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A posição da Santa Sé no direito internacional

A posição da Santa Sé no direito internacional

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A posição da Santa Sé no cenário das relações exteriores é, muitas vezes, vista com desconfiança e como fator comprometedor, devido ao seu conservadorismo, à nova dinâmica contemporânea das relações interestatais.

Não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas? Não vim revogar, vim para cumprir. (Mateus, v.17, 18; NT; Bíblia)

Resumo:Meio a um cenário globalizante, em que a liberdade de valores e a tolerância de diferenças tornam-se premissas maiores das relações interestatais, a Santa Sé mostra-se, a princípio, como uma entidade controversa e alheia à nova dinâmica internacional. Muito devido a seu reconhecido conservadorismo para tratar de assuntos sócio-políticos, o engajamento da Santa Sé nas mais diversas searas do Direito e das Relações Internacionais foi paulatinamente visto com mais desconfiança. Entretanto, o que se vê atualmente é a manutenção e, em determinados casos, uma verdadeira ascensão de sua influência geopolítica, seja na celebração de concordatas com vários países constitucionalmente laicizados ou no embasamento principiológico dos principais desenvolvimentos capitaneados pelo Direito Internacional. Adentrar no contexto desta aparente contradição é o principal objetivo deste estudo.

Palavras-chave:Santa Sé - Relações Internacionais - Posição Geopolítica.

Sumário:I. Introdução.II. Breve contexto das relações entre a Religião e o Direito até a formação da Santa Sé.III. O Estado Neutro do Vaticano.IV. Do Reconhecimento do Estado do Vaticano.V. Do antigo relacionamento entre Itália e a Santa Sé.VI. O tratado de Latrão e suas Repercussões.VII. De entidade contestada a uma das grandes influências do Direito Internacional.VIII. A Doutrina Político-Internacional dos Papas.IX. Participação Papal na mediação de conflitos internacionais.X. Tratados e Concordatas.XI. Conclusão e Disposições Finais.XII. Referências Bibliográficas e Bibliografia.


Introdução:

A presença de um País soberano que, não obstante apresente inexpressíveis dimensões, delineie sua política externa com posições axiológicas firmes e, por vezes, extremadas, tende a causar certo temor e rejeição, meio a uma Comunidade Internacional que se mostra cada vez mais liberal e tolerante. De fato, a realidade que que se posta centra-se no fenômeno da Globalização e no estreitamento das mais diversas relações inter e supranacionais. O sucesso alcançado pela criação dos blocos econômicos, neste contexto, se deve, sobretudo, ao fato de tolerarem, em sua estrutura interna, países com grandes diferenças culturais e até religiosas. Ainda assim, no revés do limiar tendencial que por ora se evidencia, sobrevive um ente público conservador, que, a priori, não acompanha o movimento globalizante em curso. Imerso em valores tradicionais e posições muitas vezes destoantes do que vige na sociedade, a relevância emanada deste Estado para a cena internacional é, de fato, intrigante.

Trata-se do Vaticano, um dos menores países do globo e berço de uma das maiores religiões existentes. Historicamente, resta evidente que a influência exercida nas relações internacionais extrapolou e ainda extrapola suas dimensões. Influência esta que, antigamente e principalmente nos tempos medievais, justificava-se em razão da autoridade exercida pela Igreja Católica. Hodiernamente, contudo, o fundamento legitimador de seu poder e influência não mais pode ser tido como o de outrora. Isto porque, como afirmado supra, os valores cultuados no cenário interestatal não se compatibilizam com a doutrina cristã e, neste sigma, não são aptos a legitimar a sua posição de destaque do Vaticano no plano mundial.

Mais que isto. A despeito da influência da Santa Sé nas relações internacionais, não é difícil se deparar com oposições oriundas das mais variadas frentes em face a seu conservadorismo e valores cultuados. Têm-se, na realidade, Estados e sociedades que gradativamente orientam-se por ideias de índole liberal, enquanto a Santa Sé não acompanha, num primeiro olhar, esta tendência evolutiva. Não por acaso, a posição da Santa Sé no cenário das relações exteriores é, muitas vezes, vista com desconfiança e como fator comprometedor, devido ao seu conservadorismo, à nova dinâmica contemporânea das relações interestatais.

Diante desta situação desfavorável ou, pode-se dizer, de incompatibilidade lógica, impende analisar a posição do Vaticano no Direito Internacional, bem como explicar como se dá sua relação com países laicos a partir da ratificação do Tratado de Latrão, marco histórico do restabelecimento da força política do catolicismo. O fato de a Igreja Católica, representada politicamente pelo Vaticano, ser uma instituição de posições fixas e dogmáticas não impede, como deve se observar, que diversas nações estabeleçam com ela acordos políticos e econômicos, e busquem apoio e legitimidade justamente em suas posições imutáveis. Ao contrário, o Vaticano é considerado uma instituição de grande relevância para as relações entre os Estados e para o Direito Internacional. Ainda que sob uma análise superficial das relações interestatais, pode-se depreender que a Cidade-Estado não só participa da dinâmica de relações exteriores como também produz ou produziu normas e princípios defendidos como pilares estruturais para o estabelecimento de uma boa convivência entre os Estados.

Situação essa observada invariavelmente na cena internacional quando do estabelecimento de tratados internacionais (concordatas) entre a Santa Sé e os Estados  para assegurar direitos dos católicos nacionais ou da própria Igreja Católica naquelas Nações. Ademais, muitas destas concordatas foram assinadas momentos depois de os Estados se laicizarem, como forma de garantir direitos para a Igreja, bem como a permitir sua existência em tais países. Nesse contexto, admite-se, pois, que o fato de os Estados se desvincularem da esfera religiosa não é impeditivo de o Vaticano exercer sua influência na Estrutura de um poder laico.

Michel Onfray corrobora a presente reflexão e traz, em sua obra, tida como referência para o ateísmo contemporâneo, considerações importantes e realistas. Atesta o filósofo, em Tratado de Ateologia, que:

“apesar do triunfo (aparente) dos ideais do iluminismo, que sonhara com um direto laico e que, portanto, distinguisse e separasse, muito claramente, direito e moral, direito e religião, crime e pecado, ainda hoje a episteme do direito permanece judaico-cristã, pois no essencial se mantém fiel aos seus valores fundamentais […]”.[1]

Ao encontro do exposto por Onfray, está a possibilidade de se mencionar não só Deus, como a Igreja Católica no preâmbulo da iminente Constituição Europeia: a maior ambição articulada na História do Direito Internacional visando à integração dos Estados. Essa disparidade aparente, existente entre o fato de a principal associação inter-estatal do mundo, responsável por congregar países de diferentes culturas e por primar pela tolerância e liberdade religiosa, possuir parte de seu texto influenciado por uma Instituição autocrática e dogmática, demonstra que a Igreja ainda possui um papel fundamental no cenário Internacional.

