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O seguro de responsabilidade civil e profissional.

A falsa profilaxia do erro médico

O seguro de responsabilidade civil e profissional. A falsa profilaxia do erro médico

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Um dos temas que vêm paulatinamente ganhando espaço e importância nos meios médicos e jurídicos é o debate sobre a instituição do seguro de responsabilidade civil para cobertura de danos advindos da má prática profissional, o chamado seguro de erro médico.

O assunto não é novo, e a matéria não é de todo inovadora. Há bastante tempo já é possível, no Brasil, aos médicos e hospitais, lançar mão de apólices específicas para cobertura de responsabilidade civil.

Não há necessidade de discorrer sobre o mecanismo de funcionamento destes seguros, já que não apresentam eles diferenças substantivas em relação aos demais produtos similares existentes no mercado. Qualquer pessoa que esteja familiarizada com as linhas gerais da contratação de seguros pode compreender sem maiores problemas sua estrutura e a finalidade à qual se propõe.

A premissa básica em que se alicerça o seguro é a minimização – ou socialização – do risco individual, através da ampliação da base simultânea de contribuintes a um fundo comum destinado ao pagamento de eventuais indenizações, relativas a eventos contratualmente pré-definidos.

Através desta fórmula – que envolve complexos cálculos atuariais e de matemática financeira, de modo a permitir não só o autofinanciamento do produto, mas também a geração de lucros às seguradoras – se permitiria evitar que o patrimônio de um indivíduo se visse parcial ou completamente ameaçado por um evento condenatório imprevisível e inafastável, decorrente de uma falha profissional sua, um deslize capaz de comprometer economias de toda uma vida.

A aposta – amparada em estudos de probabilidade, é de que nem todos, ou muito poucos contribuintes do fundo securitário, sofreriam processos que os levassem a necessitar pagar indenizações ao mesmo tempo, permitindo que o somatório das contribuições conjuntas possibilite prover os meios financeiros capazes de fazer frente às indenizações.

Sua procura, entretanto, nunca foi acentuada, tornando possível presumir que tal fato ocorra pela ausência de cultura neste sentido, ou seja, de inexistir na classe médica a idéia de que um processo judicial seja uma realidade próxima, palpável ou ameaçadora.

Não são eles a solução automática de todos os males. Estes seguros excluem expressamente a cobertura por danos estéticos, uso de técnicas experimentais ou medicamentos não autorizados, intervenções proibidas, danos advindos da quebra de sigilo profissional e tratamentos radiológicos e quimioterápicos, dentre outros.

Pouco interesse desperta a adoção do seguro, também, por razões econômicas. A grande massa de profissionais de saúde não exerce sua atividade profissional de forma liberal, ou seja, em clínicas próprias e consultórios particulares. Ao contrário, são assalariados, plantonistas, ou associados a convênios e cooperativas. Não haveria, pois, como repassar seu custo, agregando-o ao serviço prestado.

Para tornar economicamente viável o seguro, haveria de ser encontrada equação capaz de torná-lo obrigatório. Em continuando de adesão voluntária, apenas os grupos profissionais historicamente mais demandados – obstetras, ginecologistas, anestesistas e cirurgiões plásticos – se mostrariam propensos à contratação do produto, encarecendo-o justamente por não poder contar com uma base ampla de contribuintes de menor risco.

E não adianta considerar a hipótese de existir outra fonte de custeio que não o próprio profissional. As precárias – para dizer o mínimo – condições da saúde pública nacional expulsam cada vez mais os afortunados que podem (ou têm de) optar pelo sistema privado de saúde. Nesta área – como em tantas outras – o Estado não atende suas mais básicas obrigações, quiçá as acessórias.

De forma geral, entendemos que as desvantagens são superiores aos ganhos proporcionados pela adoção do seguro de má prática, em virtude das razões que serão expendidas em linhas futuras.

Impende ressaltar, todavia, que doutrinadores do porte de Genival Veloso França e Miguel Kfouri Neto elencam, em diversos momentos de suas obras, as vantagens do seguro de responsabilidade civil profissional do médico. Em síntese, seriam elas:

- Melhor modalidade de liquidação de danos;

- Melhorar a condição de liberdade e segurança no trabalho;

- Assegurar o equilíbrio social e a ordem pública;

- Melhor forma de justiça social;

- Melhor forma de previdência propriamente dita;

- Livrar médico e paciente de processos penosos e demorados;

- Evitar explorações, ruínas, injustiças e iniqüidades;

- Independe da situação econômica do causador do dano;

- Corrigir o aviltamento patrimonial da vítima;

- Contribuir com o superávit do sistema em programas de prevenção do dano;

- Estimular a solidariedade social;

- Apresenta falhas mas tem o maior número de benefícios e vantagens;

- Corrige o fato de o paciente ser totalmente esquecido e o médico falsamente lembrado.

São argumentos que – não obstante a qualificação e densidade intelectual de seus defensores – não nos convencem. A adoção do seguro não resolve o problema. Apenas – e talvez – minimiza suas conseqüências. Não é possível inserir em nossa sociedade a "solução norte-americana", até mesmo por se tratar de realidades absolutamente distintas.

