eles constituem o progresso de um povo, a luta por melhor qualidade de vida, sendo que tais riscos fazem parte do dito progresso. O que se busca, na hipótese de tais exemplos, é o bem, não havendo como se aceitar a comparação.

O princípio em causa, não apoiado naqueles exemplos, serve para sustentar que, ao contrário da permissividade para aplicar as penas restritivas de direitos aos traficantes de drogas, deve ser levado em conta também para proibir o que a lei penal não cogitou, como no caso da nocividade do tráfico das drogas com reflexo na sociedade. O que a lei 9.714/98 não proibiu não significa anuência para que seja permitido.

No entanto, a construção que se fez não levou em linha de consideração o que já sustentamos antes no sentido de uma hermenêutica voltada para uma Justiça como correta aplicação do Direito.

Limitou-se o acórdão em aplicar as benesses em face de inexistência de restrição na lei, não se preocupando com o Direito e muito menos com a Justiça.

A admissão em seu texto da situação caótica do sistema prisional nacional é falta de argumento substancial para justificar tal benefício. É encampar os erros.

Na verdade, ao mesmo tempo em que reconhece tal situação, como um erro, o acórdão amplia o erro. Não o desfaz, mesmo sabendo que em desfavor da Sociedade e, assim, permitindo a aplicação da questionada lei.

Quando o julgado lembra que o juiz, na individualização da reprimenda, deve atentar para a conduta social do réu, bem como para os motivos do crime, o que deverá consignar ele? Que a conduta do réu diante da sociedade, como traficante, é inofensiva? Que os motivos (que o levaram a traficar) foram nobres?

Qual juiz irá considerar que praticar tráfico de drogas é motivo aceitável? Qual julgador atento ao social irá adotar como favoráveis ao acusado todas essas circunstâncias?

Na verdade, os fundamentos de ambos os julgados não são estribados num raciocínio de lógica, mas sim escudados em verdadeiros sofismas.

Se for sabido que o artigo 12 da Lei 6368/76 (Lei de Tóxicos) trata de um crime de ação múltipla, contendo vários núcleos, certo é que incidindo o agente em qualquer daqueles verbos será tido como traficante.

No entanto, exemplos existem em que o agente pode estar incurso num daqueles verbos sem, necessariamente, ser cotado como traficante. Este, ao que se sabe, é aquele que pratica o comércio de drogas, que faz a mercancia, que "trabalha" com a venda de drogas.

Porém, aquele que for encontrado na posse da droga, sem ser usuário ou dependente, certamente irá responder pelo crime de tráfico, justamente por que típica a sua conduta como traficante, embora não a comercialize. Será isto justo?

Repita-se, mas ante a citada lei ele é traficante.

Se o magistrado for escravo da lei, irá condená-lo com toda a certeza.

Se não é justo, embora legal, qual será então a solução para evitar-se injustiça?

Qual exercício mental irá utilizar o julgador para praticar a Justiça? Evidentemente que será uma desclassificação para o artigo 16, já que, pelo menos, neste artigo o "trazer consigo" é também um verbo daquele tipo.

Como muito bem lembra Paulo Lúcio Nogueira (31), o artigo 16 da lei antitóxicos "tem sido o abrigo natural não só do realmente dependente ou viciado (para uso próprio) como para todos o s demais tipos de criminosos como o simples portador, o curioso experimentador, que têm sido enquadrados na vala comum, que é guardar ou trazer consigo, desde que a substância entorpecente seja apreendida em poder do acusado".

Nem tanto ao mar nem tanto a terra. Como se pode notar, comungamos da posição supra.

Porém, se o juiz exerce tal raciocínio, mesmo diante da tipicidade da conduta como traficante, aos olhos do artigo 12, com o propósito de fazer justiça, como então, no caso do verdadeiro traficante não pode fazer o mesmo exercício para afastar, em nome do bem comum, do bem jurídico tutelado, do coletivo, os efeitos da Lei 9.714/98 para fazer Justiça e imperar o Direito?

Não se esqueça de que o réu, mesmo sem o amparo desta lei, terá respeito a sua dignidade humana...Mas preso! Na cadeia, é dever do Estado respeitar os seus direitos enquanto preso. O contrário será desrespeitar a dignidade humana dos membros da coletividade que ele agrediu com a sua conduta.


8.0 – CONCLUSÕES

Após todas as colocações anteriores, sejam de ordem jurídica, sejam de ordem social, sejam apoiadas nos princípios destacados, ou ainda nos paradoxos retratados, os quais são calcados no mais puro raciocínio lógico, podemos concluir que:

1.Não existe carga punitiva nas penas restritivas de direitos quando aplicadas aos traficantes de drogas, assim como que nenhum efeito pedagógico teriam. São inócuas;

2.O julgador pode e deve afastar a aplicação de tais penas àqueles tipos de condenados, tendo em vista que a sua função impõe resguardar a Sociedade;

3.Deve o juiz preocupar-se com o Direito e a Justiça e não se mostrar escravo da lei;

4.Atendendo ao Direito e à Justiça não estará travestido em legislador;

5.Deve o julgador levar em conta que, a despeito da lei, os princípios também têm força de norma e, assim sendo, podem superar as falhas da lei. Neste caso, deverá observar a preponderância de interesses, fazendo valer aquele que atenda o bem comum;

6.Não pode o julgador inverter os valores, premiando o traficante e punindo a Sociedade;

7.A violência, tal como concebida pela doutrina, não pode ser restrita à física, sob pena dela voltar-se contra a própria Sociedade, isto é, a lei, com dita restrição, passa a ser mais violenta e a Sociedade, que já sofreu uma vez com a conduta ofensiva do réu, sofrerá mais uma vez tendo que suportar a convivência com o mesmo.

