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Decisões vinculantes

Decisões vinculantes

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1. Introdução

A busca da qualidade total nos meios de produção e na prestação dos serviços tem sido a tônica da sociedade contemporânea, tanto a nível privado como na seara estatal. Reflexos da globalização, dizem uns, que se intitulam neo-liberais. Procura de novos rumos para o socialismo, justificam outros, ainda alinhados a esta doutrina. O certo é que a rotulação de qualidade, boa ou má, não passa ao largo de típicas atividades do Estado, como é o caso da prestação da tutela jurisdicional. E nesse particular, o quadro brasileiro é preocupante. Apesar da detecção de segmentos comprometidos com a elevação do nível da atividade do Judiciário, do ponto de vista da eficácia e da eficiência, ainda há muito terreno a ser percorrido.

Pretendendo estimular as discussões acerca de alguns dos mecanismos apontados como hábeis para enfrentar a situação embaraçosa na qual está mergulhada a Justiça nacional, é que são tecidas as considerações seguintes.


2. Jurisprudência: Ciência do Direito ou conjunto de decisões?

Reservaram os romanos, para a designação do que é ciência jurídica, a expressão jurisprudência. Tanto que MIGUEL REALE, na primeira parte do seu "Lições Preliminares de Direito" (1), esclarecendo grafar sempre o vocábulo em destaque com maiúscula quando tiver ela essa acepção, anota que modernamente outra tem sido a utilização da palavra: a de simbolizar o conjunto de decisões judiciais convergentes e coincidentes. Obviamente, mesmo com a aplicação atual da expressão, não pode ela ser vulgarizada como sinônimo de um ou de poucos julgados isolados, em uma determinada direção. É mister a reiteração ponderável de julgados, inclinados para um mesmo rumo, para que se tenha firmada a jurisprudência, conforme explica ROBERTO ROSAS (2) "A jurisprudência, assim considerada, é a reiteração de casos análogos passados para o rol dos fatos consumados, que somente podem ser revistos em virtude de motivos relevantes ou alterações das duas origens ou fontes emanadoras: a lei, a doutrina, etc. Somente neste ponto vislumbramos o entendimento da jurisprudência, já consolidada e incorporada aos repertórios jurisprudenciais, qual um código norteador das decisões a seguir".

Ainda hoje, mesmo que com incidência um pouco mais rara do que a constatada até uma década atrás, permanece viva a discussão sobre ser ou não ser a jurisprudência uma fonte do Direito. CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (3) enceta a polêmica, capeando-se em posição de extrema legalidade, ao aduzir que, se "se tomar a expressão fonte em sentido técnico estrito, não se pode assim compreender a jurisprudência, porque nos regimes de separação de poderes, ao Judiciário cabe aplicar contenciosamente a lei aos casos particulares, e, não competindo aos tribunais formular regras jurídicas, senão aplicá-las, a manifestação jurisprudencial não se pode qualificar como fonte criadora da norma de direito, porque não passa de um processo de aplicação da lei. A Corte de Justiça não elabora a regra, porém diz ou declara o direito, arrimada à disposição legislativa, que é, por isso mesmo, a sua fonte. A função criadora da norma pertence ao Poder Legislativo. O Judiciário cinge-se a aplicá-la ou interpretá-la, ou a verificar e declarar a existência do costume, razão por que se recusa aos arestos e decisões o caráter gerador de direito". O renomado civilista apenas acata a jurisprudência como fonte informativa ou intelectual do Direito.

Em contraposição, ROBERTO ROSAS lembra que "Glück, Savigny, Wachter consideram a jurisprudência como fonte de direito. Pacchioni deu notável impulso a este grupo, comparando as várias decisões de determinados juízes, mas nesse único sentido, a uma orquestra com inúmeros instrumentos e intérpretes, mas todos executando com uma finalidade. Assim é a jurisprudência, de nada valem as posições isoladas dos magistrados. Os arestos reiterados formam a jurisprudência, tornando-se fonte de direito." (4). E diz ainda, em primeira pessoa, que "este autor enquadra seu pensamento na teoria egológica, que considera o direito como conduta e a sentença como fato da experiência jurídica".

