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Breves comentários sobre a capacidade postulatória nos Juizados Especiais Cíveis e o Projeto de Lei 5.123 de 2013

Breves comentários sobre a capacidade postulatória nos Juizados Especiais Cíveis e o Projeto de Lei 5.123 de 2013

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Pretende-se com o projeto que o cidadão promova, sozinho, a defesa de seus próprios interesses – o que fulmina completamente as possibilidades de defesa técnica adequada, prejudicando, assim, o próprio acesso à justiça.

1 INTRODUÇÃO.

O breve estudo que ora se apresenta tem o escopo de traçar breves comentários a respeito do Projeto de Lei de nº 5123/2013, que, dentre outros pontos relevantes, pretende alterar a redação do artigo 9º, da Lei 9099/1995, para que passe a ser facultativa a representação processual por advogado, no âmbito dos juizados especiais cíveis, em todas as causas sujeitas ao seu procedimento, em todas as instâncias.

Em síntese apertada, o que se pretende é analisar, perfunctoriamente, a ampliação da atribuição de capacidade postulatória ao cidadão leigo – e, mesmo, a atribuição em si mesma, já existente em alguns casos –, sob a perspectiva da garantia constitucional de acesso à justiça.

É de se salientar, desde o início, que, conforme já sugerido pelo próprio título, o breve estudo que ora se apresenta não tem quaisquer pretensões exaustivas. O escopo, antes, é chamar a atenção para a relevância da reflexão acadêmica a respeito de matérias extremamente relevantes sob o ponto de vista prático da administração da justiça.


2 CAPACIDADE POSTULATÓRIA E ACESSO À JUSTIÇA.

Conforme já referido, o Projeto de Lei de nº 5123/2013, visa a alteração da Lei 9099/1995, com o escopo de alterar a redação de seu artigo 9º, para, assim, tornar facultativa a participação de advogado nas ações que tramitarem perante os juizados especiais cíveis, independentemente da matéria, mesmo em fase recursal.[1]

Neste particular, é de se salientar, de início, que a Carta Magna de 1988 – que tem merecido, ao redor do mundo, a denominação de “Constituição Cidadã” – estabelece, em termos expressos, no artigo 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça”.

Tal previsão é repetida no caput do artigo 2º, da Lei Federal 8906/1994, o Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil, que prevê, ainda, que o advogado, mesmo no seu ministério privado, presta serviço de caráter público e que exerce função de natureza social.

Mostra-se, assim, bastante evidente, salvo melhor juízo, que, na dinâmica jurídica nacional contemporânea, onde o advogado não se faz presente administra-se qualquer coisa, que não propriamente a justiça.

É de se mencionar, aliás, que, segundo Silva (2000, p. 582), em posição que é seguida por Araujo Junior (2009, p. 20), a previsão constitucional é rígida, e não permitiria, mesmo à legislação federal, dispensar a presença de advogado em processos judiciais.

Em suma: segundo previsão expressa da Carta Magna, o advogado é indispensável à administração da justiça, em qualquer caso, não sendo dado ao legislador ordinário – ou mesmo ao Poder Judiciário,[2]é evidente – esvaziar o conteúdo de tal determinação constitucional.

Há, ainda, outro ponto que merece atenção.

A pretensão de ampliar a já extremamente questionável dispensa da assistência de advogado em ações sujeitas aos juizados especiais cíveis é divulgada como uma tentativa de ampliação do acesso à justiça – quando, na realidade, um exame mais detido demonstra, salvo melhor juízo, que a conseqüência que daí deve inevitavelmente decorrer é diametralmente contrária.

Isto porque, salvo melhor juízo, não se garante efetivo acesso à justiça sem que se garanta, também, respeito à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal; e, conforme leciona Nery Junior,

Ampla defesa significa permitir às partes a dedução adequada de alegações que sustentem sua pretensão (autor) ou defesa (réu) no processo judicial (civil, penal, eleitoral, trabalhista) e no processo administrativo, com a consequente possibilidade de fazer a prova dessas mesmas alegações e interpor os recursos cabíveis contra as decisões judiciais e administrativas (2010, p. 248 e 249).

