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Da aplicação banalizada da Lei Maria da Penha

Da aplicação banalizada da Lei Maria da Penha

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A Lei Maria da Penha não pode ter sua aplicação banalizada, incluindo toda e qualquer agressão na relação entre um homem e uma mulher, sendo necessário configurar a violência de gênero.

1. Antecedentes históricos da Lei Maria da Penha

Antes do advento da Lei Maria da Penha, o Brasil firmou compromissos internacionais com o intuito de combater a discriminação contra a mulher, emergindo, portanto, a referida lei, de um contexto de luta política de quase três décadas.

Em 1979, foi elaborada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, também conhecida como CEDAW, que entrou em vigor no ano de 1981.  Tal instrumento, que reunia o propósito de eliminar “toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo” (artigo I), foi ratificada com reservas pelo Brasil em 1° de fevereiro de 1984.  As reservas foram retiradas e a Convenção acabou sendo plenamente ratificada em 1994.  Aprovada pelo Congresso Nacional em 1994[1], foi promulgada pelo Presidente da República em 2002.[2]

Em 1994, foi adotada pela ONU a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, conhecida como Convenção de Belém do Pará.  O documento conceitua a violência contra a mulher como: “qualquer ação ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico a mulher, tanto no âmbito público como no privado” (art. 1°).  A Convenção foi ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995, sendo aprovada pelo Congresso Nacional no mesmo ano[3], e promulgada pelo Presidente da República em 1996.[4]

O projeto de lei encaminhado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional foi fruto do Grupo de Trabalho Interministerial criado pelo Decreto n° 5030, de 31 de março de 2004, integrado pela Secretaria Especial de Políticas Para as Mulheres da Presidência da Republica, pela Casa Civil da Presidência da República, pela Advocacia Geral da União, pelo Ministério da Saúde, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da Republica, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da Republica, Ministério da Justiça e Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça.

Para subsidiar as discussões, o grupo de trabalho contou com proposta de anteprojeto de lei elaborado pelo Consórcio de Organizações Não Governamentais Feministas.

Na justificativa preambular da lei são invocados o parágrafo 8° da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB); a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; bem como outros tratados internacionais, ratificados pela República Federativa do Brasil, relativos à matéria.


2. O caso Maria da Penha

O caso Maria da Penha ocorreu em 1983, em Fortaleza, Ceará, envolvendo a biofarmacêutica Maria da Penha Fernandes que, na ocasião, sofreu duas tentativas de homicídio provocadas pelo então marido Marco Antonio H. Ponto Viveiros, professor da Faculdade de Economia.  A vítima recebera, por ocasião de uma das tentativas, um tiro nas costas que a tornou paraplégica.  O caso se tornou emblemático na medida em que o réu foi condenado em duas ocasiões (1991 e 1996), mas não chegou a ser preso, recorrendo sempre em liberdade.  Maria da Penha se mobilizou e procurou os organismos internacionais, a saber, o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), bem como o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), que, juntamente com a vítima, formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.  Em 2001, a Organização dos Estados Americanos (OEA) responsabilizou o Estado Brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica e recomendou a tomada de medidas com base no caso Maria da Penha.  Marco Antonio acabou sendo preso apenas em 2003, ou seja, quase 20 anos depois do fato, acompanhado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos.  Tudo isso redundou na criação da Lei 11.340/2006, que acabou sendo batizada de “Maria da Penha”.


3. Breve Introdução

O que pretende demonstrar neste artigo é que nem todo conflito entre os gêneros masculino e o feminino deve engendrar a aplicação da lei, sendo requisitos indispensáveis a presença de (1) violência baseada no gênero e (2) violência doméstica ou familiar, uma vez que nem todo episódio de conflito entre os gêneros guarda simetria ou proporções com o caso Maria da Penha, não se justificando pinçar um caso isolado, embora simbólico, para regrar situações absolutamente descontextualizadas.


4. Da necessária ocorrência de violência baseada no gênero

O art. 5º caput da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) dispõe que o objeto da lei é a “violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero...”

