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Estratégia e inovação no controle qualificado das atividades policiais, para que barris podres não produzam maças podres

Estratégia e inovação no controle qualificado das atividades policiais, para que barris podres não produzam maças podres

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A inovadora e determinante estratégia é fazer com que os órgãos de controle passem a se interagir mais com as corporações policiais, de forma a contribuir para a construção de um cenário onde a regra seja insistir ao máximo na humanização do policial.

Resumo: O ambiente social, em qualquer parte do mundo, gera violência e pessoas estão propensas à prática de infrações de toda natureza. Seja causa ou fim, o comportamento do homem supera as possibilidades dos estudiosos em explicar o surgimento do direito, mas por alguma razão desconhecida ou controlada, algumas pessoas e instituições estão mais predispostas a condutas desviantes. Como a ação humana ainda é um mistério para sociólogos, juristas e doutrinadores, nossa abordagem de estudo sobre a especificidade de uma determinada violência policial é resultado de uma análise crítica construtiva, a partir de uma vivência pessoal e da observação do que se fez, do que faz e do que se propõe para o seu efetivo e eficaz controle por intermédio de órgãos internos, externos e sociais.

Palavras-chave: Polícia, sociedade, violência, estratégia, inovação e controle.

Sumário: 1 Introdução; 2 Os atores e o conceito de controle interno, externo e social da atividade policial; 3 Primeira vertente de controle: participar para intervir na cultura velada da violência institucional; 4 Segunda vertente de controle: desarticular a ação dos cabeças no domínio do fato; 5 Terceira vertente de controle: o registro físico da abordagem policial; Conclusão.


1 INTRODUÇÃO

O objeto deste estudo funda-se na necessidade de se construir padrões eficientes e eficazes de controle da atividade policial, mas para que não haja manifestações de desagravo indevidas sobre o conteúdo crítico valorativo de nossa abordagem teórica, afirmo minha real convicção de que a relevância do tema situa-se principalmente na discrepância entre as consequências das violências sofridas pelos policiais e a ausência da discussão de tais atos na comunidade acadêmica brasileira. Assim como em muitos países ao redor do mundo, o Brasil vive uma crise de civilidade no século XXI e todos nós, que integramos o ambiente social, clamamos pela idoneidade dos agentes políticos e pela sedimentação da paz, onde não seja necessário acionar tanto a polícia, mas por outro lado, não fazemos a nossa parte e atuamos continuamente como agentes causadores de inúmeros conflitos. Continuamente, quando resolvemos desafiar o senso comum,

“(...) de acordo com o qual não vai adiantar em nada prestar queixa à polícia, pois ela é ineficiente e corrupta, e procuramos uma delegacia, não é difícil topar com um delegado que afirma que se não tivesse que se explicar para o pessoal dos direitos humanos o seu trabalho daria muito mais resultados” (COMPARATO, 2005, pg. 7).

Crises à parte, nenhum motivo justifica a violência despropositada vinda de homens detentores do poder discricionário para intervir nas garantias constitucionais de vida, de liberdade e de propriedade de todas as pessoas.

Dentro dessa perspectiva, estabelece o Sistema de Gestão Estratégica da Polícia Militar de Minas Gerais (2012, pg. 19), que a missão dessa corporação é, assim como a de qualquer outra corporação policial brasileira, promover a segurança pública com respeito aos direitos humanos e participação social. E se o respeito ao cidadão é pedra fundamental neste conceito, como esclarece o Doutor em sociologia Ignácio Cano[2] (2013, pg. 5), “os únicos limites que a polícia deve observar em sua disposição de serviço aos cidadãos são a lei e os princípios democráticos contidos na Constituição do país, o que implica que sua atuação não será discriminatória nem abusiva”.

Partindo dessa premissa, durante o primeiro encontro estadual de órgãos de controle da atividade policial, evento realizado na Sede do Ministério Público na cidade de Belo Horizonte, nos dias 15 e 16 de junho de 2013, debateram-se os desafios e perspectivas para efetivação do controle da atividade policial nos âmbitos interno, externo e social. Estiveram presentes no evento, Promotores de Justiça, Magistrados, Ouvidores de Polícia, Militares Federais e Estaduais, Delegados e agentes da Polícia Federal e Civil, pesquisadores de entidades públicas e privadas, doutrinadores, juristas, além de representantes de diversos órgãos públicos e da sociedade civil. Nos dois dias de encontro, tivemos a oportunidade de ouvir especialistas em segurança e sociedade, e o que registramos foram pontos de vista bastante divergentes sobre a metodologia para se estudar o fenômeno da violência policial. Entretanto, em um ponto todas as falas se convergiam, a necessidade de intensificar o acompanhamento da atividade no espaço público e a propositura de mudanças na formação do profissional de segurança.

Embora o controle passe necessariamente pela vigilância, estranhamente, a forma como realizamos esse trabalho nos parece um tanto quanto ineficiente e ineficaz. Parte-se sempre da perspectiva de se estimular o cidadão a denunciar a agressão sofrida e, a partir da notícia, investigar os fatos para ao final estabelecer uma linha de ação que importe na absolvição ou aplicação de um “castigo” ao autor da infração. Trabalhando a mais de duas décadas como policial, sendo dez na atividade operacional, seis na atividade acadêmica e nove na Corregedoria de Polícia Militar de Minas Gerais, pude constatar e posso assegurar que, enquanto órgão de controle interno, assim como os demais organismos de controle externo e social, falhamos e somos improdutivos porque atuamos na maioria das vezes quando o evento violento já ocorreu. Na prática, aparecemos sempre de forma reativa e, a bem da verdade, com pouquíssima atividade ativa e preventiva. No Brasil como em qualquer lugar do mundo, o policial vive e respira violência na sua rotina de trabalho, e como é de se esperar, agir com excesso ou arbitrariedade faz parte de seu cotidiano, principalmente se atua em um meio social onde a qualidade de vida é precária e inúmeras são as tentações.

