Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/2525
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Abuso do poder econômico e financiamento das campanhas eleitorais

Abuso do poder econômico e financiamento das campanhas eleitorais

Publicado em . Atualizado em .

A preocupação do legislador com o financiamento das campanhas eleitorais revela o reconhecimento do poder econômico como um elemento de desequilíbrio na disputa eleitoral.

O seu uso, face ao modelo econômico adotado pelo Estado brasileiro não pode ser proibido. No entanto, a proibição de seu abuso é imperativa, face aos princípios da República, justiça social e liberdade.

A questão é: até onde vai o uso e onde começa o abuso do poder econômico para a obtenção do poder político.


Normas reguladoras

Uma breve análise das leis eleitorais desde 1988 revela a evolução do tratamento dado ao tema.

Como pressuposto deste exame, há de se atentar para as disposições sobre o tema no Código Eleitoral. O seu artigo 237 afirma que ‘a interferência do poder econômico e o desvio ou abuso do poder de autoridade, em desfavor da liberdade de voto, serão coibidos e punidos". O bem jurídico tutelado é a liberdade de voto.

A Constituição, texto normativo condicionador e referência de interpretação de todas as demais normas, estabelece os valores a serem protegidos: probidade administrativa, moralidade para o exercício do mandato, normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou político (art. 14, §9º).

Neste cenário normativo, composto pelo Código Eleitoral e pela Constituição, o legislador eleitoral encontra os contornos para estabelecer a vedação ao abuso do poder econômico no âmbito eleitoral.

Nas duas leis eleitorais seguintes à Constituição (Lei 7.773/89 e Lei 8.214/91) não se encontra referência expressa ao abuso do poder econômico. O que se fez foi controlar a sua influência através da limitação do uso da propaganda, certamente a forma mais poderosa de interferir na escolha do eleitor.

As eleições para Presidente, Governador, Senador, Deputado Federal e Deputado Estadual de 1994 foram disciplinadas pela Lei 8.713, publicada em 30 de setembro de 1993. Esta Lei inaugura uma série de dispositivos que vieram aprimorar o sistema de controle do uso do poder econômico nas campanhas.

Para compreender a razão do aprimoramento, é importante ressaltar o momento político de edição desta Lei. Nas eleições anteriores havia sido eleito o Presidente Fernando Collor de Mello, cujo financiamento de campanha através de seu tesoureiro Paulo César Farias foi objeto de investigações. As sobras de campanha, as doações astronômicas exigiam uma resposta.

Aí nasce a exigência de constituição de comitês financeiros, a responsabilidade objetiva do candidato pela sua prestação de contas, os limites a doações e ao uso de recursos próprios do candidato, o uso de bônus eleitorais, a previsão de cassação do registro de candidato que infringir as normas sobre a administração financeira de sua campanha e a destinação obrigatória das sobras de campanha aos partidos.

Mas, surge também a possibilidade de um eleitor realizar gastos não contabilizáveis até mil ufirs em favor de candidato de sua preferência. Esta é a norma – ainda vigente, pois repetida na Lei 9.504/97 – mais questionável de todo o sistema de proteção contra o abuso de poder econômico. Afinal, de nada adianta exigir recibo de doações e registro de gastos, mas desde logo permitir verdadeiras doações sem recibos e gastos sem registro.

São tipificados crimes eleitorais, relacionados a gastos de campanha. Por força da Lei Complementar 64/90, o candidato que gastar além do permitido poderá ter seu registro ou diploma cassado.

Para regulamentar as eleições municipais de 1996 é editada, em 29 de setembro de 1995, a Lei 9.100 – a última, espera-se, para apenas uma eleição. Na linha de controle progressivo do poder econômico, esta lei impõe aos partidos e coligações informarem à Justiça Eleitoral, no registro de seus candidatos, os valores máximos a serem gastos em cada eleição – majoritária e proporcional.

Buscando facilitar a prestação de contas, prevê a elaboração pelo TSE de um plano de contas simplificado. As doações agora devem ocorrer mediante recibo, segundo modelo aprovado pela Justiça Eleitoral. Permanece a "janela" de gastos não contabilizáveis sob a responsabilidade do eleitor, mas seu limite é reduzido a duzentas ufirs.