O doutrinador esclarece, aliás, que, “para assegurar o cumprimento do devido processo legal, é necessária a existência de defesa técnica na condução do processo” (NERY JUNIOR, 2010, p. 255).

A este respeito, complementa Bittar que,

[...] mesmo enquanto profissional autônomo, ao advogado incumbe o múnus público de conferir à população acesso aos seus próprios direitos; se a defesa técnica é imprescindível para a participação no processo, o ius postulandi, como pressuposto processual subjetivo relativo à parte, toca muito próximo o problema do próprio acesso à justiça (2007, p. 464).

Conforme bem sintetizado por Sodré,

Só o advogado, com sua cultura, com a técnica jurídica, pode extrair das circunstâncias que envolvem o caso, o que interessa ao julgamento, apresentando a defesa com mais segurança. Ele transforma os fatos em lógica, e o juiz transforma a lógica em sentença (1975, p. 268).

Pretende-se, todavia, com o Projeto de Lei 5123/2013, que o cidadão promova, sozinho, a defesa de seus próprios interesses – o que fulmina completamente as possibilidades de defesa técnica adequada, prejudicando, assim, como visto, o próprio acesso à justiça.

Para a compreensão das consequências de um tal quadro, vale lembrar que um cidadão que submeter, como autor, sua pretensão ao Poder Judiciário precisará, em síntese apertada, entre outras coisas, identificar claramente seu pedido, e fazer com que ele decorra logicamente dos fatos narrados e do direito invocado;[3]posteriormente, precisará identificar e impugnar especificamente as alegações e pretensões do réu e os documentos que ele eventualmente juntar;[4]na fase instrutória, precisará auxiliar o juízo na tarefa de esclarecer os fatos para propiciar o justo deslinde da demanda, o que dependerá, inclusive, de formular as perguntas pertinentes à parte contrária e a testemunhas; para, em seguida, fazer um cotejo analítico entre as teses iniciais e os elementos de prova, nas alegações finais.[5]Caso não concorde com a sentença – que poderá ser prolatada por um juiz leigo –, precisará identificar as deficiências de fundamentação, para, com base em uma argumentação que se mostre coerente, dirigir um recurso ao órgão competente para reforma do julgado.

Como se não bastasse, precisará, ainda, submeter-se à dinâmica do processo eletrônico, cujo manejo exige certificação digital e, é inegável, uma boa familiaridade com o funcionamento do sistema.

É difícil acreditar que uma pessoa sem formação específica na área tenha chances minimamente razoáveis de defender seus próprios interesses de forma adequada e efetiva em um tal cenário.

Pode ser apontado como problema que poderia compor, sob certa perspectiva, “o verso da moeda” as restrições financeiras que impediriam uma parte da população de contratar um advogado, pela inviabilidade de arcar com as verbas honorárias.

Vale lembrar, neste particular, que a Constituição Federal determina, de forma inequívoca, no artigo 5º, LXXIV, que o Estado preste assistência jurídica integral e gratuita àqueles que comprovarem insuficiência de recursos.

De forma complementar, com referências expressas a tal garantia constitucional fundamental, o artigo 134, caput, da Carta Magna, determina que a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, e que a ela incumbe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.

Assim, é evidente que a garantia de acesso à justiça àqueles que não podem contratar um advogado se faz por meio da implantação e do aparelhamento de Defensorias Públicas – e não com a utilização de expedientes que, em última análise, deixam o cidadão à sua própria sorte.


3 CONCLUSÃO.

 Verifica-se, pelo brevemente exposto neste modesto estudo, salvo melhor juízo, que o Projeto de Lei 5123/2013 não é apenas claramente inconstitucional, por sua ofensa inegável ao expressamente determinado no art. 133, da Carta Magna; mas também profundamente injusto, por negar ao cidadão pobre a assistência jurídica tecnicamente adequada que lhe é assegurada, em caráter fundamental, pelos artigos 5º, LXXIV e 134, caput, da Constituição Federal.