Alguns estudiosos apontam os militares estaduais como os principais responsáveis pelo fenômeno da violência policial, fundamentando suas pesquisas na necessidade de desmilitarização dessas forças públicas. Ora, convenhamos, esse discurso não convence mais e, diga-se de passagem, está bastante desgastado, pois qualquer cidadão um pouco mais esclarecido sabe que a violência não depende do caráter militar ou civil da força pública, mas da forma como atua no contato com a sociedade. Violência policial existe no mundo todo, mesmo em polícias de natureza civil. Em nosso país, transcende com maior intensidade na Polícia Militar, simplesmente porque atuamos com mais frequência e diretamente com o cidadão, mas existe igualmente no interior das Polícias Civis, Federal, Guardas Civis Metropolitanas e Municipais.

Conforme dados estatísticos registrados somente pela Ouvidoria Geral de Polícia de Minas Gerais, referente ao segundo semestre de 2012 (2013, pg. 35), dos 1818 registros recebidos, 57,15% se referiram à Polícia Militar, 39,27% à Polícia Civil e 3,58% ao Corpo de Bombeiros Militar. Entretanto, os principais problemas com as polícias não encontra foco na violência, mas principalmente na “má qualidade da prestação de serviços e na solicitação sobre falta de policiamento”, com 16,50% e 9,19%, respectivamente. Condutas relacionadas a violência aparecem, na sequência, com: violência arbitrária (4,18%), constrangimento ilegal (3,63%), tratamento desrespeitoso (1,76%) e ameaça (1,71%).

Guardadas as devidas proporções, restam evidentes no trabalho de muitos pesquisadores, defensores de um ambiente democrático protegido por polícias exclusivamente de natureza civil, um incômodo desconhecimento sobre a estrutura de funcionamento desses corpos de segurança. Veja, por exemplo, o estudo elaborado pelo professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco, Jorge Zaverucha (2001, pg. 81), pesquisador do CNPQ, ao discorrer sobre o “Poder Militar entre o autoritarismo e a democracia”, ao afirmar que a transição do autoritarismo para a democracia no Brasil deveria procurar minimizar o poder militar. Data venia, devo apenas concordar de que a ideologia militar que orienta para ver o adversário como “inimigo” esteja, em certos casos, a influenciar negativamente e subliminarmente as forças policiais. Talvez aqui uma das fontes da violência e um grande obstáculo para a humanização dos homens da lei. Neste aspecto, abordaremos mais à frente quando discorrermos sobre a formação cultural do policial.

Partindo desse contexto, estamos convencidos de que o controle da atividade policial deve estar focado na atuação ativa e preventiva por parte dos organismos fiscalizadores internos, externos e sociais. Esse controle, se bem formulado, pode ter a capacidade real de inibir a conduta violenta, incomodando pelo acompanhamento contínuo de toda a estrutura hierárquica institucional. Mais do que elaborar documentos instrutivos ou aguardar o recebimento de denúncias para se proceder a investigações, aqueles que supervisionam e fiscalizam necessitam inverter a lógica da estratégia, passando a atuar em três vertentes de grande impacto: na formação profissional, no domínio do fato e no registro físico da atuação policial.


2 Os atores e o conceito de controle interno, externo e social da atividade policial

No âmbito interno, utilizando-me do conceito geral formulado pela Polícia Militar do Estado de São Paulo[3], compete especialmente às Corregedorias de Polícia dos Estados assegurarem a disciplina e a apuração das infrações penais nas respectivas corporações, fornecendo poderes para a consecução do objetivo maior de oferecer à população um serviço de segurança de excelente qualidade. Ainda, são mantidas as investigações para a apuração de casos em que o policial é vítima, para a satisfação dos anseios de justiça da corporação e da família daquele que tomba em serviço ou em razão dele. Esses organismos, por estarem subordinados e/ou vinculados hierarquicamente e disciplinarmente à estrutura da respectiva força policial, evidentemente, atuam corporativamente e com grandes restrições de poder investigativo, principalmente, quando se trata de apurar a conduta de profissionais ocupantes de posições mais elevadas na estrutura organizacional, a que chamaremos de “cabeças” no desenrolar deste estudo.

No âmbito externo, evidencia a atuação do Ministério Público e das Ouvidorias de Polícia. O primeiro produziu o Manual Nacional do controle externo da atividade policial (2012, pg. 16), e esclarece que a atividade policial é essencial à promoção da segurança pública e à efetivação dos direitos fundamentais, pelo que deve se pautar na eficiência e no respeito aos cidadãos. Como sempre existe a probabilidade de ocorrência de excessos e abusos praticados pelos integrantes das corporações elencadas no art. 144 da Constituição Federal de 1988, o Ministério Público atua para “(...) repressão aos eventuais desvios de conduta dos policiais, combate à impunidade e bloqueio das interferências na atividade correcional”.

Na mesma vertente da promotoria e de acordo com estudo elaborado pelo pesquisador e sociólogo Bruno Konder Comparato (2005, pg. 10/11), a instituição das ouvidorias é um fenômeno recente, posterior à redemocratização do país, e diferente da “criação de apenas um ombudsman, ouvidor-geral ou representante do povo ligado ao legislativo”, determinou o surgimento de “uma grande quantidade de ouvidorias para assuntos específicos em todos os níveis da administração, e de preferência ligados ao poder executivo”. Para além do pensamento alienado de alguns críticos ao trabalho das ouvidorias de polícia, “já se foi o tempo em que os direitos humanos constituíam um tema tabu para o governo”, sendo desnecessário esclarecer que a ação desses organismos nunca representou e não representa “ingerência em assuntos internos” (COMPARATO, 2005, pg. 14).

Por último, no âmbito social, o controle é elaborado, conforme explicam os professores Rafael dos Santos[4] e Luiz Carlos Guimarães Serafim[5] (2012, pg. 6), “pelo conceito de accountability, prestação de contas, que está presente tanto na gestão empresarial como, sobretudo na Nova Administração Pública, que nos oferece elementos para entendermos a importância de um controle social efetivo como parte integrante das políticas públicas”. Por esse mecanismo, a sociedade passa a ter direito de conhecer publicamente os resultados quantitativos e qualitativos das políticas públicas. Assim, transparência e publicidade são conceitos que regem todos os níveis de poder, inclusive os da segurança.

