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A inoperância e a não validade das cláusulas e normas limitativas de responsabilidade

respeito à garantia fundamental constitucional da reparação do dano ampla e integral

A inoperância e a não validade das cláusulas e normas limitativas de responsabilidade: respeito à garantia fundamental constitucional da reparação do dano ampla e integral

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Estudo a respeito das cláusulas e normas que têm por objetivo a imposição da limitação de responsabilidade dos transportadores de cargas, especialmente os marítimos, prejudicando a ordem econômica nacional e ofendendo ao sistema legal como um todo.

Limitar a responsabilidade do transportador (marítimo de carga), diante da culpa pela inexecução da obrigação de resultado, é incentivar até mesmo atos ilícitos e o enriquecimento sem causa, é aviltar a moral que influencia o direito e é, em última instância, afrontar a inteligência sistêmica do direito: limitar é rigorosamente, em termos práticos, a mesma coisa que exonerar.

Quando escrevi meu livro Prática de Direito Marítimo (Quartier Latin: São Paulo, 2009), não gastei muitas linhas para tratar da cláusula limitativa de responsabilidade, porque eu a tinha e a tenho como nula de pleno Direito.

Sempre entendi que a referida cláusula é em tudo equiparada à cláusula de não indenizar e, portanto, inoperante, segundo o Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.

Ora, não indenizar é, em termos práticos, a mesma coisa que indenizar valor vil, sobremodo reduzido por causa da limitação.

Além da comparação direta com a cláusula de não indenizar, também sempre me posicionei (e ainda me posiciono) contra a cláusula limitativa de responsabilidade porque o contrato de transporte de carga, qualquer que seja o modal, é um contrato de adesão, com cláusulas impressas e unilateralmente impostas pelo transportador, razão pela qual injusta e, até mesmo, imoral sua aplicação em desfavor de quem foi obrigado a aderir aos termos contratuais.

Nem mesmo as convenções internacionais podem e devem ser aplicadas nos transportes internacionais, aéreos ou marítimos, pois nos marítimos tem-se que o Brasil nunca assinou qualquer convenção, salvo a de Hamburgo, nos anos setenta do século passado, mas que até hoje não foi ratificada pelo Congresso Nacional, e, nos transportes aéreos, tanto a Convenção de Varsóvia, como a de Montreal, das quais o Brasil é signatário, dispõem sobre a possibilidade de limitação tarifada, mas somente nos casos dos grandes sinistros aéreos, os acidentes de aviação, não os casos simples de faltas ou avarias de cargas, muito menos aqueles seriamente culposos.

Ora, considerando tudo isso, considerando a tradição jurídica brasileira, sempre refratária ao reconhecimento e à aplicação de qualquer tipo de cláusula limitativa de responsabilidade, especialmente no transporte marítimo internacional de carga, não senti necessidade alguma de alongar o tema, tanto na primeira, como na segunda edições do livro.

Basicamente, o que discorri sobre o assunto foi o que segue:

“A limitação de responsabilidade é tema que periodicamente ganha destaque na literatura do Direito Marítimo. Isso porque os transportadores costumam invocá-la nas disputas judiciais relativas aos contratos de transportes de cargas inadimplidos. 

Apesar do destaque, a jurisprudência é, preponderantemente, contrária a validade e a eficácia de toda e qualquer cláusula que limita a responsabilidade do transportador marítimo.

Pesa muito em favor desse entendimento o fato de a cláusula limitativa de responsabilidade encontrar-se inserida em um contrato de adesão, como é o de transporte marítimo, implicando dirigismo contratual e abusividade explícitos.

O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Além disso, o instrumento contratual de adesão não pode ofender o sistema legal, submetendo-se em tudo ao Direito como um todo.

O Brasil, em especial, é um país que tradicionalmente se mostra contundente em relação ao dirigismo contratual e as cláusulas abusivas.

Por isso, toda e qualquer cláusula limitativa de responsabilidade estampada unilateralmente pelo transportador no conhecimento marítimo é inválida e ineficaz, senão nula de pleno Direito.

Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, afirma-se que a cláusula limitativa de responsabilidade ajusta-se perfeitamente ao disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

Antes da Constituição Federal de 1988 e da criação do Superior Tribunal de Justiça, era o Supremo Tribunal Federal o órgão jurisdicional que dava a última palavra sobre o assunto, fincando posicionamento que até hoje e acertadamente é abraçado pelos órgãos monocráticos e colegiados do Estado-juiz.

No mesmo sentido, o Direito positivo, por meio de regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação”.

Mas, com a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro, o tema ganhou novo colorido, praticamente definitivo, no sentido de se premiar a proibição às cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte marítimo.

E a legislação consumerista é perfeitamente aplicável aos casos envolvendo obrigações de transportes de cargas, sem se falar em inteligência maximalista, porque a obrigação de transporte é modalidade de fornecimento de serviço e o transportador é um prestador de serviços em todos os sentidos. Para a incidência da lei consumerista é preciso ter em foco não o bem transportado, mas o serviço propriamente dito, o qual tem no contratante, no consignatário ou no segurador legalmente sub-rogado consumidores perfeitos, porque destinatários finais dos serviços fornecidos pelos transportadores, pouco importando os destinos finais dos bens confiados para os transportes.

Com a nova lei especial, o que antes era solucionado por meio da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal e o uso de sofisticada hermenêutica jurídica, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito. Com a promulgação do Código Civil em vigor, de 2002, o dirigismo contratual foi definitivamente vedado e ao sabor dele, ainda mais forte se tornou o repúdio às cláusulas de limitação de responsabilidade, compaginada no rol das cláusulas abusivas.

Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso do contrato maritimista de transporte, é um típico contrato de adesão.

Sendo um contrato de adesão, suas cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor e/ou beneficiário do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito. Sua vontade não é livre, mas orientada pela imposição do transportador, sempre unilateralmente.

O consumidor (credor da obrigação de transporte de carga) simplesmente adere às condições impostas pelo transportador marítimo, não se lhe conferida a oportunidade de efetivamente manifestar sua vontade, emprestando caráter verdadeiramente unilateral ao contrato.

E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois se levando em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, às disposições contidas nos instrumentos contratuais.

Assim colocada a questão, nada mais há para ser dito em sede de limitação de responsabilidade, tratando-se de mais um ponto superado, donde se estranha a insistência de os transportadores marítimos, em litígios judiciais, insistirem na tese da validade e da eficácia dessas cláusulas “hardship”, notadamente as de limitação de responsabilidade, na medida em que manifestamente contrárias ao Direito, repudiadas pela jurisprudência e eivadas de elementos negativos que atingem até mesmo o campo da moral.

Além de regras legais específicas contrárias ao dirigismo contratual, existem princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, os quais devem ser sobremodo considerados quando da análise do tema, fulminando toda e qualquer tentativa de convalidar a abusividade intrínseca às cláusulas limitativas de responsabilidade.

Tais cláusulas ofendem fundamentos principiológicos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso, compaginando essa ofensa mais um argumento a favor daqueles que as repudiam e as têm por nulas de pleno Direito.

A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio dos transportadores marítimo, faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.

Relevante observar que mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, principalmente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação. E esses princípios foram definitivamente positivados e marmorizados nas letras do Código Civil de 2002, cujo conteúdo, considerando-se a melhor hermenêutica e a interpretação sistêmica de suas regras, veda a validade das referidas cláusulas, como de toda e qualquer cláusula “hardship”, combatendo o dirigismo contratual e fortalecendo a inteligência do comentado Enunciado de Súmula 161 do Supremo Tribunal Federal.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e erradas do que as combatidas e abusivas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Qualquer que seja a fonte legal aplicável num dado caso concreto, ou seja, Código Civil, Código de Defesa do Consumidor ou princípios gerais e fundamentais do Direito, tais cláusulas são ilegais e, mesmo, imorais, porque abusivas, cabendo ao Poder Judiciário, quando provocado, manifestar-se no sentido de se manter o entendimento vigente de tempos de antanho, hoje vitaminado por importantes ferramentas jurídicas, repudiando-se a validade e a eficácia de tais cláusulas ou, ainda mais importante, rotulando-as como nulas de pleno Direito.”.

