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Rebeldia em rascunho

Rebeldia em rascunho

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A rebeldia contemporânea é cínica e desatou em surto no junho desse ano, promoveu passeatas e destruição. Será que vivemos o apocalipse da democracia. E a força da violência é a única forma de protesto?

Fiquem aliviados pois o século XXI brevemente irá desmoronar, tendo como principal trilha sonora um majestoso estrondo seguido de alaridos agudos vindos da carnificina deliberada do holocausto genético patrocinado pelo feroz capitalismo que produz sistematicamente a pauperização generalizada.

Exalam esse pré-apocalipse os cheiros de pólvora, morte e indiferença dos senhores da guerra que lucram com o sangue e a subserviência.

O cinismo contemporâneo[1] é amoral e herdeiro de Diógenes, que com outros gregos do século IV a.C., nada põem acima dos valores e aspiram uma moral superior dotada de virtudes sublimes e de estilo tenso e enérgico.

Alguns cínicos[2] arrastavam peixes na ponta de um barbante pelas ruas de Atenas, masturbavam-se em público, esbofeteavam os poderosos e interpelavam os mestres que em andrajos saíam pelos fundos e tomavam o cão por modelo, pois morde apenas aqueles que merecem.

Mas qual seria o objetivo de tudo aquilo? Perguntarão os aflitos. Desmistificar, pulverizar os ideais gregários e os pensamentos coletivos que geraram as civilizações nutridas pelas essências dos indivíduos, ou criticar o falso pudor, a obsessão da reputação, a submissão à autoridade, as ações e pensamentos interesseiros e sujeitos à vontade da maioria que quer impor suas palavras de ordem?

O cinismo de Diógenes travestido de velho, sujo e feio sendo repelente e vil, o autêntico cinismo filosófico valeu-se como remédio ao cinismo vulgar, restando o primeiro autorizado a cogitar de moral.

Enquanto que os cínicos vulgares estão em toda a parte, habitam o poder, controlam os meios de comunicação, estão nos quartéis, nas universidades, nos bancos, nos conselhos e confederações e todas as outras reuniões capazes de quintessenciar o poder antes de exercê-lo contra o maior número de empecilho.

Não que se po deexigir coerência dos cínicos e nem que estamos promovendo uma caça às bruxas. Mas hoje enquanto celebram as virtudes do liberalismo ou promovem a ruptura com o capitalismo, os rebeldes pretenderam mudar o sistema, entrando intimamente  dentro do sistema. Numa espécie de aborto espontâneo da bizarrice.

Loucos pelo poder e protegidos por uma memória deficientemente curta, os cínicos brilham no baile de máscaras, nos corredores do parlamento ou na camarinha dos partidos políticos.

Ora os rebeldes se dizem ser niilistas mas são bons administradores, ora exigem a paixão pela desilusão e possuem espantos existenciais diante do nada; noutro momento, tal qual o filósofo para senhoras, o falso cínico ensina a arte da desesperança, a necessidade de desfazer-se do ego, do eu e da paixão.

Mas usa camisa de grife e tênis importado nas manifestações de rua. E, encobre o rosto temendo a identidade ou a repressão.

O mais odioso dos falsos cínicos é o velhaco de plantão que espreita na imprensa e se disfarça de libertário, é o verdadeiro reciclador de ódios com os quais persegue implacavelmente tudo o que o supera em qualidade e, só resolve problemas do ego medíocre que se enfeita como pavão a exibir uma revolta sem propostas, sem líderes como numa catarse catatônica.

Todos os cínicos (os de hoje ou de ontem), tal qual o diabo, ilustram a mais suprema das imoralidades[3] sendo permitido que reivindiquem a casa do cachorro ao mesmo tempo em que perambulam em farrapos pelos palácios presidenciais rogando privilégios. O desejo de um, exclui, no entanto, a prática do outro. Talvez até a prática de um venha a proibir a reivindicação do outro.