Feita as devidas considerações e tomando como referência o conteúdo do Manual Nacional do controle externo da atividade policial elaborado pelo Ministério Público, não restam dúvidas de que a metodologia utilizada por todos os órgãos de controle se restringe em trabalhos de investigação sobre as condutas negativas praticadas pelos policiais. Como nossa visão atual é da existência de atividades de controle com estratégias de trabalho pouco eficientes e eficazes, passaremos a delimitar algumas propostas de atuação profissional e de indicadores, que julgamos de recomendada importância para a melhoria da qualidade dos corpos policiais.


3 Primeira vertente de controle: participar para intervir na cultura velada da violência

Vasta literatura anglo-saxônica revela que ter uma polícia com características violentas não é demérito exclusivo dos brasileiros e a observação em países latinoamericanos destaca as condutas desviadas como um dos focos mais problemáticos da prática policial. Com frequência, segundo estudos elaborados pelo professor e antropólogo da Universidad de Chile, Patricio Tudela Pobletede[6] (pg. 129), “(...) la violência y la corrupción policial – por ejemplo – obedecen a una cultura policial dominante y que el problema radica en la conducta desviada (código del silencio) y el abuso de poder, como se há destacado en relación a casos de algunas de las policías de Argentina,Brasil o México”.

Sendo a polícia uma profissão de regulamentação recente em nosso país, importa dizer que em decorrência da sua falta de maturidade, apresenta uma carência de padrões de competência e de responsabilidade se comparados aos estabelecidos pelas profissões mais tradicionais. Em consequência, de acordo com estudos do Professor Paulo Mesquita Neto[7] (1999, pg. 135), ao discorrer sobre o controle da violência policial:

(...) o comportamento dos policiais tende a ser mais regulado por padrões definidos segundo critérios não profissionais ou antiprofissionais, por profissionais que não são policiais - juristas, acadêmicos, políticos, militares e, mais recentemente, até jornalistas. Neste contexto, o conceito de violência policial tende a ser formulado de acordo com critérios estabelecidos fora das organizações policiais e incorporados, livremente ou à força, pelas organizações policiais e pelos policiais.

A boa educação é, em certa medida, um bom passo para a construção de instituições policiais e profissionais ideologicamente menos propensos a sentir “prazer” pela violência. Digo prazer porque, enquanto no círculo privado dos homens da lei, ainda for mérito o debate em torno de ações voltadas para a prática de abusos de autoridade, tortura e homicídios, qualquer outra medida de contenção da força se torna irrelevante. Em uma pesquisa financiada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, coordenada pelos professores Arthur Trindade[8] e Maria Stela Grossi Porto[9] (2011, pg. 341), verificou-se que o conteúdo dos códigos de deontologia policial em uso na Polícia Militar do Distrito Federal (Brasil) e Ottava Police Service (Canadá), “sem normas administrativas de conduta mais claras, não assegura o controle adequado das atividades” desenvolvidas por esses profissionais. Constatou-se, ainda, “a necessidade de assimilação destes códigos e normas administrativas pelos sistemas de treinamento e avaliação das polícias”.

O estudo levado a efeito é importante e deve ser considerado pelas corporações policiais, pois identifica sintomas de instituições carentes de uma filosofia comprometida com os assuntos que digam respeito à dignidade da pessoa humana. Os profissionais de segurança, em regra, não sabem identificar e desconhecem os limites da legalidade e da ilegalidade. Aprendem o que devem fazer e não fazer, mas não sabem exatamente como fazer. Como nos ensina um dos maiores especialistas em segurança pública, o americano David Bayle (apud TRINDADE E PORTO, 2011, pg. 343), “as instituições policiais são organizações destinadas ao controle social com autorização para utilizar a força, caso necessário”.

O dogma policial a ser internalizado nos bancos acadêmicos como verdadeiro código de honra, deve ser o do uso da força como consequência e não como razão de ser, como meio alternativo e não como fim específico, como exceção e não como regra. Aparentemente, embora se inclua nas grades curriculares de todas as instituições de ensino policial, conteúdo programático voltado ao dever de respeito, as mensagens subliminares passadas por vários integrantes do corpo docente e da administração acadêmica sedimentam uma deontologia justamente oposta ao desejado. De acordo com Marcos Rolim (2007, pg. 35), as forças policiais agem assim porque,

(...) o arcabouço ideológico da subcultura institucional a que estão vinculados afirma que o saber científico é abstrato ou ‘teórico demais’, guardando pouca relação com os ‘desafios práticos’ vividos na linha de frente. Ali, ‘o melhor apoio’ é aquele oferecido pela pistola, enquanto a teoria aprendida na academia será sempre um obstáculo a ser superado.

Por mais que muitos neguem, a ideia que viceja veladamente dentro dessas Unidades é mais ou menos a seguinte, nós te ensinamos o certo aqui dentro, mas nas ruas a regra é um pouco diferente, vai depender de cada caso, todavia, um policial jamais leva desaforo para casa, ninguém te xinga, ninguém te afronta. Esse é um apelo muito forte, uma verdadeira regra de ouro e aqueles que delas se afastam, por vezes, mais cedo ou mais tarde, são excluídos do grupo e também das ruas.

