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A eficácia das decisões dos Tribunais de Contas

A eficácia das decisões dos Tribunais de Contas

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Pelo princípio da inafastabilidade da jurisdição, apesar da polêmica doutrinária, não se pode entender pelo impedimento do Judiciário analisar as decisões dos tribunais de contas.

Este artigo analisa a eficácia das decisões dos Tribunais de Contas. Trata das duas correntes sobre a possibilidade de revisão das decisões proferidas pelas Cortes de Contas pelo Poder Judiciário. Ademais, analisa também as espécies de decisão existentes no ordenamento jurídico e os institutos da preclusão e da coisa julgada.

Para Di Pietro (1996, p. 36) as decisões dos Tribunais de Contas não fazem coisa julgada ou coisa julgada material, no entanto, ainda assim, o Poder Judiciário teria permissão irrestrita para reanalisar tudo que foi defendido e apontado pela Corte de Contas?


1 Decisões em Espécie

Para se analisar tais correntes forçoso se faz a análise das decisões em espécie das Cortes de Contas, sendo que estas podem ser divididas em quatro categorias, de acordo com Rodolfo Camargo Mancuso (1997, 74/95): constitutivas, declaratórias, mandamentais e condenatórias.

As decisões de natureza constitutiva são aquelas em que ocorrem alterações na situação fática e de direito, ou seja, alteram o status quo ante. Essa alteração tende a criar uma situação fática/jurídica até então inexistente, ou mesmo modificar aquela pré-existente.

Um exemplo prático poderia ser a hipótese em que o Tribunal de Contas recebe um parecer favorável acerca das contas do governo elaborado pelo órgão de controle interno do governo, no entanto, ao serem analisadas pela Corte de Contas, o parecer pode alterar seu status quo ante, não acolhendo o parecer, encaminhando, por fim, a sua decisão, com o seu entendimento contrário ao Legislativo.

Nesse tipo de decisão o que ocorre é a criação de um contexto jurídico que pode, eventualmente, embasar a decisão do Poder Legislativo acerca da punição a ser dada ao Chefe do Poder Executivo.

Já as decisões de natureza declaratória são aquelas em que ocorre a deliberação por parte da Corte de Contas acerca dos atos administrativos. O Tribunal, ao analisar os atos, pode entender de três formas distintas: que foram seguidas todas as determinações legais pelo agente público, entendendo assim como legal; que houveram vícios insanáveis no ato, rejeitando-se os determinados atos; ou, ainda, sendo esses vícios sanáveis, a Corte poderá aplicar a teoria da convalidação conservando-o, ou seja, conforme doutrina Lucia Valle Figueiredo (2008, p. 146), pode: “torna-lo válido, se subsistentes as condições para emaná-lo de maneira mais conforme ao ordenamento”.

Essas decisões, diferentemente das constitutivas, não tem a função de modificar a situação jurídico-fática, tem apenas a função de analisar os fatos afim de apurar se houveram vícios para reconhece-los, se for o caso, sana-los, ou para atestar a legalidade do ato. Isso acontece uma vez que o objeto dessas decisões são os atos administrativos que já produziram todos os efeitos na esfera administrativa, devendo, nesse momento, apenas serem aprovados para continuarem a produzir efeitos.

As decisões mandamentais, por sua vez, da mesma forma que as decisões judiciais mandamentais, contam com alto grau de imposição. A título ilustrativo, cita-se o disposto no art. 102 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 102. Os legitimados a agir na forma deste código poderão propor ação visando compelir o Poder Público competente a proibir, em todo o território nacional, a produção, divulgação distribuição ou venda, ou a determinar a alteração na composição, estrutura, fórmula ou acondicionamento de produto, cujo uso ou consumo regular se revele nocivo ou perigoso à saúde pública e à incolumidade pessoal.