Sem fazer profissão de fé cossiana, acho que pela instrumentalidade que representa para o operador jurídico moderno, a jurisprudência é, inquestionavelmente, uma fonte do Direito. Assim afirmo sem receio de receber censura dos mais ortodoxos defensores da clássica divisão dos Poderes, preferindo ousar em busca de novos referenciais para a sobrevivência e a revitalização do Estado (aí incluindo, por óbvio, o ramo Judiciário.

2.1. O caso francês

Ocupou-se RECÁSENS SICHES, na sua "Lógica do Razoável", de reproduzir estudo empreendido pelo famoso advogado francês JEAN CRUET, em um livro intitulado "La Vida del Drecho y la Impotencia de las Leys", publicado em 1908, acerca da ação inovadora da jurisprudência na França, no correr do primeiro século de vigência do Código Napoleônico (Século Dezenove). Inaugura o seu ensaio destacando a perplexidade de, na França, onde imperava o fetichismo de se supor que a lei contém normas para resolver todos os problemas, razão pela qual a atividade judicante sempre foi muito coartada, curiosamente foi a jurisprudência que primeiro deu resposta às exigências da evolução social. Assevera que uma lei não pode conservar indefinidamente o sentido e o alcance que tinha quando foi editada, se tudo vai mudando ao derredor dela: os homens, as coisas, o juiz e o legislador mesmo, concluindo que uma nova disposição introduzida no direito legislado pode converter-se, em virtude dos efeitos que a jurisprudência lhe der, em uma fonte de rejuvenescimento para o conjunto do Direito.

Lembra SICHES uma série de "inovações substanciais" impostas ao Direito Francês a partir das criações jurisprudenciais, a saber:

a) PORTALIS, artífice do Código Civil de 1804, sustentava verdadeira ojeriza à idéia de que alguém, em vida, pudesse estipular em prol de terceiro a percepção de quantia, máxime se o evento futuro fosse a morte do estipulador. Sepultado assim, ao ver do "pai" do Código Napoleônico, o seguro de vida. Apesar dos arreganhos imperiais de Napoleão contra os juízes (acusados de desvirtuação do Código, pela ousadia de interpretá-lo), durante todo o Século Dezenove o seguro de vida foi se convertendo em um contrato bastante acatado, findando o próprio legislador por oferecer regulação adequada ao instituto, tomando por modelo o conjunto de decisões judiciais sobre o tema;

b) muito antes da interferência parlamentar, a jurisprudência foi abundante em julgados de cunho trabalhista. Assim, derivam das decisões judiciais as leis que versam, por exemplo, sobre o direito à indenização por rescisão brusca ou intempestiva do contrato laboral; a impenhorabilidade de salários ou soldos pequenos; bem com a lei sobre os acidentes do trabalho;

c) o Código Civil Francês não previu o desenvolvimento rápido dos valores mobiliários. Daí prever apenas para os casos de alienação de valores imobiliários a necessidade de autorização do Conselho de Família, com a homologação judicial. A jurisprudência estendeu à alienação de valores mobiliários a necessidade de uma autorização partida do Conselho de Família;

d) antes da Lei de 1893 a mulher de um marinheiro desaparecido em um naufrágio estava fadada a uma eterna viuvez, pois não tinha respaldo legal para registrar o óbito do defunto, sendo, também por isso, proibida de contrair novas núpcias, sob pena de incorrer em crime de bigamia;

e) sem a ação inovadora da jurisprudência, precursora de lei específica, um tio que desposasse uma sobrinha ou um cunhado que casasse com uma cunhada, sempre com autorização judicial, não podiam legitimar a prole, esta havida, ad aeternum, como incestuosa;

f) coube à sensibilidade da jurisprudência avançar contra a vedação do Código Civil, que proibia a investigação de paternidade contra os pais que protagonizavam os falsos lares, montando base para a definição dos direitos dos filhos concebidos fora do matrimônio;

g) veio também da jurisprudência o remédio que forçou a edição da Lei de 1889, demarcando responsabilidades para os pais ou tutores que conservavam os filhos ou tutelados na ignorância ou na imoralidade;

h) em matéria penal, apesar de estar o juiz afixado ao princípio da legalidade estrita, a interpretação da lei varia de acordo com a consciência ou a mentalidade do juiz. Assim, ainda que a greve fosse havida como crime, as autoridades judiciais e administrativas cederam à incontornável força dos sindicatos e assumiram uma postura de tolerância em relação às greves;

i) não havia na França nem jurisdição administrativa nem Direito Administrativo. O costume criou a primeira e a jurisprudência criou o segundo.

