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Aspectos da evolução doutrinária do Direito Penal

Aspectos da evolução doutrinária do Direito Penal

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Por ser a pena a sanção mais violenta que o Estado pode aplicar, esta deve ser a menos aplicada. Só haverá a aplicação da pena quando houver a violação de bens jurídicos considerados mais importantes e quando houver comprovada culpabilidade.

Quando ocorre o fato criminoso, o comando que a norma penal dá para proteger os referidos de bens jurídicos é violado, portanto a pena marginaliza o significado do crime. É essa marginalização executada tem lugar como violência.

É crucial assinalar a influência do Direito Canônico diante do pecado, aplicava-se a penitência, era o pecador recolhido numa cela e devia confessar. Era esse o mandamento da Igreja Católica e ainda vigente.

Ao termo “pena” se atribui vários significados e origens etimológicas. Para alguns deriva do latim poena que significa sofrimento, e outros entendem que deriva do grego ponos que significa dor, e ainda há que atribua ao sânscrito punya que significa purificação (de um mal).

De toda forma esta importa em um mal e implica na perda de bens jurídicos do condenado. Para Soler a pena é traduzida em mal porque representa a diminuição de bem jurídico e ao castigar o Direito retira do indivíduo o que lhe é valioso. Francesco Carnelutti[1] forneceu boa definição in verbis: “a pena do mesmo modo que o delito, é um mal, ou em termos econômicos, um dano.”

O conceito de pena baseia-se firmemente no princípio da legalidade[2] e os fins da pena[3] é objeto de estudo da Filosofia do Direito principalmente ao analisar o porquê o Direito adota a pena como sanção distinta das demais.

Os fundamentos da pena não se confundem com as finalidades da pena posto que se relacionem com os motivos que a justificam tanto a existência como a imposição de uma pena. Apontam-se seus principais fundamentos da pena: retribuição, reparação, denúncia, incapacitação, reabilitação e dissuasão.

Pena é espécie de sanção penal consistente na privação ou restrição de determinados bens jurídicos do condenado (liberdade, vida, patrimônio), aplicada pelo Estado em decorrência do cometimento de uma infração penal, com as finalidades de castigar seu responsável, readaptá-lo ao convívio em comunidade e, mediante a intimação endereçada à sociedade, evitar a prática de novos crimes ou contravenções penais.

O Direito Penal que se tem hoje, como sói, é filho de seu tempo, ou seja, do século XIX, da modernidade penal. Onde se identifica a superação do medievo, o indivíduo ganhou status de cidadão e, por princípio, o Direito Penal é a última ratio da sua proteção, justo porque encampa o bastião mais longínquo de penetração, pelo Estado, na esfera individual. Ortega y Gasset[4] cogitou da substituição do príncipe pelo princípio, como devem recordar todos.

Pelo menos aparentemente, o Direito Penal hoje ainda em construção e recebeu modernidade e o lastro da Filosofia da consciência após o giro linguístico e enfrenta pelo menos três problemas que desafiam a inteligência e a democracia.

O primeiro problema é o fato do Direito Penal estar destinado à tutela de bens jurídicos. Onde todos são iguais perante a lei e, portanto, protegidos.

O direito penal positivo pela crença na completude da relação sujeito-objeto objetivava-se excessivamente ao ponto que simplesmente acreditar que a previsão legal é capaz de definir a aplicação da lei penal.

A reserva da lei, tipicidade e taxatividade como princípios, garantiriam, de modo fidedigno, o cidadão, um sujeito de direitos e colocado debaixo pela força de subjectionis, tudo com o escopo de garantir a proteção prometida.

Ainda há a desculpa de que os tempos atuais exigem posições diferenciadas principalmente no combate à criminalidade e, resultado na renegação da taxatividade[5], lançando-se mão de conceitos indeterminados, vagos, opacos e que protegem interesses e não propriamente bens jurídicos.

O segundo problema é sobre a culpabilidade como juízo de censura e, um ultima ratio marcada pelo livre arbítrio.

Surgem complicadores como a descoberta de Freud: o inconsciente. Aceite-se ou não a sobredeterminação que este produz sobre o agir do agente, a descoberta do inconsciente é matéria para longas investigações, não podendo mais ser negado, e nem se permite “fazer de conta” de não exista.

O terceiro busilis é perceber que o Direito Penal não é autoaplicável e, portanto, o preceito secundário nele tipificado só encontra aplicação através do processo ou, como recomenda que fosse a Constituição de República de 1988 (art. 5º, LIV) do devido processo legal.

Não há pena sem processo, assim como não há sanção sem transgressão. E não há pena sem juiz o que resulta em princípios lógicos que situam a relação mútua de complementariedade funcional entre o Direito Penal e o Direito Processual Penal. Este existe, sobretudo, para poder ter vida aquele, o qual, por sua vez só se realiza por meio deste.

Ao Direito Penal incumbe a tarefa de proteger os bens vitais fundamentais do indivíduo e da comunidade. Esses bens são elevados pela proteção das normas do Direito Penal, à categoria de bens jurídicos.

Welzel destacou que o conteúdo do delito varia, um objeto psíquico-físico (a vida, a integridade corporal) um objeto espiritual-ideal (a honra), uma situação real (a paz do domicílio) uma relação social (o matrimônio, o parentesco) ou uma relação jurídica (a propriedade).

Ao precisar o objeto do Direito punitivo coloca-se o alicerce que permite justificar racionalmente o poder de punir[6] e, em consequência dessa justificação, o Direito Penal tem condições de se legitimar.

O objeto de Direito Penal é, pois, a tutela de bens jurídicos. Mas não ser realizada de qualquer modo e a qualquer preço. Somente poderá ser legítima se forem cumpridos os requisitos impostos pelo Estado de Direito (ou seja, legalidade, culpabilidade, intervenção mínima) E dele a pena guarda proporcionalidade se o bem jurídico tutelado tiver guarida constitucional, quer sejam de natureza individual ou supraindividual.

Posto que o Direito Penal encerre em si o uso estatal da violência, e sua compreensão somente pode ser efetuada através da união de seus elementos técnico-dogmáticos com o seu significado político.

Com efeito, a face política do Direito Penal aflora tão fortemente que ele é apontado como o mais sensível termômetro da feição política do próprio Estado, isto é, se a violência da pena for aplicada de forma ilimitada, sem resguardar a dignidade da pessoa humana, estaremos diante de um Estado arbitrário; de outro lado, se a violência da pena for aplicada dentro dos parâmetros de proporcionalidade de modo que respeite a dignidade da pessoa humana, estar-se-á diante de um Estado Democrático.

