Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/25880
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Reserva de domínio

Reserva de domínio

Publicado em . Elaborado em .

A doutrina muito pouco diz sobre as cláusulas especiais do contrato de compra e venda. Nesse artigo apresentaremos a reserva de domínio e iremos compará-la com o instituto semelhante em outros sistemas jurídicos.

Introdução:

O presente artigo tem como objetivo um estudo metódico da reserva de domínio no direito brasileiro e no direito comparado, principalmente o português e o espanhol, a fim de buscar debater um instituto bastante utilizado na prática mas pouco discutido na seara doutrinal.


Da reserva de domínio

Conceito:

A cláusula da reserva do domínio tem por objetivo garantir o domínio do bem ao vendedor até que o comprador cumpra a obrigação compactuada.

Antes mesmo de ser prevista legalmente, no ordenamento jurídico espanhol, o Tribunal Supremo em 1894 decidiu pela sua licitude e obrigatoriedade entre os contratantes.[i]

No direito brasileiro[ii], a transferência é feita, automaticamente, após o pagamento integral do valor, conforme o artigo 521 do Código Civil:

A legislação brasileira segue o pensamento italiano e espanhol que consideram a transferência somente após a quitação total do preço do bem. O artigo 1523 do Código Civil italiano é claro:

Na venda a prestação com reserva de propriedade, o comprador adquire a propriedade da coisa com o pagamento da última parcela do preço, mas assume o risco no momento da tradição.[iii]

Portugal segue outra vertente, possibilitando uma maior liberdade das partes ao dizer que a transferência da propriedade pode ocorrer após a verificação de outro evento, que não o pagamento total do bem, de acordo com o artigo 409º do Código Civil.

A doutrina apoia a lei. MARTINEZ aduz que “a reserva de propriedade pode estar relacionada com o cumprimento das obrigações do comprador, máxime o pagamento do preço, ou com a verificação de qualquer outro evento, podendo a cláusula ser aposta na venda de coisas móveis (genéricas ou específicas) ou imóveis”[iv], mesmo posicionamento de Leitão.[v]

A doutrina, todavia, discorda sobre uma possível limitação na compactuação de outro evento para a transferência da propriedade diverso do pagamento integral do preço do bem.

Por um lado, não há discussão. Como o vendedor pode desistir da reserva de propriedade a qualquer momento, o que ocasionaria a transferência imediata da propriedade, seria possível compactuar qualquer quantidade de parcelas inferior ao total para a transferência da propriedade.

A grande dificuldade está na possibilidade do evento acordado versar sobre atos de natureza diversa. Percebam que o artigo supramencionado não impõe qualquer limitação.

Na doutrina alemã admite-se a reserva de propriedade prolongada (Verlängerter Eigentumsvorbehalt), que seria a conservação da propriedade do vendedor perante posteriores aplicações da coisa e a reserva de propriedade alargada (Erweiterte Eingentumsvorbehalt), onde a reserva de propriedade mantém-se até a satisfação de todos os créditos do vendedor ou até da satisfação de outros credores.[vi]

Nesse último sentido, a doutrina admite que, esse outro evento, seja o pagamento de uma dívida a terceiro, situação recorrente para os casos em que o financiamento para a compra do bem não é realizado pelo vendedor.

O projeto de Convenção Europeia prevê a reserva de domínio nos moldes da legislação brasileira, entretanto é mais ampla ao permitir a reserva aos bens móveis e imóveis: Contrato com cláusula de reserva de domínio é o contrato de compra e venda de bens cuja propriedade dos bens objeto do mesmo não se transfere ao comprador até que este tenha cumprido a totalidade da contraprestação da compra.[vii]

Seria mais interessante que a legislação portuguesa modificasse o art. 409º 1, sua última parte, sobre a verificação de qualquer outro evento. A previsão da satisfação de uma dívida de terceiro poderia substituir a amplitude da expressão “qualquer outro evento”, tornando o preceito legal menos suscetível a excessos.

Outra importante diferença encontrada no instituto no Brasil e em Portugal se refere aos bens sujeitos à reserva de propriedade. No primeiro, a cláusula somente pode versar-se sobre bens móveis, já no segundo é possível tanto aos móveis, quanto aos imóveis.