Atentos ao problema, o professor José Vicente Tavares dos Santos, de Porto Alegre, juntamente com os sociólogos Dani Rudniki e Carina Füsternau, no ano de 2003, elaboraram um artigo sobre a possibilidade de uma polícia diferente em uma sociedade democrática. Partiram de alguns eixos, dos quais destacaram mudanças nas políticas de qualificação profissional, programa de modernização e processo de mudanças estruturais e culturais. Na oportunidade, entrevistaram oficiais superiores da ativa e reserva da Brigada Militar do Rio Grande do Sul, sendo revelado que historicamente a atividade policial sempre foi vista como não especializada, onde se exigia somente vigor físico e coragem inconsequente para pegar pessoas a unha e servir como um “robozinho”, destinado a separar o bem do mal. Concluíram o estudo destacando:

O grande desafio colocado no processo de democratização dos países da América Latina, hoje, quanto às organizações policiais, é a questão da função da polícia, do conceito de polícia. Esta definição é manifestada pela transposição da polícia tradicional, voltada exclusivamente a uma ordem pública predeterminada e estabelecida pelo poder dominante, para uma polícia cidadã, direcionada para efetivação e garantias dos direitos humanos fundamentais de todos os cidadãos.

Os policiais em formação e em treinamento, do princípio ao fim da carreira, além do contato com a cultura ideológica institucional, necessitam se convencer de que não estão alijados da sociedade civil, não são um corpo à parte e dela também participam ativamente. Como pressupõe os estudos do professor e sociólogo Ignacio Cano (2013, pg. 36/37), também penso que, além do conteúdo profissional, as organizações devem incluir nas grades curriculares foros acadêmicos apropriados e regulares com Conselhos Comunitários ou Estatais de Segurança, para que tenham contato com os cidadãos, possam ouvir suas demandas e suas queixas e apresentar resultados. Ao mesmo tempo, como conclui o professor Ignacio, “(,,,) seria oportunizado aos civis saber que o poder da polícia para resolver os problemas que lhes são atribuídos é menor do que muitos imaginam”.

Outra relevante pesquisa elaborada pelo Oficial da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Paulo Augusto Souza Teixeira (2009, pg. 17), coordenador de Conselhos Comunitários de Segurança da capital, destacou:

Nas entrevistas realizadas com policiais que trabalham na atividade operacional, verificou-se que a maior parte deles lida cotidianamente com questões que não são crimes, havendo uma necessidade de maior entendimento de técnicas de mediação de conflitos e do desenvolvimento de sistemas de apoio, com informações seguras que possam ser dadas aos policiais nas ruas. Esse talvez seja um dos maiores impactos dessa pesquisa, ou seja, possibilitar que as organizações policiais militares associem ao rol de competências hoje treinadas pelos policiais (legislação, abordagens e tiro) um conjunto de conhecimentos necessários para mediar os conflitos com os quais eles se deparam diariamente em quase todas as ruas do país.

O estudo levado a efeito pelo policial carioca identificou carência de uma visão institucional integrada entre as áreas de ensino ou de formação (voltada para a ascensão funcional) e a de treinamento (voltada para o desenvolvimento de habilidades e capacidades necessárias para a realização de suas tarefas cotidianas), tendo indicado as polícias militares de Minas Gerais e São Paulo, entre as quatro da região sudeste estudadas, como referências na atividade.

Na prática, o que se verifica, é que mesmo as corporações de referência não podem se omitir da necessidade de mudanças estratégicas educacionais, haja vista que, não raras às vezes, ocupam os meios de comunicação e são alvos de inúmeras pesquisas de opinião pública e de estudos científicos, reveladores de um incômodo e elevado percentual de más condutas praticadas por seus integrantes. Reforça nosso posicionamento o trabalho apresentado pela Professora e Doutora em Ciência Política, Maria Celina D’Araujo[10] (2002, pg. 14), ao observar em seus estudos o fato de que “(...) dois estados no Brasil, Rio de Janeiro e  Minas Gerais têm formado policiais com um currículo cujo conteúdo praticamente não inclui temas afeitos à doutrina militar sem que isso tenha produzido uma polícia menos violenta”.

Tudo isso nos faz refletir de que o controle de uma instituição sobre outra passa, necessariamente, pelo conhecimento que elas possuem entre si, por isso é imprescindível que os órgãos de fiscalização externos e sociais mantenham contatos frequentes e formais com Unidades policiais onde acontecem cursos de formação e de treinamento, oportunizando: a) conhecer as suas dependências físicas, a fim de aferir a qualidade e a quantidade do material ofertado aos alunos; b) identificar o perfil profissional e intelectual dos dirigentes e docentes, procurando certificar de que a filosofia e a ideologia de trabalho a ser disseminada aos discentes seja compatível com o estado democrático de direito, que privilegia o respeito aos direitos humanos e a supremacia civil sobre as forças de segurança; c) fiscalizar e participar da formulação das grades curriculares, garantindo a inclusão textual de uma deontologia com forte apelo normativo e que possibilite aos policiais conhecer o que se pode, o que se deve e como fazer; d) conhecer o teor dos estatutos, códigos disciplinares, manuais e outros documentos administrativos, a fim de se evitar a perpetuação de terminologias subliminares negativas que estejam a prejudicar a relação polícia e sociedade; e) readequar o processo de seleção de candidatos a carreiras policiais, permitindo que o processo de investigação social seja elaborado antes do início do curso de formação, como uma das etapas do processo, filtrando melhor o acesso de profissionais, com o objetivo de se evitar aqueles com características e comportamentos inidôneos e/ou violentos. O psicólogo americano, Philip Zimbardo, um dos maiores especialistas em comportamento humano e autor do desafiador e extremamente pertinente livro, “O Efeito Lúcifer” (2012, pg. 15), ensina que:

Mudar e evitar comportamentos indesejáveis em indivíduos e grupos exige o conhecimento das forças, virtudes e vulnerabilidades que eles carregam em uma determinada situação. Em seguida, precisamos reconhecer mais inteiramente o complexo das forças circunstanciais que operam em determinados cenários comportamentais. Modificá-los, ou aprender a evitá-los, pode ter um impacto maior na redução de reações individuais indesejáveis do que reforçar ações voltadas apenas a mudar as pessoas durante determinada situação.