O próprio Miguel Kfouri, em sua obra[1], aduz:

"Assim, o sistema se equilibra de modo frágil: os lesados ainda pouco buscam reparar danos que lhes são causados pelos profissionais da medicina; os médicos, quando demandados tentam à outrance defender-se, atribuindo à fatalidade o evento danoso; os hospitais, por sua vez, nem sempre dispõem de recursos para satisfazer as indenizações ou, em relação aos médicos que integram seu corpo clínico, enfatizam que a responsabilidade é sempre pessoal do médico, que não há vínculo, e outras alegações pelo jaez.

Volvamos ao exemplo americano. Lá, as fundações que mantêm gigantescos hospitais recebem doações elevadas, os planos de saúde estipulam contribuições substanciais e em contrapartida, remunera-se adequadamente os profissionais da saúde

Em 1990, houve 18 milhões de processos judiciais nos Estados Unidos. O Judiciário consumiu recursos na ordem de 80 bilhões de dólares. Parte significativa dessas ações está representada por indenizatórias.

As seguradoras, nesse contexto, integram um sistema que se autofinancia, proporcionando relativa tranqüilidade aos médicos. Em certas circunstâncias, quando o erro médico revela crassa imperícia, afastando determinadas coberturas, o hospital pode voltar-se contra o médico, fazendo-o participar da indenização.

É o que aconteceu, por exemplo, num caso de troca de embriões, ao qual nos referiremos mais adiante, no qual, em indenização de 400 mil dólares, o laboratório arcou com 100 mil, tocando ao médico responsável pelo equívoco os restantes 300. Há que se ressaltar, todavia, que os próprios médicos, em muitos casos, também estipulam seguros individuais – além das apólices coletivas dos estabelecimentos em que trabalham.

Considerando nosso Sistema Único de Saúde, que nos grandes aglomerados urbanos revela-se apocalíptico, forçoso concluir que nem disposição para solucionar tal problema existe."

Luzia Chaves Vieira[2], por sua vez, desmistifica a "solução milagrosa" do alinhamento automático ao sistema norte-americano[3], alertando:

"Um fator adicional que agrava seriamente a ameaça da responsabilidade encarada pelos providenciadores de cuidados de saúde é a alta recompensa que pode ocorrer imprevisivelmente em um único caso. A má prática anualmente produz uma das duas ou três maiores recompensas jurídicas em todo o sistema legal americano, isso pode fazer com que as pessoas tenham a ilusão, entretanto, de que uma soma tão extraordinária de dinheiro tem sido ganha pelos pacientes vítimas típicos de negligência médica.

Antes de tudo, após a ocorrência do dano ou erro, um longo período de tempo transcorre antes que o paciente receba qualquer alívio legal. Numa ação o tempo médio a partir do dano a reclamação ou a entrada na ação é de treze meses e da reclamação ao pagamento é de vinte e três meses, dando um total de três anos. Os danos mais sérios, que geram as maiores necessidades financeiras para os pacientes, tomam um tempo consideravelmente mais longo para que se obtenha resolução, por exemplo, em Nova York, a demora médica entre o dano inicial e o eventual pagamento é de seis anos e muitas vezes de uma década ou mais para a maioria dos danos mais graves.

(...)

Mesmo depois de esperar tanto tempo apenas a metade daqueles pacientes que entram com uma reclamação efetivamente recebem algum pagamento, parcialmente por causa do fator demora já mencionado, as vítimas mais severamente prejudicadas ou que sofreram danos mais severos, aqueles com as maiores necessidades de alívio imediato, restabelecem as suas reclamações para uma proporção menor do que as suas perdas atuais, além disso cerca de um terço do dinheiro recebido pelo paciente vítima do seguro de má prática é pago para o advogado do paciente sobre uma porcentagem padronizada, uma taxa contingente ou contratada."

Apólice de tal estirpe cobriria – em tese – despesas judiciais, incluindo aí determinados tipos de indenização, em valor previamente quantificado, disponibilizando ainda advogados para acompanhamento de ações movidas contra o segurado.

A simples existência de uma apólice não eliminaria a ocorrência de demandas judiciais. Primeiro, porque ao paciente que se sentir prejudicado não importará saber se o médico possui ou não cobertura de riscos: a depender do caso, ingressará com denúncia junto ao Conselho Regional de Medicina, e acionará judicialmente o profissional, seja penal ou civilmente, em busca de reparações que acredite ter direito. E segundo, porque também se afigura razoável acreditar que, embora exista uma apólice de responsabilidade civil (ou mesmo justamente por causa disto), a empresa seguradora não efetuará de pronto o pagamento, enquanto não existir uma sentença que condene o médico em virtude de culpa deste último.

Desta forma, seguirá existindo para o profissional da medicina o efeito nocivo da sentença, com toda a carga de perda de prestígio profissional e publicidade negativa advinda de situações do gênero, ainda que os efeitos econômicos da condenação sejam minimizados pela apólice, desde que dentro de seus limites e condições fixados previamente.