Para que a cláusula da reserva seja válida, seja em relação a bens móveis ou imóveis, deve-se caracterizar o bem de maneira a torná-lo distinguível dos demais bens do seu gênero. É o que profere o seguinte artigo do Código Civil brasileiro:

Art. 523. Não pode ser objeto de venda com reserva de domínio a coisa insuscetível de caracterização perfeita, para estremá-la de outras congêneres. Na dúvida, decide-se a favor do terceiro adquirente de boa-fé.

 A inteligência do artigo pode ser exportada para Portugal, principalmente em relação aos bens móveis. Isso porque, normalmente, os bens imóveis tem forma própria de identificação, reduzindo a problemática da identificação.

Antes que passemos a discussão sobre a natureza do instituto, torna-se importante dizer que a cláusula em tela deverá ser compactuada antes da celebração da venda e poderá ser informal[viii], desde que o contrato em concreto prescinda de forma específica.

Natureza do instituto:

FERNÁNDEZ leciona ser frequente crer que a reserva de domínio tratar-se-ia de uma condição resolutória, entretanto, ao admitir essa possibilidade estaríamos supondo que a propriedade do bem passa imediatamente ao comprador, tornando o vendedor desprotegido frente a terceiros credores ou adquirentes de boa-fé do comprador.[ix]

O autor continua dizendo que outra parcela[x] da doutrina defende a tese da Aquisição Progressiva da propriedade, ou seja, a reserva de domínio seria uma relação contratual complexa na qual a propriedade é adquirida gradualmente, de acordo com a evolução do pagamento do preço. [xi]

Cremos não ser a melhor opção. O benefício da reserva da propriedade está no fato de manter-se a propriedade com o vendedor até que o pagamento total, ou outro efeito, seja atingido e com isso o bem seja transferido ao comprador. Admitir que a propriedade passe progressivamente ao comprador seria descaracterizar o instituto e dificultar o vendedor no momento da execução, caso haja incumprimento do comprador.

A doutrina italiana considera a reserva de domínio como uma hipótese de venda obrigatória, enquanto o direito alemão destaca o caráter real da posição do comprador ao dizer que este teria um direito de expectativa, que supõe uma segurança na aquisição do domínio pleno do bem no momento em que a condição é cumprida.[xii]

No entendimento de LEITÃO, a natureza seria uma venda em que o efeito translativo da propriedade é diferido ao momento do pagamento do preço, obtendo, no entanto, o comprador logo com a celebração do contrato uma posição jurídica específica distinta da propriedade.

Outra questão interessante é quanto a natureza da posse do comprador.

O Tribunal Supremo da Espanha em janeiro de 1976 se posicionou, revelando que a natureza dessa detenção seria a de depositário.[xiii]

Essa é a construção mais aceita na Espanha. Muitas críticas, todavia, podem ser feitas.

MANUEL RIVERA tece considerações admiráveis. Segundo o autor, não poderia admitir-se a natureza de depósito, por faltar a coerência jurídica, uma vez que o regime de depósito é totalmente contrária a essência, finalidade e natureza da reserva de domínio.

Continua dizendo que na reserva de domínio, o comprador não compra para guardar e restituir e ainda pode usufruir e gozar do bem. Características contrárias ao instituto do depósito.

Outro ponto que afasta os dois institutos é a impossibilidade do depósito de bens imóveis. Tanto o direito português quanto o espanhol é possível a reserva de domínio de bens imóveis, situação que não ocorre no Brasil.[xiv]

Por meio dessa exposição é possível defender que a natureza da posse do comprador não poderia ser a de depositário.

E qual seria a natureza da posse na reserva de domínio?

Admitindo as particularidades da reserva de domínio a doutrina preferiu definir a posse como uma situação jurídica sui generis. É a resposta mais simples, entretanto, é a conclusão alcançada por FERNANDEZ e pela doutrina e jurisprudência italiana.

GALASSO revela que: “A doutrina e jurisprudência afirmam tranquilamente a validade do contrato com reserva de propriedade, considerando uma hipótese normal de compra e venda e que criou uma forma de posse sui generis que não encontra semelhança no nosso ordenamento jurídico”.[xv]

Forma:

O Direito brasileiro impõe uma formalidade para a cláusula de reserva de domínio. O art. 522 determina que a reserva “será estipulada por escrito e depende de registro no domicílio do comprador para valer contra terceiros”.

Pode-se depreender que essa imposição tem como finalidade a publicidade e a possibilidade de oposição da cláusula diante terceiros.

