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Concurso público e a formação da lista de portadores de necessidades especiais (PNEs)

Concurso público e a formação da lista de portadores de necessidades especiais (PNEs)

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No atual contexto social, o indivíduo com limitações, com amparo na Constituição Federal e na carga principiológica que rege o ambiente democrático, não pode ser exposto à estigmatização por conta de sua condição especial.

A política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência (PNIPPD), atendendo o comando do art. 37, VIII, da Constituição Federal, determina a reserva de, no mínimo, cinco por cento das vagas ofertadas nos concursos públicos no país aos portadores de deficiência. É a aplicação clara da ideia de justiça em tratar os casos iguais de forma igual e os casos diferentes de forma diferente, resultando no princípio da igualdade proporcional (ou da igualdade aproximada – “approximate equality”).

O direito à igualdade emerge como regra de equilíbrio dos direitos das pessoas portadoras de deficiência (Araújo, 2003, p. 46). Toda e qualquer interpretação constitucional que se faça, deve passar, obrigatoriamente, pelo princípio da igualdade. Só é possível entendermos o tema de proteção excepcional das pessoas portadoras de deficiência, entendendo corretamente o princípio da igualdade na sua dialética entre a isonomia simples ou formal e proporcional ou material.

Como destaca o filósofo britânico Morris Ginsberg (1968, p. 372), o procedimento racional de aplicação do princípio da igualdade exige tratar casos iguais de igual maneira e insistir na justificação do tratamento diferencial das questões.

Por essa ótica, o art. 41 do Decreto n. 3.298, de 20.12.1999 (que Regulamenta a Lei no 7.853, de 24 de outubro de 1989, sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência) determina que "a pessoa portadora de deficiência, resguardadas as condições especiais previstas neste Decreto, participará de concurso em igualdade de condições com os demais candidatos no que concerne: I- ao conteúdo das provas; II- à avaliação e aos critérios de aprovação; III- ao horário e ao local de aplicação das provas; e IV- à nota mínima exigida para todos os demais candidatos ".

Todos os diplomas jurídicos (nacionais ou internacionais – no caso de Declarações e Convenções) repetem à saciedade a locução "igualdade de condições", deixando claro que o PNE não deve receber tratamento privilegiado, estigmatizando-o por suas limitações. O STJ já decidiu que "o candidato portador de deficiência física concorre em condições de igualdade com os demais não-portadores, na medida das suas desigualdades. Caso contrário, a garantia de reserva de vagas nos concursos para provimento de cargos públicos aos candidatos deficientes não teria razão de ser" (Recurso Ordinário em Mandado de Segurança n.º 18.669 – RJ - 2004/0104990-3).

Já no art. 42 do mesmo decreto está disposto que:

“A publicação do resultado final do concurso será feita em duas listas, contendo, a primeira, a pontuação de todos os candidatos, inclusive a dos portadores de deficiência, e a segunda, somente a pontuação destes últimos”.

Diante da aparente clareza do texto legal, a questão prática que se coloca é a seguinte: se algum PNE (Portador de Necessidade Especial) tiver alcançado a nota de corte, ele integrará a lista geral ou será deslocado para a lista especial? A resposta à indagação tem efeitos práticos inquestionáveis: se o PNE for deslocado para a lista especial, mesmo atingindo, em igualdade de condições, nota compatível com candidatos sem restrições, automaticamente abrirá espaço para outros candidatos integrarem a lista geral. Portanto, a matéria de fundo do presente ensaio não é meramente teórica ou despojada de interesse prático na rotina da Administração Pública.

Um dos princípios da Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, em consonância com o Programa Nacional de Direitos Humanos, é a "igualdade de oportunidades na sociedade por reconhecimento dos direitos que lhes são assegurados, sem privilégios ou paternalismos" (art. 5º., III, do Dec. n. 3.298/1999). Ou seja, o objetivo da lei não é tratar o PNE como "coitadinho" carecedor do travesseiro cômodo do paternalismo ou do privilégio.

