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Reflexões sobre o direito natural

Reflexões sobre o direito natural

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A concepção de um direito supra-real nasce com a visão geocêntrica da antiga filosofia grega quando então iusnaturalismo era pois cosmológico, ou seja, direito oriundo da própria essência do universo. Temos nesta fase os romanos influenciados pela sabedoria grega, tais como Ulpiano e Justiniano.

Já na passagem da história antiga para a média, nasce a segunda forma de iusnaturalismo, o teocêntrico; já nesta fase são enormes as influências religiosas - fato este que encontra correspondência na filosofia geral -, a fonte reveladora agora, então, é Deus; e o direito que não fosse conforme iusnaturalismo, ou não seria direito ou seria nulo.

Numa terceira versão temos o iusnaturalismo antropocêntrico, com efeito, já é então o homem que vem de assumir o papel de criador de todo o direito, porém, ainda com respaldo em algo que não é tão-somente sua vontade livre (positivismo), a esta fase corresponde a tomada de consciência do homem naquele sentido que Virgílio Ferreira[1] divisou: o homem é no reino da criação, não apenas o rei, mas largamente o verdadeiro criador". Era o homem, sobretudo, se libertando das imposições místicas.

Parece correto concluir-se que a idéia de direito natural, que surgiu juntamente com a antiga filosofia grega (cosmológica), não teve seu berço em Roma, visto que o velho direito romano partiu da noção de exclusividade nacional, fundada no princípio da Civita romana (cidadania romana). Paulatinamente, o jus civile foi-se transformando em jus gentium, baseado já no princípio da libertas (homem livre). Coma a cultura romana tornada greco-latina e com a profunda interferência helênica (em Cícero, por exemplo), nasce nos latinos a idéia de direito natural (deus, natureza). É interessante notar, neste contexto, que Platão (A República) já tratava, em meio a uma restrita discussão política (fundação das cidades), de uma teologia, não como nós hoje a entendemos, mas como parte de sua ciência política. Assim, pois, este novo deus, era mero recurso político (a medida das medidas), um padrão ético pelo qual organizar-se-iam as cidades.

Sob o influxo da filosofia, o direito romano, evoluindo do cidadão romano para o homem liberto, chega ao homem em geral, como sujeito de Direito. Essa desnacionalização do direito romano, e a conseqüente naturalização, foi resultante de uma época de forte influência da cultura grega e do crescimento do império romano, que impunha a paulatina abertura da restrita sociedade romana até o ponto da societas humans.


O DIREITO NATURAL METAFÍSICO-RELIGIOSO

A chamada doutrina do direito natural, segundo Kelsen, é uma doutrina idealista-dualista do direito. Posto que ela distingue, ao lado do direito real, isto é, do direito positivo decorrente do homem e portanto mutável, um direito ideal, natural, que identifica-se com a justiça.

A natureza - geral (iusnaturalismo cosmológico) ou do homem em particular (iusnaturalismo antropocêntrico) - funciona como autoridade normativa, isto é, legiferante; logo, quem age conforme seus preceitos, age justamente. Estes preceitos são, pois, imanentes à natureza. Assim, através de cuidadosa análise, pode-se deduzir da natureza, ou seja, podem ser encontrados ou, por assim dizer, descobertos tais preceitos na própria natureza (podem ser conhecidos).

Não são essas normas, como as do direito positivo, posta pela vontade humana, arbitrária e, portanto, mutáveis; mas sim normas que já nos são dadas pela natureza anteriormente a toda a sua possível fixação por atos de vontade humana, normas por sua própria essência invariáveis e imutáveis.

Se por natureza entende-se realidade empírica do acontecer fáctico, então uma doutrina que afirme poder-se deduzir normas da natureza, está assentada num inexplicável erro lógico fundamental. Com efeito, essa natureza é um conjunto de fatos que, pelo princípio da causalidade, estão ligados uns aos outros e assim, melhor dizendo, essa condição fáctica subjacente é um ser, e de um ser não se pode inferir um dever-ser, da mesma forma que de um fato não se pode concluir uma norma. Não pode estar esta imanente ao ser, um dever-ser, que é um juízo de valor.

Só do confronto entre ser e dever-ser, entre fato e normas, podemos apreciar e valorar a realidade focalizada, qualificando-a. Enfim, dos fatos não surgem as normas, tampouco da realidade os valores. Realidade e valor radicam em domínios diversos.

A natureza não é imutável, donde, então, a imutabilidade da norma que domina toda a doutrina do direito natural?

Neste passo, transforma-se a regra do ser em norma do dever-ser, imputando desavisadamente um juízo de valor à realidade. De onde provém esta concepção naturalista do Direito? Certamente de origem metafísico-religiosa.

Destarte, a natureza (a realidade) sendo obra de uma autoridade transcendente (Deus), tendo ela uma valor moral absoluto, e sendo todo dever da natureza presidido por essa autoridade infalível, conclui-se que a lei natural é oriunda dessa fonte absoluta; daí, pois, o direito natural ser identificado com a justiça deste direito (o direito justo).