Se os imorais triunfaram do lado do cinismo vulgar, onde afinal estarão os cínicos originais e seguidores de Diógenes[4]? Onde estão os moralistas deste século iluminados pela luz a laser que substituiu a lanterna?

Mas o que afinal reivindica o povo? Por que não o fizera pelo voto? Por que é  tão vítima como algoz?

Mas, existem ainda vivos os descendentes de Diógenes apesar de carentes da filosofia propriamente dita mas inventores de comportamentos tais como: um cantor que queima uma cédula de dinheiro ou a própria guitarra em público, um apresentador e animador de programas televisivos de auditório que se candidata a presidência da república ou um cômico que escracha todas as imperfeições de seu tempo agindo com uma lupa nas abertas feridas sociais.

Os autênticos moralistas do século XXI denunciam, criticam, recusam e movem manifestações pseudopopulares efetuando arrastões, quebrando palácios oficiais, monumentos históricos, acendem suas fogueiras nas encruzilhadas dos paradoxos e dissertam sobre a moral da intenção embora também façam parte das negociatas dos ministérios e agremiações representativas, se regozijam no projeto suicida de uma democracia titubeante que ainda segura uma lanterna no escuro tateando a busca de uma faísca original.

Mas que tipo de homem lhe parece Diógenes?  Um desvairado que apontava que os oradores são servos do povo e enxergava nas coroas de louros a razão da febre do poder. Ainda o enxergamos hoje a passear em pleno dia empunhando uma lanterna e a repetir enfaticamente: - Procuro um homem. E não dejetos! ( TONAC, Jean-Philippe apud ONFRAY,1999,p.37).

Certa vez conta-se que Diógenes na presença de Alexandre, o Grande que se apresentou: - Sou o grande rei Alexandre da Macedônia. E, respondeu: - Sou Diógenes, o Cão[5]. Então o rei questionou-lhe. – O que fizeste para te chamarem de Cão? O que este respondeu: - Balanço a cauda diante daqueles que algo me dão, desato a latir atrás daqueles que nada me dão e mordo os descrentes.

Diógenes tal qual seus semelhantes contemporâneos (e não menos cínicos) empunham a impertinência, a insolência, a provocação e o impudor tão elevados como se fosse uma arte marcial.

A ação violenta e espontânea marcando a oposição ao poder ou a uma decisão ou situação estabelecida por reprovação ou indignação corresponde apenas à recusa apaixonada da condição humana.


Referências

ABREU, Procópio (tradução); MARCONDES, D.(Revisão). Café Philo: as grandes indagações da filosofia (editado por) Le Nouvel Observateur. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1999.

JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3.ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

ONFRAY, Michel[6]. Cynismes. Paris: Grasset, 1990.

______________. La Sculture de soi. Paris: Grasset, 1993.

FONSECA, Rubem. Cinismo. Crônica de Rubem Fonseca.  Disponível em: http://www.literal.com.br/rubem-fonseca/cinismo-cronica-de-rubem-fonseca/  .  Acesso em 13/11/2013.


Notas

[1] O cinismo como ação filosófica demonstra a impossibilidade da efetivação da moral iluminista. Invoca normas universais enquanto promove sua transgressão particular. O cinismo mantém o enunciado independente da enunciação, o que evita recalque, frustração ou punição do superego.

[2] Esclarece Rubem Fonseca que a palavra cínico vem do grego kynós que significa cão, animal cuja a vida seria igual à pregada pelos cínicos, pois morde aqueles que merecem, é capaz de distinguir os amigos dos inimigos, e principalmente porque o cínico é capaz de viver como o cão, indiferente às convenções sociais. Hoje, infelizmente pelos desvios diacrônico, este termo se refere àquelas pessoas desavergonhadas, impudentes que desdenham dos escrúpulos alheios. Entre os cínicos modernos temos o Peter Solterdijk que é o cultuado autor de “Crítica da razão cínica” e propõs um Conselho de cientista e filósofos para criar um discutível "Parque Genético Humano" para salvar a espécie da imbecilidade e brutalização induzida pelas mídias. Habermas atacou Sloterdijk porém mais confundiu do que esclareceu.