Como disse, continuo entendendo a mesma e rigorosa coisa. Aliás, com o passar do tempo e as reiteradas vitórias judiciais no exercício da advocacia, tal convicção só fez aumentar.

Vejo, contudo, a necessidade de tratar do tema um pouco mais detalhadamente.

Embora a jurisprudência continue pacífica no sentido de não se prestigiar a cláusula limitativa de responsabilidade, há em curso um movimento forte, patrocinado pelos transportadores marítimos em dizer que o que é errado é certo e, o que é certo, errado.

Por mais que se vistam de argumentos sedutores e aparentemente hábeis, a verdade que salta aos olhos é que a cláusula que limita a responsabilidade é, sim, uma cláusula de não indenizar.

E isso é que costumo sempre expor, seja num artigo, seja numa peça forense, ou num parecer, ainda que sumário, enxuto e objetivo, com colorido jurisprudencial, como abaixo destacado:

A limitação de responsabilidade é tema há muito não controvertido no Direito brasileiro. Sua vedação é medida de rigor, amparada pelo Direito e pela Moral. A melhor doutrina e os Tribunais já pacificaram a questão, negando vigência a toda e qualquer cláusula que limite responsabilidade.

Nem poderia ser diferente o posicionamento pretoriano, uma vez que a cláusula limitativa de responsabilidade equipara-se, em todos os seus efeitos, a cláusula de não indenizar.

Principalmente quando a cláusula limitativa de responsabilidade encontra-se inserida em um contrato de adesão, como é o instrumento firmado entre o consignatário da carga (segurado das Autoras) e o transportador marítimo, ora denunciante.

O contrato de adesão deve ser interpretado, em caso de divergência, sempre em favor de quem aderiu. Tal idéia sedimentou-se, ao longo dos tempos, no Direito brasileiro, assumindo ares de postulado.

Hoje, é fortificado pelo Código de proteção e Defesa do Consumidor e pelo Código Civil de 2002l que expressamente defendem o postulado, com o peso da normatividade.

O Código Civil, aliás, ao tratar da função social do contrato, abraçou definitivamente os princípios informadores dos direitos de terceira geração, aplicando-os mesmo no âmbito do Direito privado. Assim, impossível emprestar validade, eficácia e vigência à cláusula que, imposta unilateralmente pelo denunciado, visa limitar a responsabilidade pelo evento danoso, trocando um pote de moedas de ouro, por alguns poucos centavos de prata.

Tendo-se em consideração que limitar a responsabilidade é o mesmo que não indenizar, sentimo-nos seguros e confortáveis em invocar o quanto disposto no Enunciado de Súmula nº 161, do Supremo Tribunal Federal, que dispõe: “Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar”.

No mesmo diapasão, reproduzimos parte de uma regra legal específica, o Decreto nº 19.473/30, que liquidou a eficácia de cláusulas contratuais dessa natureza, ao impor: “(...) Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa dessa prova ou obrigação.

Referido Decreto, ainda em vigor, recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e compatível com a inteligência sistêmica do ordenamento jurídico brasileiro taxativamente veda qualquer limitação, ainda que mínima, ao dever jurídico de reparar o dano por parte do transportador inadimplente.

E, nunca é demais enfatizar: a introdução da lei consumerista no sistema legal brasileiro fortaleceu, sobremodo, a vedação as cláusulas limitativas ou restritivas de responsabilidade, comuns nos contratos de transporte, qualquer que seja o modal, especialmente marítimo e aéreo. Concomitantemente, temos o Código Civil dispondo em sentido idêntico e tornando defesa a limitação de responsabilidade em contratos de adesão.

Com o novo sistema legal, o que antes era solucionado através da jusfilosofia, mediante cansativo processo de esgrima das normas vigentes no sistema legal como um todo, passou a ter tratamento melhor, normativo e expresso, fulminando qualquer dúvida a respeito.

Lista o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, os direitos básicos atribuídos ao consumidor figurando, dentre eles, os dos incisos IV e X, que o protege de práticas e cláusulas contratuais abusivas e lhe garante o direito a um eficaz serviço público[1], respectivamente, transcritos abaixo:

"Art. 6.º - São direitos do consumidor:

IV – a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços;

X – a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral".

                     

Toda cláusula que limita a responsabilidade é abusiva porque constitui em ofensa ao equilíbrio contratual, mormente quando o contrato que a contém, como é o caso dos contratos maritimistas de transporte, é um típico contrato de adesão.

Antes da lei, existiam, como dissemos, outros argumentos utilizados para combater as ditas cláusulas.

Considerando que este manual tem enfoque nitidamente prático, convém tecer comentários a respeito.

Sendo o contrato de transporte marítimo (conhecimento marítimo) um contrato de adesão, as cláusulas são impressas, não cabendo ao consumidor do serviço contratado, diretamente ou por estipulação em favor de terceiro, qualquer deliberação a respeito.

O consumidor simplesmente adere às condições impostas, inicialmente, pelo fornecedor, diga-se, transportador marítimo.

E nem se diga em eventual liberdade de não contratar, pois tendo-se em conta que cerca de 90% do transporte global de cargas é feito por mar, pouco liberdade têm os consumidores de tais serviços, uma vez que eles precisam contratar os transportes, submetendo-se, forçosamente, as disposições contidas nos instrumentos contratuais.

Falar em limitação de responsabilidade é falar, também, em reconhecimento da incidência das normas morais nas obrigações civis e/ou consumeritas, uma vez que limitar a responsabilidade, não raro a valores ou percentuais aviltantes, é ato afrontoso à moral que, em nosso entendimento, não pode ser de forma alguma admitido, principalmente em sede judicial.

A limitação de responsabilidade é imoral e prejudicial à economia e a decência do Direito, uma vez que permite que o ato ilícito permaneça sem punição, quebrando a regra de que aquele que causa dano à outrem deve reparar os prejuízos decorrentes com seu próprio patrimônio.

Por tal e tanto é que doutrinadores de grosso calibre, muito antes do advento do Código do Consumidor, manifestavam repúdio às ditas cláusulas, como exposto na seleção abaixo:

Hugo Simas[2]: “Por modo tal os transportadores têm abusado das cláusulas de não responsabilidade, que não há excesso na afirmativa de Pipia de que os fretadores e armadores não têm responsabilidade nenhuma e os capitães muito pouca, pelo o que os carregadores podem dar graças a Deus e à nímia bondade daqueles, se chegar ao destino alguma cousa do que é remetido.”

José Aguiar Dias[3]: “Sem embargo de sua utilidade, pois estimula os negócios, mediante afastamento da incerteza sobre o quantum da reparação, a cláusula limitativa muitas vezes resulta em burla para o credor. Dificilmente se dá o caso de ser o dano real equivalente à reparação prefixada, esta última, por um simulacro de perdas e danos.” (..) “Praticamente, é a cláusula exonerativa, à qual acaba por servir de argumento. As cláusulas limitativas são de uso frequente nos transoportes. Consistem, comumente, na fixação “a forfait”, de determinada soma, para constituir a indenização, em caso de perda, extravio, avaria ou atraso. (...) não temos dúvida em sustentar a sua nulidade, quando a soma arbitrariamente fixada resulte em verdadeira lesão para o credor, principalmente quando se trate de transporte, cujo contrato geralmente é de natureza a excluir a liberdade de discussão por parte do interessado no serviço.”