Visto, pois, que a jurisprudência atuou em um século na França, dando força ao Direito como um todo, e por via transversa, ao próprio Código Civil, que Napoleão temia fosse conspurcado pela atuação exegética dos juízes.

Saltando - e muito - no tempo, é bom ser rememorado episódio havido já na última década deste Século (mais precisamente em outubro de 1991), que demonstra a força da jurisprudência francesa. Uma empresa de discotecas inventou uma grotesca brincadeira para brindar os jovens freqüentadores dos seus clubes: o lancer de nain. Isto mesmo: o arremesso de anão! Consistia em transformar um homem de pequena estatura em projétil, a ser arremessado pela platéia de um ponto a outro da casa de espetáculo. Relata JOAQUIM BARBOSA GOMES (5) que movido pela repugnância que a iniciativa provocou, "o prefeito de uma das cidades (Morsang-sur-Orge) interditou o espetáculo, fazendo valer a sua condição de guardião da ordem pública na órbita municipal. Do ponto de vista legal, o ato de interdição teve como fundamento o Código dos Municípios, norma de âmbito nacional (a França é um país unitário) que disciplina de forma minuciosa o exercício da ação administrativa estatal no plano municipal. Nos termos desse Código (art. 131), incumbe ao Prefeito, sob o controle administrativo do representante do poder central na respectiva circunscrição (Préfet), o exercício do poder de polícia no Município, podendo intervir em atividades ou limitar o exercício de direitos sempre que necessário à preservação da ordem pública. (...) Por outro lado, a decisão administrativa do Prefeito se inspirou em uma norma de cunho supranacional, o art. 3º da Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. (...) Insatisfeita, a empresa interessada, em litisconsórcio ativo com o deficiente físico em causa, Sr. Wackenheim, ajuizou ação perante o Tribunal Administrativo de Versailles visando a anular o ato do prefeito".

Diz ainda BARBOSA GOMES que em primeira instância " os autores obtiveram êxito, já que a corte administrativa (na França, os órgãos jurisdicionais, mesmo em primeira instância, têm em regra a estrutura colegial) julgou procedente o ‘recours pour excès de pouvoir’ por eles ajuizado e anulou o ato do Prefeito, entendendo que o espetáculo objeto da interdição não tinha, por si só, o condão de perturbar a ‘boa ordem, a tranqüilidade ou a salubridade públicas’. (...) Mas, ao examinar o caso em grau de recurso, em outubro de 1995, o Conselho de Estado, órgão de cúpula da jurisdição administrativa, reformou a decisão do Tribunal Administrativo de Versailles, declarando que "o respeito à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da (noção de) ordem pública; (que) a autoridade investida do poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais específicas, interditar um espetáculo atentatório à dignidade da pessoa humana" .

Retratado, aí, um quadro moderno do prestígio desfrutado pela jurisprudência na França de hoje, inclusive delineando uma perfeita ligação entre o Código dos Municípios e a Convenção Européia de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.


3. O Direito Sumular

Abordado, ainda que superficialmente, o que é jurisprudência e a importância que esta teve num determinado espaço (a França) em delimitada época (o Século XIX), é bom que se visite, também aligeiradamente, um fruto das decisões pretorianas, que chega a este final de milênio com força indiscutível: o Direito Sumular.

Mas, afinal, o que é Direito Sumular? Ouso dizer que é a elevação da jurisprudência esparsa, através do amalgamamento dos julgados, ao patamar de ramo da árvore do Direito. No dizer de JOSÉ PEREIRA-LIRA (6), o Direito Sumular tem gênese nacional, que pode ser atribuída ao Ministro VICTOR NUNES LEAL, que em 1963, "com os seus companheiros da Comissão de Jurisprudência, no Supremo Tribunal, ousou, com autoridade para isso, dentro dos cancelos, e fora deles, no Pretório Excelso, um corajoso passo à frente, promovendo a ‘criação’ da ‘Súmula’, de nítidas raízes brasileiras, sem cópia do stare decisis nem filiação a the restatment of the Law.". Louvado no ornato vernacular "a lei propõe; a jurisprudência compõe", PEREIRA-LIRA recua no tempo para situar em 1937 o termo inicial da sua própria cruzada pela respeitabilidade da jurisprudência sumulada, dizendo que ali estava acontecendo "a volta ao ‘empirismo jurídico’, informado nas mais puras fontes do positivismo, com a Escola Analítica de Jurisprudência, sob o comando de John Austin, aproveitando as conclusões do anti-escolasticismo e as tendências antifeudais e humanistas da chamada Escola da Culta Jurisprudência, e a formação tedesca da Escola da Jurisprudência de Interesses, para desembocar na Escola do Direito Livre, animada pelo espírito da livre investigação científica. (...) A Escola Realista Americana, indo além da Escola Sociológica Americana, principalmente com Oliver Wendell Holmes, gerou a convicção de que deve o jurista, antes de tudo, observar o comportamento dos juízes, dos Tribunais e dos cidadãos, para examinar a sua atividade no sentido do que fazem, e não do que deveriam fazer" (7).