[3] Uma pequena amostra da ousadia de Diógenes e do seu pensar a respeito da liberdade foi dada quando este estava lavando verduras e Platão lhe disse: "se cortejasses Dionísios, não estarias lavando verduras". Então, Diógenes lhe respondeu: "E se lavasses verduras não terias que cortejar Dionísios". O cinismo propunha a ética do mínimo baseada na ascese rigorosa que não pode ser dissociada de certo hedonismo. A satisfação através do essencial para a vida não decorre de uma renúncia ao corpo com vistas aos valores espirituais, mas constitui a base de um prazer verdadeiro. O desapego pregado pelos cínicos que passaram ser vistos como desalmados é explicado pois os cínicos procuravam seguir a natureza. Portanto, não valorizavam a educação e a cultura, por exemplo, vistos como formas de degenerar e fugir do estado de natureza. Sabedoria na acepção cínica era viver bem conforme a virtude (que significava seguiros impulsos da natureza). Ser totalmente franco, sincero e transparente. Ao contrário da convenção, da conveniência ou do artifício.

[4] O cinismo como corrente filosófica fora fundado por um discípulo de Sócrates, chamado Antístenes, porém seu nome mais representativo fora Diógenes de Sínope que pregava basicamente o desapego aos bens materiais e externos. Mas, posteriormente ser cínico passou ter significado prejorativo de pessoas sem pudor e indiferentes ao sofrimento alheio mas que em nada se assemelha a origem

filosófica e ideológica do cinismo. Nada do que Diógenes escreveu, se é que de fato escrevera, chegou até nós. Tudo o que se sabemos ao seu respeito fora contado por outros, em especial, por Diógenes Laétios, na obra "Vida e Doutrinas dos Filósofos Ilustres". Talvez por essa razão se dê maior destaque as passagens anedóticas de sua vida.

[5] Diógenes acreditavam que os humanos viviam artificialmente e de forma hipócrita e vil. O que o fez estudar o cão que é capaz de realizar suas funções corporais naturais em público, sem constrangimento, come qualquer coisa e nem faz estardalhaço sobre o lugar onde dormir. Cachorros vivem o presente sem ansiedade e não possuem pretensões da filosofia abstrata. E aprendem instintivamente quem é amigo e quem é o inimigo. Diferentemente dos humanos que enganam e são engandos uns pelos outros. Os cães reagem com honestidade frente à verdade. Indagado sobre qual raça de cão seria, respondeu: - Quando tenho fome, um maltês, quando estou saciado, um molosso, aquela espécie que as pessoas mais elogiam, mas com a qual todavia não têm coragem de sair para caçar por causa da fadiga. Assim não podeis conviver comigo, porque tendes medo de sofrer." Provavelmente o Diógenes fora o mais folclórico dos filósofos.

[6] Michel Onfray é filósofo francês, fundador da Universidade Popular de Caen. Possui um interessante site (http://mo.michelonfray.fr/) .


Autor

  • Gisele Leite

    Professora universitária por mais de duas décadas. Mestre em Direito, mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora-Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Articulista das revistas e sites jurídicos renomados. Consultora do IPAE.<br>

    Gisele Leite. Professora universitária há três décadas. Mestre em Direito. Mestre em Filosofia. Doutora em Direito. Pesquisadora - Chefe do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas. Presidente da Seccional Rio de Janeiro, ABRADE – Associação Brasileira de Direito Educacional. Vinte e nove obras jurídicas publicadas. Articulistas dos sites JURID, Lex Magister. Portal Investidura, Letras Jurídicas. Membro do ABDPC – Associação Brasileira do Direito Processual Civil. Pedagoga. Conselheira das Revistas de Direito Civil e Processual Civil, Trabalhista e Previdenciária, da Paixão Editores – POA -RS.

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