Nesta esteira de ideias, o presente trabalho constitui uma breve análise reflexiva do status alcançado pelo Vaticano nas relações internacionais neste último século. Secundariamente e seguindo uma linha de pensamento axiológica, o estudo tem o escopo de alumiar como se deu o relacionamento entre a Religião Católica e o Direito a partir da ratificação do Tratado de Latrão.

Nesse intento, compreender a formação do Vaticano e de sua estrutura atual, bem como o entendimento do Tratado em questão e suas repercussões, são elementos imprescindíveis para superar as contradições inseridas no fato de existir um influente Estado neutro e autocrático, em meio a uma comunidade liberal e democrática. São elementos necessários, ainda, para refletir acerca da viabilidade de sua complexa existência perante uma comunidade internacional hostil aos seus dogmas e princípios; situação essa, alcançada, sobretudo, com a consecução do Tratado de Latrão.

Por fim, fundamentando de forma adequada o tema exposto, o famigerado político paulista Franco Montoro asseverava, em uma de suas obras:

"Na própria origem histórica do direito, está a norma indiferenciada, de cunho moral e religioso. [...] não faltam exemplos da influência permanente de fatores morais e religiosos na vida do direito".[2]


Breve contexto das relações entre a Religião e o Direito até a formação da Santa Sé

As formas de agir e de comportar-se socialmente são frutos de um processo de cristalização e uniformização de princípios e comportamentos tidos como éticos, em resposta a práticas cotidianas. Todo esse processo visa à manutenção da coesão social de determinado grupo ou sociedade. De fato, ao longo da história, percebemos que o homem produz e reproduz modelos de conduta que, quando socialmente aceitos em sua época e por seus respectivos grupos hegemônicos, adquirem força moral e/ou legal (dependendo de haver ou não uma exigibilidade coercitiva em torno de determinado comportamento). Dessa forma, a normatização criada pelos Homens variava conforme sua natureza moral (religiosa) ou legal e, por consequência, de acordo com sua exigibilidade coercitiva.

No período antigo, a normatividade humana não diferenciava sua natureza, fosse ela moral, religiosa ou impositiva (direito), fazendo com que a produção do direito se aliasse umbilicalmente à religião. Vê-se, por conseguinte, que direito e religião se mesclavam de forma tão acentuada, que o poder do Estado era exercido de modo unipessoal pela figura do rei, o qual concentrava, não só os poderes militares e civis, mas também os religiosos.

Essa relação ambígua entre Direito e Religião perdurou durante a Idade Média, apesar de houver momentos de ruptura, quando da Reforma Protestante, por exemplo. No entanto, foi com as revoluções burguesas conjugadas ao movimento Iluminista que se idealizou uma separação mais nítida entre a esfera moral (religiosa) e a legal (direito). Essa separação, intensificada durante a Idade Moderna, foi também preconizada na Itália, berço da Igreja Católica, durante sua unificação no século XIX. Nesse momento, a conquista dos territórios papais pelo movimento de unificação gerou um período de grande instabilidade entre Igreja Católica e o novo país formado, que culminou com o rompimento e o não-reconhecimento entre as duas entidades.

Todavia, essa situação de clara decadência do catolicismo toma novo rumo com a ratificação do tratado de Latrão no século XX, celebrado pelo Papa Pio XI e pelo Premiê Benito Mussolini. O acordo firmado entre as partes não só celebra o reconhecimento mútuo, mas reafirma uma nova união entre o Estado laico e a Igreja. Mais que isso, a entidade católica adquire personalidade jurídica no Direito Internacional, congregando, como elementos constitutivos, um território e a plena soberania sobre um Estado Católico: o Vaticano. Depreende-se, desse contexto, que a Igreja Católica adquire uma posição de maior relevância no cenário internacional, de forma a recuperar parte do prestígio que outrora tivera.

Antes de compreender essa nova posição e a influência da Igreja, deve-se, preliminarmente, analisar o que seja a Cidade-Estado do Vaticano, bem como o que representou o Tratado de Latrão e quais foram suas repercussões; próximos tópicos do presente trabalho.


O Estado Neutro do Vaticano:

O Vaticano (oficialmente, Estado da Cidade do Vaticano) é o menor país do mundo, tanto por população, quanto por área. A Cidade do Vaticano é uma Cidade-Estado que existe desde 1929, quando foi ratificado o Tratado de Latrão entre o premier Benito Mussolini e o Papa Pio XI. Este acordo internacional trata o Estado do Vaticano como uma nova criação, um novo sujeito de direito internacional, e não como um vestígio dos Estados Pontifícios, outrora invadidos pelos exércitos de Emanuel II que lutavam pela Unificação Italiana durante o século XIX.

A Cidade-Estado do Vaticano é uma entidade distinta da Santa Sé. Aquela “é um instrumento para a independência da Santa Sé que, por sua vez, tem uma natureza e uma identidade própria sui generis, enquanto representação do governo central da Igreja”.[3] O sujeito de direito internacional é a Santa Sé. As relações e acordos diplomáticos (Concordatas) com outros Estados soberanos, portanto, são com ela estabelecidos e não com o Vaticano, que é um território sobre o qual a Santa Sé tem soberania.