E Pontes de Miranda[4], que sobre o tema “responsabilidade do transportador”, especialmente “cláusula de irresponsabilidade”, disse: “No Decreto n.º 19.473, de 10  de dezembro de 1930, art. 1.º, 1.ª alínea, que regulou os conhecimentos de transporte de mercadorias por terra, água ou ar, e deu outras providências, estatui-se: “O conhecimento de frete — leia-se conhecimento de transporte – original, emitido por empresas de transporte por água, terra ou ar, comprova o recebimento da mercadoria e a obrigação de entregá-la no lugar de destino.”. Na 2.ª alínea, acrescenta-se: “Reputa-se não escrita qualquer cláusula restritiva, ou modificativa dessa prova ou obrigação”. Tem-se querido insinuar a diferença entre restrição ou modificação da responsabilidade do transportador, o que é sem sendo. Transportar é receber o objeto e entregá-lo tal como foi recebido. A responsabilidade pelos danos que o objeto sofreu é inclusa no dever contratual de entrega.

É preciso que não se admitam cláusulas de irresponsabilidade que retirariam ao contrato de transporte sua estrutura. Por outro lado, o que importa é saber-se se, na espécie, a regra jurídica invocada é “ius cognes” ou “ius dispositium” ou “ius interpretarivem”. Se a regra jurídica é cogente, não há pensar-se em qualquer permissão de cláusula de irresponsabilidade.

De se ver que um dos maiores tratadistas do Direito, Pontes de Miranda, lastreado na interpretação sistêmica do Direito e, especificamente, no Decreto n.º 19.473/30, já manifestava, antes mesmo do advento do Código de Defesa do Consumidor, seu inconformismo quanto as cláusulas de irresponsabilidade, defendendo, com contundência e erudição, posicionamento relativo a invalidade absoluta das mesmas.[5]

Fazendo eco à doutrina selecionada no trabalho acima reproduzido, os Tribunais brasileiros, quase que majoritariamente, também fizeram consignar o repúdio a validação e eficácia das ditas cláusulas.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ostenta orgulhosamente o título de ser um dos principais berços do pensamento jurídico brasileiro, através da sua sexta câmara, julgando o Recurso de Apelação n.º 274.840-Santos, decidiu:

“Limitar a responsabilidade da transportadora a 100 (libras esterlinas) é, sem dúvida, infringir o artigo 1.º do Decreto n.º 19.473, de 10.12.1930, que reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da prova do recebimento da mercadoria e da obrigação de entregá-la no destino, prova que o conhecimento de frete original faz a obrigação que por ela as empresas de transporte assumem. O legislador, certamente, teve em mente que: “illud nulla pactione effici potest ne dolus praestatus” (Dig. Lib. II, Tit.XIV, § 3.º). Pode ocorrer que o extravio da mercadoria faça render quantia superior à que o transportador tiver de pagar a título de indenização. Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar.” (...) “É enganosa a doutrina que condiciona a validade das cláusulas de limitação de responsabilidade “a uma rebaja del frete, segun opciones que previamente los transportadores dan a los cargadores” (FRANCIS FARINA, Derecho Comercial Martitimo, T. II, Ed. 1948, Madrid, p. 290, cfn. fls. 81). Haveria frete com determinada percentagem para os transportes sem declaração de valor das mercadorias e frete com “the rate increased” para o transporte com a declaração daquele valor. Dir-se-á que a opção pode advir uma vantagem, se o transporte for levado a bom termo, pois os mesmos riscos terão sido corrigidos, com um frete mais barato. A limitação de responsabilidade, porém, continua dando oportunidades de extravio doloso por parte do capitão ou da transportadora, eventualmente em conluio com o embarcador ou exportador. E aquela álea não poderá ser uma compensação a justificar a validez da cláusula restritiva.”

Também elaborado antes do surgimento da lei do consumidor (e do novo Código Civil), o posicionamento do Tribunal de Justiça paulista foi construído com muita lucidez, dando ênfase, como não poderia deixar de ser, ao Decreto n.º 19.473/30 e aos mais importantes e elementares princípios e postulados gerais do Direito.

Não se limitando ao Direito, o colégio paulista enveredou-se por outros ramos do conhecimento humano, porquanto observou, com precisão, que a limitação de responsabilidade é, ainda que às avessas, fator de incentivo à criminalidade, diga-se, extravios dolosos de cargas (“Para eliminar estímulo de extravios dolosos, a lei fulmina cláusulas de irresponsabilidade e de não indenizar”.).

Ora, ao preocupar-se com o implemento da criminalidade e, ainda, com as divisas nacionais (ordem econômica), o Tribunal paulista emprestou ao tema, repita-se: antes do surgimento da legislação especial consumerista, ares publicistas, sinalizando com o interesse social que tem a questão da não validade das cláusulas limitativas de responsabilidade.

Ditas cláusulas, qualquer que seja sua feição, limitação, restrição, exonerativa, enfim, negativa de responsabilidade, mesmo que parcialmente, é nula de pleno direito, não havendo que se falar em “pacta sunt servanda”, primeiro porque o princípio da supremacia prefere ao da livre manifestação de vontade das partes, depois porque a presença das mesmas é imposta, mediante cláusulas impressas em contratos de adesão, principalmente agora que o sistema legal brasileiro, pelo Novo Código Civil, expressamente adotou o princípio do fim social para os contratos, além da boa-fé dos negócios jurídicos em geral.

Nesse sentido, interessante decisão do Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n.º 107.361-6, votação unânime, dispõe que:

“Dentro do mesmo raciocínio, ao reduzir-se o valor de uma indenização a parte insignificante do prejuízo efetivamente verificado, parece ser a negação do próprio princípio que assegura a obrigação do pagamento dessa indenização. O Supremo Tribunal, com base em texto legal que reputa não escrita “qualquer cláusula” restritiva ou modificativa da obrigação do transportador (art. 1.º, do Decreto n.º 19.473/30), proclamou, na Súmula n.º 161, a inoperância da cláusula de não indenizar, não vejo como conciliar, com esse enunciado, a degradação de ressarcimento de uma importância mais de uma centena de vezes menor do que o prejuízo efetivo, a ponto de não chegar a compensar a antecipação dos encargos financeiros necessários ao ajuizamento da demanda.”

Igual entendimento teve o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n.º 644-89.0009917-5-SP:

“Direito comeracial – Transporte marítimo – Cláusula limitativa de responsabilidade do transportador – O Decreto n.º 19.473, de 10.12.30, em seu art. 1.º, reputa não escrita qualquer cláusula restritiva ou modificativa da obrigação e tanto equivale a limitação a valor irrisório do montante da indenização, precedente do STF.”

Limitar a responsabilidade, repita-se pela última vez, é o mesmo que não indenizar e, por via de conseqüência, ofender postulados e primados importantes do Direito pátrio.

Começando por princípios fundamentais do Direito, uns de índole geral, outros de natureza constitucional, todos, contudo, informadores de qualquer interpretação legal e, mais importante, aplicação do Direito.

Tais cláusulas ofendem fundamentos como a eqüidade, a razoabilidade, a proporcionalidade e o bom-senso.

A imposição de tais cláusulas, ao exclusivo alvedrio da ré faz letra morta qualquer alusão ao “pacta sunt servanda”, sendo curial notar que outro aforismo cabe na hipótese em questão: “pacta non possunt facere licita quae alias illicita sunt”.

Relevante consignar que, mesmo sem se remeter às regras do Código de Defesa do Consumidor, os princípios jurídicos que regem os contratos coíbem o abuso, notadamente ao se observar o dirigismo contratual decorrente da forma adesiva de contratação, como aliás é o caso vertente.

Além do mais, o princípio da força obrigatória veio a ser mitigado com teorias e teses diversas, desde a da imprevisão até a da boa-fé objetiva, passando pela função social das obrigações e, ainda, a expressa vedação ao abuso de Direito.

Afinal, o Direito não se presta ao torto; e, em termos contratuais, poucas coisas são mais tortas e obscenas do que as combatidas e odiosas cláusulas limitativas e/ou exonerativas de responsabilidade. Tudo isso diante da vertiginosa velocidade de modificação, por vezes profunda, que a sociedade contemporânea passou a experimentar em seu modus vivendi, impedindo que as avencas permaneçam estáticas e imunes a tal evolução.