Acerca do grau de imposição gerado por tal decisão, pode-se citar da Watanabe (1993, p. 565/566):

O provimento final, se procedente a ação, deverá se constituir numa ordem ou num mandamento, dirigido à autoridade responsável pelo Poder Público competente para adotar as providências preventivas mencionadas. O Magistrado deverá fixar um prazo razoável, segundo a peculiaridade de cada caso, para o exato cumprimento da ordem pela autoridade competente. Seu descumprimento fará, antes de qualquer coisa, configurar o crime de desobediência, previsto no art. 330 do Código Penal.

Tem-se que são exemplos de decisões mandamentais dos Tribunais de Contas aquelas que ordenam a cessação do acúmulo ilícito de cargos públicos, bem como as que instalam auditorias em órgãos públicos, entre outras.

Por fim, as decisões condenatóriassão, diferentemente das outras analisadas, as únicas capazes de modificar a situação jurídica apresentada. Todavia, não possuem a capacidade para auto executar-se ou seja, necessitam de execução judicial, uma vez que inexiste regramento específico para execução de decisões condenatórias proferidas pelo Tribunal de Contas.

Dito isto, imperioso destacar que as decisões de natureza condenatórias são as que, via de regra, são passíveis de revisibilidade por parte do Judiciário, uma vez que são as únicas onde ocorre o julgamentopropriamente dito, conforme tratou a Constituição Federal de 1988.


2. Preclusão e Coisa Julgada

Passadas as quatro categorias em que podem ser divididas as decisões, faz-se necessária a análise dos institutos da preclusão e da coisa julgada. Para isso, importante relembrar o conceito de jurisdição tratado na seção 2 deste trabalho, que, em apertada síntese, pode-se entender como sendo a função do Estado que visa solucionar conflitos mediante a aplicação do direito a casos concretos, mantendo, dessa forma, a pacificação social.

A coisa julgada está vinculada particularmente às sentenças de mérito que não podem mais ser examinadas, sendo que a preclusão vincula-se, além das sentenças onde não existe mais possibilidade de exame, as decisões interlocutórias proferidas no transcorrer do processo.

Segundo Fernando Rubin (2012, p. 36):

De fato, a preclusão apresenta-se no processo, à medida que, no curso deste, determinadas questões são decididas e eliminadas; apresentando-se também no momento final, quando é pressuposto necessário da coisa julgada substancial.

A coisa julgada pode ser material (art. 467 CPC) que é aquela que ocorre nas sentenças definitivas, onde fica impedida a rediscussão da questão de mérito em outro processo, tornando esta sentença imutável, bem como formal, que trata da impossibilidade de ser rediscutida a decisão dentro do mesmo processo, ou seja, é a aquela que decorre da preclusão dos prazos recursais. Para a existência da primeira, pressupõe-se a ocorrência da segunda.

Ocorre que, para diversos doutrinadores como Pontes de Miranda, Ovídio Batista e Humberto Theodoro Júnior, “coisa julgada formal é o fenômeno da preclusão, com a peculiaridade de estar relacionado somente ao ato que extingue o processo”. (ARAGÃO, 1992, p. 219).

Logo, ao ser entendida a coisa julgada formal como sendo inútil, resta melhor aplicada a figura da preclusão, que é mais abrangente. Nessa seara, discorre Theodoro Júnior (2000, p. 22):

Ora, se o que fecha o processo é a impossibilidade de recorrer (preclusão da faculdade recursal), onde ficaria a coisa julgada formal, senão no lugar do efeito imediato da própria extinção do direito de recorrer? Não há como separar as duas noções, de maneira que a coisa julgada formal não é outra coisa que a última preclusão ocorrida dentro do processo. Não há utilidade prática, nem teórica, em distinguir a coisa julgada formal da preclusão (...). A preclusão é um fenômeno muito mais amplo, pois abraça todas as faculdades processuais e quase todas as questões decididas antes da sentença.