O Estado do Vaticano ocupa uma posição peculiar no cenário internacional. Isso se deve ao fato de ser a legítima sede da Igreja Católica Apostólica Romana (a maior e mais popular religião do Globo), e constituir, simultaneamente, o menor país soberano reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU). O Vaticano localiza-se literalmente no centro de Roma, capital da Itália, “em um território de aproximadamente meio quilômetro quadrado, onde vivem cerca de 900 pessoas, incluindo o Líder da Igreja Católica, o Papa”.[4]

A estruturação do poder estatal também destoa da linha seguida pela maioria dos países soberanos. O Papa, chefe de Estado eleito em um colégio de cardeais (denominado conclave) para um cargo vitalício, detém, no Estado do Vaticano, os poderes legislativo, executivo e judicial. Pode-se, pois, considerar o Vaticano como uma autocracia, vez que todos os poderes estão concentrados na figura do Papa, e tendo em vista a inexistência de qualquer órgão que fiscalize seus atos como governante. Todo esse contexto e essa estruturação perfazem-se mediante elementos religiosos. É justamente a crença em valores e dogmas divinos que legitima o sistema de governo da Santa Sé. O próprio fato de não haver fiscalização, externa ou interna, dos atos do governante do Vaticano (Papa) inspira um raciocínio/crença religiosa: por ser considerado sucessor de São Pedro, não deve prestação de contas a ninguém, considerando-o um emissário de Deus na Terra.

No entanto, apesar de o Vaticano ser reconhecido internacionalmente como Estado autônomo não só pelos principais países, como pelas principais organizações internacionais (dentre as quais vale citar a ONU), essa entidade soberana não apresenta todos os elementos necessários para constituir-se como Estado propriamente dito segundo a doutrina majoritária. De fato, para formar-se um Estado, são necessários, sucintamente, um território, a soberania sobre esse local e um povo com identidade nacional. Entretanto, observa-se, sem grandes dificuldades, que o Vaticano possui um território soberano, mas seus habitantes são constituídos por indivíduos de outras nacionalidades. Dessa forma, concluir-se-ia que a sede da Santa Sé não é um Estado formalmente constituído, mas uma exceção ao que é preconizado por grande parte da doutrina internacionalista.

Vale frisar, porém, que uma Nação pode existir sem estar atrelada ao conceito de Estado. Curdos, palestinos e tibetanos freqüentemente são citados como exemplos de stateless nations, ou seja, "nações sem Estado". Possuem interesses e uma finalidade existencial comum, bem como não se identificam com o Estado onde estão localizados e subjugados à sua soberania.

Retorna-se, portanto à questão: seria possível vislumbrarmos um Estado sem seus Nacionais? Sim, isso é, de fato, possível. Entretanto, trata-se de um caso atípico e único no mundo atual. O Vaticano é um Estado sem ou com pouquíssimos nacionais. É evidente que há habitantes no Vaticano. No entanto, estes não são, em regra, seus nacionais.

O Vaticano é basicamente composto de seus representantes religiosos de diferentes nacionalidades - e em maior número de italianos - e de uma guarda estrangeira (de origem suíça) responsável pela proteção do Chefe de Estado. Por sinal, outra exceção à regra é o fato do Vaticano ser o único Estado do mundo que não exige que um nacional nato seja Chefe de Estado, justamente, pela quase-inexistência de um nacional proveniente do Vaticano. Por isso, admite-se que um papa brasileiro, por exemplo, seja plenamente capaz de exercer legitimamente o comando executivo do Estado do Vaticano e da Santa Sé.

Cumpre dizer, por derradeiro, que o Vaticano, representado pela figura da Santa Sé, dispõe de Personalidade de Direito Internacional por conta de seu legado histórico, marcado por direcionar a conduta de Estados litigantes, exercer uma posição de mediação em conflitos internacionais, e por influenciar, materialmente, as relações entre os Estados e o próprio Direito Internacional.

A título de conclusão, a Cidade-Estado do Vaticano pode ser vista sobre dois enfoques: um jurídico e outro cultural (religioso). Sob o primeiro, subdivide-se o Vaticano em uma visão interna e outra internacionalista. Associada ao perfil jurídico interno, a sede da Igreja Católica é vista como um Estado autônomo, soberano, com um território definido, mas que não possui uma nação própria. Vista de acordo com o perfil jurídico internacional, vislumbra-se o Vaticano como uma extensão da Santa Sé, que desempenha um importante papel na dinâmica do Direito Internacional, sendo, portanto, um sujeito ativo e passivo das normas e tratados internacionais. Ao contrário, consoante o perfil cultural (religioso), o mais disseminado, o Vaticano é a sede da Santa Sé, é o berço da religião mais popular do globo, e é o domicílio do indivíduo mais próximo de Deus: o Papa.


Do Reconhecimento do Estado do Vaticano

A formação do Direito Internacional Público (DIP) e de uma comunidade internacional é contemporânea à aparição dos Estados. Os Estados foram, segundo a doutrina majoritária, os primeiros entes do DIP a surgir e constituíram os únicos sujeitos de Direito Internacional Público até o início do século XX. Por isso, os Estados são chamados de sujeitos clássicos ou originários de Direito Internacional Público.

Estado não se confunde nem com Nação (da qual é a organização jurídico-política), nem com povo. O Estado é uma instituição organizada política, social e juridicamente, que ocupa um território definido, e é dirigido por um governo que possui uma soberania reconhecida tanto interna como externamente. Esse conceito ainda é complementado por Max Weber que afirma, ainda, ter o ente estatal o monopólio e a legitimidade para o exercício exclusivo de força em seu território[5]. Nação, por sua vez, é a reunião de pessoas, geralmente do mesmo grupo étnico, que possuem traços culturais semelhantes, além de uma finalidade social e existencial comum[6].

O Estado da Cidade do Vaticano teve a sua condição de Estado reconhecida pelos tratados de Latrão de 1929. A partir desse momento, a Santa Sé passou a ter território definido e, como instituição máxima da Igreja Católica, não deve ser confundida com o Estado do Vaticano (que não é quem possui uma personalidade jurídica). Entretanto, formam um só ente jurídico, pois o último está submetido ao poder da primeira.

O Vaticano é um Estado sem o elemento pessoal, qual seja, o povo (regido por traços histórico-culturais comuns e uma finalidade social e existencial partilhada), já que possui, em geral, cidadãos não nacionais. Aqueles que possuem a cidadania vaticana não perdem a sua nacionalidade originária. Ainda assim, isto é, embora possua estas e outras peculiaridades (anormalidades), o Vaticano deve, de acordo com a doutrina majoritária, ser reconhecido como Estado Soberano[7].

Como Estado que é, o Vaticano tem capacidade para firmar tratados, a despeito de não fazer formalmente parte da ONU e de nem o ter feito da Liga das Nações. Ainda assim, a Cidade-Estado em comento é devidamente reconhecida por essa organização como Estado Soberano. Em 2006, para se ter uma ideia, a ONU tinha representação de 192 Estados membros - cada um dos países soberanos internacionalmente reconhecidos, exceto o Vaticano, que tem qualidade de observador, e países sem reconhecimento pleno (como Taiwan, que é território reclamado pela China, mas de reconhecimento soberano por outros países).