A lei portuguesa determina a formalidade do registro no caso de bens imóveis ou dos móveis sujeitos à registro. Em outro capítulo iremos discorrer com mais atenção sobre essa oponibilidade diante terceiros.

Transferência e Risco:

Normalmente o risco e a propriedade caminham juntos, ou seja, quem é dono da coisa responde pelos riscos do seu perecimento ou da diminuição do seu valor. Na reserva de domínio, o comprador mantém a posse do bem, mas a propriedade conserva-se com o vendedor, quem, então, responderia pelos riscos da coisa?

A legislação brasileira é clara e segue os moldes do ordenamento italiano[xvi]:

Art. 524. A transferência de propriedade ao comprador dá-se no momento em que o preço esteja integralmente pago. Todavia, pelos riscos da coisa responde o comprador, a partir de quando lhe foi entregue.

Apesar do direito português não tratar especificamente sobre o tema, a doutrina segue a mesma posição do direito brasileiro.

MARTINEZ aduz que sempre que há entrega do bem, o risco é transferido. Citando artigos do Código Civil Português, como o 796º, nº 1 e 3 e o 886º, ele acredita que sendo a reserva de propriedade caso de condição resolutiva ou suspensiva, a transferência dos riscos se dá com a transferência do bem e não da propriedade.[xvii]

Na legislação e doutrina estudada, a visão do risco é una. FERNANDEZ esclarece que: É opinião admitida unanimemente que a transmissão do risco sobre a coisa, assim como a aquisição dos frutos gerados por esta, se transmitem ao comprador desde que haja a entrega da coisa por parte do vendedor.[xviii]

Chega a essa conclusão pelo seguinte motivo: “Se o comprador, pela tradição possessória, usa, goza e até abusa da coisa sem que haja pagado seu preço na totalidade, parece normal que suporte o periculum”.[xix]

Oponibilidade:

Anteriormente vimos que é necessário o registro da cláusula da reserva de domínio para que seja possível a oposição contra terceiros de boa-fé.

Diferente da legislação portuguesa, a brasileira impõe a necessidade do registro de todos os bens, sem distinção, para que seja admissível a oposição a terceiros.

Quando a lei de Portugal diz no art. 409º, nº 2: Tratando-se de coisa imóvel, ou de coisa móvel sujeita a registo, só a cláusula constante do registo é oponível a terceiros. Um importante questionamento surge.

Seria possível a oposição a terceiros em caso de bens não sujeitos ao registro? Percebam que o artigo transcrito determina a necessidade somente em relação aos bens registráveis.

Ressaltemos que: “em relação à cláusula de reserva de propriedade acordada numa compra e venda de coisa móvel não sujeita a registro, a sua eficácia não é questionável inter partes, mas não pode ser oponível a terceiros de boa-fé.[xx]” Vale dizer que a eficácia obrigacional independe do registro, entretanto ela não é suficiente para ser oposta a terceiros.

Varela e Leitão[xxi] consideram a possibilidade da oponibilidade em relação a terceiros desses bens não sujeitos a registro por não ter o valor posse vale o título.

E é o posicionamento de parte da jurisdição. É o que podemos ver dos seguintes excertos:

II - Tratando-se de coisa móvel não sujeita a registo, o pacto de reserva vale em relação a terceiros sem necessidade de qualquer formalidade especial.

III - Assim, se o comprador relapso vendeu, por sua vez, a mesma mercadoria a terceiro, este negócio tem o cariz de venda de coisa alheia cominada de nula, não podendo o segundo comprador opor o seu direito ao primitivo vendedor que se mantém proprietário da mercadoria.[xxii]

A decisão judicial revela um importante ponto de vista. Como o comprador não é proprietário do bem até que cumpra a condição compactuada, ao vender o bem, ele estaria realizando uma venda de coisa alheia, e, para boa parte da doutrina, o regime da venda de coisa alheia é suficiente para tutelar o direito do vendedor/proprietário.