São estas as aligeiradas considerações sobre o que é o Direito Sumular, que vem galgando prestígio a partir da segurança jurídica que oferece aos seus invocadores e a partir da complexidade do processo legislativo brasileiro. Tem como nascedouro as mais repetidas posições dos pretórios, que julgam as lides em derradeira instância.


4. O stare decisis

É inegável que o Judiciário enfrenta uma crise de credibilidade perante a sociedade brasileira, em face do retardamento com que entrega a prestação jurisdicional. As soluções aventadas para rebater o prefalado descrédito partem tanto da própria magistratura como das pessoas destinatárias do serviço institucional. Em uma e em outra searas, não são poucas as vozes que se alevantam pedindo a adoção, entre nós, do primado da força vinculante dos precedentes, de berço consuetudinário e anglo-saxão. Mas, afinal, que doutrina é essa, desejada como panacéia para solver os males (quase crônicos) do Judiciário lerdo?

Consiste o stare decisis no prestígio que os julgadores emprestam às decisões anteriores, para destas tomarem um princípio, que norteará o julgamento do caso concreto. É uma homenagem ao estudo que já foi desenvolvido quando analisado caso similar, poupando os novos juízes de uma discussão bizantina, que em regra levaria ao mesmo resultado já apurado outrora pelos tribunais. Explica EDWARD D. RE, docente da St. John’s University, Nova Iorque, USA (8) que a mencionada doutrina, "cuja formulação é stare decisis et non quieta movere (mantenha-se a decisão e não se disturbe o que foi decidido) tem raízes na orientação do common law segundo a qual um princípio de direito deduzido através de uma decisão judicial será considerado e aplicado na solução de um caso semelhante no futuro. Na essência, esta orientação indica a probabilidade de que uma causa idêntica ou assemelhada que venha a surgir no futuro seja decidida da mesma maneira." (...) "É preciso compreender que o caso decidido, isto é, o precedente, é quase universalmente tratado como apenas um ponto de partida. Diz-se que o caso decidido estabelece um princípio, e ele é na verdade um principium, um começo, na verdadeira acepção etimológica da palavra. (...) Um princípio é uma suposição que não põe obstáculo a maiores indagações. Como ponto de partida, o Juiz no sistema do common law afirma a pertinência de um princípio extraído do precedente considerado pertinente. Ele, depois, trata de aplicá-lo moldando e adaptando aquele princípio de forma a alcançar a realidade da decisão do caso concreto que tem diante de si. O processo de aplicação, quer resulte numa expansão ou numa restrição do princípio, é mais do que apenas um verniz; representa a contribuição do Juiz para o desenvolvimento e evolução do direito".

Lamentavelmente, defeitos de comunicação têm feito grassar, entre nós, a idéia - falsa - de que o stare decisis, posto que originário de Estados adotantes do common law, dispensa a utilização de leis, restando satisfeito única e exclusivamente com o manejo dos precedentes judiciais. Em verdade, é posto em prática todo um ritual de julgamento e de subsunção do caso concreto ao direito aplicado. Explica EDWARD D. RE (9), que manejando um precedente, é dever do jurista determinar a autoridade do precedente. Assim, deverá perquirir se ele é vinculativo ou meramente persuasivo . No primeiro caso, será aplicado e definirá o caso em julgamento. Se, pelo inverso, for somente persuasivo, desfia toda uma gama de outros elementos, que, em conjunto, definirão a aplicação e a extensão do precedente.