É interessante, porém, ver que o reconhecimento do Vaticano de que se tem falado até então, é um reconhecimento essencialmente político (infundado sobre a posse de vários territórios sob sua soberania, como ocorre em geral). Realmente, durante a Idade Média, a Igreja Católica detinha soberania sobre diversos territórios reconhecidos internacionalmente. No entanto, esse reconhecimento se perdeu com a obtenção dos Estados Pontifícios pela futura Itália em seu processo de unificação. Esse reconhecimento político foi, portanto, resgatado com o Tratado de Latrão e a concessão da soberania da Santa Sé sobre o Vaticano.

Todavia, a despeito desse reconhecimento político, a Igreja e o Vaticano (tido aqui como lugar selecionado por Deus para sediar o catolicismo) sempre gozaram de um reconhecimento de soberania espiritual. Mesmo quando não detinham uma base física, a Igreja Católica exercia um poder e uma influência internacional sobre vários territórios.

O que de fato ocorreu foi que a essa soberania espiritual, promoveu-se, em conjunto, uma soberania física e política, com a criação do Estado do Vaticano através do Tratado de Latrão.

É importante frisar, no que tange a esse contexto, que o reconhecimento político da soberania da Igreja, devolvido recentemente por meio do referido acordo, não pode ser confundido com o reconhecimento espiritual, o qual a Igreja sempre deteve. Refletindo a discussão no tópico em questão, o próprio Papa Bento XVI defendeu a separação entre Igreja Católica e Estado, focando suas respectivas soberanias e reconhecimentos quando disse: "A distinção entre o que é de César e o que é de Deus pertence à estrutura fundamental do cristianismo".


Do antigo Relacionamento entre Itália e a Santa Sé

Desde 1870 até o fim da Questão Romana (rompimento oficial entre Igreja Católica e a recém-formada Itália, que acabara por conquistar os territórios pontifícios e sua capital, Roma) em 1929, os Papas se consideraram prisioneiros da Itália por cerca de 60 anos. Esse período foi de relacionamento difícil entre a Igreja e o governo Italiano. Apesar de toda a pressão contrária, os Papas que reinaram durante esses 60 anos; quais sejam, Pio IX (1846-1878), Leão XIII (1878-1903), São Pio X (1903-1914), Bento XV(1914-1922) e Pio XI (1922-1939), julgaram que não podiam abrir mão da soberania territorial da Igreja em relação às demais nações, reivindicando seu direito a um território próprio, ainda que muito pequeno, a fim de que tivessem condições de cumprir a missão que Cristo lhes deram.

Benito Mussolini, o chefe do Governo italiano, em 1929, percebeu a grande conveniência política de conciliar a ltália ao Vaticano, como forma de legitimar suas ações autoritárias por meio da doutrina e dos valores cristãos. As negociações levaram dois anos e meio, terminando com a assinatura do Tratado do Latrão aos 11/02/1929, que encerrava sessenta anos de disputas entre o Vaticano e o governo da Itália. Este Tratado reconhecia a absoluta soberania do Papa sobre a pequena Cidade do Vaticano, que é o menor de todos os Estados independentes. Ao Vaticano seria dado o direito de representação diplomática ativa e passiva autônoma, tornando-se, pois, sujeito do Direito Internacional.

Atualmente, o Tratado de Latrão foi substituído por uma concordata estabelecida entre Itália e a Santa Sé em 1984. Esse texto consagra as novas relações entre os dois governos: se a Igreja Católica reconhece o caráter agora laico do Estado italiano e do seu ensino público, a Itália se compromete a renunciar qualquer pretensão de controle político ou administrativo sobre a Igreja.

A partir da propositura e conseqüente ratificação do Tratado de Latrão, as relações entre Governo Italiano e Vaticano se deram de modo mais próximo e conciliador. Desde então, ambos possuem boas relações diplomáticas; e apesar de a Itália ser um Estado laico, ainda encontra-se permeada por diversos elementos religiosos oriundos de um passado escrito pela Igreja Católica.


O tratado de Latrão e suas repercussões

Conforme supra-aludido, a Cidade-Estado do Vaticano foi criada em 1929, mediante a assinatura de um acordo entre a Santa Sé e o premiê Benito Mussolini; o Tratado de Latrão. Durante quase a totalidade da Idade Média, a parte central do território italiano pertencia ao Papa, incluindo a cidade de Roma. Durante o processo de unificação da Península, a Itália gradativamente absorveu os Estados Pontifícios. A partir desse momento, criou-se uma situação de grande instabilidade, que culminou com o rompimento entre a Igreja e o Estado Italiano. Essa incômoda questão de disputas entre o Estado italiano e a Igreja (que se convencionou, como visto, chamar de “Questão Romana”), findou apenas em fevereiro de 1929, quando o Papa Pio XI assina o Tratado de Latrão com o ditador fascista Benito Mussolini, pelo qual a Itália reconhece a soberania da Santa Sé sobre o Vaticano; declarado Estado soberano, neutro e inviolável.

O tratado em estudo se resumia na seguinte fórmula: o Papa, de seu lado, reconhecia o reino da ltália sob a dinastia de Savóia e com a capital em Roma (reconhecia, portanto, a perda dos antigos territórios pontifícios); enquanto o governo italiano afirmava a existência da soberania da Santa Sé sobre o Estado do Vaticano, um Estado neutro e inviolável, conforme já dito. Além da Cidade do Vaticano, o Pontífice dispôs, a partir desse acordo com os italianos, de lugares extraterritoriais, como as principais basílicas de Roma, edifícios da Cúria, a Vila de Castel Gandolfo, dentre outras propriedades concedidas.

Tecnicamente, o acordo assinado entre Mussolini e o Papa Pio XI compreende três documentos: um tratado político (que resolve e elimina a “questão romana”), uma concordata que regula o Estatuto da Igreja Católica na Itália e uma convenção financeira que legisla sobre os bens da Igreja em território italiano.

Com a ratificação do Tratado de Latrão, em 1929, não restaram dúvidas sobre a personalidade internacional do Papa ou da Santa Sé. A partir desse momento, o papado abrange, também, duas pessoas distintas; isto é, o papa é ao mesmo tempo o chefe de Estado e o chefe da Igreja Católica.