4 Segunda vertente de controle: desarticular a ação dos cabeças no domínio do fato

Pode um policial, eventualmente, cometer excessos e abusos no desempenho da sua função, ainda que “(...) o papel da polícia em uma sociedade democrática seja a de auxiliar os cidadãos e fazer com que todos observem as leis” (COMPARATO, 2005, pg. 4). Entretanto, quando um mesmo policial ou vários policiais de uma mesma Unidade ou instituição policial passam a praticar sucessivas condutas infracionais, algo de muito grave está acontecendo e, invariavelmente, direta ou indiretamente, teremos como responsável solidário ou intelectual, um profissional de direção, do qual passaremos a identificar como cabeça.

O Código Penal Militar, assim dispõe sobre os cabeças:

Art. 53. Quem de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas.

...

§ 4º Na prática de crime de autoria coletiva necessária, reputam-se cabeças os que dirigem, provocam, instigam ou excitam a ação.

§ 5º Quando o crime é cometido por inferiores e um ou mais oficiais, são estes considerados cabeças, assim como os inferiores que exercem função de oficial.

De forma parecida, o Código Penal Brasileiro, destaca o concurso de pessoas, dispondo:

Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.

§ 1º - Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço.

§ 2º - Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave.

Em matéria de direito, quando tratamos de distinguir autor e partícipe, um dos critérios utilizados é o final-objetivo, ou em outras palavras, a teoria do domínio do fato, fruto da construção do finalismo de Hans Welzel, sendo dominante na Alemanha, seguida por Roxin e Jescheck, também aceito no direito penal brasileiro, conforme destaca Bierrenbach em seu livro “Teoria do Crime” (2009, pg. 242). Para essa teoria, o autor da conduta criminosa não precisa estar inserido nas hipóteses de autor executor ou mediato, bastando dominar funcionalmente o fato. Nessa linha de raciocínio, eliminamos mentalmente a conduta do agente e verificamos se, sem ela, o delito fracassaria, possibilitando concluir que se trata de conduta de autor.

Pois bem, se um dirigente de uma Unidade policial qualquer, defende a estúpida e criminosa apologia do discurso de que bandido bom é bandido morto, os fins justificam os meios e de que os infratores são inimigos da sociedade, ninguém duvida se tratar de um profissional perfeitamente apto a estabelecer critérios pouco ortodoxos para se fazer cumprir a lei.  Com o domínio da estrutura e do poder de polícia, esse cabeça tem plenas condições de identificar sob seu comando, subordinados dispostos a levar em curso esse raciocínio, articulando escalas de serviço constituídas de policiais dispostos à prática de violência para a indevida e desproporcional aplicação da lei. Ainda, fornecerá armamento e toda a logística necessária a propiciar um ambiente adequado para os fins lícitos e ilícitos que lhes sejam convenientes.

Por outro lado, ainda que não estabeleça uma relação de participação dolosa com o executor da ação violenta, muitos cabeças fecharão os olhos para a recorrente prática de delitos de seus subordinados, e embora tenham a obrigatoriedade moral e legal de afastá-los das ruas, imediatamente, manterão a estrutura intacta, pois algumas condutas fora de controle justificam a redução dos índices de criminalidade, assegurando cumprir com os acordos de resultados estipulados pelo Estado para mensuração da eficiência policial. Por último, outros cabeças não abrirão mão da famigerada amizade de caserna e da necessidade de se legitimar como um chefe operacional, sob pena de se manter ilhado em sua própria Unidade, uma vez que o pensamento ideológico do grupo sufoca a voz da estrita legalidade e inibe a eficiência da tropa.

Essa é uma incômoda verdade, tanto que ao fazer a apresentação do livro do jornalista Caco Barcellos, “Rota 66”, Narciso Kalifi (1992, pg. 5) afirma que escolher o lado certo, o da justiça, profissionais sofrem muitas pressões, pois lutam por princípios, não sendo um lado confortável e que exige talento, sensibilidade mas, antes de tudo, coragem. Na verdade, muitos cabeças se encontram entre a cruz e a espada, e por vezes são obrigados a adotar postura omissiva diante de arbitrariedades praticadas por seus subordinados. Sabem da existência de uma velada imposição institucional que prestigia e legitima a existência desses homens, haja vista o elevado índice de recompensas administrativas recebidas por profissionais violentos. Como destaca Barcellos (1992, pg. 239), esses homens são, não raras as vezes, “(,,,) policiais que conquistaram inúmeros elogios, troféus, promoções, ocuparam funções de prestígio e gozam do respeito corporativo em diversos níveis hierárquicos”. E não tenham dúvida, a percepção do jornalista evidenciando a existência de policiais violentos e heróis nos anos noventa, viceja ardente neste século XXI.

Na introdução dos “indicadores para avaliar o funcionamento policial” no México, de autoria de Alejandra Mohor[11] (2013/b, pg. 2), ao se discorrer sobre notas e experiências para a reforma policial, a especialista afirma que:

La policía se constituye como la puerta de acceso al sistema de justicia, aquella que está en contacto permanente con la ciudadanía, con las víctimas y los victimarios. Es también la que concentra el mayor número de procedimientos operativos, tiene presencia en todo el territorio de una nación y es habitualmente responsabilizada, desde la mirada ciudadana, por el estado de la seguridad pública. Por lo anterior es que resultará fundamental incorporar de manera permanente sistemas de medición de la actuación policial que permitan efectuar un monitoreo sobre ella y el cumplimiento de sus objetivos.

Muito além da importância de se estabelecer indicadores que forneçam medidas que ajudem a elaborar dados significativos sobre o trabalho policial, como de impacto, resultados e processos, carece medir a relação dos dirigentes de forças policiais com seus subordinados e com a aceitação ou não da violência como forma de trabalho (indicadores de más práticas). Para tanto, as Unidades policiais devem e podem ser comparadas em dados que indiquem a ocorrência de condutas violentas entre seus integrantes e a postura dos cabeças com esses eventos. Identificar agentes e facilitadores de ações criminosas, afastando-os imediatamente do comando e das ruas é uma providência imprescindível para o controle da atividade policial.