Nesse contexto, entende-se que da sentença de mérito da qual não cabe mais recurso, decorre a coisa julgada materiale a preclusão, sendo que em sentenças terminativas e decisões interlocutórias, quando não houver mais possibilidade de interposição de recursos, caberá apenas o instituto da preclusão.

Quanto aos Tribunais de Contas, o instituto da coisa julga material não se aplica da mesma forma que nos órgãos do Poder Judiciário. A coisa julgada decorre de ato jurisdicional, ocorre que, em virtude da pluralidade de entendimentos acerca das Cortes de Contas terem ou não funções jurisdicionais, a princípio suas decisões não poderiam produzir coisa julgada.

Da decisão condenatória dos Tribunais de contas decorre a formação do instituto da preclusão administrativa, que é uma forma de restrição ao exercício processual concedido ao sujeito no transcorrer do processo, em razão de determinados acontecimentos no transcorrer do processo administrativo, ou seja, uma vez consumadas, as etapas não poderão ser reanalisadas.

A preclusão opera em três diferentes formas: lógica, temporal e consumativa.

Ocorre de forma lógica nos casos em que determinado ato processual é incompatível com os demais.

Já a preclusão temporal acontece quando o sujeito deixa de praticar determinado ato processual no tempo adequado, perdendo assim a “oportunidade” de fazê-lo posteriormente, como por exemplo, a interposição de um recurso.

Por sua vez, a preclusão consumativa ocorre quando o sujeito faz uso de determinado direito, não podendo praticá-lo novamente. Um exemplo é a realização de proposta em licitação. Uma vez realizada, se torna, desde que cumpridos todos os requisitos em lei, se torna válida até que expire o prazo de validade.


3. Correntes

Conforme dito no início do presente capítulo, existem duas correntes preponderantes no Brasil acerca do assunto: uma diz que o Poder Judiciário possui legitimidade para revisar as decisões das Cortes de Contas limitadas apenas aos casos em que tenham acontecido ilegalidades, ficando, assim, vedado a análise do mérito. A outra, por sua vez, afirma inexistir limitação, podendo o Poder Judiciário rever quaisquer decisões, independente de existirem ilegalidades ou não.

3.1 A corrente contrária a atuação ilimitada do Poder Judiciário

É defendida há bastante tempo no direito brasileiro, dentre os juristas que apoiam a força vinculante das decisões das Cortes de Contas está Pontes de Miranda (1953, p. 336), que preponderava:

Hoje, e desde a 1934, a função de julgar as contar esta, claríssima, no texto constitucional.Não havemos de interpretar que o Tribunal de Contas julgue, e outro juiz re-julguedepois. Tratar-se-ia de absurdo bis in idem. Ou o Tribunal de Contas julga ou não julga.O art. 114 da Constituição de 1937 também dizia, insofismavelmente: ´julgar das contasdos responsáveis por dinheiros e bens públicos. A de 1946 estendeu a competência àscontas dos administradores das entidades autárquicas e atribui-lhe julgar da legalidadedos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões. Tal jurisdição exclui aintromissão de qualquer Juiz na apreciação da situação em que se achem,exhypothesi,os responsáveis para com a Fazenda Pública

Conforme visto no capítulo anterior, dentre as atribuições dadas aos Tribunais de Contas, consta do art. 71, inciso II da CF a competência de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis pode dinheiros, bens e valores públicos da Administração Direta e Indireta.