Nos dias correntes, impossível eventual apego a literalidade das cláusulas contratuais, desrespeitando-se princípios maiores e regras legais abertas, como as que tratam da boa-fé objetiva (art. 422, Código Civil).

Como anota com invulgar precisão Orlando Gomes: “o direito moderno não mais admite os contratos de “direito estrito”, cuja interpretação é literal. As partes contratantes devem atuar com lealdade e inspirar recíproca confiança, subordinando-se ao interesse da sociedade quanto à segurança das relações jurídicas e do aperfeiçoamento da relação negocial.”.[6]

Ainda mais em sentido tem a inteligência jurídica acima em se tratando de um contrato de adesão, em que as disposição são, como já se disse, impostas unilateralmente pelo transportador marítimo, de forma coativa, sem qualquer disposição de vontade por parte do contratante, refém do arbítrio e do abuso da outra parte.

Rechaçar qualquer cláusula contratual que dispõe sobre limitação de responsabilidade e dar preferência à idéia de função social das obrigações e aos princípios (regras legais) da função social, probidade e boa-fé objetiva das obrigações.

Nesse sentido, especificamente sobre a função social dos contratos em geral, interessante o posicionamento de Ramon Mateo Junior[7], ao comentar o conteúdo do artigo 421 do Código Civil:

“Diante dessas disposições legais, verificamos uma mudança na mens legem do Código novo em relação ao atual. A lei opera um avanço na concepção da finalidade da relação jurídica contratual. De fato, até hoje adotamos, nos contratos em geral, o denominado modelo liberal como sendo um inabalável paradigma, estabelecendo-se um dogma entre os operadores do direito em torno dos princípios da autonomia da vontade e força obrigatória, desde que livremente formalizados e com observância da ordem pública e aos bons costumes.

                                                          

(...)

Em outras palavras, não somos tão livres para contratar como pensamos. Ao contrário, estamos direcionados para assumirmos obrigações em busca de uma vida melhor, como exigência de respeito e sucesso no meio social. Tudo programado pelo ideal consumerista que desde cedo ensinamos aos nossos filhos.”.

A boa-fé objetiva é um princípio geral, aplicável ao Direito das Obrigações, especialmente em relação a sua principal fonte: os contratos, e que agora, diga-se, com o advento do Código Civil de 2002, veste o manto de regra legal em sentido estrito, ainda que aberta.

Também se dá à aplicação de metido hermenêutico-integrativo, com vistas a interpretação da declaração de vontade, ajustando a relação jurídica à função social (e econômica) determinável no caso concreto.

Em outras palavras, segundo o ótimo e elucidativo entendimento de Cibele Pinheiro Marçal Cruz e Tucci[8]: “(...) conferem-se efeitos jurídicos à justa e razoável expectativa de produção dos resultados práticos que normalmente adviriam do negócio (o fim típico), tomadas as circunstâncias especiais de cada caso concreto, ainda que o rigor  formal da lei ou a interpretação literal do contrato estabeleça a produção de efeitos diversos. Cuida-se de prestigiar a confiança do contratante na lealdade sugerida pelos costumes e, por isso mesmo, tornada exigível da contraparte.”.

A teoria da boa-fé objetiva ajusta-se melhor à idéia de que o contrato, muito mais do que uma relação jurídica bipolarizada, constitui um processo através do qual as partes buscam a consecução de fins previamente estabelecidos, mediante a reunião de esforços e cooperação mútua. O fim comum do contrato é a satisfação dos interesses contrapostos das partes.

Considerando a importância do tema, que a reboque expressa a figura da probidade, convém fazer nova menção ao mesmo trabalho de Ramon Mateo Junior[9]: “A boa-fé objetiva é concebida como uma regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração de que todos os membros da sociedade são juridicamente tutelados, antes mesmo de serem partes nos contratos. O contraente é pessoa e como tal deve ser respeitado. (...) Esse comportamento pode ter como paradigma o amor ao próximo pregado pelo Cristianismo. Sem dúvida, não há melhor parâmetro para se verificar a retidão de um comportamento.”

                                                          

Quem, por qualquer motivo, defende a eficácia de tais cláusulas, age imantado de má-fé e contrariamente aquilo que se tem como mais arejado e avançado em termos de Direito.

Mesmo antes de todas estas figuras legais acima reportadas, suficientemente hábeis para o espancamento de qualquer discussão a respeito do assunto, os operadores do Direito, com base na jusfilosofia inclusive, já comungavam de tal posicionamento, como atesta a Sentença, abaixo parcialmente reproduzida, da lavra do Magistrado Amable Lopes Soto, nos autos do Processo nº 1.867/97, tramitado pela Douta Décima Vara Cível de Santos:

“Vejamos agora a assertiva da cláusula de máximo de indenização.

Como bem afirmou a autora, a tese de limitação é, in casu, “ilegal, antipatriótica e amoral”.

O Supremo Tribunal Federal já firmou que é nula a cláusula de não indenizar (Súmula nº 161) e, pelas mesmas razões, nula também é a cláusula que restringir a indenização.

Toda mercadoria tem um preço e sobre este, aliado a outros fatores, tais como peso e volume, extrai-se o preço do frete.

Ora, não é dado ao importador influir no contrato de transporte, via de regra não tem o direito sequer de escolher o transportador, sendo pois a limitação da responsabilidade uma violência aos interesses do importador que causa tão-somente a incerteza de receber a mercadoria transportada e pré-paga.

À luz do Código do Consumidor, há flagrante abuso econômico, viciando a livre manifestação de vontade.

Sendo assim, devemos ter a cláusula como não escrita, por consequência, responde o transportador pelo dano causado, na sua integralidade.”

Especificamente sobre o transporte aéreo, mas sendo perfeitamente aplicável aos demais modais de transporte, especialmente o marítimo, até em razão da profunda intimidade entre todos, o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA já se manifestou expressamente, pondo derradeira pá de cal no tema limitação de responsabilidade:

RECURSO ESPECIAL Nº 224.554 - SP (1999/0067188-0)

RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Agravante: TAP AIR PORTUGAL

Agravada: BRADESCO SEGUROS S/A

EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSOESPECIAL. TRANSPORTE AÉREO. EXTRAVIO DE MERCADORIA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO. PRESCRIÇÃO. PRAZO.

Aplicam-se as disposições do Código de Defesa do Consumidor à reparaçãopor danos provenientes de extravio de mercadorias, ocorrido em transporteaéreo internacional, e não a responsabilidade tarifada da Convenção de Varsóvia.

A prescrição da pretensão indenizatória por danos decorrentes do extravio de mercadoria, objeto de transporte aéreo, ocorre em 20 anos, de acordo com o Código Civil, e não em 30 dias, como na reclamação por vício de serviço amparado pelo CDC.

Agravo a que se nega provimento

(publicado DJU em 25.02.02)

RESPONSABILIDADE CIVIL - EXTRAVIO DE MERCADORIA - TRANSPORTE AÉREO -APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS INSCULPIDOS PELO CDC - REPARAÇÃO INTEGRAL DOS DANOS CAUSADOS.

I - Os limites indenizatórios constantes da Convenção de Varsóvia não se aplicam à relações jurídicas de consumo, uma vez que, nas hipóteses como a dos autos, deverá haver, necessariamente, a reparação integral dos prejuízos sofridos.

II - Recurso Especial conhecido e provido.

Voto do Relator:

"Isso porque, este tipo de avença encontra-se sob o império da mencionada lei, eis que a empresa transportadora enquadra-se na definição de fornecedor do artigo 3º, bem como o serviço por ela prestado ajusta-se à noção de serviço constante do § 2º."