Ao estudar o comportamento criminoso de policiais militares americanos na prisão de Abu Ghraib, no Iraque, o psicólogo Philip Zimbardo identificou que esses profissionais realizavam toda a ação com total conhecimento e autorização velada de seus superiores e comandantes. Entretanto, durante um dos processos para julgamento por crimes de tortura nessa prisão, ao atuar como assistente da defesa de um dos policiais, constatou que os mesmos comandantes negavam participação no evento, afirmando de “que o erro era inteiramente de índole, uma consequência de o Sgt Chip Frederick ter escolhido livremente envolver-se com o mal” (2012, pg. 14). Para o estudioso, a postura dos comandantes militares americanos apenas:

Contribuiu para minha consternação perceber que muitos relatórios investigativos “independentes” depositaram claramente a culpa pelos abusos aos pés dos oficiais superiores e em suas lideranças omissas e defeituosas. Tais relatórios, conduzidos por generais e antigos oficiais do governo de altas patentes, tornaram evidentes que a hierarquia militar e civil erigira um “barril podre”, no qual um grupo de bons soldados foi transformado em “maças podres”. (grifos nossos)

O acompanhamento do ambiente institucional e sua relação ideológica com a violência no exercício da atividade é uma vertente significativa de controle que merece ser trabalhada, pois a ajuda externa e social propiciará na conformação de uma nova relação entre cabeça e corpo de tropa.

Fatalmente, em seu esforço para cumprir com as metas constitucionais, pode acontecer de a polícia incorrer em más práticas como violência desnecessária e arbitrariedades em suas ações (MOHOR, 2007, pg. 7), entretanto, mesmo que as corporações estejam trabalhando efetivamente para sedimentar formas legítimas de atuação profissional, a opção para a prática da estrita legalidade jamais será alcançada, embora possa ser efetivamente restaurada a parâmetros razoáveis de comportamento ético. Por fim, ainda que o estudo elaborado por Alejandra Mohor não identifique indicadores vinculados diretamente ao comportamento motivacional negativo dos cabeças em relação aos subordinados, como indicadores de más práticas policiais, a pesquisadora mexicana enumera algumas válidas sugestões (2007, pg. 15):

Indicadores de malas prácticas:

En el marco del proyecto Metágora, FUNDAR, Centro de Análisis e Investigación indagó en las Irregularidades, abuso de poder y maltrato en el Distrito Federal y la relación de los agentes policiales y del Ministerio Público con la población. El estudio realizado viene a complementar los datos posibles de obtener de fuentes institucionales (ONG’s de derechos humanos y departamento de Asuntos Internos de la Policía) respecto de dichas malas prácticas policiales. Se trata de un estudio cuantitativo y cualitativo que mide dichos hechos en el Distrito Federal de México.

Indicadores vinculados a las fuerzas policiales

1. Porcentaje de contactos con abuso policial respecto del total de contactos con la policía

2. Porcentaje de contactos con abuso físico y no físico respecto del total com abuso.

3. Porcentajes de abusos según formas de abuso:

a. Solicitar dinero (mordida)

b. Insultar o humillar a alguien

c. Amenazar con levantar cargos falsos

d. Amenazar para obtener información o una confesión

e. Amenazar de lastimar a la persona

Além do rol de indicadores supra descritos, é oportuno salientar o desenvolvimento pela Corregedoria da Polícia Militar de Minas Gerais, sob a coordenação de profissionais de segurança e da área de saúde, de uma ferramenta de controle que, se viabilizada, irá estabelecer um diferencial significativo e inovador na eficiência e eficácia da ação de controle. Trata-se de uma tecnologia de informação denominada de “Sistema de Alarme Prévio” e que poderá ser aproveitado por todos os órgãos de controle, interno, externo e social. Por essa ferramenta estratégica, os eventos praticados por determinado policial ou em determinada Unidade/Região territorial, alimentarão um banco de dados que comunicará, automaticamente, um perfil de agente ou de área que mereça acompanhamento especial e intervenção ativo-preventiva, antes que se torne um fator de investigação para ações reativas. O projeto em fase avançada de desenvolvimento teórico aguarda oportunidade de investimentos financeiros para sua viabilidade, que pode facilmente ser satisfeito pelo envolvimento dos demais agentes de controle.

Certo é que o menor valor investido em atividades de prevenção anula os elevados gastos em trabalhos de investigação e castigo, a não ser pelo fato de que manter ambientes de conflito seja oportuno para determinados seguimentos políticos. Inegavelmente, há mais ações de estado voltadas para a satisfação de interesses particulares, se considerarmos os resultados com a solução de problemas públicos. Como afirma o jurista e doutrinador latinoamericano Eugenio Raúl Zaffaroni (2009, pg. 16), “(...) vivemos um tempo em que se criar a figura do “inimigo” se tornou importante mecanismo para justificar guerras unilaterais com fins claramente econômicos e, por conseguinte, providenciais ‘estados de exceção’, em série e em alta velocidade”.


5 Terceira vertente de controle: o registro físico da abordagem policial

Devemos ter em mente que, deflagrado um evento negativo resultante de uma abordagem policial, o que determinará a legalidade ou ilegalidade da ação serão os meios de provas disponíveis para se apurar a conduta. A máxima em um processo de investigação não é o que eu ou as pessoas sabem sobre o ocorrido, mas o que podemos provar nos autos, assim, o testemunho é interessante, mas o vídeo é convincente. Basta verificar o que aconteceu durante a copa das confederações neste ano de 2013 no Brasil, muito do que aconteceu nas ruas não seria esclarecido adequadamente se não fossem as inúmeras imagens captadas por câmeras de redes de televisão e por equipamentos eletrônicos de particulares. Sem a tecnologia audiovisual, a busca da justiça seria sustentada em temerosas versões de vítimas, agressores e testemunhas, sem, contudo, jamais alcançarmos a verdade dos fatos.