PEDRO ROMANO não segue essa linha de pensamento. Diz o autor que a regra disposta no art. 409º, nº 2 afasta a reserva de propriedade do regime constante do art. 274º, nº 1. Ele conclui que o princípio geral é: “o da sujeição dos actos de disposição de bens ou direitos que constituem objeto de negócio condicional à própria condição, mas relativamente à reserva de propriedade, no que respeita à oponibilidade a terceiros, é necessária a publicidade (registro), razão pela qual, em relação a bens móveis não sujeitos a registro, não se pode aplicar o princípio da eficácia absoluta.”[xxiii]

Apesar de defender uma linha minoritária e ter seus fundamentos rebatidos com veemência por LEITÃO[xxiv], cremos que ROMANO segue a linha que oferece mais segurança jurídica. Imagine um terceiro de boa-fé que pesquise a situação do bem minunciosamente e descobre que ele é registrado com a cláusula de reserva de propriedade. Ele decide não adquiri-lo. Agora imagine a mesma situação, sendo que o terceiro não descobre nenhum embaraço a coisa. Se a coisa não for sujeita a registro, tal fato não garante nada. Ao adquirir o bem ele sempre estará sujeito a perdê-lo devido a uma possível reserva de propriedade.

Não existiria segurança jurídica. Os bens não sujeitos a registro com cláusula de reserva de propriedade não poderia ter eficácia real. A aparência de dono do comprador original impede qualquer desconfiança do terceiro adquirente, e mesmo que desconfie, a busca nada revelará de anormal.

ROMANO complementa com base no princípio da relatividade dos contratos, ou seja, como a cláusula de reserva de propriedade é uma cláusula contratual, não seria oponível em relação a terceiros por si.[xxv]

Caso o terceiro adquirente esteja de má-fé, obviamente, deverá perder o bem como penalidade por sua conduta vil.

A legislação italiana é mais específica e coloca a necessidade do registro para os bens imóveis e móveis, de acordo com o Codice Civile, e para os demais bens de acordo com legislação específica.

Caso a legislação portuguesa houvesse optado pela solução italiana, a discussão sobre a oponibilidade poderia não existir, possibilitando uma solução clara para o tema.[xxvi]

Execução:

A execução no direito brasileiro[xxvii] é mais simples do que no direito português. No primeiro, basta o incumprimento de uma parcela para constituir o devedor em mora e legitimidade para fazer a cobrança em juízo, das parcelas vencidas e vincendas ou pela recuperação do bem.

A lei brasileira exige forma para a execução da reserva, deve-se ser feita por meio do protesto do título em Cartório competente ou por interpelação judicial.

Quando o vendedor optar por reaver o bem, ele poderá reter o preço pago[xxviii]  até o necessário para cobrir a depreciação da coisa e as despesas com os atos necessários para cobrança do devido.[xxix]

O direito luso acompanha o pensamento italiano, beneficiando o devedor que atrasa uma parcela do preço:

Art. 1525 – Inadimplemento do comprador

Não obstante acordo em contrário, o não pagamento de uma parcela, que não exceda a oitava parte do preço, não dá lugar à rescisão do contrato, e o comprador mantém o benefício do prazo em relação às parcelas subsequentes[xxx].

De acordo com o artigo 934º, o não pagamento de uma única parcela que não exceda um oitavo, não poderá dar causa à resolução, que somente seria cabível quando duas ou mais parcelas não fossem pagas ou quando a parcela não cumprida exceda um oitavo do preço do bem, no caso das partes não tratarem o contrário.

A reserva de domínio não se limita a garantir a cobrança do preço parcelado. Embora seja sua função essencial, ela deve ir além do direito de preferência à cobrança do preço, como ocorre com a hipoteca.

RIVERA aduz que: “esse algo a mais, especial da reserva de domínio e que a diferencia dentro do nosso ordenamento, deve ser a possibilidade de recuperar o bem vendido a prazo.”[xxxi]

Na hipótese do vendedor optar pela ação de cobrança e no decurso do processo o bem penhorado seja o próprio bem objeto de reserva de domínio, na situação de não existir outro ou existindo, que não garantam o pagamento da totalidade do devido, surge um obstáculo. Como garantir o pagamento com um bem que é do próprio autor da demanda[xxxii]?

A doutrina espanhola dominante profere que, nessa hipótese, existe uma renúncia tácita da propriedade do bem pelo comprador no instante da prática do ato executivo. Neste momento o comprador passa a ser o proprietário do bem embargado e por tal razão, suscetível de execução.[xxxiii]

Após colacionarmos legislação pertinente, fica translúcida a capacidade do vendedor em recuperar o bem, no caso de incumprimento do comprador. Mas também seria possível ao comprador recuperar o bem de terceiro?