(STJ - Relator: Min. Waldemar Zveiter; Acórdão Unânime da 3ª Turma; julg.19.02.2001; Recurso Especial n.º 218.383-SP (1999/0050313-9)

Pois bem:

Os adversários do presente e sólido entendimento, fazem verdadeira ginástica jurídica para emprestar a cláusula limitativa de responsabilidade a moralidade que ela não tem, até por ser cláusula abusiva e que gera o desequilíbrio nas relações contratuais.

Contrariando o posicionamento sólido cós Tribunais brasileiros, incluindo os superiores, lançam luzes numa única decisão do STJ a favor da clausula, ignorando, maliciosamente, as particularidades do caso concreto que a ensejou e a sua não aplicação aos casos simples de descumprimentos obrigacionais.

Teses acerca de aplicação, por meio de sofisticada, mas vazia, interpretação sistêmica, de uma ou outra Convenção maritimista internacional, também são constantemente lançadas, tudo com o objetivo deliberado de se conquistar, num dado caso concreto, uma vantagem supostamente legal, mas que em essência é antijurídica, ilegal e imoral.

Num recente caso concreto, no qual atuei como advogado de um proprietário de carga prejudicado pelo grave inadimplemento contratual do transportador marítimo, tive a oportunidade, no exercício da capacidade postulatória, de combater a aplicação e a incidência da limitação de responsabilidade, invocada pelo transportador marítimo, com base numa convenção internacional ligada ao Direito Marítimo.

Nenhuma Convenção Internacional de natureza maritimista pode limitar a responsabilidade do transportador marítimo porque o Brasil não foi signatário de qualquer uma delas, salvo a de Hamburgo, mas que até hoje não vige no sistema legal do país porque não foi ratificada pelo Congresso Nacional.

Daí o erro sem medida de quem defende a limitação de responsabilidade, especialmente aquela mencionada na Convenção de Haia-Visby, pois esta faz menção ao contrato de transporte marítimo e, este, até por ser de adesão e com cláusulas impressas, tem grande parte do seu conteúdo repudiado pelo Direito brasileiro.

O conteúdo da contestação, abaixo reproduzido, é interesse e merece ser lido, até para melhor orientação a respeito do tema.

A pretensão declaratória da autora não se sustenta porque a Convenção Internacional invocada não é aplicável

A autora alega que é preciso atentar e reconhecer a Vigência de uma Convenção Internacional, supostamente aplicável ao Brasil, e da limitação de responsabilidade nela prevista.

Para tanto, faz uso de uma robusta argumentação que vai desde o uso inadequado das Sagradas Escrituras até esquálido resumo jurisprudencial, sendo ainda desconexo com o verdadeiro bem da vida do caso concreto.

Pois bem, a ré já afirma o que é óbvio: o Brasil não aderiu a nenhuma das Convenções Internacionais relativas ao Direito Marítimo.

Em verdade, o Brasil é signatário de uma, a de Hamburgo, dos anos setenta do século passado, mas esta Convenção não foi incorporada ao sistema legal do país porque até o presente momento não foi ratificada pelo Congresso Nacional.

E mesmo que venha a ser ratificada, será necessário o enfrentamento dos termos da Convenção com os da Constituição e do sistema legal como um todo.

Como visto antes e exposto nesta contestação, nenhuma norma convencional pode determinar o acutilamento de direitos e impor, por exemplo, figuras abominadas pelo ordenamento jurídico pátrio, tais como o dirigismo contratual e a limitação de responsabilidade.

Assim, ferida de morte a pretensão da autora por vício insanável, a um só tempo formal e substancial.

A limitação de responsabilidade é apenas (e mesmo assim parcialmente e mediante grande discussão doutrinária-jurisprudencial) aceita no transporte aéreo internacional, por meio da Convenção de Varsóvia, bisada pela de Montreal.

O Brasil foi signatário dessas Convenções e elas estão no ordenamento jurídico pátrio, devidamente calibradas pelo mesmo ordenamento, e apenas e exclusivamente voltadas ao transporte aéreo de cargas.

Boa parte das decisões no transporte aéreo não reconhece a validade e a eficácia da Convenção no que tange à limitação e a parte que a reconhece, mesmo assim, o faz de forma parcimoniosa, vedando sua aplicação para casos de erros graves, de culpas graves e para os inadimplementos contratuais simples.

Aliás, a própria Convenção de Varsóvia tem uma norma específica dispondo que em caso de culpa grave do transportador, a limitação não pode ser aplicada.

Retornando aos mares do Direito Marítimo, vê-se ainda e com mais razão que é impossível se falar, sequer se cogitar em limitação de responsabilidade, pois a Convenção aludida pela autora não se encontra em vigência no Brasil.

Falaciosa, portanto, a afirmação de ser aplicável a limitação de responsabilidade prevista na Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas à Limitação de Responsabilidade dos Proprietários de Embarcações Marítimas.

Isso porque a referida Convenção NUNCA FEZ PARTE DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.

A autora alega, deformando a verdade, que a Convenção foi firmada também pelo Brasil na cidade de Bruxelas no dia 25 de agosto de 1924, por ocasião da Conferência Internacional de Direito Marítimo, sendo o depósito do instrumento de ratificação e depósito feito no Brasil em 28 de abril de 1931.

Ocorre que JAMAIS FOI RATIFICADO PELO CONGRESSO NACIONAL, donde se extrai a CERTEZA dela nunca ter vigido no Brasil, como provam as milhares de decisões judiciais de 1931 até 2013 não reconhecendo a limitação de responsabilidade.

Tanto assim que a autora, insistindo em deformar a verdade e empregando técnica jurídica surreal, alega que a ratificação foi supostamente aprovada ex-vi pelo disposto no artigo 18 dos Atos das Disposições Transitórias da Constituição Federal.

E, ainda, alega em favor da sua tese pirotécnica o Decreto Executivo 350, de 1 de outubro de 1935, cujo conteúdo supostamente internalizou a Convenção.

Ora, Excelência, basta ver o que o Poder Judiciário decidiu nos últimos SETENTA E CINCO ANOS para perceber que os JUÍZES, a quem cabe dizer o Direito ao caso concreto, NÃO ENTENDEM DA MESMA FORMA QUE A AUTORA E SOMENTE ELA ENTENDE A QUESTÃO.

Aliás, nem mesmo os advogados que defendem os interesses dos transportadores marítimos têm a mesma visão sustentada pela autora, sendo ela voz morta na matéria, expondo-se à contraposição de seus pares.

E se fosse o caso de se reconhecer a validade da absurda tese da autora, é de se sublinhar que a referida Convenção deixou de ter vigência no plano internacional por forma da CONVENÇÃO DE ROTERDÃ, cujo objetivo foi e é o de unificar todas as convenções, tornando-as sem efeito.

O Brasil ainda não assinou a referida Convenção e provavelmente não o fará, porque prejudicial aos seus interesses, enquanto país “cargo”.

Logo, duplamente sem sentido a alegação da autora, pois ainda que sua inverossímil tese fosse válida, a Convenção destacada já não mais estaria em vigor, em todo o mundo, por conta da Convenção de Roterdã, sendo certo que esta não estaria, como não está, em vigor no Brasil porque o país não a assinou.

E tudo é tão sério que a própria Comissão que a elaborou enfatizou na EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS que não se pode emprestar às Convenções passadas o mesmo valor de então, haja vista as mudanças significativas, sobretudo tecnológicas, no universo da navegação.

Assim, aos olhos dos elaboradores da Convenção, além de deixar de existir por conta da nova Unificação feita pelas REGRAS DE ROTERDÃ, a Convenção de Bruxelas não teria mais o vigor passado por conta das mudanças do mundo, esvaziando e muito o seu significado.