Na Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, em 09 de dezembro de 1975, consta que as pessoas portadoras de deficiência "têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar de uma vida decente, tão normal e plena quanto possível". Além disso, essas pessoas não devem ser submetidas a tratamento diferencial, salvo se requerido por sua condição ou necessidade.

De igual modo, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência destaca como princípios: a não-discriminação; a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; a igualdade de oportunidades. Além de reconhecer que "as pessoas com deficiência têm capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida" (art. 12).

Se candidatos portadores de necessidades especiais, colocados em "igualdade de oportunidades" (como quer a lei) com outros candidatos sem restrições, se inserem, por mérito próprio, entre os aprovados na lista geral, por que razão deslocar seus nomes para a lista de PNEs? Não seria submetê-los a um "tratamento diferencial" gratuito e estigmatizador, sem nenhuma relação com suas deficiências ou necessidades? Se eles alcançam a nota de um candidato comum (de ampla concorrência) e são aprovados no concurso público, avalizar sua aprovação numa lista especial é dispensar tratamento paternal e privilegioso abominado pela lei (e pela Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes), levando-se em consideração, unicamente, sua condição especial e não o mérito, a inteligência e o talento.

Esse procedimento, claramente vedado pela lei, se adotado pela Administração Pública, além de violar a dignidade do PNE (tratando-o como "coitadinho" sob o viés do paternalismo e do privilégio), abre a possibilidade de fraude ao certame, na medida em que candidatos de ampla concorrência que não atingiram nota necessária para figurar entre os aprovados, se veriam alçados automaticamente à lista geral, sem mérito ou capacidade para tanto. Teríamos duas situações ruinosas para a sociedade e para a Administração Pública: candidatos PNEs tratados com paternalismo ou puro privilégio pela sua condição (deixando em segundo plano a inteligência e o mérito) e candidatos de ampla concorrência guindados à lista de aprovados sem comprovação de mérito ou talento. Em ambas situações as vítimas abordoadas são as mesmas: o estudo, o esforço pessoal, a inteligência e o mérito.

É razoável que diante de indivíduos diferentes possam existir regulações diferentes. Isso implica que a “igualdade de tratamento” deve ser quebrada quando, diante de uma determinada situação, o rompimento da igualdade for a única forma possível de efetivamente assegurar a igualdade (Neme, 2006, p. 140-141). Não havendo motivos para romper a igualdade simples em prol da igualdade proporcional, preserva-se o tratamento isonômico em prol da dignidade do próprio portador de deficiência.

Existe outra variável merecedora de análise. O candidato portador de deficiência concorre no concurso sob a condição suspensiva de sua limitação orgânica, ou seja, ao fim do certame se submete a uma avaliação médica para comprovar a sua deficiência conforme a declaração inicial (por ocasião da inscrição no concurso). Agora o x da questão: se um candidato PNE, mesmo atingindo nota que o deixe na lista geral dos candidatos de ampla concorrência, fosse deslocado para a lista especial, e ao fim, a junta médica não atestasse nenhuma deficiência, o que aconteceria? Ocorre aqui duas situações injustas: 1- o candidato não tendo sua deficiência comprovada seria alijado do certame porque fora agrupado na lista especial de PNEs mesmo tendo obtido nota capaz de pô-lo na lista dos candidatos de ampla concorrência; 2- o candidato elevado à lista geral pela retirada do PNE seria beneficiado sem qualquer merecimento. Ambas as situações se afiguram ilegais e violadoras de princípios tradicionais de nosso ordenamento jurídico (dignidade da pessoa humana, vedação do privilégio, recompensa ao mérito etc).

Confrontado com a matéria, o STJ decidiu que "o candidato cuja deficiência alegada quando da inscrição do concurso público não se confirma por ocasião da posse, por meio de laudo pericial, pode, à míngua de disposição no edital em sentido contrário, ser nomeado, observando-se a ordem de classificação geral do certame, desde que não demonstrada a existência de má-fé" (RMS 28.355/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, 5ª.T, j. 17.06.2010, Dje 02.08.2010). E quanto ao candidato de ampla concorrência que se beneficiou com a retirada do PNE da lista geral? Com a não comprovação da deficiência e a realocação do PNE na lista geral, como fica a situação do candidato de ampla concorrência? O julgado do STJ foi omisso a esse respeito.