A palavra julgar utilizada pelo legislador tem feição muito forte, mas a sua utilização se deu justamente para que fosse utilizada literalmente, dando aos Tribunais de Contas a competência instituída no art. 71 da Carta Magna. Isso não quer dizer, no entanto, que exista a figura do contencioso administrativo no Brasil, tão-menos o desrespeito ao princípio da separação de poderes, o que se infere da utilização do referido termo é que, nos dias atuais, existem oportunidades onde o legislador constitucional confere competência para julgamento à órgãos alheios ao Poder Judiciário. Veja-se da Constituição Federal:

Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

IX – julgar anualmente as contas prestadas pelo Presidente da República e apreciar os relatórios sobre a execução dos planos de governo;

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I – processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles;

II – processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade;

Conforme se denota do extraído da atual Constituição Federal, não é apenas ao Tribunal de Contas que se atribui a competência de julgar restringindo o poder jurisdicional atribuído, até então, apenas ao Poder Judiciário. No caso do julgamento pelo Senado Federal e Congresso Nacional, existe a discricionariedade do Poder Judiciário para apreciar a lesão ou ameaça a direito, conforme disposto no art. 5º, XXXV, da Carta Magna.

Acerca das decisões dos Tribunais de Contas, na mesma seara, analisa Roberto Mateus (2009, p. 37/39), que:

[...] o Poder Judiciário não pode reavaliar o mérito de matéria de competência exclusiva dos Tribunais de Contas, alterando, por exemplo, o juízo emitido sobre a gestão orçamentário-financeira do Administrador Público. Não pode o juiz dizer se as contas são regulares ou irregulares, ou substituir oparecer emitido, agora para dizê-lo favorável ou desfavorável à sua aprovação pela Câmara. O foco da reavaliação judicial somente seria afeto a eventuais falhas de cunho formal na condução do processo, pela inobservância ao devido processo legal e aos princípios processuais a ele inerentes, tais como ampla defesa e contraditório.

Na outra ponta desse entendimento, encontram-se outros juristas, que entendem que mesmo se na competência atribuída às Cortes de Contas pela CF não estivesse expressamente escrito o termo julgar, o Poder Judiciário ainda assim não estaria instruído a revisar matéria analisada pelo Tribunal de Contas, uma vez que este egrégio Órgão estaria analisando o mérito administrativo. Assim entende Aguiar Filho (2009, p. 21/22):

[...] julgar é apreciar mérito e, portanto, mesmo que a Constituição não utilizasse expressamente o termo julgar, ainda assim uma decisão de Corte seria impenetrável para o Poder Judiciário. Se a maculasse manifesta ilegalidade, como qualquer outra sentença, poderia até ser cassada por meio de mandado de segurança, mas nunca, jamais, poderia se permitir ao Magistrado substituir-se nesse julgamento de mérito. O juiz também deve conter sua atuação nos limites da lei e foi a Lei Maior que deu a competência para julgar as contas a uma Corte, devidamente instrumentalizada e tecnicamente especializada.

Portanto, mesmo que o julgamento das Cortes de Contas não fosse um ato jurisdicional típico, mas apenas um ato administrativo, seu mérito jamais poderia ser revisto pelo Poder Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal vinha decidindo dessa forma por algum tempo, conforme se colaciona da Relatoria do Ministro Henrique D’Avila, do Mandado de Segurança (MS) nº 7.280:

Tribunal de Contas- apuração do alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos- ato insuscetível de revisão perante a Justiça comum- Mandado de Segurança não reconhecido. Ao apurar o alcance dos responsáveis pelos dinheiros públicos, o Tribunal de Contas pratica ato insuscetível de revisão na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta.

Bem como o Superior Tribunal de Justiça, conforme denota-se do acórdão de Relatoria do Ministro Humberto Gomes de Barro, da 1ª Turma, Recurso Especial 8970/SP, Diário da Justiça, 09.03.93, p. 2533:

É logicamente impossível desconstituir ato administrativo aprovado pelo Tribunal de Contas, sem rescindir a decisão do colegiado que o aprovou; e para rescindi-la é necessário que nela se constatem irregularidades formais ou ilegalidades manifestas.