Para melhor compreensão de Vossa Excelência, a ré reproduz a exposição de motivos, absolutamente emblemática e em rota de colisão com os argumentos da autora:

REGRAS DE ROTERDÃ: PARTE INICIAL

Assembléia Geral

63ª sessão

Item da agenda nº 74

Resolução adotada pela Assembleia Geral

[sobre o relatório do Sexto Comitê (A/63/438)]

63/122.    Convenção das Nações Unidas a respeito dos Contratos para Transporte Internacional de Cargas Integralmente ou Parcialmente por Mar

A Assembléia Geral,

Referindo-se a sua resolução 2205 (XXI) de 17 de dezembro de 1966, através da qual estabeleceu a Comissão das Nações Unidas de Comércio Internacional com um mandato para prolongar a harmonização progressiva e unificação da lei de comércio internacional, e assim ter em mente o interesse de todos os povos, especialmente aqueles dos países em desenvolvimento, no crescimento extensivo e abrangente do comércio internacional,

Preocupada que falte uniformidade ao presente regime legal, que governa o transporte de cargas por mar, e que falhe ao levar em consideração de forma adequada as técnicas modernas de transporte, incluindo o transporte em containers, contratos de transporte porta-a-porta e o uso de documentos eletrônicos de transporte,

Percebendo que o desenvolvimento do comércio internacional com base na igualdade e benefícios mútuos é um elemento importante na promoção de relações amigáveis entre os Estados,

Convicta que a adoção de regras uniformes a fim de modernizar e harmonizar as regras que regem o transporte internacional de cargas que envolvam o trajeto por mar virá aumentar a certeza legal, melhorar a eficiência e a previsibilidade comercial no transporte internacional de cargas, e reduzir obstáculos legais ao fluxo do comércio internacional entre os Estados,

Acreditando que a adoção de regras uniformes para administrar os contratos internacionais de cargas transportadas total ou parcialmente por mar promoverá certeza legal, melhorará a eficiência do transporte internacional de cargas e facilitará novas oportunidades de acesso para mercados e partes distantes, assumindo um papel fundamental na promoção do comércio e do desenvolvimento do mesmo, em âmbito doméstico e internacional,

Notando que exportadores e transportadores não possuem o benefício de um regime universal compulsório e equilibrado, que dê suporte à operação de contratos de transporte envolvendo várias modalidades de transporte,

Lembrando que em suas trigésima-quarta e trigésima-quinta sessão em 2001 e 2002, respectivamente, a Comissão decidiu preparar um documento internacional para supervisionar as operações de transporte porta-a-porta que envolva o trajeto por mar,

Reconhecendo que todos os Estados e organizações internacionais interessadas foram convidados a participar da preparação do rascunho do Contrato de Convenção para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente Marítimo e na quadragésima - primeira sessão da Comissão tanto como membros como espectadores, com oportunidade total para falar e fazer propostas,

Observando com satisfação que o texto do rascunho da Convenção foi distribuído para ser comentado a todos os Estados membros das Nações Unidas e organizações intergovernamentais convidadas a participarem

Das reuniões da Comissão como espectadores, sendo que os comentários recebidos referem-se à Comissão na sua quadragésima – primeira sessão, (2)

Constatando com satisfação a decisão da Comissão em sua quadragésima – primeira sessão de submeter o rascunho da Convenção às considerações da Assembleia Geral, (3)

Atentando ao rascunho da Convenção aprovado pela Comissão, (4)

Expressando seu apreço pela oferta do Governo das Holanda em abrigar uma cerimônia para assinatura da Convenção em Roterdã,

1. Sugere que a Comissão das Nações Unidas sobre Lei de Comércio Internacional por preparar o rascunho do Contrato de Convenção para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente Marítimo;

2. Adota a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente Marítimo, contida em anexo a esta presente resolução;

3. Autoriza a cerimônia de abertura para a assinatura a ser realizada em 23 de setembro de 2009 em Roterdã, Holanda, e recomenda que as regras incorporadas na Convenção sejam conhecidas como “Regras de Roterdã”;

4. Conclama todos os Governos a considerarem-se parte desta Convenção.

67ª reunião de plenário

11 de dezembro de 2008

Anexo

Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Transporte Internacional de Cargas Total ou Parcialmente por Mar;

Os Estados Partes na presente Convenção,

Reafirmando sua crença que o comércio internacional com base na igualdade e mútuo benefício é um elemento importante para a promoção de relações amigáveis entre os Estados,

Convictos que a harmonização gradual e a unificação da lei de comércio internacional, reduzindo ou removendo obstáculos legais ao fluxo do comércio internacional, contribuem de forma significativa à cooperação econômica universal entre os Estados, com base na igualdade, justiça, interesses comuns e para o bem estar de todos os povos,

Reconhecendo a contribuição significativa da Convenção Internacional para Unificação de Certas Regras de Lei relativas aos Conhecimentos de Embarque, assinados em Bruxelas em 25 de agosto de 1924, e seus Protocolos, e da Convenção das nações Unidas sobre o Transporte de Cargas por Mar, assinado em Hamburgo em 31 de março de 1978, à harmonização da lei que regula o transporte de cargas por mar,

Atento ao desenvolvimento comercial e tecnológico que ocorreu desde a adoção de tais convenções e a necessidade de consolidá-las e modernizá-las,

Reconhecendo que exportadores e transportadores não têm o benefício de um regime universal compulsório e equilibrado, que dê suporte à operação de contratos de transporte marítimo, envolvendo várias modalidades de transporte,

Acreditando que a adoção de regras uniformes para governar contratos internacionais de transporte total ou parcialmente por mar promoverá segurança jurídica, melhorará a eficiência do transporte internacional de cargas e facilitará novas oportunidades de acesso para mercados e partes distantes, assumindo um papel fundamental na promoção do comércio e do desenvolvimento do mesmo, em âmbito doméstico e internacional,

A reproduzida exposição de motivos é um elemento a mais no cadinho da defesa e cuja alquimia mostra o quão errada e distância está a autora da verdade, atestando a idéia de litigância de má-fé da autora.

Trazendo a discussão para o plano nacional, fosse o caso de se reconhecer a vigência da Convenção, ainda assim as regras limitadoras de responsabilidade nela estampadas não teriam qualquer guarida, porque a visão tridimensional do Direito, exposta pelo renomado jurista Miguel Reale, já seria suficientemente hábil para rechaçar a aplicação, uma vez que os fatos, hoje, não são os mesmos de setenta anos atrás.

Ora, os fatos hoje não são os mesmos do passado já distante e as novas tecnologias e a presente dinâmica do transporte marítimo não autoriza a aplicação de uma Convenção que é manifestamente injusta, indevida e absolutamente contrária aos legítimos interesses dos proprietários de carga.

A tradição brasileira sempre foi a de impor ao transportador graves legais substanciais. Prova disso é que desde os tempos do Império até o presente Código Civil, a responsabilidade do transportador marítimo foi disciplinada pelo critério da teoria objetiva imprópria, implicando presunção legal de responsabilidade em caso de inadimplemento e dever de ampla reparação civil.

Assim, a figura da limitação de responsabilidade, prevista em contratos de adesão, nunca foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro, porque injusta, indevida e até mesmo refratária aos princípios gerais do direito e à própria ordem moral.

Além do que já foi comentado em termos de doutrina e de jurisprudência, muito aproveita reproduzir mais uma fonte legal que expressamente diz que NUNCA a Convenção alegada pela autora vigorou no sistema legal brasileiro, pondo derradeira pá de cal na discussão.