Postas essas considerações e vencidas as primeiras etapas, ainda resta ativar a vertente mais tecnológica da atividade de controle. A capacidade intelectiva e as ferramentas humanas de fiscalização são relativamente eficientes para selecionar os melhores candidatos às carreiras policiais, formar e treinar bons profissionais de segurança e identificar ótimos chefes. Agora, do ponto de vista operacional, não são minimamente capazes de conter os ímpetos humanos suscetíveis à prática de atos de corrupção e violência. No teatro de operações do policial, o espaço público e privado, somente equipamentos de registro audiovisuais são capazes de conter a tentação advinda de uma vida sob o domínio do perigo.

O estudo da violência policial, invariavelmente, nos remete a análise de um fenômeno que tem início no processo conhecido como abordagem, do qual resultam inúmeros procedimentos a serem observados pelo profissional de segurança. Esse processo inicia-se no labor da rua e encerra-se, em regra, no local da abordagem ou no registro da ocorrência no interior de delegacias. Para a pesquisadora Tânia Pinc[12] (2007, pg. 6), da Universidade de São Paulo, a abordagem “é um encontro entre a polícia e o público cujos procedimentos adotados variam de acordo com as circunstâncias e com a avaliação feita pelo policial sobre a pessoa com que interage, podendo estar relacionada ao crime ou a um procedimento policial”. Prossegue a estudiosa afirmando que este momento de encontro entre a força pública e a sociedade “(...) desagrada, se não todas, a grande parte das pessoas que passam por essa experiência”, simplesmente porque “(...) ninguém gosta de ter seus direitos cerceados e sua privacidade invadida, mesmo que seja por alguns minutos”.

E quando o cidadão não gosta da abordagem sofrida, seja ela legítima ou ilegítima, resta em muitos casos, o registro da notícia de um suposto excesso ou de abuso praticado pelo policial. Deflagrada a investigação pela autoridade administrativa, de polícia judiciária civil ou militar, ou pelo Ministério Público, o que se verifica ao final é a comprovação dos fatos ou o respectivo arquivamento do procedimento por insuficiência de provas, diga-se de passagem, a regra, isso quando não ocorre a morte de vítimas e testemunhas. Em todos os casos, uma investigação possui caráter bastante oneroso, pelo empenho prolongado de pessoas e de recursos logísticos o que, inequivocamente, seria bastante facilitado se existisse a gravação audiovisual do fato noticiado.

No Brasil, a Polícia Militar do Distrito Federal ganhou mais esta ferramenta de controle. Desde o final de 2012, os policiais da ROTAM (Rondas Ostensivas Táticas Motorizadas), grupo especializado em ocorrências de grande complexidade e periculosidade, vem se utilizando de câmeras adaptadas a óculos[13] que entram em funcionamento durante as operações. A ideia é usar as imagens e os sons como provas em processos e registrar com precisão como acontece a abordagem policial. De acordo com o Tenente Coronel Leonardo Santana[14], comandante (cabeça) da Rotam, “(...) o equipamento legitima o trabalho dos policiais (corpo) e ajuda nas investigações das ocorrências atendidas pela corporação”. O equipamento adquirido pela polícia do distrito federal já é utilizado nos Estados Unidos e está em fase de testes na Nova Zelândia e Colômbia. Ainda de acordo com o Comandante Santana, “além da transparência na atividade policial, o equipamento é um investimento que se justifica pela eficiência e eficácia no combate ao crime”. Sem sombra de dúvidas, uma ferramenta extraordinária com informações preciosas a ser compartilhada por todos os órgãos de controle interno, externo e social da atividade policial.

O determinante desse inovador equipamento tecnológico de registro audiovisual, felizmente, contraria a equivocada percepção daqueles que defendem somente a necessidade de vigiar o policial nas ruas. O que ele se propõe é, antes de tudo, melhorar o comportamento de todas as partes durante abordagens policiais, reduzir a ocorrência de queixas inverídicas e de processos pela captura precisa do vídeo da perspectiva do profissional de segurança. Esse comportamento economiza tempo e aumenta a eficiência dos agentes da lei que podem dedicar mais tempo a atividades de prevenção com uma dinâmica de trabalho que propicia a redução de esforços administrativos e judiciais levados a efeito pelas investigações. E o melhor dos resultados, aumenta a confiança do público e cria comunidades mais seguras por um custo muito menor.


CONCLUSÃO

O desenvolvimento de sistemas e a disseminação de canais de denúncias à população, parece ter se tornado uma armadilha para os órgãos de controle, os quais tem estabelecido uma linha de ação baseada em comportamentos reativos, traduzido em um número crescente de procedimentos investigativos bastante onerosos, ineficientes e ineficazes. Da mesma forma que o paradigma das polícias por muito tempo passou a ser exclusivamente o tempo de resposta, na capacidade de se deslocar até os locais de ocorrências para atender vítimas e prender agressores, o dos órgãos de fiscalização tem sido o de instaurar e solucionar o maior número possível de procedimentos investigativos. Chegar o mais rápido possível e atender o maior número de vítimas de agressões era, isoladamente, um raciocínio equivocado, pois a prática e inúmeras pesquisas demonstravam que não se prende, não se investiga e não se previne a violência social e policial a partir de uma postura levada a efeito após o registro do evento.

Assim como a polícia deve, além de chegar rápido ao local da ocorrência, conduzir seus esforços para identificar zonas quentes de criminalidade e autores de delitos, o que lhe permite atuar ativa e preventivamente em áreas que apresentam maior probabilidade de eventos, da mesma forma, os representantes em atividades de controle devem, além de investigar rapidamente, voltar suas atenções, preliminarmente e continuamente, sobre determinados policiais e Unidades que apresentam elevado número de registros relacionados a denúncias de violência (barris podres produzindo maças podres). Agindo de forma diversa da lógica e da coerência, tanto a policia como os órgãos de controle, se tornam reféns das mais variadas demandas da sociedade. Esse comportamento eleva o nível de expectativa e de insatisfação das pessoas, pois sem respostas adequadas, elas desacreditam das instituições, ao perceberem que as necessidades de segurança e de apuração de más condutas policiais não se efetivam.