Vislumbra-se, pois, que enquanto a Igreja recuperava seu prestígio, já desgastado desde a renascença, o Vaticano surgia oficialmente (vez que antes não constituía um Estado comumente reconhecido) como uma das grandes forças do Direito Internacional. Vale dizer e deve ser ressaltado, a Igreja sempre teve influência na cena internacional (como ainda teremos a oportunidade de ver neste breve e simples estudo), mas agora, na condição de Estado reconhecido, a Santa Fé passou a possuir uma personalidade jurídica e uma posição política formal igualitária em relação aos demais Estados e sujeitos do Direito Internacional. Sua influência não era mais velada ou apenas material e valorativa. A partir de então, inseriu-se o catolicismo e sua doutrina no cenário exterior, não só de maneira material (como já existia), mas, agora, sob um viés formal. Esse contexto de inegável complexidade, marcado por findar a Questão Romana e sobrelevar o Vaticano à posição ocupada hodiernamente, só foi possível, portanto, a partir do Tratado de Latrão.


De entidade estatal Contestada a uma das grandes influências do Direito Internacional

Como anteriormente exposto, alguns autores costumam negar a qualidade de “estado” do Vaticano justamente por faltar-lhe o elemento essencial ‘povo’. Seria, portanto, uma entidade estatal contestada, termo utilizado para esse ente complexo pelo renomado internacionalista Alain Pellet. Ainda assim, esses mesmos autores que não concebem a sede da Santa Sé como Estado constituído, delegam ao Vaticano o título de membro ativo da Comunidade Internacional.

No entanto, se não constituir um Estado propriamente dito, o Vaticano enquadrar-se-ia como um movimento para libertação nacional? Ou, ainda, poderia ser associado à cidades internacionalizadas?

Não, o vaticano se distingue dos povos e movimentos de libertação nacional, como a Organização para Libertação da Palestina (OLP), pois ao contrário destes, o território pontifício tinha existência durável e não era forma jurídica de transição para a entidade estatal propriamente dita. Diferencia-se ainda das cidades internacionalizadas por ter legitimidade para sustentar uma legítima sociedade vaticana (em um sentido cultural e social que lhe é próprio e devidamente reconhecido) e por apresentar uma dinâmica administrativa própria, não ingerida por terceiros.

Dessa forma, ainda que algumas de suas características destoem da maioria dos Estados existentes (território muito exíguo, população de pequeno porte, parte de serviços públicos geridos pelo governo italiano, e a não existência de um ‘povo do vaticano’); ao Estado Pontifício deve ser estendida a qualidade de Estado; não só pela importância que representa para o cenário internacional, mas por suas características intrínsecas, reconhecidas pelo Tratado de Latrão.

A Itália e o Mundo passam a reconhecer “a soberania estatal da Santa Sé na ordem internacional como um atributo inerente à sua natureza, em conformidade com a sua tradição e exigências da sua missão no mundo” (art. 2° do Tratado de Latrão).


A Doutrina Político-Internacional dos Papas

O presente trabalho tem afirmado e defendido a tese de que a Igreja Católica constitui uma das grandes influencias do Direito Internacional, apesar de não se adaptar e se moldar segundo a dinâmica atual seguida pelos diversos Estados. Se essa tese é verdadeira, deve ser possível analisar como se deu essa influencia no passado bem como qual seria o seu âmbito de aplicação no direito contemporâneo.

Iniciado por Pio X e Bento XV, o desenvolvimento da doutrina papal sobre a comunidade internacional é creditado principalmente a Pio XII. O princípio central desta doutrina é a unidade e harmonia do gênero humano, decorrente de sua origem comum em Deus e visível na natureza racional de todos os homens. Todo esse raciocínio desenvolvido se assentaria no preceito unificante do amor a Deus e ao próximo, no qual se fundamentaria a lei universal da mútua solidariedade humana; princípio até hoje valorado.

De acordo com o direito canônico, deste princípio de unidade do gênero humano derivaria a unidade da "família de povos" que o constituem. Esse contexto é observado quando se tem em vista que apesar de no decorrer da história terem esses povos se diferenciado, não deveriam romper a 'unidade familiar' que lhes remete à sua origem comum. Ao contrário, deveriam promovê-la e intensificá-la individualmente, mediante uma aproximação social, econômica e cultural.

De forma a expandir sua doutrina interna para um âmbito global, a Igreja Católica propõe que a mesma lei de caridade que rege a convivência entre os homens deveria reger também as relações entre as nações, objetivando-se o bem de todos os povos. Essa norma moral constituiria o fundamento maior do direito natural, que, por sua vez, deveria ser a base da organização de cada Estado e razão motora de todo o direito internacional público.

De fato, concebe-se que a ideia de bem comum entre os Estados na sua compreensão mais primitiva, não só no âmbito do direito interno, mas também e principalmente, em uma esfera global, nasceu justamente com a doutrina eclesiástica. Para os Papas, essa lógica do direito interno deveria ser transposta para o Direito Internacional. Entretanto, essa tarefa era demasiado difícil visto que a grande parte dos Estados da época preocupavam-se com seus interesses internos e colocavam sua soberania sob um pedestal de restrito ou nenhum acesso.

A Igreja, então, volta ao cenário internacional, a partir de manifestações e cartas públicas, para afirma que não deve prevalecer a idéia de contraposição, mas de harmonia e equilíbrio quanto à questão de possível conflito entre a soberania dos Estados e a autoridade e o beneficio supranacional (bem comum). Parecia já estar prevendo o cenário de cooperação e extrema valoração da busca pela paz que haveria de se constituir em torno das relações interestatais num futuro próximo. A instituição afirmava que da mesma maneira que os indivíduos possuem direitos fundamentais (como a igualdade, e a paz) as nações e seus respectivos Estados também o teriam segundo a mesma dinâmica.

Consoante essa doutrina papal, a soberania, característica vinculada e centrada no território nacional e nas matérias de competência interna, seria perfeitamente conciliável com uma autoridade internacional que restringisse sua atuação à otimização das relações entre os Estados soberanos e à busca do bem comum para a coletividade. Por conseguinte, havendo uma limitação recíproca, propiciar-se-ia a harmonia conjugada ao bem comum.