A mais severa crítica que se faz ao stare decisis é pertinente à suposta estagnação que a doutrina impõe à prestação da atividade jurisdicional. Eivam-na de estática ou comodista. Outros atacam a doutrina, apontando-a como incrementadora de litígios, já que se constrói a partir das soluções emanadas para dirimir conflitos interpessoais. Estas últimas restrições são rebatidas por ALLEN, citado por EDWARD D. RE (10), que em "Law in the Making" afirma: "Nem constitui crítica inteiramente injusta afirmar que os precedentes tendem a fazer com que o desenvolvimento do direito dependa de acidentes do processo litigioso. Pontos importantes podem permanecer obscuros simplesmente porque ninguém se interessou em questioná-los. Um julgamento errôneo pode permanecer e adquirir autoridade imerecida, simplesmente porque a parte sucumbente deixa de recorrer - geralmente pela boa razão de que não pode mais arcar com os ônus do litígio".

Quanto a ser o stare decisis paralisante da evolução do Direito, rebate EDWARD D. RE: "A toda evidência a autoridade dos precedentes varia consideravelmente. Num extremo estão os precedentes tidos como vinculativos; noutro, aqueles que se consideram de todo inaplicáveis ao caso em exame. A doutrina do stare decisis conseqüentemente não exige obediência cega a decisões passadas. Ela permite que os Tribunais se beneficiem da sabedoria do passado, mas rejeitem o que seja desarrazoado ou errôneo. Antes de mais nada é necessário que o Tribunal determine se o princípio deduzido através do caso anterior é aplicável. Em seguida, deve decidir em que extensão o princípio será aplicado. Um Tribunal pode preferir estender um princípio mais além dos limites de um caso antecedente se entender que assim estará promovendo Justiça. Caso a aplicação do princípio, entretanto, possa produzir resultado indesejável, o Tribunal estreitará ou restringirá o princípio, ou ainda aplicará precedente diverso. Por isso, é preciso assinalar que stare decisis não é apenas uma doutrina de estabilidade e uniformidade. Suas restrições e limitações inerentes bem como os fatores que determinam a inaplicabilidade de decisões anteriores tornam possível a necessária flexibilidade, indispensável para a mudança e o progresso".

Máxime em Estados, como o nosso, de organização tripartite, a adoção do stare decisis reclama moderação no prestígio e na valoração das fontes jurídicas que darão base aos julgamentos, evitando a exclusividade cega de qualquer delas.


5. As decisões vinculantes e a independência dos juízes da inferior instância

Na esteira do stare decisis (o trocadilho é proposital), tem tomado corpo, conforme alinhei acima, a idéia de que a adoção da vinculação dos precedentes judiciais, incidentes verticalmente no edifício do Judiciário, da maior à menor instância, resolveria o afogamento imposto ao Poder, notadamente depois do registro do inesperado número de demandas, oriundas da descoberta da cidadania pelo povo brasileiro, após o advento da Constituição de 1988. A vigente Carta Política, se coberta de defeitos fosse, haveria de mostrar pelo menos um ponto positivo: lembrou ao homem brasileiro que ele existe e compõe o Estado, como Nação, não sendo apenas súdito do Rei, mas sócio deste. Pois bem! Descobrindo que pode reclamar do Estado pelas peraltices dos seus gerentes, o homem comum achou de bater às portas do Judiciário reclamando da insuportável e confusa carga tributária; dos desmandos administrativos, notadamente na área de pessoal; da incorreção dos cálculos dos proventos previdenciários etc. E com freqüência considerável, esse chamado aconteceu junto ao juízo singular, na inferior instância. Foi nesta que foram proferidas as primeiras decisões mandando o INSS igualar os ganhos dos rurículas aposentados aos dos trabalhadores da ativa (CF, art. 201, § 5º) e dela saíram as primeiras decisões liminares ordenando o desbloqueio dos cruzados retidos quando da edição do Plano Collor (1990), apenas por exemplos.

O alentado volume de ações aforadas em muito pouco tempo, assoberbou de serviço o Poder Judiciário, que padece de sério, muito sério mesmo, estrangulamento. A situação é insuportável. Os magistrados reclamam, os advogados lamentam e o povo grita. Urge uma solução. E a que se apresenta como mais viável é a da força vinculante dos precedentes ou súmula vinculante.