Aliás, em atenção às já mencionadas determinações contidas em regras e princípios constitucionais, mostra-se absolutamente pertinente e, mesmo, necessário que a sociedade esteja engajada no reconhecimento da inconstitucionalidade dos artigos 791 e 839, da Consolidação das Leis do Trabalho, e no artigo 9º, caput, primeira parte, da atual redação da Lei 9099/1995,[6]e das graves injustiças decorrentes da manutenção da aplicação de tais dispositivos, na medida em que, por um lado, excluem o advogado da administração da justiça, e, por outro, afastam o cidadão da efetiva possibilidade de uma defesa tecnicamente adequada, sem o que resta inviabilizado o próprio acesso à justiça.


REFERÊNCIAS.

ANTUNES, Thiago Caversan e BELLINETTI, Luiz Fernando. O Controle de Constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal nos Limites da Democracia. In: CONPEDI. (Org.). Anais do XVIII Encontro Nacional do CONPEDI - Maringá. Florianópolis: Boiteux, 2009, p. 6645-6663.

ARAUJO JUNIOR, Marco Antonio. Ética Profissional. 5 ed. 2 tir. São Paulo: RT, 2009.

BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Ética Jurídica: ética geral e profissional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2007

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo na Constituição Federal. 10 ed. São Paulo: RT, 2010.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17 ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

SODRÉ, Ruy de Azevedo. Ética Profissional e Estatuto do Advogado. 4 ed. São Paulo: LTr, 1975.


Notas

[1]É de se mencionar, desde logo, que o Projeto de Lei de nº 5123/2013, como já apontado nas considerações introdutórias, trata de outros importantes temas – como a possibilidade de pronúncia de nulidade sem que haja prejuízo, ou a possibilidade de a próprio secretaria do juízo pronunciar prolixidade da petição inicial e determinar sua emenda no prazo exíguo de 24 horas –; o recorte do breve estudo que ora se apresenta é específico, e ficará restrito a uma análise perfunctória da pretensão de se ampliar a atribuição de capacidade postulatória ao cidadão leigo.

[2]Para um tratamento dos limites do exercício do controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, cf. Antunes e Bellinetti (2009). A temática é relevante, no que pertine ao estudo que ora se apresenta, mormente levando em conta o fato de que aquela Corte Suprema tem considerado, até o presente momento, constitucional a atribuição de capacidade postulatória a pessoa não inscrita nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, quando houver previsão específica na legislação infraconstitucional (cf. AI 461490-ED, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 07/08/2009; AO 1531-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe 01/07/2009; e ADI 3168, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 03/08/2007)

[3]Sob pena de ver indeferida a sua petição inicial por inépcia, conforme a previsão do art. 296, I e parágrafo único, II, do Código de Processo Civil; e, assim, extinta a sua demanda, sem julgamento do mérito, nos termos do art. 267, I, daquele mesmo Diploma Legal.

[4]Ônus semelhante pesará sobre os ombros do réu, que, por força do disposto no art. 302, do Código de Processo Civil, precisará, na contestação, impugnar especificamente as alegações e pretensões do autor, sob pena de que se tenha afirmações por incontroversas, caso em que sequer lhe será permitido produzir provas a respeito, pelo óbice do art. 334, III, daquele mesmo Código.

[5]Alegações finais que, por força dos próprios princípios que inspiram a Lei 9099/1995, e também pela previsão expressa do art. 454, do Código de Processo Civil – aplicável de forma subsidiária –, deverão ser apresentadas, oralmente, na própria audiência.

[6]Dispositivos legais que, em determinadas circunstâncias, outorgam, presentemente, capacidade postulatória ao cidadão não advogado, para causas trabalhistas ou sujeitas aos juizados especiais cíveis, em completo descompasso com as determinações encartadas nos artigos 5º, LXXIV, 133 e 134, da Constituição Federal.


Autor

  • Thiago Caversan Antunes

    Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Especialista em Direito Civil e Processo Civil (UEL) e Mestre em Direito Negocial (UEL). Doutor em Direito pela Universidade de Marília (UNIMAR). Professor do curso de graduação em Direito da Universidade Positivo (UP Londrina), e de diversos cursos de pós-graduação. Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE). Autor de livros e artigos científicos. Atua como advogado.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANTUNES, Thiago Caversan. Breves comentários sobre a capacidade postulatória nos Juizados Especiais Cíveis e o Projeto de Lei 5.123 de 2013. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3770, 27 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25592. Acesso em: 28 mar. 2024.