Portanto, conclui-se que o Direito Penal possui duplo viés: a aplicação e interpretação constitucional. No primeiro viés, o da aplicação constitucional, condiciona-se o objeto do Direito Penal; já no segundo exerce-se a interpretação constitucional consagrada como método.

Podemos dividir o Direito Penal em dois grandes períodos o do terror e o período liberal. O primeiro período onde não existiu a preocupação com a humanização da repressão penal, onde há o emprego de violência desmedida e ilimitada, não oferecendo nenhuma garantia ao ser humano em face do direito de punir do Estado.

O segundo período, o período liberal, inaugura a fase científica do Direito Penal, e começou com a formulação do princípio da legalidade e, portanto, começou tardiamente.

Esse período é pós-iluminista e põe como centro a pessoa humana e se preocupa com o fundamento e a legitimidade do direito com a pena[7].

Zaffaroni[8] destacou que a história do direito penal em sua fase primitiva nos mostra um dos mais sangrentos períodos e que custou muitas vidas e propôs os mais cruéis castigos. Tais punições eram vinculadas as especialíssimas superstições e odiosas práticas. Somente com a humanização o Direito Penal experimentou evolução positiva.

O que caracteriza a sociedade primitiva é a hipertrofia da norma penal. As normas, por mais duras e desagradáveis que sejam eram normalmente obedecidas pelos integrantes da sociedade primitiva.

Por isso que se diz que “o selvagem se converteu não só em um modelo de cidadão cumpridor da lei, mas também se tornou um axioma que, ao submeter-se a todas as regras e limitações de sua tribo”, o selvagem não faz mais do que seguir a limitação natural de seus próprios impulsos.

O selvagem sente uma profunda reverência pela tradição e aos costumes, assim mostrava uma submissão automática aos seus mandatos. Os obedece como escravo, ou seja, cegamente e espontaneamente, devido a sua inércia mental, combinada com o medo de opinião pública ou de um castigo sobrenatural.

Na sociedade primitiva, o Direito Penal tinha um caráter sacerdotal e teocrático. A confusão entre Direito Penal e religião é própria da cultura da época, na qual todos os valores, quer sejam os políticos, quer os religiosos, bem como todas as normas da ética e da honrabilidade popular formavam um conjunto entrelaçado.

Assim, a aplicação da pena era feita pelos sacerdotes, visto que o crime era sempre a violação das normas sagradas. Deve-se salientar que o sacerdote gozava de ampla competência penal, porque funcionava como intermediário entre os homens e a divindade; ao aplicar a pena o sacerdote evitaria a ira desta, elidindo o seu castigo sobre o grupo humano.

A pena privativa de liberdade era ligada à violação de tabu. A referida palavra de origem polinésia, significava a um só tempo o sagrado e o proibido. Os tabus, enquanto proibições de caráter religioso, correspondiam às leis dos deuses que não deveriam ser infringidas para não retirar o poder protetor da divindade.

A sociedade primitiva acreditava que a violação do tabu seria punida neste mundo, e não no mundo após a morte. Quando um tabu era violado a ira da divindade poderia recair sobre a tribo, causando malefícios sobre todos os seus membros.

A punição tinha a função de afastar a ira da divindade e garantir a continuidade do bem-estar dos habitantes da tribo que se abstinham de violar o tabu.

Todos os ritos que acompanhavam a execução de uma condenação à morte na sociedade primitiva pode-se encontrar um traço evidente da transformação de um sacrifício humano em uma punição jurídica: os deuses ameaçadores, dos céus, castigarão não somente aquele que cometeu o crime, mas toda a tribo, tornando-se um meio de sua defesa em face do perigo comum.

O criminoso, portanto, por ser um inimigo dos deuses da tribo, tornava-se ipso facto, um inimigo de toda tribo. A pena tinha caráter sacramental sendo um sacrífico expiatório oferecido à divindade.

Radbruch registrou que, entre os germanos, uma forma comum de apenar, era o sepultamento com vida nos pântanos, aplicado como pena aos homens que tivessem atitudes afeminados ou praticassem atos homossexuais, ou ainda, às mulheres que fossem adúlteras ou licenciosas; tais suplícios eram sacrifícios expiatórios oferecidos às divindades subterrâneas.

A morte por enforcamento, de outro lado, era um sacrifício ao deus Wotan[9], o deus das tempestades enquanto a profanação de um santuário ou roubo de seus tesouros era punido com uma morte expiatória peculiar: o criminoso era levado para a praia, durante o período da maré alta, tinha suas orelhas rasgadas, depois era castrado e, em seguido, sacrificado em expiação às divindades do templo profanado ou roubado.

Outro instituto peculiar do Direito Penal primitivo é o sacrifício da roda. Essa pena representava um sacrifício à divindade solar sendo comum, depois do referido sacrifício expor a roda para alto, inclusive com o corpo, em oferta aos deuses.

Em estágio superior e posterior da evolução alguns instrumentos eram utilizados para superar os membros do corpo como, por exemplo, a marreta e o porrete.

Na sociedade primitiva quando alguém violava uma norma penal havia um grande clamor da tribo, que reagia energicamente. A pena primitiva, era realmente uma pena social não se identificando com uma vingança individual.

O Direito Penal da sociedade primitiva não está vinculado à razão, mas está vinculado à superstição e à teologia da época.

O Direito Penal em Roma não conhecia o princípio da legalidade e o direito romano durou aproximadamente dez séculos, e sagrou-se uma evolução milenar.

Na melhor dicção de Celso: “o Direito é a arte do bem e do equitativo”. O pretor, em cada caso, deveria construir a decisão boa que realizasse a justiça naquela situação concreta. O Direito romano era essencialmente consuetudinário.

A lei existia somente como guia, como esquema de interpretação que o prudente arbítrio de julgador poderia afastar, tendo sempre a decisão boa e justa.

Foi no declínio do Direito Romano que surgiu a famosa compilação do imperador Justiniano, posteriormente Corpus Juris Civilis[10] que tinha como parte importante o Digesto (que era a reunião da opinião dos doutrinadores).

No Direito Penal romano a lei não poderia ser obstáculo para a construção da boa e justa no caso concreto. Mesmo existindo as leis penais em Roma não ficou abolido de maneira alguma o arbítrio do magistrado. Ainda porque poderia este castigar fatos não definidos como delitos pela lei, sem atender a prévio procedimento determinado de antemão pela mesma, fixando a medida da pena ao seu arbítrio.