A melhor forma de evitar esses prejuízos insolúveis é respeitar o mérito e o talento onde quer que eles se apresentem, seja num candidato de ampla concorrência ou num portador de deficiência. Se um PNE alcança nota capaz de alocá-lo na lista geral de ampla concorrência, nada justifica nem recomenda seja deslocado para a lista especial. Seria catalogar indivíduos não pela sua capacidade, inteligência e mérito, mas por suas deficiências e limitações estigmatizadoras, contrariando, claramente, a política nacional de integração da pessoa portadora de deficiência. Além disso, como garantir a "completa integração social" (art. 9º., da Lei n. 7.853/1989) dos PNEs atentando apenas para suas limitações ou premiando-os somente em função de suas deficiências?1 A política a ser dispensada a eles não pode ser, como ressalta a legislação, "paternal ou privilegiosa" (barreira atitudinal que ajuda a sustentar o processo de exclusão social), mas afirmativa, inclusiva e reconhecedora de seus valores espirituais mais nobres: inteligência, talento e mérito.

Se até pouco tempo, com base numa ideologia utilitária e capitalista, a pessoa portadora de deficiência era tida como incapaz (inútil, "apêndice inútil da sociedade", um fardo social), hoje o portador de deficiência é encarado como uma pessoa com limitações e desvantagens (França et all, 2008, p. 115), mas plenamente capaz de estudar, aprender, trabalhar e ser útil à sociedade plural em que está inserido. No atual contexto social, o indivíduo com limitações, com amparo na Constituição Federal e na carga principiológica que rege o ambiente democrático, não pode ser exposto à estigmatização por conta de sua condição especial. A estigmatização é o principal vetor que dificulta a integração social desses indivíduos, deslocando a atenção do núcleo "pessoa" para o qualificativo "deficiente" e violando o princípio magno da dignidade da pessoa humana.


Referências:

ARAUJO, Luiz Alberto David. Pessoa portadora de deficiência: proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 3. ed., rev., ampl. e atual. Brasília:CORDE, 2003.

FRANÇA, Inacia Sátiro Xavier de; PAGLIUCA, FREITAG, Lorita Marlena. BAPTISTA, Rosilene Santos. Política de inclusão do portador de deficiência: possibilidades e limites. Acta Paul Enferm 2008;21(1):112-116.

GINSBERG, Morris. Essays in sociology and social philosophy. London:Peregrine Book, 1968.

NEME, Eliana Franco. Dignidade, igualdade e vagas reservadas. In: ARAUJO, Luiz Alberto David (Coord). Defesa dos direitos das pessoas portadoras de deficiência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp.133-151.


Nota

1 Não é por outra razão que no antigo regime constitucional essas pessoas eram designadas simplesmente como "excepcionais" (CF/1969, art. 175, par. 4º) e no atual recebem a designação de "pessoas portadoras de deficiência" (por influência da terminologia em inglês de person with disabilities ou handicapped person), enfatizando o núcleo "pessoa" numa tentativa de diminuir o estigma.


Autor

  • João Gaspar Rodrigues

    Promotor de Justiça. Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro do Conselho Editorial da Revista Jurídica do Ministério Público do Amazonas. Autor dos livros: O Ministério Público e um novo modelo de Estado, Manaus:Valer, 1999; Tóxicos..., Campinas:Bookseller, 2001; O perfil moral e intelectual do juiz brasileiro, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2007; Segurança pública e comunidade: alternativas à crise, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2009; Ministério Público Resolutivo, Porto Alegre:Sergio Antonio Fabris, 2012.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, João Gaspar. Concurso público e a formação da lista de portadores de necessidades especiais (PNEs). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26290. Acesso em: 28 mar. 2024.