Sob esse prisma, podemos constatar que determinado caso concreto deve se adequar com perfeição à incidência desta lei, senão vejamos.

Em primeiro lugar, o que significa “violência baseada no gênero”?

Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto a definem como a “finalidade específica de objetá-la, isto é, dela retirar direitos, aproveitando sua hipossuficiência.”[5], sendo o fim social da lei, prescrito em seu artigo 4º, o de resgatar mulheres nesta condição de hipossuficiência.

Leda Maria Hermann, comentando sobre o mesmo artigo 5º, assinala que:

“Fica claro que a lei tem por escopo proteger a mulher contra atos abusivos decorrentes de preconceito e discriminação resultante de sua condição feminina, não importando se o agressor é homem ou outra mulher.”[6] [GRIFAMOS]

Assim, a Lei Maria da Penha veio a lume com a intenção de equalizar relações domésticas e afetivas marcadas pela opressão ao sexo feminino; por haver ali uma demarcada relação hierárquica de dominação e subordinação do homem sobre a mulher, e não para qualquer tipo de relacionamento, onde não exsurge uma relação de dominação e subordinação a ponto de ‘objetar’ a mulher.

É imprescindível uma condição mais do que passiva no relacionamento, com a presença simultânea da condição de mulher e observável primo ictu oculi sua hipossuficiência sócio-cultural ou econômica.

Daí porque a Lei Maria da Penha é tida pelos elaboradores como uma «ação afirmativa» tendente a equilibrar os relacionamentos onde realmente existam notáveis disparidades.

Ora, não é o que muito provavelmente ocorre na maioria dos casos, pois de acordo com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), cerca de 64% das mulheres já trabalha fora[7], o que contribui para relativizar a condição de hipossuficiência, pois seu poder de barganha nas relações domésticas e afetivas cresce na mesma medida de seu fortalecimento econômico e status social.

O sistema econômico capitalista e a ideologia socialista, tidos como antagonistas históricos, imprimiram uma tendência, cada qual visando seu interesse, em que o gênero feminino cada vez mais escapole às dimensões da sociedade patriarcal, pois cada vez mais mulheres são recrutadas ao mercado de trabalho.

Deparamo-nos, todavia, com uma miríade de casos ensejando a aplicação indiscriminada da referida lei, ainda que não haja qualquer relação de dominação e subordinação a fundamentar sua aplicabilidade.

Ora, para suscitar a aplicação da Lei Maria da Penha no âmbito penal, não basta haver disparidade de sexos; urge a presença já frisada de dolo específico de dominar, oprimir e discriminar sobre as condutas delituosas, pois o requisito do aproveitamento de uma situação de superioridade é essencial para se configurar a “ação ou omissão baseada no gênero” (artigo 5º), porquanto a lei não contém palavras vãs.

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro decidiu recentemente paradigmático caso envolvendo Carlos Eduardo Bouças Dolabella Filho, entendendo que a Lei Maria da Penha é aplicável a casos restritos, presente uma relação de afetividade estável e também uma relação de hipossuficiência e vulnerabilidade:

“Com efeito, vimos aí o ratio legis, o que significa dizer que a lei deve ser aplicada contra violência intra-familiar, levando em conta a relação de gênero, diante da desigualdade socialmente constituída.

Por outra forma, temos o campo de sua aplicação guiado pelo binômio ‘hipossuficiência’ e ‘vulnerabilidade’ em que se apresenta culturalmente o gênero mulher no conceito familiar, que inclui relações diversas movidas por afetividade ou afinidade.

(...)

Entretanto, uma simples análise dos personagens do processo, ou do local do fato – não doméstico – ou mesmo da notoriedade de suas figuras públicas, já que ambos são atores renomados, nos leva à conclusão de que a indicada vítima, além de não conviver em uma relação de afetividade estável com o réu ora embargante, não pode ser considerada uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade.

É público e notório que a indicada vítima nunca foi uma mulher oprimida ou subjugada aos caprichos do homem.