FERNÁNDEZ revela que de acordo com a concepção clássica, é necessária a comprovação do domínio para obter a recuperação do bem. Nesse ponto de vista seria impraticável a ação reivindicatória pelo comprador, visto que ele não tem a propriedade do bem objeto da reserva de propriedade.

Outro autor espanhol, VALPUESTA, em seu livro Acción Reivindicatória, defende que a prova de titularidade dominial não se sujeita, necessariamente, as exigências tradicionais para a ação reivindicatória. Isso, pois, a resolução do conflito favorece o melhor direito por meio de uma análise comparativa entre as alegações e provas das partes.[xxxiv]

MANUEL RIVERA apoia a opinião de VALPUESTA. Pronuncia o autor que independente do nome da ação interposta, a prova do domínio foi altamente suavizada, o que na prática, coincide com o objetivo buscado pelo comprador: a recuperação do bem pelo melhor possuidor.

RIVERA prossegue demonstrando que a aplicação conjunta de dois princípios fundamentais do ordenamento jurídico reforçaria tal posicionamento:

- O dever inexcusável dos juízes e Tribunais resolverem todos os assuntos que conheçam segundo o sistema de fontes estabelecido[xxxv];

- O magistrado somente pode decidir pelos fatos afirmados pelas partes.

Acreditamos ser mais acertada a posição dos autores espanhóis. O adquirente do bem afetado com a reserva de domínio não poderia depender do vendedor, o proprietário do bem, para assegurar seu direito em relação à terceiro.

Diante dessas considerações, FERNÁNDEZ, conclui que o comprador será parte legítima para as ações possessórias: “os interditos destinados a recuperação ou manutenção pacífico da sua posse adquirida através da efetiva execução das obrigações contratuais. Ações que poderá exercer frente a qualquer perturbador, incluindo o vendedor.”[xxxvi]

Interessante destacar essa última afirmação de RIVERA: “incluindo o vendedor”. Como poderia o comprador impedir um ato do vendedor, o real proprietário do bem? Já dissemos que na ação reivindicatória, prevaleceria o melhor direito e nessa situação, estaríamos com um conflito entre Posse Vs Propriedade. Deixando as discussões doutrinárias de lado, a posse prevaleceria sobre a propriedade na maioria dos casos, em se tratando de reserva de propriedade.

Isso se motiva pelo fato de não se admitir ao vendedor o livre acesso ao bem vendido pela simples justificativa de que permanece com a sua propriedade. A única hipótese para que o vendedor recupere o bem é o incumprimento contratual por parte do comprador, nas formas já especificadas[xxxvii]. Para as outras hipóteses, o comprador poderá opor ações possessórias contra o proprietário.

Agora, na situação de uma execução do vendedor, os credores somente poderão embargar os direitos que o vendedor tenha sobre a coisa, ou seja, ao restante das parcelas vincendas e não sobre a propriedade do bem, mesmo porque o vendedor somente poderá recuperá-lo diante do incumprimento do comprador.[xxxviii]


Conclusão:

O presente trabalho não teve como escopo uma análise exaustiva sobre o instituto analisado. Cogitar essa hipótese seria cegar-se perante a complexidade de cada situação que envolve não somente o instituto, mas todo um ordenamento jurídico no qual está inserido, além das interpretações doutrinárias e jurisprudenciais.

Sabendo dessa limitação, buscamos apresentar os contornos da reserva de propriedade, revelando posicionamentos da doutrina, comparando os ordenamentos jurídicos de vários países como o português, o brasileiro, o alemão, o italiano, o francês e o espanhol e oferecendo ponderações onde julgamos importante.

Além disso, buscamos oferecer uma oportunidade para os juristas observarem o tema alvo do artigo de forma mais profunda, uma vez que, tanto os manuais de direito civil quanto a própria legislação não trata a matéria de forma extenuante, acabando por gerar pontos conturbados e nebulosos, em que nos atemos a especificar alguns.


Notas:

[i] Tradução livre: Mesmo que no contrato somente conste que o cedente dos móveis conservava sua posse, esta não se refere nem poderia se referir a posse material que devido a cessão transmitia ao comprador, mas a que nasce e deriva do domínio, que foi a que em realidade se reservou. Semelhante contrato é perfeitamente lícito e obrigatório entre os celebrantes e em nada se opõe aos preceitos legais que supõe-se infringidos, porque segundo o artigo 1255 do C.C. (espanhol) os contraentes podem estabelecer pactos e condições que tenham por conveniente. Tribunal Supremo, 16 de febrero, 1894.