Essa proposta de regulamentação comum e supranacional, que vincularia todos os Estados, basear-se-ia, em suma, na feitura de tratados. Uma efetiva segurança jurídica, entretanto, só seria possível com o devido respeito aos acordos, pois valorizar a faculdade de rescindi-los unilateralmente é não propiciar a confiança; elemento extremamente desejável quando se tem em vista a consecução do bem comum.

Por outro lado e ainda seguindo esta esteira de ideias, os Papas afirmavam, em relação à temática dos conflitos entre as nações, que se defende também um tratamento jurídico, ao invés de serem entregues à decisão pelas armas. A paz seria um preceito divino, e em caso de conflito dever-se-ia substituir a força material das armas pela força jurídica da Lei (tratados de paz).

Nesse sentido, e mostrando uma visão profética, o Papa Pio XII afirmava que a obtenção da paz não dependia somente do apego aos dogmas cristãos, mas também, e em conjunto a esses princípios, à existência de uma organização jurídica de caráter mundial. Dessa forma, o referido papa já defendia a criação de um organismo internacional investido, por consentimento, de suprema autoridade e capaz de sufocar qualquer ameaça de agressão, mantendo a paz.

Conclui-se que antes mesmo de existir sob a forma como conhecemos e de exercer um controle efetivo no direito internacional, a Organização das Nações Unidas ou um outro organismo sobre estes moldes, regido pelos ideais da paz e da harmonia, já era idealizado pelo Papa Pio XII. Em um de seus sermões, a autoridade eclesiástica afirmou: "Que a Organização das Nações Unidas possa chegar a ser a plena e pura expressão da solidariedade internacional da paz".

Ao encontro dessa política internacional promovida pelos principais representantes da Igreja Católica, reside também o apoio à unificação das diversas nações em “famílias”. Ideal este que pode ser facilmente associado ao cerne da criação do que se convencionou chamar de blocos econômicos (como MERCOSUL, APEC, União Europeia, dentre outros). Pio XII, tendo em vista o sucesso da atual e iminente União Europeia, já destacava em seus discursos os benefícios de uma unificação do continente europeu, e considerava esse processo um vislumbre do sentimento humano comum de unir-se e acabar com a desigualdade e a ignorância da humanidade.

Enfim, evidencia-se que os Papas e a Igreja Católica, desde sempre e ainda hoje, participam ativamente do projeto de pacificação e integração atualmente vigente no Direito Internacional, mesmo porque a fé e os princípios cristãos constituem o cerne de todo o processo.


Participação Papal na mediação de conflitos internacionais:

A figura do Papa sempre foi, e ainda é emblemática. Idealizado como representante direto de Deus, a legitimidade de sua posição nasceu da seguinte frase:

“Eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja. Darei a ti as chaves do Reino dos Céus”. A frase se tornou a base da autoridade dos Papas. Como sucessores diretos de Pedro, eles teriam de guiar todos os cristãos do mundo, seguindo os ensinamentos de Jesus e da própria doutrina católica.

Por vezes, o Papa representou a figura de maior influência do Globo, atuando em conflitos internacionais, promovendo a paz, proferindo palavras que alteravam a ordem econômica e social de nações. De fato, o Papa pode, e deve ser entendido como um sujeito ativo do Direito Internacional, e para corroborar a presente assertiva, observam-se, mais abaixo, alguns dos momentos históricos em que o principal representante da Igreja Católica atuou como mediador de litígios internacionais, e consequentemente, como fator decisivo para manutenção da paz.

É importante ressalvar que a prática Papal ao longo do tempo, esteve, muitas vezes, distante dos valores altruístas de sua doutrina sobre a ordem internacional. O próprio Papa Pio XII, principal responsável pelo seu desenvolvimento, apresentou um escandaloso silêncio durante a 2ª Grande Guerra, segundo alguns historiadores. Afirma-se, hipoteticamente repita-se, que ele teria acertado uma concordata com a Alemanha de Hitler, que concedia vantagens religiosas e educacionais à Igreja Católica em troca de seu afastamento da ação social e política, o que teria possibilitado a ascensão do nazismo.

Entretanto, a despeito da história da Igreja Católica provocar algumas outras desilusões aos fiéis, ainda assim, a Instituição exerceu um papel positivo na política internacional. Embora parte dessas ações capitaneadas pela Igreja visassem essencialmente o benefício próprio e o de Roma, também auxiliaram os Estados envolvidos. A seguir, apresenta-se uma seleção de tais participações, em que os papas agiram ora como parte, ora como terceiro na solução pacífica de conflitos internacionais, seja na mediação de conflitos, seja no exercício dos bons ofícios:

Leão Magno, que exerceu o pontificado de 440 a 461, conseguiu realizar um acordo de paz com o temível Átila, rei dos hunos. Quando estes assolaram o norte da Itália, o imperador do Ocidente não conseguiu defender o território. Leão, então, encontrou-se com o rei bárbaro em Mântua, em 452, e com personalidade decidida logrou afirmar um acordo de paz e salvar Roma. Cheio de prestígio, Leão ainda conseguiu, em 455, firmar um acordo com o rei Genserico. O exército inimigo encontrava-se às portas de Roma, e nenhum exército imperial trouxe ajuda. O papa, então, dirigiu-se ao acampamento de Genserico e o convenceu a não eliminar a vida da população e a não destruir a cidade, restringindo-se o ataque apenas aos saques.

Em 592, Gregório Magno negociou com os longobardos (uma espécie de tribo com forte poderio militar para a época) quando os mesmos se encontravam às portas de Roma. Pagou-lhes uma quantia como resgate e eles se retiraram. Em 598, então, negociou um armistício que pôs fim à guerra por alguns anos.

Lúcio II, já no período de 1144 a 1145, empenhou-se pela paz com os normandos e, embora sem muito sucesso, alcançou uma trégua de sete anos. Mais tarde, com a morte do imperador alemão Henrique VI, houve uma dupla eleição; Filipe da Suábia foi eleito por alguns, e Otão de Braunschweig por outros. A busca pelo poder transformou-se em guerra civil, e, nesse contexto, ambos os candidatos pleiteavam o reconhecimento e o apoio do papa, na época Inocêncio III. No cerne de um iminente embate entra os candidatos e seus exércitos, ele se decidiu, em 1201, à favor de Otão que, após alcançar legitimidade junto à população conjugado,tornou-se rei dos alemães, restabelecendo a paz na região.