Aplicar essa importante legislação a qualquer caso que envolva o gênero mulher, indistintamente, acabaria por inviabilizar os Juizados da Violência Doméstica e Familiar, diante da necessidade de se agir rapidamente e de forma eficiente para impedir a violência do opressor contra a oprimida, bem como, não se conseguiria evitar a impunidade.”[8]

Quando o acusado não desfruta de status social e econômico mais elevado sobre a suposta vítima, a acusação de violência de gênero fundada na Lei Maria da Penha deve ser desqualificada, pois ausente relação afetiva pautada pela hipossuficiência e vulnerabilidade.

Assim, todo processo assim distribuído deve ser anulado ab initio e remetido ao juizado competente para seu regular prosseguimento, já que a acusação não se lastreia em episódio de violência de gênero.


5. Da necessária ocorrência de violência doméstica e familiar

Outro ponto é que para se deflagrar qualquer tipo de persecução penal fundada na Lei Maria da Penha, deve haver vínculo de natureza doméstica ou familiar.

O Título II da Lei Maria da Penha aborda hipóteses de violência contra a mulher, e o caput do artigo 5º especifica duas possíveis espécies do gênero (violência contra a mulher), quais sejam, a doméstica e a familiar.

Uma relação estável também é requisito indispensável para se caracterizar o vínculo familiar:

“Salvo melhor juízo, o enunciado no parágrafo único, em conjunto com o disposto nos incisos I, II e III do artigo 5º dessa Lei, permite entender também a família como qualquer relacionamento afetivo íntimo e estável de pessoas independentemente do sexo.”[9] [GRIFAMOS]

Desta forma, por mais que o conceito de família no direito venha sendo dinamizado, por assim dizer, aos tempos modernos, simples namoros não podem ser qualificados como “família”, o que, em caso de entendimento contrário, afronta o princípio da reserva legal (artigo 5º, inciso II da Constituição Federal) e o art. 226 da Constituição Federal.

O namoro, no dizer de Luiz Antônio de Souza e Vitor Frederico Kümpel:

Pode-se conceituar o namoro como um período informal de convivência entre um homem e uma mulher, com objetivo de se conhecerem e de, no futuro, constituírem família.  Não há previsão legal a respeito desse instituto, até porque é um período de tempo que não deve gerar efeitos jurídicos.”[10] [GRIFAMOS]

Ora, a Lei Maria da Penha tem nítido conteúdo material penal, uma vez dispor sobre a vedação às penas de natureza pecuniária (art. 17); a inaplicabilidade da Lei nº 9.099/95 (art. 41) e seus respectivos institutos despenalizadores, tais como a transação penal e a suspensão condicional do processo; a alteração de penas e a fixação de majorante (art. 44) e agravante (art. 43); engendrando possibilidade de prisão preventiva (arts. 20 e 42) etc.:

“Como já se salientou alhures, a Lei 11.340/06 não é exclusivamente uma lei penal; em seu bojo também se podem contemplar disposições administrativas, processuais, princípios gerais; é forçoso convir, entretanto, tratar-se de uma lei predominantemente penal, restando indiscutível que seu grande impacto se dará nesta esfera jurisdicional.  Além disso, vale repetir, cuida-se, notoriamente, de norma que incrementa o poder punitivo do Estado e, conseqüentemente, diminui o status libertatis do indivíduo, gerando protestos de setores minimialistas e/ou garantistas que a apontaram como uma lei alinhada ao movimento de ‘Lei e Ordem’.”[11]

Assim, como a Lei Maria da Penha é materialmente penal, os princípios do direito penal lhe são aplicáveis, não se permitindo ao elaborador de leis o uso de palavras impróprias, imprecisas ou desnecessárias, avultando a aplicação do princípio da reserva legal.

Já se dizia há quase três séculos que: “Se a arbitrária interpretação das leis constitui um mal, a sua obscuridade o é igualmente, pois precisam ser interpretadas.”[12]

Há, pois, nítida inconstitucionalidade no artigo 5º, inciso III desta lei, por deixar a definição do que seja “família” ao entendimento subjetivo dos próprios envolvidos (!):

Art. 5º [omissis]

(...)