A prestação de contas deve ocorrer até trinta dias após a eleição e deve ser acompanhada de extratos das contas bancárias e dados contábeis, da relação dos cheques recebidos com seus números, valores e emitentes, e da relação dos doadores com os valores respectivos e a forma de doação.

Permanece a tipificação de crimes eleitorais, mas agora se prevê, além da multa, pena de detenção de um a três meses para doação acima do limite, recebimento de recurso acima do teto legal e gasto além do valor máximo estipulado pelo partido. E a violação desta Lei por pessoa jurídica a impede de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos por determinação da Justiça Eleitoral em processo que lhe seja assegurada ampla defesa.

O artigo 69 afirma que o descumprimento das regras relativas ao financiamento de campanha caracteriza abuso do poder econômico.

Em 1997 tratou o legislador de estabelecer normas permanentes para a regulamentação das Eleições, motivado por inúmeros protestos e reclamações. Afinal, o caráter precário das normas eleitorais implicavam em um descrédito no sistema, além de desmotivar seu estudo aprofundado. Nasce a Lei 9.504 de 30 de setembro de 1997.

Portadora de muitas esperanças, a Lei das Eleições faz poucos progressos em comparação à lei anterior. Embora exija a abertura de conta bancária específica para a campanha e o registro dos comitês financeiros na Justiça Eleitoral, retira a pena de detenção para gastos além dos valores declarados. Ou seja, avança em alguns pontos e retrocede em outros.

Disciplina as doações de pessoas jurídicas, em nada alterando a legislação anterior, nas disposições transitórias, possivelmente à espera de uma nova lei que venha a regulamentá-las.

Estabelece que as doações (de pessoas físicas ou jurídicas, e, combinado com o artigo 4º da Resolução nª 20.566/2000 do Tribunal Superior Eleitoral, qualquer arrecadação de recursos) são possíveis apenas após o registro na Justiça Eleitoral dos comitês financeiros. Não exclui, no entanto, a possibilidade de gastos não contabilizáveis realizados por eleitor em favor de candidato.

Dispõe expressamente que o descumprimento das normas referentes à arrecadação e aplicação de recursos impõe ao partido a perda do direito de recebimento da quota do Fundo Partidário e a implicação de reconhecimento de abuso do poder econômico pelos candidatos beneficiados.

É obrigação dos comitês financeiros analisarem previamente as contas dos candidatos e encaminharem à Justiça Eleitoral, até o trigésimo dia posterior à realização das eleições, o conjunto das prestações. Ao juiz eleitoral cabe a análise da regularidade das contas, inclusive a classificação dos recursos e dos gastos, a consistência dos valores declarados e a aceitabilidade dos critérios de avaliação dos ativos. A rejeição das contas impõe recurso contra a expedição do diploma ou a impugnação do mandato.


A legitimidade do eleitor

O procedimento a ser seguido para a apuração do abuso do poder econômico é o disposto na Lei Complementar nº 64/90. Nesta lei o eleitor não configura como legitimado para promover a responsabilidade por abuso do poder econômico. O elenco de legitimados ativos se limita a candidatos, partidos, coligações e Ministério Público Eleitoral.

No entanto, não houve revogação expressa do artigo 237 e parágrafos do Código Eleitoral, que reconhece a possibilidade de qualquer eleitor denunciar os culpados e dirigir-se ao Corregedor para abertura de investigação para apurar o uso indevido de poder econômico.

Reconhecendo-se a existência de normas limitadoras do uso do poder econômico em obediência aos princípios constitucionais da igualdade e da democracia e reconhecendo-se a lisura do processo eleitoral como valor de interesse público a ser protegido pelo sistema, não se vislumbra a impossibilidade de um eleitor representar à Justiça Eleitoral pelo uso indevido do poder econômico.


Propaganda eleitoral extemporânea e abuso do poder econômico

A propaganda eleitoral antes do período permitido pela legislação configura abuso de poder econômico, ainda que de pequena monta e que o candidato beneficiado não tenha sido eleito.

Esta afirmação é possível pelos seguintes argumentos: o Tribunal Superior Eleitoral não exige o nexo entre causa e efeito para a caracterização do abuso do poder econômico (Acórdão 12.577, acompanhado pelo Acórdão 21.664 do TRE/PR); "propaganda e publicidade direta ou indireta, por qualquer meio de divulgação, destinada a conquistar votos" é gasto eleitoral, sujeito a registro e limitações por força do artigo 26 da Lei 9.504; a constituição de comitês financeiros, destinados a arrecadar e aplicar recursos só pode ocorrer após a escolha dos candidatos em convenção; a Resolução 20.566 prevê que as doações e a aplicação de recursos próprios em campanhas eleitorais devem ser feitos mediante recibo eleitoral, confeccionados pelos partidos e distribuídos aos comitês financeiros.