A maioria dos institutos penais foi construída pela contribuições pretorianas. A formulação dos conceitos do dolo e culpa, por exemplo, surgem de através da atividade interpretativa dos julgadores, não das leis.

O Direito Penal na Idade Média também muito se distanciou do princípio da legalidade. Na Idade Média, o julgador gozava de ampla competência penal, tanto podendo incriminar condutas, sendo a existência de lei escrita expressa quanto podendo aplicar penas não cominadas na legislação.

Ao julgador era permitido utilizar-se da tortura durante o curso processual. E a tortura utilizada não era considerada pena, posto que um instituto processual destinado à obtenção de confissões e da verdade em torno dos fatos relevantes no processo. Mas a tortura era tão bárbara que antecipava a sentença condenatória mesmo para os inocentes.

Dentre as modalidades de torturas existentes no período medieval se destacaram as seguintes: 1) o trato da corda: consistiria em amarrar as mãos da pessoa atrás das costas; o que sobrava da corda era amarrado a uma roldana presa no teto do local da tortura. Ao sinal convencionado, o torturador puxava a corda e o torturado ficava suspenso no ar; 2) suplício do fogo: untava-se a planta dos pés do acusado com gordura e acendia-se fogo. Frequentemente o acusado perdia os pés; 3) língua caipira: amarrava-se o torturado em uma cadeia, enquanto o torturador borrifava seus pés com água salgada, após, trazia-se para junto do torturado uma cabra, que primeira lambia o sal, depois roía a pela, a carne e até os ossos do torturado.

É relevante ainda salientar o papel da Inquisição, instituição que marcou a repressão penal da Idade Média. Registrou a história que a Inquisição[11] se utilizou o Direito Penal para acomodar certas situações desagradáveis à manutenção da ordem pública, vinculando os suplícios e as penas oriundas do poder penal da época ao afastamento de fenômenos naturais, que se apresentavam como produto da “ira de Deus”.

Um exemplo concreto pode bem ilustrar o referido papel: depois do terremoto que devastou cerca de três quartos da cidade de Lisboa[12], fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de queima de pessoas vivas seria um eficaz instrumento para se evitar novos terremotos.

A Inquisição vestiu os condenados com vestes penitenciais e os levava em procissão para a praça pública, os fazia ouvir sermão a entregaram-nos para serem queimados vivos.

Convém mencionar que no mesmo dia de execução das penas capitais a terra voltou a tremer, frustrando as expectativas dos inquisidores em vincular as penas rituais transcendentes, hábeis para aplacar a ira divina.

O Direito Penal medieval nunca se preocupou coma dignidade humana do réu criminal e se registrou, por exemplo, a extração de glóbulos oculares, a castração, a extirpação das orelhas, a amputação das mãos e dos pés[13], o corte do nariz e a marcação da face com ferro em brasa.

Durante a Alta Idade Média com o esvaziamento das cidades, a população concentrou-se nos feudos e o Direito Romano deixou de ser aplicado. A história jurídica registrou poucos dados deste período, tendo o Direito Penal[14] sido principalmente costumeiro assim como os demais ramos jurídicos. Os únicos registros foram os foros e as façanhas, as primeiras normas eram de auto-organização; as segundas eram sentenças memoráveis invocadas para solucionar casos semelhantes aos dela.

Nesse panorama também não surge para a efusão do princípio da legalidade, e o Direito Penal costumeiro era um eficaz instrumento do controle do povo que vivia sob o jugo feudal.

Com a queda do Império Romano e o surgimento do feudalismo houve o esfacelamento e fragmentação do Direito Penal, podendo-se falar em um Direito Penal para cada feudo.

Assim diante do esfacelamento do Direito Penal passou, segundo o magistério de Ricardo de Brito Freitas, “a ser aplicado nos delitos comuns pelo próprio senhor feudal através de critérios largamente arbitrários que redundavam com frequência na aplicação de penas cruéis”.

Na baixa Idade Média, voltou o Direito a evoluir, as escolas jurídicas dos glosadores e dos comentaristas que surgiram na Itália, a primeira a reestudar o direito romano fundamentalmente pelo método chamado trivium que era composto de gramática, retórica e dialética; a segunda, criando o Direito Comum, produto da união do Direito Romano e o Direito Canônico.

É durante baixa Idade Média que foi promulgada a Magna Carta, assinada pelo rei João sem Terra, em 1215. Essa carta estabelecia em seu art. 3º, que nenhum homem livre poderia ser condenado senão em virtude de um processo legal efetuado por seus pares, segundo a lei da terra.

Eis então a origem do princípio da legalidade e a Magna Carta é um instrumento limitador do poder penal do rei. Assim, a Magna Carta foi voltada para common law, sendo portanto, incompatível com o da maioria dos países, seu conteúdo limitativo do poder estatal é o mesmo do princípio da legalidade.

É merecedora de menção a obra Tiberius Decianus do século XVI a quem se deve a divisão do Direito Penal em duas partes: a geral e a especial.

Já na obra Tractatus Criminalis, o autor elaborou uma obra abertamente teórica, especialmente porque contém uma parte geral onde se desenvolveu o conceito de crime, explicitando princípios, causas, fontes, natureza, elementos acidentais, e uma parte especial, a qual foi formulada segundo a sistematização racional dos crimes com base do objeto violado pela ação criminosa.

A frase de Deciano “nullum potest cognosci delictum, nisi praecedat lex, quae ilud prohibeat et puniat” produz o efeito de uma antecipação da regra nullum crime sine lege.

Os sofrimentos causados por um Direito Penal sem a limitação do princípio da legalidade foram muitos. Os monarcas utilizavam-se do direito Penal com o fim de asseverar a continuidade do absolutismo, pois, quanto maior fosse o terror penal, maior seria o temor de rebelar-se contra o regime.

Assim segundo o pensamento da época, o crime deveria ser punido da forma mais brutal possível, porque este representava uma ofensa à própria pessoa do soberano.

Parafraseando Michel Foucault[15], enxergava-se no carrasco executor da pena uma engrenagem entre o príncipe e o povo, posto que vingasse a pessoa do soberano aplicando o suplício em quem perpetrou a ação criminosa.

É na Idade Moderna que tivemos o nascimento propriamente do princípio da legalidade, em 1764, através do Marquês de Beccaria, Cesare Bonesana[16], na obra intitulada “Dos Delitos e das Penas”.

Beccaria[17] enxergou no princípio da separação dos poderes outro requisito para se evitar o terror penal, devendo-se distinguir o legislador do magistrado, a quem cabe decidir se a lei foi ou não violada.