Alexandre VI, papa de 1492 a 1503, alcançou prestígio político ao dirimir uma controvérsia entre Espanha e Portugal. Estes países entraram em conflito devido à discussão de direitos de domínio sobre as colônias recém-descobertas. Alexandre, então, traçou uma linha demarcatória (que mais tarde viria a ser reconhecida no Tratado de Tordesilhas, acordado entre as duas nações) e ambas as partes aceitaram. Clemente IX, cujo papado foi de 1667 a 1669, exerceu, por sua vez, importante papel político como intermediário da paz entre a França e a Espanha, e Inocêncio XIII (1721-1724), admirado por sua habilidade política, conseguiu melhorar as relações entre as potências européias, nomeadamente França e Inglaterra.

Já em 1885, uma histórica mediação foi realizada pelo papa Leão XIII. O conflito reunia a Alemanha e a Espanha em torno da questão das ilhas Carolinas. Já no século XX, destacaram-se os esforços pela paz de Bento XV, quando da entrada da Itália na 1ª Grande Guerra. Para amenizar as rivalidades que fervilhavam e se orientavam para um conflito de grandes proporções, ele enviou um manuscrito ao imperador Guilherme II, dirigiu uma nota aos governos dos países em guerra e, mesmo não tendo alcançado resultados, ficou conhecido como o papa da paz.

João Paulo II, o antecessor do atual papa, se empenhou, a exemplo de João Paulo I, na solução dos graves problemas da época, inclusive aquele relativo à dificuldade em se atingir uma situação de estabilidade e paz. Viajou muito e visitou regiões afetadas por conflitos internacionais. Apelou constantemente à reconciliação de povos da África e do Oriente Médio, afirmando sempre que não acreditava em uma paz obtida à força. "O mundo aspira ardentemente à paz, precisa da paz, tanto ontem como hoje, mas, às vezes, procura por meios impróprios, recorrendo à força ou ao equilíbrio entre potências opostas", afirmou. No governo Bush, não pôde impedir a invasão dos EUA ao Iraque, mas o peso de sua reprovação foi sentido pelo presidente americano como um dos principais fatores que contribuíram para a  forte causa degradação de sua imagem  junto à opinião internacional.

Diante do exposto, poder-se-ia ousadamente afirmar, ainda que sem o apoio de grande parte ou da totalidade da doutrina internacionalista, que a figura do Papa poderia representar o primeiro sujeito do Direito Internacional. Como já dito suprajacente, os principais autores do Direito Internacional concebem a idéia de que os Estados foram os primeiros entes a surgir. Entretanto, como acima dito e comprovado historicamente, o Papa já realizava diversas funções e atribuições dos Estados desde a Antiguidade. Sua atuação, em conformidade com o que se observa com os Estados, extrapola uma dimensão local ou regional. De fato, o Papa e o Vaticano interferiram e interferem na dinâmica das relações sociais do Globo desde antes mesmo da formação dos entes estatais.  No entanto, como tal perspectiva não constitui o escopo do presente trabalho, reter-se-emos sobre a concepção de que a Igreja Católica, por meio de seus Papas, exerceram e ainda exercem grande contribuição para o Direito Internacional contemporâneo.  

De forma a consagrar esse papel realizado pelo reinado papal, Eamon Duffy, professor de História do Cristianismo da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, afirma com autoridade: “As palavras do papa ecoam tanto nos salões do poder quanto nas alcovas dos fiéis”.


Tratados e Concordatas

As relações internacionais do Vaticano são exercidas pela Santa Sé, que negocia e conclui tratados (em sua concepção mais geral). As convenções estabelecidas pela Santa Sé podem classificadas em duas espécies: Concordatas, que constituem tratados bilaterais regulando, essencialmente, a situação da Igreja Católica no país contratante; e Tratados, regidos de acordo com o direito comum (podendo ser econômicos, políticos, etc.). Cabe, aqui, compreender que as concordatas não são firmadas somente entre Santa Sé e Estados Religiosos. Ao contrário, muitas foram assinadas quando os Estados se laicizaram, como forma de garantir direitos para a Igreja e permitir sua existência em tais países.

Recentemente, Brasil e Santa Sé assinaram uma concordata em 2008. Envolvendo temas que sempre deram margem a polêmicas, como ensino religioso nas escolas públicas de um Estado laico, os 20 artigos da Concordata assinada pelo presidente Lula e pelo papa Bento XVI foram negociados durante um ano. Sob a justificativa de reunir leis de caráter eclesiástico do Estado brasileiro que se encontravam esparsas e dar forma jurídica a um intercâmbio cultural que já existia, a iniciativa partiu do Vaticano.

Além da questão do ensino religioso, três pontos do acordo merecem destaque. O primeiro é a concessão de isenção fiscal para rendas e patrimônio de pessoas jurídicas eclesiásticas. O segundo é a manutenção, com recursos do Estado brasileiro, do patrimônio cultural da Igreja Católica, como prédios, acervos e bibliotecas. O terceiro é isenção para a Igreja Católica de cumprir as obrigações impostas pelas leis trabalhistas brasileiras.

Não é fulcro do presente trabalho analisar a validade e compatibilidade de tal acordo entre Brasil e a Santa Sé, senão compreender que um Estado Laico como o Brasil ainda realiza tratados de cunho religioso com Estados autocráticos, como o Vaticano. Mas a título de complemento, percebe-se, claramente, que independentemente de suas implicações morais, essas três concessões ao Vaticano esbarram em problemas jurídicos e são incompatíveis com o Estado laico que nossas Constituições consagram desde a proclamação da República. A concessão de isenção fiscal para pessoas jurídicas eclesiásticas, por exemplo, pode abrir um perigoso precedente, pois as demais igrejas sentir-se-ão estimuladas a invocar o princípio da isonomia para exigir o mesmo benefício.

Diversamente dos outros tratados internacionais firmados entre os Estados, as matérias concordatárias tocam o domínio temporal e o espiritual. Esta última especificidade explica sem dúvida o uso reservado do termo “concordata”, cujo significado, em latim, é aquilo que ultrapassa o direito para atingir o coração. Pode-se, porém afirmar que “concordata” é, sobretudo, o estabelecimento de um acordo focado em temas de cunho espiritual.

Vale dizer, por derradeiro, ser opinião consensual da doutrina internacionalista que as Concordatas fazem parte do direito internacional, daí que os acordos concluídos entre os Estados e uma Igreja, neste caso a Católica, revestem-se de importância supranacional.