Logo, a realização de gastos eleitorais anteriormente à formação dos comitês financeiros, antes da escolha dos candidatos em convenção e sem registro e sem recibo, se dá com o descumprimento das normas referentes à arrecadação e aplicação de recursos, o que, segundo o artigo 25 da Lei das Eleições, implica no reconhecimento do abuso do poder econômico pelo candidato beneficiado.


A definição do abuso de poder econômico

Embora, como já apontado, haja proibição constitucional ao abuso do poder econômico – proibição esta repetida no Código Eleitoral, na Lei 9.504 e na Resolução 20.566 – há dificuldade na aplicação desta norma pela falta de definição do que seja abuso de poder econômico. O texto constitucional não nos traz a resposta. Aliás, emprega o termo em relação a campanhas eleitorais e em relação à livre concorrência como princípio da ordem econômica.

O Poder Judiciário fica, por assim dizer, com um "tipo" cujo núcleo é um conceito jurídico indeterminado. Sua definição não pode ser estabelecida de plano, com dados precisos. Aqui deve-se reconhecer a ‘zona de certeza’ e as zonas cinzentas do conceito. Em alguns casos há, certamente, abuso do poder econômico. Em outros, esta afirmação depende de um sistema valorativo desenvolvido pelo aplicador da lei.

Os juízes e Tribunais eleitorais enfrentam este problema. Devem, a cada exame de caso concreto, determinar se há configuração do abuso do poder econômico ou não. Mas, para que se possa dar à lei (e à própria Constituição) eficácia máxima, a aplicação da sanção nos casos incluídos na ‘zona de certeza’ deve ser absoluta, sob pena de inocuidade da proibição normativa.

Sérgio Varella Bruna publicou em 1997, pela Editora Revista dos Tribunais um livro sobre "O Poder Econômico e a Conceituação do Abuso em seu Exercício". Embora seja uma análise de Direito Econômico e da Lei Antitruste, seus argumentos podem ser utilizados para se tratar do abuso ‘eleitoreiro’ do poder econômico.

Este autor reconhece o poder econômico como dado estrutural da ordem jurídica brasileira e lhe impõe, com Fábio Comparato, uma função social. E afirma: "Destarte, o exercício do poder econômico será legítimo quando não conflite com os valores maiores dessa ordem econômica e com os objetivos por ela visados. Isso equivale a dizer que não se admite o exercício de poder econômico que represente entrave ao desenvolvimento social e à marcha dos fatores sociais com vistas à consecução dos ideais de justiça social" (pág. 147).

No caso do uso abusivo do poder econômico com a finalidade de alcançar o poder político a hipótese é clara: é possível o uso do poder econômico enquanto não elidir com os princípios constitucionais da igualdade e da democracia. Além disso, configura-se abuso.


Considerações finais

Atualmente, face à denúncia de "caixa dois" na campanha à reeleição de Fernando Henrique Cardoso e de Cássio Taniguchi, o tema do financiamento das campanhas eleitorais volta à tona. Agora fala-se em um projeto do ano passado que propõe financiamento público das campanhas, de forma exclusiva. No entanto, regras que possam vir a ser adotadas já não poderão ser utilizadas para o próximo pleito.

Embora, em princípio, pareça uma iniciativa com possibilidade de proporcionar uma disputa igualitária pelo poder, a experiência nos mostra que leis que aparentemente modificam a forma de manutenção e obtenção do poder na verdade trazem lacunas que asseguram a continuidade da situação atual.

Espero que este comentário revele apenas uma descrença pessoal, e que a legislação seja modificada de forma a possibilitar à Justiça Eleitoral fiscalizar efetivamente os gastos eleitorais, aos candidatos concorrerem em igualdade de condições e ao eleitor escolher livremente seus governantes.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SALGADO, Eneida Desiree. Abuso do poder econômico e financiamento das campanhas eleitorais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 53, 1 jan. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2525. Acesso em: 28 mar. 2024.