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se considerem aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;” [GRIFAMOS]

O que se destacou chama a atenção pelo fato de ser deixada a definição do que se entenda por “família” a cargo das próprias pessoas envolvidas (“indivíduos que [...] se considerem aparentados”), mesmo não o sendo, representando a instauração de um clima de total insegurança jurídica, uma vez que a definição precisa e fechada deveria ser um dever do próprio legislador, de forma objetiva e clara, respeitando nosso modelo democrático de Estado.

Entretanto, ao contrário, o dispositivo em questão semeia dúvida sobre a população com juízos de adequação extremamente vagos, imprecisos, e por que não dizer arbitrários?

Ora, a definição conceitual do que seja violência doméstica e familiar contra a mulher exige prudência dos operadores do Direito, em especial Juízes e Promotores, no mister de restringir seu alcance diante de normas tão abertas; fluídas:

“Deste modo, o problema da hipótese do art. 5º, III, da LMP não está no fato de ter ou não ultrapassado limites conceituais de violência doméstica estabelecidos na norma internacional que lhe serviu de inspiração, mas sim e doutro modo na sua redação, que ao circunscrever como espaço de violência doméstica qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação, criminaliza uma abrangência de relacionamentos interpessoais tão larga que confronta perigosamente o princípio da taxatividade.

Assim, ao dispensar a coabitação presente ou pretérita, satisfazendo-se com relação íntima de afeto, o legislador fez uso de uma locução com amplo espectro significativo, que dificulta o efeito comunicativo que o Direito deve ter para com a sociedade.  Com efeito, a norma é um fenômeno comunicativo e, tratando-se de norma penal, deve alcançar a maior eficácia possível, restringindo-se as possibilidades de interpretações ambíguas que atentam contra a segurança jurídica, permitindo aplicações subjetivas da regra.  Uma tal técnica legislativa atenta contra o princípio da legalidade estrita e desloca do poder criativo do direito penal da esfera legislativa para a jurisdicional, ensejando a vigência da norma, posto respeitado o princípio da mera legalidade, mas não sua validade porque ignorada a legalidade estrita que tem supedâneo constitucional nos princípios da legalidade penal e da tripartição dos Poderes

(...)

Ora, a criminalização das ‘relações íntimas de afeto’, sem um apanágio mais empiricamente verificável como a coabitação, acomete frontalmente o princípio da taxatividade, corolário fundamental da legalidade estrita (nullum crimen sine praevia lege, scripta et stricta) tornando inaplicável esta norma na forma como redigida.  Tal se prende mesmo à consideração prática de que a locução geral ‘qualquer relação íntima de afeto’ não é necessariamente vinculada à relação doméstica e familiar.  Ao contrário, um simples namoro, do tipo mais comum em tempos hodiernos, exatamente é um modo de relação em que até pode ser aprofundada a intimidade sexual entre os envolvidos – e parece ser este o significado da idéia de ‘convivência’ usada no texto -, mas tais relações normalmente não contemplam qualquer comprometimento doméstico ou familiar.”[13] [GRIFAMOS]

Mas não é só.  Ao relativizar um valor constitucional tão importante como a igualdade, a Lei Maria da Penha deve comportar uma interpretação restritiva, sem generalizar o que seja excepcional, de modo que onde não exista relação de superioridade, deve inexistir fundamento para aplicação da norma excepcional.

Essas são algumas das razões, aliás, por que um estado de dúvida deve sempre favorecer ao acusado, mediante a aplicação do princípio do favor rei ou in dubio pro reo, decorrendo da garantia constitucional da presunção do estado de inocência (art. 5º, LVII):

No caso de irredutível dúvida entre o espírito e as palavras da lei é força acolher, em direito penal, irrestritamente, o princípio do in dubio pro reo (isto é, o mesmo critério de solução nos casos de prova dúbia no processo penal).  Desde que não seja possível descobrir-se a voluntas legis, deve guiar-se o intérprete pela conhecida máxima: favorablia sunt amplianda, odiosa restringenda.  O que vale dizer: a lei penal deve ser interpretada restritivamente quando prejudicial ao réu, e extensivamente no caso contrário”.[14] [GRIFAMOS]