Esta visão naturalística do Direito leva-nos a uma concepção teleológica desta natureza, e o fim da natureza só pode ser pensado com a idéia de um ser promotor de tudo. Cícero já ensinava que o direito da natureza, que difere do direito positivo (real) de Roma ou Atenas, é eterno e imutável, tem Deus o seu autor e seu juiz (A República), e assim o direito seria reduzido a simples capítulo da teologia.


DIREITO NATURAL FUNDADO NA NATUREZA HUMANA

Dentro da doutrina iusnaturalista já houve quem pretendesse livrar o direito natural da origem divina, o que parece-nos pior a emenda que o soneto. Assim, Grócio propõe que o direito natural seria válido mesmo sem Deus, contudo arremata dizendo que tal seria um grave pecado. O direito natural assim concebido, como originário da natureza psíquica do homem, ou seja, seus impulsos instintivos, equivaleria a este raciocínio: o direito natural (justo) deriva do homem, logo o homem é justo; o que não é de forma alguma correto. Eis que muitos impulsos humanos são reciprocamente conflitantes. O vital impulso da autoconservação, por exemplo, não raro, se acha antagonizado pela vida de outrem. E, dado que a vida é essencial na doutrina do direito natural fundado na natureza do homem, como a justiça resolveria tal conflito? Esta natureza, aqui em foco, já passa do nível do rela, da natureza tal como[e para o nível do ideal -- natureza como dever-se. Isto porque do real, do ser não se pode inferir o dever-ser, é ainda a cortante crítica ao Direito Natural, que vimos linhas atrás.

Savigny disse que a necessidade e a existência do Direito são conseqüências da imperfeição humana, premissa correta para uma conclusão verdadeira, ou seja, não há direito natural oriundo da natureza humana, posto que o homem natural -- sem o polimento cultural -- não é equivalente ao homem social. Isto, aliás, resta claro em Freud -- com sua teoria do psiquismo estruturado --, quando ele sustenta que há impulsos instintivos altamente animalescos (id ou infra-ego). Desta forma, o direito estaria reduzido a uma seção de zoologia.

A concepção de direito natural, calcada na natureza do homem normal (de conduta regular), não pode ser aceita, posto que essa regularidade de conduta só pode ser observada dentro de grupos, localmente determinados, e num certo período de tempo. Esse direito natural, assim constituído, não nos daria uma ordem iusnaturalista da sociedade humana, mas sim de grupo e em certa época. Essa regularidade de conduta, ademais, não passa de usos e costumes sociais (ou mores).


O DIREITO NATURAL COMO DIREITO RACIONAL

Na razão humana estaria a origem das normas do direito natural (direito justo). A razão seria instância normativa, prescrevendo aos homens a conduta reta, isto é, justa. O justo é o natural porque é o racional. Se a razão é uma faculdade cognoscitiva do homem (funções de conhecer) e se a norma (a legislação) não é algo que decorra do conhecimento, ou seja, não é um ser (um conhecido), mas sim um dever-ser, então esta razão não é a razão prática comum, porém uma razão especial, quiçá aquela de Cícero -- recta ratio -- (de legibus). Então voltamos ao fundamento teológico do direito natural. Esta razão é a de Deus posta nos homens, segundo Santo Tomás de Aquino. Kant diz repetidas vezes que a razão prática é a vontade e, com isto, parece salvar-se, em Kant, o dogma teológico da liberdade, que em face da razão pura seria insubsistente. Assim, norma racional seria a expressão da vontade do homem (direito positivo -- positivo oposto ao natural, não necessariamente redução do legítimo ao legal), eis por que essa razão não pode ser a prática, mas sim uma razão especial e teológica.


O SENTIMENTO JURÍDICO E O DIREITO NATURAL VARIÁVEL

Tenta-se agora escapar às influências do positivismo jurídico em geral, com a renovação da doutrina do direito natural, já desta feita assentada em uma vaga noção de sentimento jurídico. O sentimento é, todavia, da ordem do ser e logo, também, dele não se pode extrair um dever-ser (norma).

Como a doutrina do direito natural (ainda) não pode formular normas retas de condutas com caráter geral válidos em todas as circunstâncias, isto é, não foi capaz de estabelecer um direito natural imutável (de conteúdo fixo), criou-se a teoria de um direito natural de conteúdo variável (de Stammller). Admite-se que as regras da conduta social, sobre as quais um direito natural pode ser fundamentado, não sejam invariáveis como as leis naturais, mas que modificam-se com as transformações da vida social, política e econômica (direito natural de conteúdo progressivo, de Renard). Vale ainda para essa teoria a mesma objeção oposta às anteriores, qual seja, a de não se poder, de uma natureza variável (fato), concluir-se uma norma (dever-se). Essa teoria, enquanto naturalística, nega a doutrina de direito natural, pois assume, malgrado o disfarce, a posição de um positivismo relativista, céptico por excelência.