O legislador[18] representa toda a sociedade unida pelo contrato social e tem atribuição de fazer as leis. Enquanto que o magistrado não pode ser mais severo que a lei, pois desta forma seria injusto, porque infligiria castigo superior ao que estava determinado.

A tarefa do magistrado era simplesmente elaborar um silogismo perfeito sendo a lei, a premissa maior, e a ação em julgamento a premissa menor, e a consequência seria a pena ou a liberdade.

Outra ideia criada a partir da legalidade é a utilidade. Segundo Beccaria, as vantagens decorrentes da união dos homens em sociedade devem ser repartidas igualmente entre todos.

As leis penais não devem ser cruéis, porque essa crueldade é inútil, por isso esta é dita, odiosa e revoltante. Assim é por conta do princípio de utilidade que as penas que ultrapassem a necessidade de conservar o depósito de salvação pública são injustas porque sua natureza; é tanto mais justas serão quanto mais sagrada e inviolável for a segurança que o soberano conserve aos súditos.

O utilitarismo sintetizado por Cezar Roberto Bittencourt considerando a pena um simples meio de atuar no jogo de motivos sensíveis que influenciam, a orientação da conduta humana.

Procuravam um exemplo para o futuro, mas não vingança para o passado. O primado da lei, isto é, o princípio da legalidade, é o meio eficaz para em primeiro lugar, possibilitar que as pessoas da mais alta posição social sejam punidas da mesma maneira que as pessoas da mais baixa classe; em segundo lugar, para que houvesse proporcionalidade entre o crime e a pena; e em terceiro lugar, para que houvesse a irretroatividade da norma penal e a proibição da analogia.

O princípio da legalidade foi acolhido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 conforme explicita o seu artigo oitavo[19].

Contudo, a sistematização dogmática deste princípio não se deu com este documento internacional só se perfez finalmente em 1801 através da obra de Feuerbach. Para este doutrinador toda pena dentro do Estado é a consequência de uma lesão jurídica, fundamentada na preservação do Direito e de uma lei que comine um mal sensível.

Daí decorrem os seguintes princípios: toda imposição de pena pressupõe a lei penal; segundo, a imposição de uma pena é condicionada à existência de uma ação incriminada; terceiro, o mal da pena, tida como consequência necessária, será vinculada a existência de uma lesão jurídica determinada. Posteriormente condensou Feuerbach[20] a fórmula nullum crimen nulla poena sine lege. Desta forma, ganha formulação científica e guarda relações com a finalidade da pena e com o próprio Direito Penal.

Para o doutrinador, o princípio da legalidade e a lei exercem papel central do direito Penal, o que possibilita a adequada concreção de seus fins. A essência do princípio da legalidade deve ser buscada na própria ideia atual do Direito Penal (que é instrumento estatal para exercer o jus puniendi).

Ocorre que quando o Estado aplica a pena, este retira direitos do indivíduo acusado, como a liberdade, o patrimônio e, excepcionalmente, a vida, atingindo, portanto, os direitos individuais da mais alta significação para a pessoa humana.

O princípio da legalidade traça o divisor entre dois direitos em jogo dialético: os direitos pessoais, de um lado, e o direito de punir do Estado, de outro.

Afinal, o princípio da legalidade visa proteger os direitos pessoais ante o jus puniendi do Estado pois garante que a postestade punitiva não seja usada de modo arbitrário, evitando a volta ou retrocesso do terror penal.

É a legalidade que limita a intervenção penal pois que garanta ao indivíduo a delimitação da atuação estatal. A legalidade respeita o homem em sua dignidade que está presente na Constituição Federal Brasileira[21] vigente e corresponde a um dos fundamentos da República federativa brasileira.

Há a tendência cada vez mais universalizante para a afirmação dos direitos do homem como princípio basilar das sociedades modernas, bem como o reforço ético do Estado, imprimem à justiça o estatuto de primeiro garante da consolidação dos valores fundamentais reconhecidos pela comunidade, com especial destaque da dignidade da pessoa humana.

Juarez Tavares afirmou que a dignidade humana coloca o ser humano não apenas como um meio mas como o fim da própria ordem jurídica. Reconhece-se que o jus puniendi do Estado não é um poder absoluto, mas é um poder, ou seja, não pode ser exercido de modo arbitrário ou cruel pelos detentores do poder político.

O conceito contemporâneo de Direito Penal[22] é vinculado ao princípio da legalidade, o qual estabelece que pela lei não somente se protege o homem das ações lesivas aos bens jurídicos, mas eu por esta se protege o homem do próprio Direito Penal.

O Direito está umbilicalmente vinculado à política e inicialmente se pode identifica a feição liberal ou totalitária do Estado, principalmente porque este ramo jurídico traduz o uso estatal da violência formalizada e institucionalizada pela dogmática jurídica.

O princípio da legalidade surgiu como reação à tirania do Estado absolutista, tendo portanto uma origem política. Alertou Beccaria que tais princípios desagradarão aos déspotas subalternos.

Ainda nos dias atuais, constata-se que alguns Estados estão essencialmente vinculados à religião, o que pode ser comprovado através do caso do Islã.

O Direito Islâmico (Shari’a) contém as regras de organização da sociedade muçulmano e os meios de resolução de conflitos entre os indivíduos e, entre estes e o Estado. Nesse mesmo Direito, considera-se somente existe uma fonte do Direito que é Deus... a divindade através da revelação, regula as condutas humanas, bem como as demandas, através do Direito.

Para os muçulmanos, o islamismo não é uma nova religião, mas apenas a culminação de comandos espirituais e temporais de Deus, que chegaram aos homens por meio de Moisés, Jesus, os profetas e Maomé. Assim, o islamismo continuaria e terminaria a expressão da revelação judaico-cristã.

A fonte principal do Estado e do direito islâmico é o livro dado por Deus, o Qu’ram além da Sunna ou Taffir que expressam a tradição de Maomé, o que confirma o Estado islâmico como sacerdotal e o teocrático.

A doutrina islâmica preocupa-se em vincular os crimes ao princípio da legalidade posto que seja uma garantia do ser humano na qual resguarda a sua liberdade.

Os crimes de Hudud são considerados especialmente graves posto que firam os principais valores da sociedade islâmica. São apostasia, o roubo, o adultério, falsa acusação de adultério, associação armada, embriaguez e a rebelião contra legítima autoridade.

A apostasia (ridda) é cometida por apóstata que é, todo aquele que, tendo professado a fé islâmica, a rejeita por palavras, atos ou omissões. A pena imposta é a morte.