Claus Roxin assinala, ainda, a necessidade de interpretação literal da norma, tarefa assaz custosa para tipos abertos ou imprecisos:

“A vinculação da interpretação ao limite literal não é em absoluto arbitrária, mas sim deriva dos fundamentos jurídico-políticos e jurídicos-penais do princípio da legalidade (...).  Com efeito: o legislador somente pode expressar com palavras suas prescrições; e o que não se depreenda de suas palavras, não está prescrito, não ‘rege’.  Por isso, uma aplicação do Direito Penal que exceda do teor literal vulnera a autolimitação do Estado na aplicação do poder punitivo e carece de legitimação democrática.”[15] [GRIFAMOS]

O mencionado princípio deve orientar, portanto, as regras de interpretação, de forma que, diante da existência de duas interpretações antagônicas, deve-se escolher aquela que se apresenta mais favorável ao acusado.

Em decisões emblemáticas, a Corte Augusta já se pronunciou sobre caso concreto envolvendo ex-namorados, decidindo pela não aplicabilidade da Lei Maria da Penha, senão vejamos:

“Violência doméstica e familiar contra a mulher (Lei Maria da Penha).

Namoro (não-aplicação).

1. Tratando-se de relação entre ex-namorados – vítima e agressor são ex-namorados –, tal não tem enquadramento no inciso III do art. 5º da Lei nº 11.340, de 2006. É que o relacionamento, no caso, ficou apenas na fase de namoro, simples namoro, que, sabe-se, é fugaz muitas das vezes.

2. Em casos dessa ordem, a melhor das interpretações é a estrita, de modo que a curiosidade despertada pela lei nova não a conduza a ser dissecada a ponto de vir a sucumbir ou a esvair-se. Não foi para isso que se fez a Lei nº 11.340!

3. Conflito do qual se conheceu, declarando-se competente o suscitado.”[16]

No mesmo sentido:

“CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. EX-NAMORADOS. NÃO APLICAÇÃO DA LEI 11.340/2006. COMPETÊNCIA DO JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL.

1. Apesar de ser desnecessária à configuração da relação íntima de afeto a coabitação entre agente e vítima, verifica-se que a intenção do legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, foi de dar proteção à mulher que tenha sofrido agressão decorrente de relacionamento amoroso, e não de ligações transitórias, passageiras.

2. In casu, a conduta descrita no Termo Circunstanciado de Ocorrência não se subsume ao conceito de violência doméstica previsto no art. 5º, inciso III, da Lei 11.340/2006, pois apesar de constar nos autos informação acerca da duração do namoro (onze meses), dessume-se das declarações da genitora da vítima e do suposto autor do fato que este teria apenas efetuado ligações telefônicas para a ex-namorada, bem como ido à sua casa, à noite, algumas vezes, para encontrá-la, inexistindo relato de ofensa ou outro tipo de constrangimento contra aquela.

3. Conflito conhecido para declarar-se competente o Juízo de Direito do Juizado Especial Criminal de Conselheiro Lafaiete/MG, o suscitado.”[17]

Traga-se aqui trecho do voto do Relator Sr. Ministro Jorge Mussi:

“Apesar de ser desnecessária à comprovação do aludido vínculo a coabitação entre agente e vítima, verifica-se que a intenção do legislador, ao editar a Lei Maria da Penha, foi de dar proteção à mulher que tenha sofrido agressão decorrente de relacionamento amoroso, e não de relações transitórias, passageiras.” [GRIFAMOS]

Guilherme de Souza Nucci, salvo melhor juízo, também se manifesta no sentido da inaplicabilidade do artigo 5º, inciso III da Lei Maria da Penha a namorados:

”Na Lei 11.340/2006 basta a convivência presente ou passada, independentemente de coabitação.  Ora, se agressor e vítima não são da mesma família e nunca viveram juntos, não se pode falar em violência doméstica e familiar.  Daí emerge a inaplicabilidade do disposto no inciso III.”[18]

Encontra-se, inclusive, em trâmite no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 4367/2008, de autoria da Deputada Elcione Barbalho, que tem por objetivo acrescentar ao artigo 5° da Lei n° 11.340/2006 dispositivo para consagrar, “de modo explícito, que o namoro, atual ou findo, configura relação íntima de afeto para o objetivo de proteção da mulher contra a violência doméstica e familiar.”[19], o que vem a demonstrar como a referida norma fustiga aí o princípio da legalidade.