O instituto que se comenta ( a súmula vinculante) é capaz de despertar paixões e ódios, que balizam, em lados opostos, posições eqüidistantes e equilibradas, bem possíveis de encontrar aí uma saída para o congestionamento das instâncias forenses, ainda que conjunturalmente.

Tentaremos alinhar aqui, alguns argumentos contrários à adoção da súmula vinculante.

          5.1. Respeitáveis argumentos contrários à Súmula Vinculante

Diz-se que os limites do exercício da função jurisdicional são a lei e a consciência jurídica, devendo esta última ser o norte do magistrado, que no seu labor deve extrair o sentido da lei, através da interpretação. Não deve o juiz, portanto, renunciar a essa atividade conciliatória da sua consciência jurídica com o objetivo da lei em nome da celeridade da prestação jurisdicional, pois esta não é o único nem o maior valor a ser considerado em matéria judicial. Afinal, o aforismo "justiça que tarda não é justiça" é eivado de relativismo, pois é preferível que o jurisdicionado obtenha o proveito desejado, ainda que demorado.

É afirmado, outrossim, que em um sistema tripartite de poderes como o nosso, configura ignomínia o Judiciário desprezar a produção legislativa para firmar-se em princípios por ele próprio construídos. A legitimidade da atividade judicante promana da vinculação do Poder Judiciário às leis e à Constituição. No instante em que o juiz estiver vinculado às normas elaboradas pelo seu próprio Poder, desaparecerá a sua legitimação democrática legal-representativa, restando fraturado o princípio da harmonia e da autonomia entre os poderes estatais, porque um estaria subtraindo a competência do outro, para enfeixá-la em poucas mãos (as da cúpula).

Para URBANO RUIZ, Presidente da Associação Juízes Para a Democracia, "a criação do efeito vinculante impediria que o juiz decidisse livremente" (11), no que é criticado por ANTONIO CELSO AGUILAR CORTEZ, também integrante dessa associação, que afirma: "Dizer, por outro lado, que a proposta põe em risco a liberdade de decidir dos juízes é uma redução simplista da questão. Importante é observar que, normalmente, a evolução da jurisprudência, sua sintonização com a expectativa da sociedade, não acontece de cima para baixo, mas sim de baixo para cima. Muito mais do que os tribunais ‘inferiores’ ou ‘superiores’, os juízes de primeiro grau ‘sentem’ os problemas vivos no contato direto e pessoal com as partes e os advogados." (12).

LUIZ FERNANDO RIBEIRO DE CARVALHO, Presidente da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, também critica o rumo que se vem traçando para a solução do problema: "Propõe-se a adoção de súmula vinculante na reforma do Judiciário, ressuscitando os Assentos das Casas de Suplicação, considerados inconstitucionais pelo STF desde a fundação da República. Como pontificava Ruy Barbosa - lembrado por Evandro Lins e Silva em artigo publicado no Jornal do Brasil de 16 de setembro-, na defesa (em 1895) do juiz de Direito do Rio Grande do Sul Alcides de Mendonça Lima que, por considerá-la inconstitucional, negou aplicação a uma lei estadual que abolira características essenciais à instituição do júri e acabou processado em seu próprio Tribunal (que firmou posição contrária acerca do tema) por crime de prevaricação e condenado à pena de nove meses de suspensão, tal entendimento criava o ‘crime de hermenêutica’." (13).

Também rebelde quanto à súmula vinculante, bradou o Des. JOÃO ALBERTO MEDEIROS FERNANDES, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: "O direito do cidadão de ver o seu caso concreto examinado pelo seu advogado e pelo seu juiz é inalienável, decorre de princípio constitucional, mas jamais de aplicações de decisões preconcebidas, também chamadas de stare decisis." (...) "Criada a referida súmula de aplicação obrigatória é possível fechar os escritórios de advocacia, as comarcas, calar a Ordem dos Advogados do Brasil e aposentar juízes, mas, é certo que, antes, o cidadão morrerá de injustiça. A súmula vinculante é uma maneira de oprimir o povo porque ele não tem consultoria jurídica em Brasília, nem força econômica para contratar os maiores juristas do país, ao passo que o governo, os bancos e as multinacionais, pelos caminhos certos, estabelecerão a imutabilidade futura das decisões que lhe favoreçam." (14).