A decisão evidencia que o Brasil NUNCA RATIFICOU a referida Convenção, razão pela qual toda a alegação da autora é despida de confiabilidade:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE TRANSPORTE MARÍTIMO INTERNACIONAL. DEMURRAGE. MAGISTRADO A QUO QUE JULGA PROCEDENTES OS PLEITOS VAZADOS NA EXORDIAL. IRRESIGNAÇÃO DA DEMANDADA. PREFACIAL DE NULIDADE DA TUTELA JURISDICIONAL GUERREADA SOB O FUNDAMENTO DE QUE O ESTADO-JUIZ DE ORIGEM ANCOROU-SE NA CONVENÇÃO DE BRUXELAS DE 1924, QUE O BRASIL, APESAR DE SIGNATÁRIO, NÃO RATIFICOU. INOCORRÊNCIA. JULGADOR QUE SEQUER UTILIZOU ESSE DIPLOMA LEGAL COMO PARÂMETRO PARA CERTIFICAR À DEMANDANTE O DIREITO RECLAMADO. PRELIMINAR NATIMORTA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NECESSIDADE DE CONFIGURAÇÃO DE UMA DAS PARTES COMO DESTINATÁRIO FINAL. EXEGESE DO ART. 2º DO SUSO APONTADO DIPLOMA LEGAL. ENFOQUE DA QUAESTIO CONSOANTE A TEORIA FINALISTA ATENUADA. IMPRESCINDIBILIDADE DE OBSERVÂNCIA DA INTERESSADA CONFORME SUA VULNERABILIDADE NO MERCADO. RECORRENTE QUE POSSUI COMO OBJETO SOCIAL A IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO DE MERCADORIAS. PRODUTO QUE SE INSERE NA SUA CADEIA NEGOCIAL COMO SENDO "MEIO". CASUÍSTICA QUE NÃO SE ENCONTRA SOB O MANTO DO PERGAMINHO CONSUMERISTA. CONTRATO DE ADESÃO. NEGÓCIO JURÍDICO ENTABULADO COMO SENDO FORMULÁRIO. OBSERVÂNCIA AOS ARTS. 423 E 424 AMBOS DO CÓDIGO CIVIL. INOCORRÊNCIA DE EXCESSIVIDADE DO VALOR COBRADO A TÍTULO DE SOBRE-ESTADIA. INVIABILIDADE DE APLICAÇÃO DO ART. 157 DO CÓDIGO CIVIL, QUE AÇAMBARCA A TEORIA DA LESÃO. INTERESSADA QUE NÃO SE MOSTRA INEXPERIENTE NO RAMO DE IMPORTAÇÃO, PORQUANTO ESSE É UM DE SEUS OBJETOS SOCIAIS, ALÉM DE QUE NÃO RESTOU COMPROVADA A PREMENTE NECESSIDADE. ÔNUS QUE LHE INCUMBIA. ART. 333, INCISO II, DO CÓDIGO BUZAID. DEMANDANTE QUE, ADREDAMENTE, LEVOU AO CONHECIMENTO DA RECORRENTE A FRANQUIA DE 10 (DEZ) DIAS DE ESTADIA DOS CONTAINERS NO PORTO, ALÉM DE TER APONTADO CRISTALINAMENTE O VALOR DIÁRIO DA DEMURRAGE. DEMANDADA QUE DEU CAUSA AO MONTANTE COBRADO EM RAZÃO DA NÃO DEVOLUÇÃO DOS CONTAINERS. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. ADITAMENTOS INCIDENTES SOBRE O VALOR PERSEGUIDO NA LIDE. ESTADO-JUIZ A QUO QUE ESTIPULOU O CÔMPUTO DE CORREÇÃO MONETÁRIA DESDE A DATA DA PETIÇÃO INICIAL E JUROS MORATÓRIOS DE 1% A CONTAR DA CITAÇÃO. MATÉRIAS JÁ DEFINIDAS NA ORIGEM E NÃO DEVOLVIDAS A ENFOQUE A ESTA CORTE. PRECLUSÃO. LACUNA QUANTO AO ÍNDICE DE RECOMPOSIÇÃO DO PODER DE COMPRA DA MOEDA E PERIODICIDADE DE COBRANÇA DOS JUROS DE MORA. PERMISSIVIDADE DE COMPLÇÃO DE OFÍCIO DA SENTENÇA NESSES ASPECTOS, PORQUANTO DECORRENTE DE LEI. CORREÇÃO MONETÁRIA QUE DEVE OBSERVAR A VARIAÇÃO DO INPC/IBGE. PROVIMENTO N. 13/95 DA CORREGEDORIA-GERAL DA JUSTIÇA DESTE AREÓPAGO. JUROS MORATÓRIOS LIMITADOS EM 1% QUE POSSUEM EXIGÊNCIA MENSAL. EXEGESE DOS ARTS. 406 DO CÓDIGO CIVIL E 161, § 1º, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. SUCUMBÊNCIA. TUTELA JURISDICIONAL PROFLIGADA QUE SE MANTEVE INCÓLUME. RECORRENTE QUE PERMANECE LETÁRGICA EM PLEITEAR PELA MODIFICAÇÃO DESSE ÔNUS. ASSUNTO QUE SE INSERE NO ÂMBITO DE DISPOSIÇÃO DA INTERESSADA. OBSERVÂNCIA AOS PRINCÍPIOS DISPOSITIVO E INÉRCIA DA JURISDIÇÃO. VERBA QUE PERMANECE TAL QUAL VAZADA NA ORIGEM. RECURSO DESPROVIDO.CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR423424CÓDIGO CIVIL157CÓDIGO CIVIL406CÓDIGO CIVIL161§ 1º CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

(748410 SC 2008.074841-0, Relator: José Carlos Carstens Köhler, Data de Julgamento: 21/06/2011, Quarta Câmara de Direito Comercial, Data de Publicação: Apelação Cível n. , de Itajaí)

Daí dizer que existem vários motivos pelos quais a tese da autora não pode prevalecer e é típica de aventura jurídica:

Sumariamente: 1) o Brasil nunca ratificou a Convenção de Bruxelas, razão pela qual ela nunca entrou no ordenamento jurídico brasileiro; 2) Ainda que fosse o caso de se considerar a validade e a eficácia dela, tem-se que ela foi obliterada pelas Regras de Roterdã, não assinadas pelo Brasil, mas que no plano internacional, entre os Estados signatários, unificou todas as convenções internacionais maritimistas anteriores e 3) a limitação de responsabilidade é algo que o Direito brasileiro não reconhece porque contrária ao sistema legal como um todo.

Além disso, tudo, quando a tese da autora é confrontada com o caso concreto, tem-se que a aplicação é ainda prejudicada porque o sinistro não diz respeito ao cumprimento ou não de um contrato de transporte internacional de carga, mas aos danos e prejuízos provocados, extracontratualmente, pela autora.

Um caso informado pela responsabilidade civil subjetiva e que tem o conceito de culpa grave, inescusável, equiparada ao quase-dolo, como figura central do sinistro.

E num caso como este, ainda que houvesse previsão legal pela limitação de responsabilidade, a sua aplicação não se daria, pois em se tratando de um dano fora do contrato de transporte, qualquer discussão acerca do seu clausulado é desnecessária.

Não há como se emprestar um mínimo de seriedade ao pleito da autora.

O conteúdo da defesa acima reproduzida, modéstia à parte, é praticamente um pequeno artigo sobre o assunto e mostra, com riqueza de detalhes, os argumentos jurídicos e os fundamentos pelos quais não pode a limitação de responsabilidade ser aplicada, qualquer que se a alegação em seu favor.

Se a parte que litiga contra o transportador marítimo for seguradora da carga, legalmente sub-rogada após o pagamento da indenização ao segurado, o consumidor original, o credor primitivo, da obrigação de transporte, ainda mais sem sentido se torna a alegação da limitação contratual.

Isso porque a seguradora não foi parte, nem mesmo por estipulação, do contrato de transporte (com termos impostos pelo transportador marítimo, unilateralmente) e a discussão do pagamento do suposto frete “ad valorem”, cai por terra, vê-se ferido de morte.

Não pode o direito ser acutilado de forma tão traumática por uma disposição contratual, especialmente uma da qual a seguradora não foi parte efetiva.

Se a discussão em torno do chamado frete “ad valorem” já não tem sentido relativamente ao consignatário da carga – na medida em que a suposta liberdade de escolha é uma forma de coação às avessas, com oneração excessiva e inviável do custo de transporte -, ainda mais sem sentido e até mesmo imoral, além de ilegal, a imposição ao segurador sub-rogado.