CONCLUSÃO

É de se concluir que, inobstante os esforços, nenhuma versão do direito natural, até agora, se mostra resistente ao crivo da lógica, como vimos. Tais variações teóricas -- aliás em torno do mesmo tema (um modelo supra-real do direito) -- não passam de reduções do direito (ciência autônoma) a mero capítulo de outros ramos do saber (da teologia, de alguma ciência natural, etc.).

Um direito natural mais parece voltado para a tentativa de justificar posições inexoravelmente conservadoras, do que mesmo interessado em encontrar um valor ontológico do Direito, ou a legitimidade suprema, se é que tal valor é encontrável. É verdade que algumas formas de iusnaturalismo são menos conservadoras do que outras (por exemplo, o progressivo) todavia, todas tendem, intencionalmente ou não, para o "congelamento do direito". Contudo, os iusnaturalistas sempre absorveram bem a necessidade (e a existência) de um direito positivo, conquanto consoante com o direito natural. Aliás, Dant via no direito natural um "conjunto de princípios capazes de dar nascimento a uma legislação positiva".[2]

O direito nada tem de anterior ou superior ao homem, ele é essencialmente produto da cultura humana e com ela progride pari-passu. entendendo-se cultura, na acepção ora empregada, como um processo mais amplo que o da civilização, inverso de natural (estágio selvagem indisciplinado do homem). É, pois a cultura o processo de nobilitação do ser humano, que com ele surge e só com ele há de desaparecer; enfim, identifica-se a cultura com o processo histórico.

O homem que interessa ao direito não é o homem natural mas o social, a realidade que serve ao direito não é a cosmológica, tampouco aquela espelhada na teologia, importa ao direito a realidade social que é heterogênea e dinâmica.

Quem crê num direito anterior e superior ao homem está na mesma pobreza de espírito como aquele que explica o relâmpago como manifestação dos céus, isto é, com misticismo. Já na Grécia, Arquelau (contemporâneo de Heráclito) contestava a origem divina das leis humanas.

O homem, em seu estado natural, dotado de uma liberdade necessária e total, buscou, na medida do que lhe era circunstancialmente possível, estabelecer seus valores e destes projetou uma tábua de valores caros a todos os viventes intragrupo, cujo esteio reside no consenso de sua aprovação, ou no chamado imperium do dirigentes. A este conjunto de valores, que compõe o regramento, visando garantir as condições de conservação, organização e desenvolvimento do grupo, é que denominamos de direito, e sobre o qual muito já se disse.

Em suma, o direito é um instituto humano, fruto da necessidade de organização grupal, da vida em sociedade, vida pela coação, até onde não é possível pelo amor, que, todavia, só age por mero contacto virtual, como bem disse João Mendes a propósito desta coação.

Como fenômeno universal, que se encontra em todos os estágios da humanidade, desde os mais ínfimos até os mais elevados, em forma de regras de conduta e convivência social, o direito assume assim, realmente, o caráter de uma lei natural (dada a regular ocorrência do fenômeno), não diferente das demais. É, aliás, exatamente nessa condição de fenômeno social que o direito é objeto de ciência.

Segundo Tobias Barreto (que já à sua época repelia o direito natural), da lei natural do direito, inopinadamente, passou-se para o direito natural, eis a inexcedível explicação do jurisfilósofo pátrio para a idéia do apriorismo do direito.

Assim, pois, à fuga aos problemas mediante a estratégia das soluções de expedientes, há de se preferir o próprio problema, com todas as conseqüências de uma não solução.


NOTAS

1.SARTRE, J.P. "Existencialismo é um Humanismo", Ed. Presença, Porto/Portugal, 1962, p 33 (Prefácio).

*Trabalho elaborado sob o influxo e orientação do mestre amigo Roberto Lyra Filho durante as tertúlias jurídico-filosóficas no curso de mestrado na Unb-1978. Publicado in Revista de Doutrina e Jurisprudência, Brasília, TJ/DF, nº 16, p.31 a 37, Dez.1984.

2.Apud Cretella, Júnior J. "O Estado e a obrigação de indenizar", Ed. Saraiva, SP, 1980, pág. 19.


Autor

  • Luiz Otavio O. Amaral

    Luiz Otavio O. Amaral

    advogado, professor de Direito da Universidade Católica de Brasília, autor de obras e ensaios jurídicos

    foi professor de Direito na UnB e UDF, diretor da Faculdade de Direito da UDF, professor de Academias de Polícia da PM/DF e assessor do Ministério da Justiça e da Desburocratização/PR. É autor dos livros "Relações de Consumo" (4 v.); "O Cidadão e Consumidor" (co-autor); "Comentários ao Código Defesa do Consumidor", coord. Prof. Cretela Junior (Ed.Forense) e "Legislação do Advogado", MJ, 1985; dentre outros.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Luiz Otavio O.. Reflexões sobre o direito natural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2603. Acesso em: 29 mar. 2024.