As polícias, em meio à desorganização e ineficiência do estado brasileiro (barril podre), que investe pouco e mal nas instituições, vão sendo coagidas e se acostumam a prestar serviços sociais estranhos às suas atividades. Esse desvio crescente de finalidade lhes retira a capacidade de atuar com exclusividade na qualidade de prestadoras de segurança pública. Com a multiplicidade de funções indevidas, não se especializam adequadamente, falham no processo de seleção de seus profissionais, formam e treinam com deficiência, alimentam uma ideologia de “homens heróis”, estigmatizam cidadãos “estranhos de inimigos”. Desta forma, estimulam veladamente a violência para obterem sucesso no enfrentamento da criminalidade e se tornam, por esses e outros motivos, mas injustamente, vilãs da violência social. Por outro lado, os órgãos de controle, na insistência desse modelo reativo de controle da violência policial, passaram a enfatizar a rapidez das investigações, o que enfraquece os esforços em ações preventivas, pois atuam rapidamente na parte superficial dos problemas, como um sistema de socorro social. Deixam de participar da vida ativa das corporações de segurança pública, não protegem os cidadãos e perdem a oportunidade de gerenciar as circunstâncias locais que determinam ou favorecem a eclosão de infrações, desordens e outros fatores que alteram a relação entre os agentes da lei e a comunidade.

A inovadora e determinante estratégia sugerida em nosso trabalho é fazer com que os órgãos de controle passem a se interagir mais com as corporações policiais, de forma a contribuir para a construção de um cenário onde a regra seja insistir ao máximo na humanização do policial. Sistematizar a participação ativa de agentes externos desde a formação até o treinamento especializado desses profissionais, além de contribuir para a correta seleção de dirigentes de tropas e nas relações da polícia com a comunidade. As autoridades constituídas e as pessoas sabem dos problemas de suas regiões e podem colaborar com um ambiente social mais próximo da paz e da tranquilidade.

Tenham em mente, policiais trabalham em um ambiente estressante e de muitos conflitos (dentro de barris podres). Acertar ou errar, em muitos casos, é consequência de ações que se desencadeiam em frações de segundos, em um piscar de olhos, onde tomar a decisão certa não é proveniente do conforto dos gabinetes e não goza do privilégio do tempo. Profissionais de segurança, em especial, os de rua, trabalham no limite da lei e a ação de controle ativa e preventiva, mais do que fiscalizar, se torna uma ferramenta de apoio, uma plataforma de pesos e contrapesos. Policiais não são máquinas de violência e embora sejam produto de um Estado enfermo (barril podre), são cidadãos a serviço da lei, da ordem e da justiça, assim como o são os Corregedores, os Promotores e os Ouvidores. Sem a nossa profissão não existe direito, sem respeito ao ser humano, não existe polícia.


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Notas

[2] Investigador do Núcleo de Estudos da Violência e professor de metodologia da investigação no Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro.

[3] http://www.polmil.sp.gov.br/unidades/corregpm/index

[4] Doutor em Educação pela USP. Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UERJ.

[5] Licenciando em História pela UERJ.

[6] Antropólogo Universidad de Chile, Dr. Em antropologia (Universidad de Bonn, Alemania), Máster en Gestión y Dirección de la Seguridad (Universidad Autónoma de Barcelona, España), Profesor de la Academia Superior de Estudios Policiales (ASEPOL-PDI) y Profesor del pregrado y del doctorado de la Faculdad de Ciencias Sociales de la Universidad de Chile.

[7] Professor do Núcleo de Estudos da violência – NEV/Universidade de São Paulo.

[8] Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança - NEVIS/UNB.

[9] Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, vice coordenadora do NEVIS e Líder do Grupo de Pesquisa em Violência e Segurança do Diretório de pesquisa do CNPq.

[10] Professora na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Foi investigadora no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas. Publicou vários livros e artigos sobre as forças armadas, processos autoritários e relações cívico-militares no Brasil.

[11] Investigadora del Centro de Estudios em Seguridad Ciudadana de la Universidad de Chile.

[12] Mestre e doutoranda em Ciência Política pela Universidade de São Paulo, pesquisadora do Núcleo em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo – NUPP/USP e Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

[13] A Polícia Militar do Distrito federal adquiriu óculos da marca Taser Axonflex, que é um inovador sistema de vídeo de ponto de vista que aumenta a transparência entre as organizações policiais e suas comunidades, protegendo os policiais contra falsas queixas. Milhares de comentários. Os policiais podem montar o equipamento em seus óculos, boné, gola, capacete ou simplesmente no painel da viatura. Informações extraídas de: http://br.taser.com/produtos/video-no-policial/axon-flex-video-no-policial.

[14] Matéria publicada e disponível em http://noticias.r7.com/distrito-federal/noticias/policia-militar-recebe-equipamento-de-filmagem-para-registrar-operacao-policial-20121130.html. Acesso em: 07 Jun, 2013.


Autor

  • Paulo Roberto de Medeiros

    Oficial da Polícia Militar do Estado de Minas Gerais Professor de Direito Penal e Processo Administrativo da Academia de Polícia Militar de Minas Gerais na Escola de Formação de Oficiais Bel em Direito e aluno do Curso de Doutorado em Direito Penal pela Universidade de Buenos Aires, Argentina Especialista em Segurança Pública pela Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte/MG Especialista em Educação Física pela Pontifícia Universidade Católica do PR Aluno do Curso de Gestão Estratégica da Academia de Polícia Militar.

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Informações sobre o texto

Por sugestão do Ministério Público de MG, analisamos a metodologia empregada no Brasil para controle das atividades policiais, o contexto de atuação social e profissional degradado a que está submetido o policial (barris podres), propondo ao final uma inovadora visão para atuação dos órgãos de controle.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Paulo Roberto de. Estratégia e inovação no controle qualificado das atividades policiais, para que barris podres não produzam maças podres. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3806, 2 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25971. Acesso em: 29 mar. 2024.