Prevalecendo tal entendimento, a sub-rogação seria atingida visceralmente e, com ela, o Enunciado de Súmula 188 do STF que diz: O segurador tem ação regressiva contra o causador do dano, pelo que efetivamente pagou, até ao limite previsto no contrato de seguro.

Ora, em termos práticos, o segurador não conseguiria o ressarcimento do valor integral que pagou ao segurado e isso geraria a afronta do seu direito e da Súmula em destaque.

O reflexo seria imediato no campo do direito securitário e, por sua vez, na economia como um todo, com desdobramentos sérios e complexos.

A limitação de responsabilidade, é preciso que se diga, facilitaria e facilitará, se reconhecida pelo Poder Judiciário, a vida dos transportares eivados de má-fé. Cargas de elevados valores agregados seriam extraviadas e aos transportadores bastaria pagar as indenizações tarifadas, de tal maneira que, para eles, a máxima de que o crime não compensa não seria verdadeira. O crime seria e será algo compensador, ao menos aos transportadores inidôneos e que não zelam por seu bom nome empresarial.

E não é sem sentido a preocupação com a criminalidade, especialmente num meio volátil como o maritimista em que poucos são os armadores verdadeiramente sérios e absolutamente idôneos.

Tal preocupação e outras menos graves diz respeito a racionalização dos contratos de adesão e da preocupação de se coibir as cláusulas abusivas.

Nunca é demais enfatizar que a rigor, a cláusula que limita a responsabilidade, em tudo equiparada à cláusula de não indenizar, é uma cláusula abusiva por excelência.

A verdade é que a cláusula limitativa de responsabilidade, à luz do caso concreto, deve ser interpretada sempre “contra proferente”, ou seja, contra quem a proferiu, uma vez que redigida exclusivamente pelo transportador, pelo fornecedor do serviço.

Exatamente o que afirma Wanderley Fernandes: “Nos contratos de adesão, essa regra de interpretação tem sido plenamente admitida pela doutrina e pela jurisprudência. No Brasil, a regra da interpretatio contra proferentem alçou condição de regra legal de interpretação, nos termos do artigo 423 do Código Civil” (Cláusulas de exoneração e de limitação de responsabilidade, Saraiva, São Paulo: 2013).

Ora, ainda que se queira aceitar a validade e a eficácia da cláusula limitativa de responsabilidade, não se poderia deixar de ter em alça de mira tal e inafastável critério de interpretação.

Em sendo assim, aos olhos do Direito brasileiro, somente uma hipótese poderia contemplar, eventualmente, em caráter extraordinário, muito especial, a aplicação (e mesmo assim calibrada) da limitação: um grande sinistro com a perda total do navio e de todas as cargas, desde que não houvesse prova de conduta manifestamente culposa do navio e, ainda, o perdimento das cargas fosse de tal envergadura econômica, de tal impacto, que a sobrevivência da empresa restasse comprometida (tudo segundo os ditames da teoria da preservação da empresa e conforme singularidades do sinistro).

Vê-se, portanto, o caráter essencialmente excepcional de aplicação da limitação.

Nos sinistros cotidianos, caracterizados por faltas e avarias, com ou sem a presença, num caso concreto, de avaria grossa, o fato é que não se aplica a cláusula limitativa de responsabilidade, tendo-se em conta o mosaico vasto de vícios legais que ela contém.

A limitação é um benefício que, a despeito de sua abusividade, impertinência e antijuridicidade, só pode ser aplicado e restritivamente em casos extremamente pontuais e extraordinários, tendo-se por objetivo a defesa de bens maiores e, ainda assim, sem prejuízos acentuados às vítimas diretas do caso, os donos de cargas ou seu seguradores.

Tudo dentro de uma dinâmica de equilíbrio e busca da justiça, observando-se o arquétipo da função social da obrigação contratual.

Nada disso, porém, se harmoniza com o sinistro simples, grave ou não, contornado ou não por avaria grossa, muito menos a idéia de culpa em sentido estrito. A inexecução da obrigação de resultado assumida deve, a rigor, propiciar a reparação civil mais ampla possível, compensando-se a parte credora e punindo-se, a devedora.

Há componente de justiça em tal concepção do Direito e quando se defende a Justiça, defende-se a moral, experiência que a defesa da limitação de responsabilidade insiste em deixar de lado.

O transportador que não cumpre fielmente sua obrigação contratual, não pode ser contemplado com a limitação do seu dever jurídico de indenizar, especialmente por conta de disposição contratual abusiva.

Aliás, impressionante a insistência dos transportadores, em lides forenses, no sentido de buscarem, mesmo após reiteradas derrotas nos casos concretos, arrastarem os processos com recursos especiais, buscando eventuais divergências jurisprudenciais.

Tais recursos morrem nos juízos de delibações, pois o STJ não pode rediscutir provas e a limitação de responsabilidade, ao menos no transporte marítimo, é contratual, não convencional. Logo, impedido o STJ de analisar o contrato novamente e, portanto, a tese da limitação.

Mesmo assim, sem constrangimento algum, as alegações são feitas e os processos atrasam sobremodo, mais pela má-fé dos transportadores do que por culpa de qualquer outro fator.

Daí a importância dos juros moratórios de 1% ao mês de litígio, um mecanismo de calibragem capaz de conferir justiça pela demorada na solução de uma lide. A verdade é que o transportador assume uma obrigação de resultado e tem o dever de cumpri-la fielmente.

Não pode mitigar, quando da inexecução, os seus deveres, por conta de limitações tarifadas, especialmente quando estas são inseridas num contexto de flagrante abusividade.

Defender o contrário é, a um só tempo, desprestigiar a tradição jurídica brasileira, afrontar a lei e virar às costas à moral.

Sempre à disposição para maiores esclarecimentos,

Era o que tinha para expor no momento.


Notas

[1] O serviço prestado pela ré é um serviço privado imantado de interesse público, tanto que se encontra subordinado à rigorosas regras de direito público, donde se fala em aplicação da teoria do munus público.

[2] Compendio de Direito Marítimo Brasileiro, São Paulo: editora Saraiva, 1938, p. 200

[3] Cláusula de Não Indenizar, Edição Forense: 1980, p. 112 e 128

[4] Tratado de Direito Privado, Tomo XLV, Ed. Borsoi: Rio de janeiro, 1972, § 4884, n.º 2, p. 143/4

[6] in Contratos, 5ª ed., Forense, Rio, p. 49

[7] O Novo Código Civil Discutido Por Juristas Brasileiros, Aparecido Hernani Ferreira e outros, Bookseller, São Paulo: 2002, p. 95/97

[8] Revista do Advogado, Novo Código Civil: Aspectos Relevantes, nº 68, Dez/2002, AASP, Teoria Geral da Boa Fé Objetiva, São Paulo: p. 101/102

[9] Op. Cit. P. 100


Autor

  • Paulo Henrique Cremoneze

    Sócio fundador de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas – Advogados Associados, mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos, especialista em Direito do Seguro e em Contratos e Danos pela Universidade de Salamanca (Espanha), acadêmico da ANSP – Academia Nacional de Seguros e Previdência, autor de livros jurídicos, membro efetivo do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo e da AIDA – Associação Internacional de Direito do Seguro, diretor jurídico do CIST – Clube Internacional de Seguro de Transporte, membro da “Ius Civile Salmanticense” (Espanha e América Latina), associado (conselheiro) da Sociedade Visconde de São Leopoldo (entidade mantenedora da Universidade Católica de Santos), patrono do Tribunal Eclesiástico da Diocese de Santos, laureado pela OAB Santos pelo exercício ético e exemplar da advocacia, professor convidado da ENS – Escola Nacional de Seguros e colunista do Caderno Porto & Mar do Jornal A Tribuna (de Santos).

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CREMONEZE, Paulo Henrique. A inoperância e a não validade das cláusulas e normas limitativas de responsabilidade: respeito à garantia fundamental constitucional da reparação do dano ampla e integral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3747, 4 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25315. Acesso em: 29 mar. 2024.