Esse entendimento continua sendo tomado em alguns Tribunais, como na 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, da Relatoria do Des. Carlos Eduardo Thompson FloresLenz, na AG 19240 SC:

Ademais, a Eg. Corte de Contas, acolhendo o pronunciamento do Parquet junto àquele Tribunal, afastou o caráter ilícito de grande parte dos fatos noticiados na peça vestibular, o que, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, impede o seu reexame na via judicial, a não ser quanto ao seu aspecto formal ou tisna de ilegalidade manifesta.

Apesar disso, a jurisprudência não é uníssona nesse ponto, uma vez que existem os adeptos da corrente que defende o poder de revisão das decisões das Cortes de Contas por parte do Poder Judiciário.

3.2. Corrente à favor da atuação irrestrita do Poder Judiciário

Diversos doutrinadores são a favor da atuação irrestrita do Poder Judiciário em revisar as decisões das Cortes de Contas, mesmo que não estejam eivadas de irregularidades formais ou mesmo de ilegalidades, simplesmente pelo fato da jurisdição ser una no Brasil. Segundo esses doutrinadores, o fato da tutela jurisdicional estar investida unicamente ao Poder Judiciário, lhe legitima a revisar irrestritamente o mérito das decisões dos Tribunais de Contas.

Ocorre que, segundo Alexandre Pacheco Lopes Filho (2012):

[...] a jurisprudência moderna, com base no princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, vem intervindo cada vez mais nas decisões das Cortes de Contas. É comum encontrar julgados que analisam o mérito das decisões em tela mesmo em casos em que a ilegalidade não é manifesta, ou seja, não há um vício claro e a questão é controversa.

A Primeira Turma do TRF da 5º Região proferiu acórdão[5] no qual destaca a competência do Judiciário para analisar as aludidas decisões sem fazer a ressalva de que a ilegalidade deve ser necessariamente manifesta, in litteris:

As decisões dos Tribunais de Contas podem ser objeto de controle judicial não apenas quanto à formalidade de que se revestem, mas inclusive quanto a sua legalidade, considerando-se que tais decisões não fazem coisa julgada, que é qualidade exclusiva das decisões judiciais como decorrência da unicidade de jurisdição de nosso sistema constitucional. Não há como eximir as decisões dos Tribunais de Contas da sindicabilidade judicial, quando a Constituição Federal impõe a inafastabilidade do controle judicial de qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito, como princípio.

O STF acompanha o entendimento exarado pelo TRF da 5ª Região, sendo que já decidiu em processos nos quais o objeto trata do mérito de questões analisadas pela Corte de Contas.

Dessa forma, novamente com o entendimento de Alexandre Pacheco Lopes Filho (2012):

Assim, verifica-se que o antigo entendimento do STF de que o mérito dos julgados oriundos das Cortes de Contas só poderia ser revisto pelo Judiciário em caso de manifesta ilegalidade[7] vem sendo gradualmente superado pela jurisprudência moderna. Entre as justificativas para os novos precedentes está o fato de que os órgãos de Controle Externo não produzem “coisa julgada judicial”, uma vez que os processos que tramitam nessa esfera são meramente administrativos.

Aqueles que entendem dessa forma não acolhem a justificativa dada pelos defensores da outra corrente que afirmam, conforme visto no item acima, que existem momentos em que o legislador constitucional confere tutela jurisdicional a outros órgãos que não os do Poder Judiciário, como no art. 49, IX e 52, I e II da Carta Magna.

Para os defensores desta corrente, o termo julgar encontrado no art. 71, II, da CF causa confusão, uma vez que geralmente está atrelado à função jurisdicional. No entanto, segundo José dos Santos Carvalho Filho (2010, p. 1094): “O sentido do termo é o de apreciar, examinar, analisar as contas, porque a função exercida pelo Tribunal de Contas na hipótese é de caráter eminentemente administrativo.”

Também nesse sentido, defende Cretella Junior (1986, p. 9):

O emprego do vergo julgare dos substantivos julgamento e jurisdição, em dispositivos constitucionais, induziu, primeiro, os membros do Tribunal de Contas – ministros e conselheiros – ao erro, imaginando que os vocábulos tinham sido empregados com o mesmo sentido que têm na nomenclatura técnica do direito processual.