[ii] A venda com reserva de domínio não tinha previsão no código anterior, A matéria tinha tratativa, por outro lado, na lei processual civil (artigo 1.070 e 1.071). MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Conhecendo o novo Código Civil. Série completa (3 partes). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 826, 7 out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7234>.

[iii] Tradução livre: Art. 1523 Passaggio della proprietà e dei rischi: Nella vendita a rate con riserva della proprietà, il compratore acquista la proprietà della cosa col pagamento dell'ultima rata di prezzo, ma assume i rischi dal momento della consegna.

[iv] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito das Obrigações, parte especial: contratos – compra e venda, locação, empreitada. 2ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2001, p., 37.

[v] LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações: Volume III – Contratos em especial. 7ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2010, p., 54.

[vi] LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes. Ibidem, p., 55, nota 95.

[vii] Tradução livre do artigo 2.1 da Convenção Européia: En el sentido de la presente Convención, es preciso entender por contrato com cláusula de reserva de domínio simple (en adelante denominada “cláusula de reserva de domínio”) el contrato de compraventa de biens em virtud del cual la propriedad de los bienes objeto del mismo no se transfiere al comprador más que cuando éste há cumplido em su totalidad la contraprestación de la compra.

[viii] O artigo 522 do Código Civil brasileiro exige que a cláusula da reserva seja escrita.

[ix] FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 32-33.

[x] Ainda é possível destacarmos outros posicionamentos como a teoria da condição suspensiva, a da venda obrigacional, da dupla propriedade e da venda com eficácia translativa imediata, associada à atribuição ao vendedor de uma posição jurídica, que lhe garante, com eficácia real, a recuperação do bem em caso de não pagamento do preço, conforme nos é exposto por LEITÃO , Luis Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações: Volume III – Contratos em especial. 7ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2010, p., 61.

[xi] FERNANDEZ, Manuel Rivera. Ibidem, p., 36.

[xii] Decisão do Tribunal do Porto se utiliza da expressão expectativa e reafirma a condição suspensiva: “A reserva de propriedade deve ser qualificada como uma condição suspensiva: a transmissão da propriedade sobre a coisa – isto é, o efeito real do contrato de compra e venda – fica subordinada a um acontecimento futuro e incerto; o comprador dispõe tão só de uma expectativa jurídica.” Processo: 0830728; Nº Convencional: JTRP00041369; Nº do Documento: RP200804240830728;  Data do Acordão: 24-04-2008.

[xiii] Tribunal Supremo, 26 enero de 1976.

[xiv] Manuel Rivera é muito claro no seu posicionamento contra a natureza de depositário do comprador: No parece correcta su aceptación por simples razones de coherencia jurídica, ya que el régimen propio del depósito es totalmente contrario a la esencia, finalidad y naturaliza, cualquiera que ésta sea, de la venta com reserva de domínio. E continua: - En primer lugar, el comprador en la venta con reserva de domínio no compra para ‘guardar y restituir’, como se deduce de la definición de depósito. Acrescenta que el depósito sólo afecta a las cosas muebles. E por último aduz que: Código Civil establece la expresa prohibición de uso de la cosa depositada, hecho substancialmente contrario a la función económico jurídica desempeñada por la venta con reserva de domínio que pretende, mediante esta peculiar forma de crédito, el acceso inmediato a la posesión y disfrute de bienes, a los que dificilmente se tiene acceso por los médios comunes de adquisición. P., 84-85.

[xv] Tradução livre: La dottrina e la giurisprudenza hanno invece tranquillamente affermato la validitá del contrato di vendita com riserva de propietá, considerandolo una normale ipotesi di compravendita ed hanno creato una forma di possesso ‘sui generis’ che non trova riscontro nel nostro ordenamento giuridico. GALASSO, A. La vendita com riserva di propietá. Giurisprudenza Siciliana, 1963.