Incontáveis outras abordagens, contrárias à súmula vinculante, poderiam ser colacionadas neste ensaio. Existem a mancheias, não raro brilhantemente defendidas. Mas os exemplos acima são significativos da recusa do instituto em apreciação.


6. Razões pelas quais acredito na eficiência das decisões vinculantes

Longe de mim ditar a última palavra sobre assunto tão polêmico. Longe de mim, também, a idéia de ficar omisso em face de questão tão crucial para todos os partícipes da cena jurídica. Daí a ousadia de listar alguns argumentos, derivados das observações que tenho empreendido sobre a matéria, visando unicamente estimular a busca de soluções para o caos em que está mergulhada a atividade jurisdicional.

Penso que o primeiro passo a ser empreendido por quem realmente deseja reverter o galopante necrosamento do Judiciário é despir-se de vaidades e de pruridos que, se afagam o ego, "afogam" a ação profissional e institucional (com perdão pelo trocadilho proposital). Basta a elevação do pensamento para os sítios do bem comum, para que sejam esquecidos ciúmes e receios que são diminutos, se comparados ao tamanho da crise ora analisada.

Não acho que a adoção do precedente vinculante seja uma invasão tão periculosa assim aos domínios do Poder Legislativo. Nos Países do Common Law, conforme é sabido, o costume judicial dá a tônica da prestação jurisdicional e nem por isso o Poder Legislativo é diminuído. O exemplo da Inglaterra é irrespondível.

Mas, considerando que o modelo de tripartição dos poderes não conta ainda três séculos (o que é muito pouco, em termos de história da humanidade), haveria algum mal terrível que fosse essa divisão repensada? Lembro agora as palavras de WALTER CENEVIVA, convocando os operadores jurídicos para a reversão dos problemas enfrentados neste passar de milênio: "A curto prazo não há luz no fim do túnel, mas as más conseqüências serão contornáveis se os operadores do direito compreenderem a conveniência da sua união para o enfrentamento das grandes teses. A tripartição dos poderes deve ser repensada. Estamos precisando de um novo Monstequieu no caminho de uma nova Ágora, na qual todos os cidadãos possam manifestar-se sobre os destinos da cidade. A Internet nos mostra que isso será tecnicamente possível em breve prazo." (15)

Volvendo ao cerne do questionamento ora posto, reitero não temer pela minha independência de juiz em face da vinculação das decisões superiores sumuladas. O modelo defendido pela Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB é marcado pela moderação naturalmente esperada de um ente representativo do pensamento dos juízes do Brasil. Assim, acolhendo a posição do Deputado Jairo Carneiro, relator do substitutivo da reforma constitucional pertinente, defende a AMB que "a edição da súmula vinculante somente será dada pelo voto de 3/5 dos membros do STF e Tribunais Superiores, após reiteradas decisões sobre a validade, a interpretação e eficácia de normas ou matérias específicas e determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica, sujeitas, ainda, ao controle de constitucionalidade", conforme reporta ANTONIO FERNANDO GUIMARÃES (16). Visto está, portanto, que a necessidade da ocorrência de repetidas decisões sobre a validade, a interpretação e a eficácia de certas normas ou de matérias especificadas, afasta por todo o "fantasma" da indébita invasão legislativa, dita perpetrável pelo Judiciário. Consolidar julgados reiteradamente discutidos pelo órgão ápice do Poder Judiciário não pode ser confundido com atividade legislativa anômala...

Outro ponto que foi bem acolhido pela AMB, através do seu Conselho Executivo e do seu Conselho de Representantes, diz respeito à alteração ou revisão das súmulas vinculantes. Pelo substitutivo Jairo Carneiro, será franqueado aos tribunais inferiores, ao Ministério Público da União ou dos Estados, à União, aos Estados ou ao Distrito Federal, ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e à Associação dos Magistrados Brasileiros a proposta de alteração ou de cancelamento da súmula editada.

Ainda conforme o substitutivo acima mencionado, a força vinculante da súmula está demonstrada pela possibilidade da oposição de reclamação, dirigida ao poder editante, quando a mesma não for aplicada por juízo inferior ou for desrespeitada por ente administrativo. Uma vez acatada a reclamação, será anulado o ato administrativo ou cassada a decisão judicial. Ainda que a reclamação não configure, em senso estrito, um recurso, decerto será um meio deveras hábil a inibir o poder público de procrastinar feitos judiciais ou providências administrativas em descompasso com a interpretação sumulada.