No Brasil, emprega-se, a todo instante, o vocábulo julgamento, quando se fala julgamento de licitação. Utiliza-se também o termo jurisdição (e igualmente alçada), na seara julgar ou corrente. [...]

Pois bem, a transplantação da rigorosa terminologia processual para a acepção vulgar, normal, corrente, popular, foi a responsável pela colocação dos que pretendem que os Tribunais de Contas, assim como os Tribunais de Justiça, julgam, proferem julgamentos, exercem jurisdição, quando na realidade, as Contas exercem, tão-só, atividade administrativa de fiscalização, de apreciação de contas, de concessão de aposentadorias, reformas, pensões.

Outro defensor dessa corrente, que discorre em sua obra Princípios gerais do direito administrativo, é Bandeira de Mello (1974, p. 172):

Não se trata de rejulgamento pela Justiça Comum porque o Tribunal de Contas é órgão administrativo e não judicante, e sua denominação Tribunal e a expressão julgar ambas são equívocas. Na verdade, é um conselho de contas e não as julga, sentenciando a respeito delas, mas apurada veracidade delas para dar quitação ao interessado, em tendo-as como prestadas, ou promover a condenação criminal e civil dele, em verificando o alcance. Apura fatos. Ora, apurar fatos não é rejulgar.

Ou seja, para os defensores dessa corrente, o fato de o legislador ter incluído o verbo julgar ao determinar as atribuições das Cortes de Contas não lhe da poder judicante. Meramente caracteriza uma atividade a ser realizada sem vinculação àquela realizada pelo Poder Judiciário.

Conforme denota-se do que exararam os referidos doutrinadores, realmente não vislumbra-se a possibilidade do legislador constituinte ter criado uma forma de jurisdição especial para julgar os administradores e demais responsáveis pelos bens, dinheiros e valores públicos.

Se esse fosse o caso, o art. 71, II da CF, teria instituído competência privativa ao Tribunal de Contas no que se refere ao julgamento dos referidos responsáveis, tal qual ocorre no caso do julgamento de certos membros do Executivo e Legislativo, que são julgados pelo Legislativo Federal. Como por exemplo, no caso do Presidente da República, Ministros do Supremo Tribunal Federal, entre outros, que devem ser julgados exclusivamente pelo Senado Federal nos crimes de responsabilidade, sendo que o Judiciário não tem competência para assumir tal julgamento, conforme trata o art. 52, I e II da CF:

Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I - processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade, bem como os Ministros de Estado e os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; 

II - processar e julgar os Ministros do Supremo Tribunal Federal, os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade;

No entanto, como se viu na análise feita anteriormente, o mesmo não acontece no caso da competência atribuída ao Tribunal de Contas, uma vez que o Poder Judiciário poderá julgar os mesmos administradores públicos, irregularidades e ilegalidades já analisadas pela Corte de Contas, tendo esta exercido seu papel ou não.

Passada a apreciação acerca da utilização do verbo julgar, nos resta analisar a possibilidade de revisão irrestrita das decisões das Cortes de Contas por parte do Judiciário, pois conforme analisado no item anterior, diversos doutrinadores e jurisprudência são contrários a essa ideia, de forma que apenas a defendem nos casos em que este Poder conseguir comprovar vícios nas decisões.

Acerca do exposto, dissertou Cretella Junior (1995, p. 448) que “a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamentou o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido”.

Imperioso, porém, entender que o ato administrativo é formado por cinco elementos: Sujeito, Objeto, Forma, Motivo e Finalidade. Havendo vício em qualquer desses elementos eiva o ato administrativo de ilegalidade, portanto, suscetível de revisão pelo Judiciário.