[xvi] Artigo 1523 – Transferência da propriedade e do risco. Na venda parcelada com reserva de propriedade, o comprador adquire a propriedade da coisa com o pagamento da última parcela do preço, mas assume o risco no momento da entrega. Tradução livre: Art. 1523 Passaggio della proprietà e dei rischi: Nella vendita a rate con riserva della proprietà, il compratore acquista la proprietà della cosa col pagamento dell'ultima rata di prezzo, ma assume i rischi dal momento della consegn.

[xvii] Martinez não concorda com o nº 3 do artigo 796º “quando for suspensiva a condição, o risco corre por conta do alienante durante a pendência da condição.” O autor diz que o risco está mais atrelado com a titularidade das vantagens sobre o bem do que com a propriedade em si. A interpretação não seria contrária à lei, visto que ela não prevê a entrega do bem ao adquirente, caso em que a solução seria a oposta da referida na lei. Pode-se questionar esse pensamento, mas cremos ser a posição mais válida no que se refere a venda com reserva de propriedade. É o que se pode depreender pelo nº 1 do mesmo artigo segundo o autor. MARTINEZ. 2001, p., 41-42.

[xviii] Tradução livre: Planteada la cuestión, es opinión unánimente admitida que la transmisión del riesgo sobre la cosa, así como la adquisición de los frutos generados por esta, se transmiten al comprador desde que tiene lugar la entrega de la cosa por parte del vendedor. FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 73-74.

[xix] Tradução livre:  Si el comprador, por la tradición posesoria, usa, goza, y hasta abusa de la cosa sin que haya abonado el precio en su totalidad, parece normal que soporte el periculum. PEREZ, Alonso M. El riesgo en el contrato de compraventa. Madrid, 1972, p., 373.

[xx] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito das Obrigações, parte especial: contratos – compra e venda, locação, empreitada. 2ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2001, p., 38.

[xxi] Podemos acrescentar ainda Raul Ventura, Mário Júlio Almeida Costa, Jorge Ribeiro de Faria e Lima Pinheiro.

[xxii] Referente ao Processo: 084195, Nº Convencional:  JSTJ00022353, Nº do Documento: SJ199403170841952, Data do Acordão: 17-03-1994, Jurisprudência Nacional: AC STJ DE 1989/10/03 IN BMJ N390 PA408.

[xxiii] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito das Obrigações, parte especial: contratos – compra e venda, locação, empreitada. 2ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2001, p., 39.

[xxiv] LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações, : Volume III – Contratos em especial. 7ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2010, p., 58, nota 106.

[xxv] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito das Obrigações, parte especial: contratos – compra e venda, locação, empreitada. 2ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2001, p., 39.

[xxvi] O artigo 1524 do Código Civil italiano disciplina as situações de oponibilidade. A discutida por nós é tratada pela seguinte passagem: Sono salve le disposizioni relative ai beni mobili iscritti in pubblici registri (2683 e seguenti).

[xxvii] Baseado nos seguintes artigos do Código Civil brasileiro. Art. 525. O vendedor somente poderá executar a cláusula de reserva de domínio após constituir o comprador em mora, mediante protesto do título ou interpelação judicial.

Art. 526. Verificada a mora do comprador, poderá o vendedor mover contra ele a competente ação de cobrança das prestações vencidas e vincendas e o mais que lhe for devido; ou poderá recuperar a posse da coisa vendida.

[xxviii] A lei italiana segue o mesmo sentido no art. 1526: Se a resolução do contrato foi causado pelo inadimplemento do comprador, o vendedor deve restituir as parcelas pagas, salvo a compensação  ao direito pelo uso da coisa e pelo ressarcimento de danos. Tradução livre: Art. 1526 Risoluzione del contrato: Se la risoluzione del contratto ha luogo per l'inadempimento del compratore, il venditore deve restituire le rate riscosse, salvo il diritto a un equo compenso per l'uso della cosa, oltre il risarcimento del danno.

[xxix] O Código Civil brasileiro prevê a possibilidade do financiamento da compra por instituição financeira. Nessa situação, a instituição será a parte legítima para reaver o bem ou realizar a cobrança. “Art. 528. Se o vendedor receber o pagamento à vista, ou, posteriormente, mediante financiamento de instituição do mercado de capitais, a esta caberá exercer os direitos e ações decorrentes do contrato, a benefício de qualquer outro. A operação financeira e a respectiva ciência do comprador constarão do registro do contrato.”