Esses fatos demonstram, de forma inequívoca, que há dúvida no enquadramento de namorados na Lei Maria da Penha, o que deve ser resolvido em favor do acusado em face do princípio do favor rei, anulando-se eventual processo ab initio e remetendo-se ao juiz competente.

Portanto, seja pela técnica jurídica como pela ocorrência de dúvida diante do caso concreto, deve ser afastada a incidência da Lei Maria da Penha, dando lugar à aplicação da lei mais branda.


6. Conclusão

À guisa do exposto, não há justificativa lógica para se interpretar relação efêmera com o gravoso tratamento dispensado pela Lei Maria da Penha, já que simples namoros não se enquadram na noção de violência doméstica e familiar.

O que, via de regra, vem se fazendo com a Lei Maria da Penha é a banalização do instrumento em desfavor de todo e qualquer homem envolvido em toda e qualquer relação de afeto, e não a sua especificidade, pois a Lei Maria da Penha deve ter incidência sutil, exigindo-se também a ocorrência de “violência de gênero”, e não sua aplicação indiscriminada a todo e qualquer conflito afetivo, especialmente entre homem e mulher.


Notas

[1] Decreto Legislativo 26/1994

[2] Decreto 4.377/2002

[3] Decreto Legislativo 107/1995

[4] Decreto 1.973/1996

[5] CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. “Violência Doméstica, Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo”, Revista dos Tribunais, 2ª Ed, São Paulo, 2008, p. 48.

[6] HERMANN, Leda Maria. Maria da Penha: lei com nome de mulher. Ed. Servanda. 2ª Ed. Campinas. 2008, p. 101

[7] Disponível em <http://www.dgabc.com.br/Noticia/116404/mais-de-64-das-mulheres-trabalham-fora> Acesso em 17/11/2013

[8] Embargos Infringentes e de Nulidade nº 0376432-04.2008.8.19.0001, Embargante: Carlos Eduardo Bouças Dolabella Filho, Embargado: Ministério Público, 7ª Câmara Criminal, Relator Des. Sidney Rosa da Silva, DJ 03/07/2013

[9] FILHO, Altamiro de Araújo Lima. Lei Maria da Penha, Mundo Jurídico, 2ª Ed. 2008, Leme, p. 36.

[10] SOUZA, Luiz Antônio de e KÜMPEL, Vitor Frederico. Violência doméstica e familiar contra a mulher – Lei 11.340/2006, Ed. Método, 2ª Ed., São Paulo, 2008, pp. 30-31

[11] PORTO, Pedro Rui da Fontoura. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2007, p. 23

[12] Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas

[13] Idem, pp. 28-29

[14] HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal.  Rio de Janeiro. Forense, 1958, v.1, t. I, p. 86

[15] ROXIN, Claus. Derecho Penal, Parte General, 2ª Ed., Madrid, Civitas, 1997, pp. 149-150

[16] CC 91980 / MG, CONFLITO DE COMPETENCIA 2007/0275982-4, Rel. Ministro NILSON NAVES, Terceira Seção, DJe 05/02/2009

[17] CC Nº 95.057-MG, Terceira Seção, Rel. Min. Jorge Mussi, DJe 13/03/2009

[18] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis penais e processuais penais comentadas. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2006, p. 865

[19] Disponível em <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=99692> Acesso em 11/11/2013



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Roberto Flávio. Da aplicação banalizada da Lei Maria da Penha. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3793, 19 nov. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25887. Acesso em: 29 mar. 2024.