Conclusão e Disposições Finais

A Igreja Católica vive, atualmente, um processo ascendente de recuperação rumo a uma posição e participação mais efetivas no cenário internacional. O poder incontestável e impositivo de outrora, fora enormemente abalado por alguns fatos que fragilizaram sua credibilidade, como o comércio de indulgências, as fortunas acumuladas a partir das doações dos fiéis e outros atos imorais realizados por autoridades eclesiásticas. A Renascença, a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa, então, acabaram por configurar o quadro da Igreja na metade do século XX: estava sem poder e influência política.

Essa situação começou a mudar com a ratificação do Tratado de Latrão, responsável não só por legitimar o território neutro do Vaticano (soberano por suas fronteiras) mas principalmente por devolver o status de influencia da Igreja Católica no direito internacional e nas relações interestatais.

Com a adesão a este Tratado e aspirando a retomar sua antiga posição de destaque no cenário internacional, a Igreja Católica mobilizou-se em torno do Concílio Vaticano II, que almejava uma mudança em alguns paradigmas católicos. A mudança a estes paradigmas, de forma a aproximá-los dos novos valores cultuados por uma sociedade com transformações cada vez mais rápidas, revelava-se como uma estratégia para atrair novos fiéis e resgatar os perdidos. Todavia, foi com o Papa João Paulo II que a Igreja viveu seu melhor momento. Contribuiu significativamente para a queda do comunismo, aproximou-se dos judeus, muçulmanos e protestantes, e pediu desculpas em nome da Igreja pelos erros cometidos no passado. Procurou, ademais, unir a visão bíblica da criação à teoria evolucionista e valorizou a razão na busca da verdade. Enfim, conservador no âmbito moral, ele significou a modernização da Igreja na área filosófica, política e científica.

Essa vasta gama de ações implementadas pelo Papa João Paulo II forneceu ao atual Papa Bento XVI terreno fértil, a partir do qual a Igreja pode, hoje, lutar por seus princípios de uma maneira, no mínimo, satisfatória. Sob um sentido unificador e apaziguador, o Vaticano baseia sua política. Esse contexto é claramente percebido quando se observa o nome escolhido pela principal autoridade da Igreja Católica contemporânea. Em sua primeira audiência pública, o Papa Bento XVI explicou a escolha citando Bento XV, o papa que buscou a paz ao lutar contra a I Guerra Mundial, e Bento de Norcia, cuja comunidade monástica foi fundamental na difusão do cristinianismo pela Europa. O "corajoso e autêntico profeta da paz" - Bento XV, nas palavras do homônimo XVI - e o "ponto de referência para a unidade da Europa" - Bento de Norcia.

Neste quadro de ideias, ainda que a Igreja se mostre, em alguns pontos, como entidade oposta aos valores cultuados pela dinâmica contemporânea das relações interestatais, observam-se muitos exemplos de como o direito é influenciado, e, muitas vezes, sobreposto por ações de cunho eclesiástico.

A recente aprovação pela Comissão de Educação do Senado Federal do projeto de lei de iniciativa do Senador Jonas Pinheiro (PFL/MT) é um vigoroso exemplo desta realidade. O projeto em tela institui um feriado nacional no dia 11 de maio, dia da canonização de Frei Galvão pelo Vaticano. Essa situação colocou em pauta as discussões acerca da inconstitucionalidade dos feriados religiosos à luz da Constituição Federal de 1988 e de seu caráter essencialmente laico. A República Federativa do Brasil, conforme dispõe a Carta Magna, é um Estado Laico, o que equivale dizer que não haverá culto religioso de caráter oficial. Entretanto, ainda assim, o feriado religioso foi estabelecido no Brasil. Por isso, mesmo nos Estados oficialmente laicos, como o Brasil, evidencia-se uma invariável influência religiosa sobre a constituição de suas leis e princípios, tal como nosso atual preâmbulo constitucional, quando invoca a proteção divina sobre nosso Estado.

Ademais, no que tange a solução pacífica de controvérsias internacionais, a participação da Santa Sé foi, no mínimo, significativa. Apesar de a Igreja ter vivido altos e baixos no concernente à influência política; hoje, no século XXI, leva a efeito um processo de ascendência e evolução. Essa ascensão está estreitamente ligada à extrema valoração da solução pacífica de conflitos internacionais. Tendo-se em vista que a doutrina política do Vaticano defende um processo de unificação da comunidade internacional que possibilite um controle pacífico e eficaz das controvérsias entre os Estados, a nova ordem geopolítica da cena global coloca os princípios cristãos como diretrizes maiores para o relacionamento interestatal.

Desta feita, a Igreja Católica, representada pelo Vaticano, deve ser concebida como um sujeito ativo de Direito Internacional, seja na resolução de conflitos, no embasamento principiológico, no “jogo político” de interesses ou ainda na propositura de normas internacionais. Negar sua importância na cena internacional ou menosprezar sua influência e poder de atuação nas relações interestatais é, pois, renegar não só o passado e a História das relações internacionais, mas o próprio presente e os altos valores principiológicos que o cercam.


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Notas

[1] ONFRAY, Michel. Tratado de Ateologia. V.1. São Paulo: Martins Fontes, 2007, 214 p.

[2] MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. Vol.II. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais. 1997, 127 p.

[3] Exposição do Núncio Apostólico no Brasil, Dom Alfio Rapisarda, por ocasião do Encontro com os novos Bispos do Brasil nomeados entre outubro de 1998 e setembro de 1999.

[4] CAMPAGNOLO, Umberto. Direito Internacional e Estado Soberano. 1ºed. Ed: Martins Fontes, 2002, 419 p.

[5] WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Editora UNB, 1991. Volume I, capítulo I e III, p. 3-35; 139-162. Volume II, p. 517-580.

[6] BRESSER-PEREIRA. Nação, Estado e Estado-Nação. São Paulo: EESP/FGV, 2008. Disponível em: <http://www.bresserpereira.org.br/papers/2008/08.21.Na%C3%A7%C3%A3o.Estado.Estado-Na%C3%A7%C3%A3o-Mar%C3%A7o18.pdf>. Acesso em 15 de outubro de 2010.

[7] LEBEC, Eric. História Secreta da Diplomacia Vaticana. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p. 07.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAGIL, Rodrigo Rocha Feres. A posição da Santa Sé no direito internacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3733, 20 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25344. Acesso em: 26 abr. 2024.