[xxx] Tradução livre: Art. 1525 Inadempimento del compratore: Nonostante patto contrario, il mancato pagamento di una sola rata, che non superi l'ottava parte del prezzo, non dà luogo alla risoluzione del contratto, e il compratore conserva il beneficio del termine relativamente alle rate successive (1455; att. 176).

[xxxi] Tradução livre: Ese algo más, especial de la reserva de domínio y que la configura autónoma dentro de nuestro ordenamento, debe ser la posibilidad de recuperar el bien vendido a plazos. FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 46-47.

[xxxii] Para LEITÃO, a opção é estranha, “uma vez que a reserva de propriedade constitui uma garantia mais forte do que a penhora, mas não se pode negar ao vendedor recorrer aos meios à disposição dos credores comuns. Deve, no entanto, entender-se que essa opção implica uma renúncia à reserva, dado que é incompatível com ela”.

[xxxiii] Esse posicionamento nos é informado por Rivera na seguinte passagem: “- La doctrina dominante señala, en un intento de resolver esta ilógica situación, la existência de una renuncia tácita del vendedor a la propiedad del bien, en el preciso instante de practicarse el embargo. Desde ese momento el comprador es pleno propietario del bien embargado y, por lo tanto, susceptible de ejecución.” FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 65-66.

[xxxiv] VALPUESTA, Fernandez. Acción reivindicatória, titularidad dominical y prueba. Valencia, 1993.

[xxxv] Esse princípio está normatizado no art. 1. 7º do Código Civil espanhol, no art. 5º, XXXV da Constituição brasileira: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, e no art. 20º, 1º da Constituição Portuguesa: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.” FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 123.

[xxxvi] Tradução livre: al adquirente, con reserva de domínio, le competen las acciones posesorias: interdictos, destinadas a la recuperación o mantenimiento pacífico de la posesión adquirida a través de la efectiva ejecución de las obligaciones contractuales. Acciones que podrá ejercer frente a cualquier perturbador o despojante, incluído el vendedor. FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 88.

[xxxvii] É possível, de acordo com parte da doutrina e jurisprudência, o incumprimento do comprador devido a transmissão do bem antes do pagamento total do preço. É o que se depreende de FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 111.

[xxxviii] de FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994, p., 93-94.


Referências:

BRASIL, Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Número do processo: 1.0342.04.050446-2/001(1); Númeração Única: 0504462-11.2004. 8.13. 0342; Data da Publicação: 13/10/2009;

FERNANDEZ, Manuel Rivera. La posicion del comprador em la venta a plazos con pacto de reserva de domínio. Valencia: Tirant lo Blanch, 1994.

FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. 10ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

FRANCISCO AMARAL. Direito Civil. Introdução. 5ª ed. Rio de Janeiro. São Paulo: Renovar, 2003.

JORGE, Pessoa. Lições de Direito das Obrigações – Edição da Associação Académica da F.D. Lisboa, 1975/76.

LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações: Volume III – Contratos em especial. 7ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2010.

MARTINEZ, Pedro Romano. Direito das Obrigações, parte especial: contratos – compra e venda, locação, empreitada. 2ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2001.

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Conhecendo o novo Código Civil. Série completa (3 partes). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 826, 7 out. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/7234>.

OERTMAN, P. La reserva de domínio en la compraventa. RDP, 1930.

PORTUGAL. Tribunal de Relação do Porto. Processo: 9830809 Nº Convencional: JTRP00024063; Nº do Documento: RP199810019830809 Data do Acordão: 01-10-1998;

________________. Processo:   0830728; Nº Convencional: JTRP. 00041369; Nº do Documento: RP200804240830728; Data do Acordão: 24-04-2008;

VALPUESTA, Fernandez. Acción reivindicatória, titularidad dominical y prueba. Valencia, 1993. 

VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral, vol. I.10ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2000.


Autor

  • André Guerra

    Advogado, Mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, pós-graduado pelo Centro de Direito Biomédico da Faculdade de Direito de Coimbra, pesquisador na Faculdade de Direito da Universidade de Salamanca 2012/2013,bacharel em direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais<br>

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Quinto artigo sobre a análise das cláusulas especiais do contrato da compra e venda. Já abordamos a venda a contento e sujeita à prova, a retrovenda, da venda sobre documentos e da preempção ou preferência convencional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, André. Reserva de domínio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3794, 20 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25880. Acesso em: 29 mar. 2024.