O elemento mais importante para que se caracterize ilegal o ato administrativo é o motivo, conforme muito bem trata Bandeira de Mello (1974, p. 181/182):

Motivo é o pressuposto de fato que autoriza ou exige a prática do ato. É, pois, a situação do mundo empírico que deve ser tomada em conta para a prática do ato...

É evidente que será viciado toda vez que o motivo de fato for descoincidente com o motivo legal.

Para fins de análise da legalidade do ato, é necessário, por ocasião do exame dos fatos, verificar:

a) a materialidade do ato, isto é, verificar se realmente ocorreu o motivo em função do qual foi praticado o ato.

b) a correspondência do motivo existente (e que embasou o ato) com o motivo previsto em lei).

Logo, se quando o Poder Judiciário for analisar a legalidade do ato administrativo deve verificar a materialidade do ato e a correspondência do motivo existente com o motivo legal, não pode ser retirado da alçada desse Poder a análise dos fatos, como defende a teoria que prevê a revisibilidade restrita pelo Poder Judiciário. Poderá este analisar os fatos que envolvam questões contábeis, financeiras, orçamentárias e patrimoniais, no intuito de autenticar se os fatos alegados na decisão da Corte de Contas são reais e fazem com que a condenação tenha cabimento.

Nesse sentido, doutrina Di Pietro (1996, p. 29):

A extensão do controle deu-se também no sentido de permitir ao Judiciário examinar os motivos do ato administrativo, não só para constatar se os fatos existiram ou não, mas também para verificar a qualificação jurídica, ou seja, verificar se os fatos são de natureza a justificar a decisão, como também a adequação da decisão aos fatos que corresponde, em última análise, ao exame da razoabilidade da decisão e da proporcionalidade dos meios aos fins.

Se todos esses aspectos estão hoje sujeitos à apreciação do Judiciário, é evidente que também as decisões emanadas do Tribunal de Contas passam pelo mesmo tipo de controle jurisdicional.

Isto posto, na hipótese de o administrador público ser julgado pela Corte de Contas, sendo responsabilizado por determinada irregularidade referente à coisa pública, o acórdão que decidiu dessa forma não estará imune a eventual apreciação da mesma matéria por parte do Poder Judiciário. Conforme visto, este Poder, poderá analisar questões relativas aos fatos imputados ao responsável, tanto para averiguar se o fato realmente ocorreu, como pare apreciar se a decisão é condizente com a irregularidade.

O juiz não terá nenhum fator impedindo sua análise quanto aos fatos imputados ao responsável, uma vez que, como visto, o fato é fator preponderante na constituição do motivo, sendo que o motivo é o pressuposto autorizador ou exigidor da prática do ato administrativo, garantindo-lhe, assim, legalidade.

Corroborando com os doutrinadores que defendem a atuação ilimitada do Judiciário na revisão das decisões das Cortes de Contas, está o Superior Tribunal de Justiça, que vem preponderantemente decidindo no sentido de não haver mérito administrativo nos atos que determinem sanções aos administradores públicos, conforme denota-se do Mandado de Segurança 13622, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho:

MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. RECEBIMENTO DE PROPINA. ART. 117, IX E XII C/C ART. 132, IV, AMBOS DA LEI 8.112/90. PENA DE DEMISSÃO. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE PRODUÇÃO DE PROVA TESTEMUNHAL DEVIDAMENTE JUSTIFICADO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR FORMALMENTE REGULAR. OBSERVÂNCIA DE TODOS OS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS APLICÁVEIS A ESPÉCIE. SUFICIENTE SUBSTRATO PROBATÓRIO. ORDEM DENEGADA

E Recurso Ordinário em Mandado de Segurança 21259, de relatoria do Ministro Felix Fischer:

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. MÉRITO ADMINISTRATIVO. DISCRICIONARIEDADE. INOCORRÊNCIA. PENA DE DEMISSÃO. DESPROPORCIONALIDADE. INADEQUAÇÃO. INOCORRÊNCIA. I - Inexiste discricionariedade (juízo de conveniência e oportunidade) no ato administrativo que impõe sanção disciplinar, razão pela qual o controle jurisdicional, nesses casos, é amplo e não se limita a aspectos formais (precedente: MS 12983/DF, 3ª Seção, de minha Relatoria, DJ de 15.2.2008). II - Na hipótese dos autos, a aplicação da pena de demissão ao recorrente não se revela desproporcional ou inadequada, porquanto aplicada após regular procedimento administrativo, em que restaram comprovadas irregularidades de natureza grave. Recurso ordinário desprovido.

A mesma interpretação dada pelo STJ aos Processos Administrativos Disciplinares – PAD pode ser estendida às decisões das Cortes de Contas, uma vez que se trata de matéria deveras complexa e muito divergente na doutrina pátria, toda a decisão da Corte de Contes que impor sanção ao administrador público não pode ser tida como ato discricionário. Nesse sentido, conceitua Flávio Henrique Unes Pereira (2007, p. 37) que a autoridade deve utilizar-se de critério objetivos no intuito de tomar uma decisão ao final de um PAD, uma vez que:

A decisão correta ou adequada emerge da consideração de todas as peculiaridades do caso, as quais são apontadas pelas partes, por meio de um processo desenvolvido em contraditório que se vincula ao paradigma de Direito vigente. A legitimidade da decisão correta não reside, por conseguinte, no “juízo” do julgador [administrativo], simplesmente.

Analisado isso, vê-se que as decisões proferidas em Processos Administrativos Disciplinares, as que condenam servidores públicos, são passíveis de revisão pelo Poder Judiciário.

Bem como, que o processo administrativo que ocorre nas Cortes de Contas segue os mesmos princípios dos PADs (dignidade da pessoa humana, da culpabilidade e proporcionalidade), logo, não faz sentido que as decisões dos Tribunais de Contas não possam ser revistas pelo Judiciário.

Dessa forma, incabível pensar que o juiz possa deixar de analisar a veracidade e legalidade da decisão proferida pelo Tribunal de Contas.

Inegável que o Poder Judiciário dispõe de competência para fiscalizar os fatos, ainda que, financeiros, contábeis e orçamentários, (art. 70, CF) decididos pelas Cortes de Contas.

Como visto, em recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, incabível a discricionariedade (conveniência e oportunidade) no ato administrativo que aplica sanção disciplinar ao servidor público, motivo pelo qual o controle por parte do Judiciário é amplo e irrestrito, não se restringindo a aspectos formais.

Diante de todo exposto, entende-se que não se pode crer que a corrente contraria à atuação irrestrita do Poder Judiciário deva prevalecer, seja por ter fraco amparo doutrinário, seja por ir de encontro com o mais recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça.

O texto constitucional presente no art. 70, II, da CF/88 que trata da competência dos Tribunais de Contas para o “julgamento” das contas daqueles responsáveis que derem causa a perda de dinheiros, bens e valores públicos, é insuficiente para se defender a eficácia das decisões das Cortes ao ponto de impedir a revisibilidade por parte do Poder Judiciário.

Dar margem ao julgamento por parte do Tribunal de Contas seria estar indo de encontro ao art. 5º, XXXV da própria Constituição que afirma que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”, com base apenas no inciso II, do Art. 70 da CF, uma vez que o texto Constitucional não dá em nenhum outro momento poder jurisdicional a Corte de Contas.

Dito isto, tem-se que as razões de decidir tomadas pelas Cortes de Contas, que ensejam a condenação de servidor público ou o mero responsável pelo dinheiro público, são passíveis de revisão pelo Judiciário, devendo este averiguar eventuais erros na aplicação de penas e multas.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SABINO, Eduardo. A eficácia das decisões dos Tribunais de Contas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3777, 3 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25687. Acesso em: 26 abr. 2024.