8.A questão de a Lei 9.714/98 não trazer restrição quanto à aludida aplicação não significa permissão para que tal ocorra já que, se assim fosse, estar-se-ia contribuindo com um mal maior do que aquele praticado pelo traficante.

A restrição deve ter como supedâneo o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, aplicável a todo o ordenamento jurídico;

9.No confronto entre o princípio da retroatividade da lei material penal, ínsito no parágrafo único do artigo 2º do Código Penal e os princípios da dignidade humana como parcela de direito dos membros de uma sociedade, bem como da convivência justa, e ante a preponderância de interesses levada em conta, devem sobreviver estes últimos, pena de enfraquecimento da defesa social; e, por último,

10.Se há um mal maior a ser suportado, que o seja pelo agente da conduta criminosa.


9.0 – NOTAS

1.Item 3 da Exposição de Motivos assinada pelo então Ministro da Justiça, Nelson Jobim;

2.Idem, item 4;

3.Idem;

4.Rosa, Feu, Antonio José Miguel. Direito Penal, Parte Especial. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1995. p. 23;

5.Rosa, Feu. Op. cit. p. 26;

6.Jesus, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Parte Geral. 1º vol. Editora Saraiva. São Paulo. 1995. p. 4;

7.Nogueira, Paulo Lúcio. Leis Penais Especiais, Aspectos Penais. Editora Universitária de Direito. São Paulo. 1993. p. 7;

8.Nogueira, Paulo Lúcio. Op. cit. 10;

9.Nogueira, Paulo Lúcio. Op. cit. p. 4;

10.Jesus, Damásio Evangelista de. Penas Alternativas. Editora Saraiva. São Paulo. 1999. p. 139;

11.Mensagem nº 1.447, publicada no Diário Oficial da União de 26.11.98;

12.Jesus, Damásio Evangelista de. Op. cit. p. 91;

13.Nogueira, Paulo Lúcio. Em Defesa da Vida. Editora Saraiva. São Paulo. 1995. p. 14 e ss.;

14.Nogueira, Paulo Lúcio. Op. cit. p. 147;

15.Idem, p. 148;

16.Idem, p. 149;

17.Idem, p. 150;

18.Idem, p. 160;

19.Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Malheiros Editores. 11ª edição. São Paulo. 2001. p. 229;

20.Idem, p. 229;

21.Galvão, Fernando. Aplicação da Pena. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 1995. p. 88;

22.Idem, p. 88;

23.Santos, Fernando Ferreira dos. Trecho citado da obra Reale, Miguel. Filosofia do Direito. P. 277, in <www.jusnavigandi.com.br>. p. 2;

24.Idem, p. 7;

25.Idem, idem;

26.Galvão, Fernando. Op. cit. p. 37;

27.Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Revista dos Tribunais. 14ª edição. São Paulo. 1989. p. 144;

28.Friede, Reis. Ciência do Direito, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. Forense Universitária. 1ª edição. Rio de Janeiro. 1997. p. 58/60;

29.Apelação Criminal nº 000.210.008-9/00, Comarca de Itajubá. Rel.: Des. Guido de Andrade;

30.Greco, Rogério. Direito Penal. Vol. I, Editora Cultura. Belo Horizonte.1998. p. 57;

31.Nogueira, Paulo Lúcio. Leis Especiais, Aspectos Penais. Editora Universitária de Direito. São Paulo. 1993. p. 15.


10 – BIBLIOGRAFIA

ROSA, Feu, Antonio José Miguel. Direito Penal. Parte Especial. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 1995;

JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. Parte Geral. 1º vol. Editora Saraiva. São Paulo. 1995. ;

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Leis Penais Especiais, Aspectos Penais. Editora Universitária de Direito. São Paulo. 1993;

JESUS, Damásio Evangelista de. Penas Alternativas. Editora Saraiva. São Paulo. 1999;

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em Defesa da Vida. Editora Saraiva. São Paulo. 1995;

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. Malheiros Editores. 11ª edição. São Paulo. 2001;

GALVÃO, Fernando. Fernando. Aplicação da Pena. Editora Del Rey. Belo Horizonte. 1995;

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. Editora Revista dos Tribunais. 14ª edição. São Paulo. 1989;

FRIEDE, Reis. Ciência do Direito, Interpretação e Hermenêutica Jurídica. Forense Universitária. 1ª edição. Rio de Janeiro. 1997;

GRECO, Rogério. Direito Penal. Vol. I, Editora Cultura. Belo Horizonte. 1998;

SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Dignidade Humana. <www.jusnavigandi.com.br>.


Autor

  • Sebastião Raul Moura Júnior

    Sebastião Raul Moura Júnior

    Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos, RJ. Pós-graduado em Magistério Superior em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduando em Direito Público na Unisal. Promotor de Justiça aposentado pelo Estado de Minas Gerais. Ex-Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro. Ex-Professor de Processo Penal da Faculdade de Direito de Valença, RJ. Atualmente, professor de Processo Penal no UBM-Centro Universitário de Barra Mansa-RJ.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOURA JÚNIOR, Sebastião Raul. Lei nº 9714/1998: paradoxos em seu ventre. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2521. Acesso em: 28 abr. 2024.