Há uma indeterminação da norma penal, o que contraria a exigência de lei certa. O roubo é outro dos crimes do Hudud[23], e a pena prevista é de natureza corporal correspondendo ao corte da mão direito, quando a coisa roubada possui valor significativo.

Se o valor for pequeno da coisa roubada, não se utiliza a pena corporal. Todavia, os juristas não estão de acordo sobre qual seja o valor mínimo para que se configure o delito de roubo.

O segundo grupo de crimes de Quesas (que significa equivalência) são cometidos contra a vida, a integridade física da pessoa humana e são: homicídio qualificado, homicídio doloso, culposo, lesão corporal dolosa e lesão corporal culposa.

Os crimes de Quesas são sempre considerados como violações aos direitos individuais da pessoa, o que faz nascer a necessidade de indenização devida à vítima ou aos seus familiares. Há suas possíveis sanções: o talião correspondendo à aplicação da mesma violação física e corporal que fora feita em face da vítima; e a segunda forma que é a indenização chamada de Diyya que é o pagamento de compensação à vítima ou aos seus familiares.

A preferência pelo Diyya traduz forma de perdão e o Islã não obriga a vítima ou seus familiares a aceitarem a indenização. Na recusa dessa aplica-se fatalmente o talião.

O sistema islâmico devido não haver taxatividade da norma, o valor entre matar um homem ou mulher, ou entre matar uma criança ou uma pessoa insana pode variar.

Assim clama alguns juristas que, a morte de uma mulher ou criança ou ainda deficiente não poderá ser tratada com a mesma severidade com que é tratada a morte de um homem muçulmano.

A derradeira espécie de crimes no sistema penal islâmico são os delitos de Ta’azir, e significa a punição criminal que não está legalmente fixada e suas respectivas penas não tem previsão legal ou normativa, ficando a determinação da conduta incriminada e a pena a ser cominada pelo arbítrio do julgador.

Tradicionalmente os crimes de Ta’azir são punidos por penas corporais que pode variar em pena de morte[24] e flagelação. Todavia, é possível aplicação de pena de prisão que cariará de prisão até um dia ou um ano ou de penas restritivas de liberdade, como banimento ou exílio.

Na sociedade islâmica tem a necessidade de exercer o controle, choca-se com o princípio da legalidade que visa proteger a pessoa humana em face dos abusos dos detentores sendo portanto incompatível com o Estado Totalitário (que instrumento comum da violência).

Na América Latina, o exemplo de Direito Penal totalitário surgiu no Chile durante a ditadura iniciada nos idos de 1970. Ainda na Alemanha nazista onde a vontade do Fürer era identificada com a lei e o seu Direito era construído com base em doutrina da Escola de Kiel[25], a qual suprimiu o princípio da legalidade para dar lugar a um indeterminado Direito Penal da luta, surgido do clamor e do sentimento popular.

No caso brasileiro[26], durante a ditadura militar iniciada na década de sessenta, o Direito Penal formalmente ligado ao princípio da legalidade, mas o arbítrio atuava de forma sub-reptícia, onde houve sequestros, torturas e demais atos violentos correlatos que não estavam previstos nas normas penais, mas foram praticados sob os “olhos vendados” das autoridades judiciárias que nada podiam fazer sobre os detentores do poder político.

A ditadura comunista que existiu na Alemanha Oriental que fora exercida pelo partido socialista unificado por quarenta anos, o Direito Penal foi usado como meio de imposição da ideologia comunista ou com meio de assegurar a vigência.

Na Alemanha Oriental o crime é relacionado com uma série de uma luta de classes, segundo a mudança de produção nas distintas épocas da evolução histórica. Se o comunismo encerra a luta de classes e as desigualdades econômicas, ele extermina da sociedade o fenômeno “crime”.

A crença que se pode fazer desaparecer o delito modificando-se os pressupostos econômicos é uma das grandes utopias que a humanidade criou para enganar o investigador sério.

Desvincular o crime da essência humana é ir de encontro à natureza e do próprio Direito Penal que está substancialmente vinculado ao homem; basta avaliar os institutos penais: o que é dolo[27] senão a vontade? O que é a consciência de antijuridicidade senão a percepção?

O Direito Penal, portanto, busca o âmago da alma humana. Por isso, o Direito Penal é o ramo jurídico mais próximo da Filosofia, pois ambos buscam a compreensão dos fatos do espírito.

Já o princípio da legalidade no Estado de Direito definido por Nelson Saldanha como aquele em que o limite e o fundamento da ação estatal se encontram na ordem jurídica e essencialmente na base desta, a Constituição.

A acepção do Estado do Direito surge com as ideias do Iluminismo que apregoava um modelo estatal diferente do Estado absoluto, ou seja, o Estado liberal. Ora o Estado intervencionista independentemente de ser capitalista ou socialista se utiliza de ações, por exemplo, regular mercados e controlar a vida social.

Santiago Puig fez interessante observação sobre o Direito Penal do Estado Moderno, apregoando que o Direito Penal é uma verdade um Direito Constitucional aplicado, para o referido autor existe o Estado Social e Democrático de Direito.

No Estado teocrático a pena representava o castigo divino, e no Estado Absolutista, como instrumento de subjugar os súditos. Somente com o advento do Estado de Direito é que o poder penal foi veramente limitado por princípios abstratos e ideais.

Somente no Estado Social e Democrático de Direito que temos modelo estatal que supera o Estado Liberal e o Estado Social. Pela fórmula, o Estado Social e Democrático de Direito, submete-se a intervenção do Estado aos limites sociais e materiais do Estado de Direito.

A Constituição Federal brasileira de 1988 já em seu primeiro artigo define o Brasil como Estado Democrático de Direito sendo efetivamente um Estado Social conforme prevê os arts. 174 e 175 que expressam a intervenção estatal em diversas esferas mas dentro dos limites fixados no Direito.

Enfim, o princípio da legalidade constitui um indissociável limite do Direito Penal peculiar do Estado Social, Democrático de Direito, posto que preserve a liberdade e a dignidade do homem e assegure que tais valores não sejam violados ou vilipendiados arbitrariamente pelo jus puniendi do Estado[28].

Concluímos que o Direito Penal[29] deve servir ao homem e a seu maior significado político em face do poder estatal principalmente pela prioritária tutela dada a dignidade humana que é garantia fundamental repetidamente reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal.


Referências:

BECCARIA, Cesare- Dos delitos e das penas- editora Rideel, 1ª edição São Paulo, 2003.

BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal. Ffundamentos para um Sistema Penal Democrático. Rio de Janeiro: Lúmen Juris Editora, 2003.

BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 2.ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão, causas e alternativas. 2.ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. 7. ed., v. 1.São Paulo: Saraiva, 2004..

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Notas

[1] Francesco Carnelutti (1879-1965) foi um dos mais eminentes advogados e juristas italianos sendo o principal inspirador do Código de Processo Civil italiano. Seus estudos abrangeram variadas áreas do saber jurídico. Foi também o criador a teoria da lide como centro do sistema processual, proposta metodológica que deixa em plano secundário o estudo da ação e de suas condições que ocupam protagonismo nos institutos processuais. O referido doutrinador italiano chegou a renunciar o conceito de interesse de agir como condição da ação. Afirmou que a pena não é apenas uma punição ao criminoso, também uma forma de aviso de aviso para aqueles que tenham alguma pretensão criminosa. Carnelutti diverge dos fins buscados pela aplicação da pena, afirmando que o condenado acaba sendo punido como forma de exemplificação para os demais. Constata-se que Carnelutti não aderiu às três teorias sobre a pena, defendendo a tese de que mesmo estando preso recuperado, este, ainda teria que cumprir o restante de sua pena, como meio de exemplificação para as demais pessoas, desvirtuando desta forma tanto a teoria absoluta como a teoria relativa da pena.

[2] O princípio da legalidade é o mais relevante instrumento constitucional de proteção individual no Estado Democrático de Direito, que teve origem no fim do século XVIII e cujo significado político se traduz no paradoxo entre regra/exceção que instaura. Por meio deste, ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. São corolários deste princípio: Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta, significa a proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pelo direito consuetudinário (ou costumeiro); também significa que há proibição da fundamentação ou do agravamento da punibilidade pela analogia principalmente a analogia in malam partem; também significa a proibição da edição de leis penais indeterminadas ou do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos, vazios, imprecisos ou dúbios. Tal princípio é previsto no art. 1º do Código Penal brasileiro. E, tal princípio tem força constitucional conforme os termos do art. 5º, XXXIX que aduz "não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal". Enfim, refere-se a real limitação ao poder estatal de interferir na esfera das liberdades individuais. Também rege a medida de segurança, sendo portanto um regulador dos direitos e garantias individuais constitucionalmente asseguradas.

[3] Segundo Listz o fim da pena conduz a premissa necessária de sua utilização, e também ao conteúdo e extensão da razão em função da espécie de pena. In litteris: "(...) A potestade do Estado empunhou a espada da Justiça para tutelado ordenamento jurídico contra o celebrado que se rebela contra nós".

[4] José Ortega y Gasset (1883-1955) foi filósofo espanhol sendo também ativista política e jornalista. Sua famosa frase: "Debaixo de toda vida contemporânea se encontra latente uma injustiça". No Brasil existem importantes pesquisadores que se destacaram em estudar Ortega y Gasset como o jornalista Gilberto de Mello Kujawski, o filósofo José Maurício de Carvalho e Danilo Dornas que encontraram no raciovitalismo orteguiano um conjunto radical para os desafios brasileiros.

[5] Em recente artigo jurídico Luiz Flavio Gomes sob o título "Organização criminosa: um ou dois conceitos?" apontou que em 19/9/2013 entrou em vigor a Lei 12.850/13 que se refere ao crime organizado, que consiste em integrar, promover, participar ou financiar uma organização criminosa. A primeira polêmica é se esta lei revogou ou não o conceito anteriormente dado pela Lei 12.694/12. A primeira definição de organização criminosa veio com a Lei 12.694/12 em seu art. 2º("considera-se organização criminosa a associação de três ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual e superior a quatro anos ou que sejam de caráter transnacional") e que criou a possibilidade de julgamento colegiado em primeiro grau, nos crimes praticados por organizações criminosas. As principais diferenças entre os dois conceitos de organização criminosa são três, a saber: a Lei 12.694/12 cogita em associação de três ou mais pessoas, enquanto que a Lei 12.850/13 exige quatro ou mais; a primeira lei é aplicável aos crimes com pena máxima igual ou superior a quatro anos; a segunda lei é aplicável para infrações penais superiores a quatro anos. Observe-se que a primeira lei cogita em crimes o que significa não incluir as contravenções penais. Mas, tais diferenças perderam o sentido na medida em que o conceito dado pela lei 12.850/13 revogou o conceito fornecido pela Lei 12.694/12. (In GOMES, Luiz Flávio. Organização criminosa: um ou dois conceitos?; Disponível em http://wikijuris.com.br/atividade.php?id=82434556679, acesso em 13/09/2013).

[6] A pena é a mais importante das consequências jurídicas do delito e a passagem da concepção retributiva da pena e uma formulação preventiva traz pelo menos a três mais importantes teorias: as absolutas, as relativas( prevenção geral e prevenção especial) e as teorias unificadoras ou ecléticas. E, também as modernas teorias da pena, como as da prevenção geral positiva (limitadora e fundamentadora).

[7] O Código Penal brasileiro adotou o sistema trifásico para dosimetria da pena privativa de liberdade, através do qual o juiz deverá passar por três etapas até chegar ao final valor concreto da pena a ser aplicada. A primeira fase refere-se às circunstâncias judicias (art.59 CP) para se fixar a chamada pena vase, entre o mínimo e o máximo previstos abstratamente na lei penal, sendo que tais circunstâncias são: a culpabilidade, os antecedentes, conduta social, personalidade, motivos, consequências e circunstâncias do crime. Na segunda fase serão consideradas as circunstâncias agravantes (arts. 61 e 62 do CP) e atenuantes (arts.65 e 66 do CP). Na derradeira fase, o juiz irá usar as causas de aumento e de diminuição de pena que estão presentes na parte geral e especial do Código Penal e que tem como principal característica possuírem certos valores determinados para majorar ou minorar a pena. Nesta etapa pelo fato da própria lei estabelecer os valores de aumento e diminuição nada impede que a pena ultrapasse aos limites mínimos e máximos previstos abstratamente para o tipo penal. As chamadas qualificadoras estão presentes na parte especial do CP, e delimitam novos valores mínimos e máximos de pena.

[8] No momento, trabalhos como o de Zaffaroni e Cezar Bitencourt evidenciam os atuais problemas das respostas penais, e a verdadeira crise que vivem. O que força a necessária revisão do perfil das respostas penais, a começar pela análise de seus reais objetivos.