Por último, o mais polêmico dos temas: não adotando o juízo inferior o regramento passado pela súmula vinculante, estará o magistrado cometendo infração penal?

A elevada missão de distribuir justiça, ao instante em que o juiz é o próprio Estado, posto que integrante de um dos Poderes deste, não compadece ameaças ou ralhamentos prévios, ainda que editados no corpo da Constituição. Pela magnitude da atividade judicante e pela respeitabilidade que os juízes devem ostentar perante os jurisdicionados, acho perfeitamente desprezível a inserção, no texto legal, de ameaças de prisão ou de outras sanções negativas para os casos concretos de desatenção às súmulas vinculantes. Entretanto, não posso olvidar que o juiz, como servidor público lato sensu que é, está exposto ao cometimento de crimes contra a administração pública, máxime o de prevaricação. Assim, quando um juiz de inferior instância recebe um julgado do tribunal que lhe é superior e deixa de a ele dar cumprimento ao argumento de que, por exemplo, "não concorda com a posição doutrinária desposada pela corte", estará agindo criminosamente, imbuído por sentimento pessoal (CP, art. 319). Acho que quanto a isso não há dúvida.

De igual modo, tendo o Supremo Tribunal Federal sumulado um conjunto de decisões e ordenado que os juízos inferiores a eles rendam obediência, nada mais estará fazendo do que aquilo que faria, de forma fracionada, nos processos "a", "b", "c" .... E por qual razão o magistrado da instância inferior cumpre uma decisão isolada, sem opor discussões, e terá receios de cumprir um conjunto sumulado de decisões? Será que a mentalidade da magistratura brasileira ainda está sediada na época em que a reforma de uma sentença consistia num aviltamento ao trabalho do juiz singular? E se, sabido que o juiz pode perfeitamente ser sujeito ativo do crime de prevaricação, previsto há mais de meio século no Código Penal, por que haveria de recusar a possibilidade de ser também sujeito ativo de semelhante prática delituosa em um novo diploma legal?


7. Concluindo...

Na atual conjuntura experimentada pelo Poder Judiciário do Brasil, a edição da súmula vinculante constitui sério instrumento para imprimir maior velocidade e melhor racionalização na atividade jurisdicional, sem que isso macule a independência e a capacidade criativa dos juízes subordinados aos tribunais editores, principalmente se forem adotados mecanismos de revisão ágeis e democráticos.


NOTAS

(1) 2ª edição, São Paulo, José Bushatsky Editor, 1974, página 70.

(2) "Direito Sumular", em Revista Jurídica LEMI, nº 148, S. Paulo, março de 1980, página 44.

(3) "Instituições de Direito Civil", vol. I, 2ª edição (universitária), Rio de Janeiro, Forense, 1991, página 41. Obra citada, pág. 44.

(4) "O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa", em Boletim Jurídico TRAVELNET, veiculado pela Internet, (http://www.travelnet.com.br/juridica), datado de 20.6.1996.

(5) Prefácio ao livro "Direito Sumular", de Roberto Rosas, 4ª edição, São Paulo, Editora RT, 1989, pág. 9. Mesma obra, pág. 8.

(6) Stare Decisis, tradução de Ellen Gracie Northfleet, em Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, vol. 122, Ed. Jurídica Vellenich, S. Paulo, 1994, págs. 56 e 57.

(7) ob. cit., pág. 58.

(8) ob. cit., pág. 60.

(9) "Justiça poderia evitar 90% dos processos", em Gazeta Mercantil, 12.02.1997.

(10) "Súmulas dogmáticas e interesse público", em O Estado de São Paulo, 17.02.1997.

(11) "Uma questão de incompatibilidade de gênios", publicado na home page da AMAERJ (http://www.nutecnet.com.br/amaerj), em 13.02.97.

(12) "A ditadura está chegando à Justiça", em Jornal do Comércio, Porto Alegre, 31.10.96.

(13) "Operadores do Direito", coluna Letras Jurídicas, Folha de São Paulo, edição de 07.12.96.

(14) "A AMB e a súmula vinculante", em Jornal do Magistrado, órgão oficial da AMB, ano VII, nº 39, dezembro/96, pág. 12.


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CARVALHO, Ivan Lira de. Decisões vinculantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 41, 1 maio 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/254. Acesso em: 29 mar. 2024.