[9] O deus Odin da mitologia nórdica, na língua germânica Wotan e no primitivo alemão sob a forma de Wodanaz, no gótico Vôdans, Wuotan entre os lombardos e na região da Vestefália aparece como Guodan ou Gudan. Era o deus principal da mitologia nórdica. Seu papel é bem complexo, pois era o deus da sabedoria, da guerra e da morte, e em menor escala também da magia, poesia, profecia e da caça.

Como deus da guerra era encarregado de enviar suas filhas, as valquírias para recolher os corpos dos heróis mortos em combate. No fim dos tempos Odin acredita-se que conduzirá os homens e os deuses contra as forças do caos na batalha do fim do mundo, o Ragnarök. Nesta batalha o deus será morto e devorado pelo feroz lobo Fenrir, que será imediatamente morto por Vidar, que, com um pé sobre sua garganta, lhe arrancará a mandíbula. A quarta-feira era o dia dedicado a esse deus, e tomou as denominações no inglês, wednesday, no holandês, woensdag, no sueco e dinamarquês, onsdag e no dialeto da Vestefália, godenstag ou gunstag.

[10] O Corpus Juris Civilis era composto de quatro partes: Digesto, Código, Institutas e Novelas. A noção de crime e de pena na sociedade romana nasce com a formação, mas elas não se derivam de normas penais. O antigo Direito Penal romano surge através da disciplina doméstica, da disciplina militar e de ação direta da polícia da época; somente quando o Estado, através de suas normas escritas e consuetudinárias, interveio para limitar a discricionariedade das pessoas revestidas do poder de punir, surgiu o Direito Penal público. A verdade é que a distinção entre os Direitos Penais público e privado determinou a distinção entre delicta e crimina. No período clássico, o primeiro era punido com pena privada enquanto que o segundo era punido com pena pública.

[11] O homem medieval era brutalizado e a reinava baixa expectativa de vida que era em torno de vinte e cinco anos, e os que chegavam aos quarenta anos já eram considerados velhos. A metade das crianças eram natimortas. Na Idade Média, o procedimento investigativo e processual era presidido pelo senhor feudal, de forma inquisitória, pública, oral e formalista. A defesa devia ser feita de forma total e não havia o direito ao silêncio. Aliás, silenciar-se equivalia a confissão. Se não conseguisse, através de testemunhas e juramentos a convicção do juiz (que era o senhor feudal) tentar-se-ia o duelo, deixando o julgamento de quem sobreviveria ao critério divino através das ordálias que era um costume de origem bárbara que consistiam em provas de fogo ou de água. A Inglaterra representou uma exceção por não sofrer influência do Direito Romano, havia tribunal de júri e o procedimento era público. Não havia pena de prisão, e o aprisionamento ocorria de forma preventiva, para assegurar a condenação do acusado, as penas eram as de banimento, morte civil, decapitação, morte na fogueira, amputação de membros e etc.

[12] O Sismo de 1755 ocorreu no dia primeiro de novembro de 1755, resultando na destruição quase completa de Lisboa, e atingindo grande parte do litoral de Algarve. O sismo seguido de maremoto segundo consta atingiu a altura de vinte metros e provocou múltiplos incêndios, marcando o que alguns historiadores chamaram de pré-história da Europa Moderna. Acredita-se que atingira a magnitude nove na escala Richter. Teve enorme impacto político, social e econômico na sociedade lusitana do século XVIII, dando origem aos primeiros estudos científicos do sismo, marcando assim o nascimento da moderna sismologia. Tal fato fora largamente debatido pelos iluministas, tal como Voltaire, inspirando devolvimentos significativos no domínio da teodiceia e da filosofia do sublime. Lisboa não fora a única cidade atingida pela catástrofe, também o sul de Portugal fora afetado, principalmente o Algarve, destruindo fortalezas, costeiras e habitações. A população era na época de 275 mil habitantes em Lisboa, e acredita-se que 90 mil morreram, vitimadas diretamente pela catástrofe. Está entre os dez maiores terremotos sofridos pelo planeta.

[13] Na China, as penas variavam da pena de morte para o homicídio e da castração para o estupro até uma marca na testa para os delitos menores. Penas como espancamento não eram estranhas. Na Índia, as penas de multa eram destinadas às pessoas hierarquicamente superiores, que ficaram eximidas das penas corporais. No Egito, a revelação de segredos era punida com a amputação da língua.

[14] A evolução do direito penal primitivo prevê a fase da vingança privada, a fase da composição, a fase da vingança divina e a fase da vingança pública (tendo sido a de maior organização social e visando dar maior estabilidade ao Estado, preocupou-se em dar segurança ao soberano pela aplicação da pena, ainda que, fosse severa e cruel.  Libertou-se a pena de seu caráter nitidamente religioso, transformando-se a responsabilidade do grupo em individual, recaindo sobre o autor do fato criminoso, e impôs gradativa humanização dos costumes penais.

[15] Na obra "Vigiar e Punir - O nascimento da prisão" mostrou que a justiça deixou de aplicar torturas mortais e passou a buscar a correção dos criminosos. Começa por uma narrativa eletrizante capaz de atingir os mais sensíveis. O ano é 1757 e a ruas do centro de Paris se enchem com os gritos de "Meu Deus, tende piedade de mim! Jesus, socorrei-me!" de Robert-François Damiens, condenado por parricídio. Na sentença havia a determinação de ter a carne dos mamilos, dos braços, das coxas e da barriga das pernas arrancada, a mão direita (segurando a face que serviu como arma do crime) queimada com fogo de enxofre; as feridas cobertas com chumbo derretido, óleo fervente, piche, cera quente e enxofre; o corpo puxado e desmembrado por quatro cavalos, o cadáver fora reduzido a cinzas e estas espalhadas aos quatro ventos. No século seguinte ao suplício, vemos o regulamento da Casa dos Jovens Detentos de Paris, na qual a única tortura para ser a chatice: tantos minutos para se vestir, outros tantos para descansar, horários rígidos de trabalho e de refeições. E questionou Foucault: O que levou o sistema jurídico do Ocidente, em especial o da França, a deixar de lado a tortura e as execuções públicas para preferir as prisões e supostamente corrigir os criminosos? A resposta fornecida pela referida obra é complexa, mas pode-se resumir que esta dependeu de todas as principais transformações da sociedade francesa ocorridas entre os séculos 17 e 19. O poder absoluto dos reis acabou dando lugar a uma república moderna, assim como ocorreu em outros lugares do mundo, os quais aliás, seguiram o exemplo francês. Paradoxalmente, o poder do governo para controlar a vida dos cidadãos não necessariamente ficou menor, apenas mudou de forma, e o nascimento da prisão é a parte mais relevante dessa metamorfose. No fundo, as execuções se transformavam num grande teatro onde o criminoso caminhava pela cidade apregoando seu delito, e realizando confissão pública diante de certa igreja. E ,não raro, eram mortos no mesmo local, e com as mesmas armas de seu crime. Restava assim instituída a punição física perante o povo.

[16] Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria (1738-1794) foi jurista, filósofo, economista e literato italiano. Suas obras são fundamentais no estudo do Direito Penal. Foi a primeira voz a levantar-se contra a tradição jurídica e a legislação penal de seu tempo, denunciando os julgamentos secretos, as torturas empregadas como meio de se obter a prova do crime, a prática de confiscar bens do condenado. Uma de suas teses é a igualdade perante a lei dos criminosos que cometem o mesmo delito.

[17] Em 1764 Beccaria( inspirado em Rousseau e Montesquieu) publicou a obra “Dos delitos e das Penas” que propõe um novo fundamento à Justiça Penal.

[18] O princípio da legalidade é de abrangência ampla. Por este fica certo que qualquer comando jurídico impondo comportamentos forçados, há de provir de uma das espécies normativas devidamente elaboradas conforme as regras de processo legislativo constitucional.A legalidade tanto para o particular, quanto para a administração pública, é de observância obrigatória segundo os ditames constitucionais, pois, se praticado um ato relevante ao ordenamento jurídico sem levar-se em conta o princípio da legalidade, este ato esta passível de anulação, uma vez que será inválido.

[19] Art. 8.º A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada.

[20] Ludwig Andreas Feuerbach (1804-1872) foi filósofo alemão e reconhecido pela teologia humanista e pela influência que o seu pensamento exerce sobre o Karl Marx.

[21] No Brasil quase todas as Constituições exceto a de 1937 adotaram o princípio da legalidade. A atual Constituição brasileira repete o texto das de 1891, 1934 1946 e 1967, Em resumo significa a submissão e o respeito à lei, e que esta deva provir de uma das espécies normativas emanadas pelos órgãos de representação popular, ou seja, o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas e, etc. Sempre, no entanto, atendendo e observando os limites e requisitos impostos pela legislação vigente.

[22] O Direito Penal do Inimigo foi apresentado pela primeira vez pelo Günther Jakobs numa palestra em Frankfurt em 1985. Tendo assumido uma posição crítica acerca de tal teoria, alertando dos riscos da adoção da mesma. Já, em 1999, o doutrinador já tratou a mesma teoria de forma mais flexível no sentido de aceitá-la. Essa teoria surge num contexto de guerra entre nações civilizadas e as nações terroristas.

[23] O termo usado frequentemente na literatura islâmica para se referir aos limites do comportamento humano aceitável e as punições para os crimes mais graves. Refere-se à classe de castigos que estão fixados para certos crimes que são considerados "direitos de Deus". E incluem o roubo, fornicação, o adultério, o consumo de álcool ou substâncias tóxicas e apostasia.

[24] A pena de morte no Brasil foi oficialmente abolida no Código Penal brasileiro de 1890, com supedâneo na Constituição Federal de 1891.

[25] A Escola de Kiel era baseada na ideologia nazista e trabalhava com o direito penal od autor, sendo o delinqüente um inimigo a ser afastado e possivelmente eliminado., Tratava-se de um direito penal onde as garantias do cidadão restavam muito vulneráveis em prol da soberania do Estado.

[26] A pena de reclusão é cominada em no máximo trinta anos para cerca de cento e trinta tipos penais ao passo que a pena de detenção é cominada em no máximo três anos para cerca de cento e setenta tipos penais. Reservou-se a prisão simples para as contravenções penais, mas recentemente a maioria das contravenções penais se transformaram em crimes (Lei 12.683/2012). O Código Penal brasileiro de 1940 trouxe ainda as chamadas medidas de segurança para inimputáveis ou semi-imputáveis e consistem em medidas detentivas, quais sejam, a internação em manicômio judiciário, em caso de custódia e tratamento, em colônia agrícola ou instituto de reeducação ou de ensino profissional. E, as mediadas não detentivas que seriam a liberdade vigiada, a proibição de frequentar certos locais e o exílio local.

[27]  Lembrando que dolo eventual ou indireto ocorre quando o agente, mesmo sem querer efetivamente o resultado, assume o risco de produzi-lo. É verdade que a vontade do agente não resta dirigida para a obtenção do resultado, mas assume assim mesmo o risco de causá-lo. Diferentemente do conceito de culpa consciente que ocorre quando o agente prevê o resultado, mas espera, sinceramente, que este não ocorra. Há no agente a representação da possibilidade do resultado, mas este a afasta por entender que o evitará e que sua habilidade impedirá o evento danoso e lesivo que está no âmbito de sua previsão. A culta consciente muito se aproxima do dolo eventual porém, com este não se confunde. Pois na culpa consciente, o agente, embora prevendo o resultado, não o aceita como possível. Enquanto que no dolo eventual, o agente prevê o resultado não se importando o que venha realmente ocorrer.

[28] Há de se reconhecer e aplicar igualmente a teoria do adimplemento substancial na esfera criminal que igualmente partindo da Constituição Federal, e mais propriamente dos princípios da proporcionalidade-razoabilidade, proibição do excesso, garantismo, estando em perfeita sintonia com os princípios e valores que norteiam o sistema jurídico contemporâneo, mecanismo de materialização da justiça criminal.

[29] A evolução foi conclusiva pois partiu da pena de flagelo a alternativa e mesmo a pena de morte inicialmente prevista em nosso primeiro diploma penal, comportava várias modalidades como a forca, a morte pelo fogo além de aplicação de torturas (conforme o previsto nas Ordenações Filipenas e ratifacadas em 1643 por Dom João IV e em 1823 por D. Pedro I). Somente em 1830 foi sancionado o Código Penal Criminal brasileiro que representou o primeiro código autônomo da América Latina, o qual criou o sistema de dias-multa e previu o princípio da legalidade.


Autor

  • Gisele Leite

    Professora universitária por mais de duas décadas. Mestre em Direito, mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Articulista das revistas e sites jurídicos renomados. Consultora do IPAE.<br>

    Gisele Leite. Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores – POA -RS.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Gisele. Aspectos da evolução doutrinária do Direito Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3806, 2 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25651. Acesso em: 28 mar. 2024.