Analisando a matéria, arremata o professor Gustavo Tepedino[4]:

"Não é da tradição brasileira a contratação de seguros de responsabilidade civil pelo médico ou pelos hospitais, talvez pelo fato dos montantes das indenizações impostas pelo Judiciário ainda não representarem uma ameaça à atividade profissional. Deve-se ter em linha de conta, é bem verdade, o aumento vertiginoso da litigiosidade na experiência brasileira da última década, prenúncio de uma alteração nesse estado de coisas. Já se verifica nos grandes centros, particularmente em São Paulo, ainda que sem um controle estatístico preciso, a difusão dos seguros profissionais na área médica. De todo modo, nos dias de hoje, embora se encontrem disponíveis, no mercado brasileiro, apólices apropriadas para a cobertura (sem limites legais) por danos causados por atividades profissionais, tal modalidade de seguro tem recebido reduzidíssima procura."

Admitindo-se, entretanto, a hipótese (ou opção) de sua contratação, alguns cuidados devem ser observados, no tocante a questões de caráter prático.

Nesta modalidade de seguro é comum existir apólices cobrindo diferentes tipos de responsabilidade, tais como a patronal (empregados do médico), de exploração (cobertura para instalações e equipamentos) ou de produtos (v. g., medicamentos). Tamanha precisão é mais importante para clínicas ou instituições hospitalares, nas quais existe uma ampla variedade de atividades que extrapolam o âmbito exclusivamente médico, e que deverão estar expostas (e por conseguinte, cobertas) na apólice com a maior clareza possível, para evitar que o sinistro seja rechaçado pela companhia seguradora em momento de necessidade, situação infelizmente por demais corriqueira.

A apólice de responsabilidade civil pode cobrir ou não o comportamento de auxiliares e colaboradores do médico, sendo de todo conveniente para este que não haja nenhuma exclusão, e que dê cobertura explícita a todos os seus auxiliares e funcionários, para evitar a ocorrência de sinistros não cobertos pelo seguro.

O risco segurado tanto pode abranger a responsabilidade contratual quanto a extracontratual, e é mais conveniente, em seus aspectos profissionais e econômicos, que o seguro ampare ambos os tipos de risco.

O contrato tanto pode ser individual como coletivo, mas em qualquer situação, é necessário insistir no fato de que a apólice seja suficientemente clara e abranja o maior número possível de ocorrências.

A cobertura total ou parcial dependerá sobremaneira das condições da apólice, vale dizer, do conteúdo do contrato, considerando-se o fato de não existir padrão legal específico de cobertura de seguro.

Daí se ressalta mais uma vez a necessidade de o contratante examinar detidamente as cláusulas e condições da apólice, especialmente aquelas que representem exclusão de coberturas. Por mais óbvia que pareça a recomendação, a consulta a um profissional especializado é recomendável, da mesma forma que o é a prévia consulta médica antes da utilização de qualquer medicamento.

A delimitação dos riscos e o alcance das coberturas e garantias, de forma mais exata possível, é ponto primordial na confecção do seguro, onde se descreve as condições particulares e circunstâncias peculiares desejadas pelo contratante. Justamente por ser a maioria destes contratos de modalidade considerada de adesão, estes cuidados e observações são de crucial importância.

É preciso ter em mente que as indenizações serão pagas apenas até o limite contratado. A companhia seguradora limitar-se-á ao contido na apólice – buscando sempre excusar-se a qualquer tipo de desembolso.

Outro tópico importante é a delimitação entre a quantia indenizatória segurada por sinistro e aquela limitada anualmente. É possível que haja limitação a eventos que produzam danos múltiplos, em série ou não, como por exemplo, no caso de um banco de sangue que forneça material contaminado a diversos pacientes, infectando-os a partir de uma única amostra mal analisada ou armazenada em condições inadequadas.

Para clínicas e hospitais, o seguro se afigura como razoável paliativo econômico, mas para particulares, médicos autônomos ou assalariados, entendemos de forma diversa.

Dentre as maiores desvantagens que pudemos identificar na contratação do seguro de responsabilidade profissional se encontram as seguintes:

Como (in)conseqüência da disseminação do uso do seguro de má prática, é possível que venha a ocorrer um aumento na incidência de litígios judiciais – e por conseguinte – de condenações a médicos, sob o argumento de que quem em verdade irá pagar a indenização não é o profissional, e sim uma companhia seguradora. Desconsiderar esta possibilidade é desconhecer a capacidade criativa de alguns membros da magistratura.

De outra ponta, a chamada "indústria das indenizações" também poderia ser estimulada pelo aumento das reclamações, e pela maior facilidade em obter pagamentos até o limite das quantias seguradas. Não é possível esquecer que cerca de 20% (vinte por cento) dos prêmios pagos pelos seguros em geral são decorrentes de fraudes. Não há indícios de que, neste caso, viesse a ser diferente.

Por outro lado, nunca poderá o médico eximir-se de uma eventual responsabilidade penal decorrente de seus atos ou omissões no exercício da profissão. Esta é pessoal, e portanto intransferível, não podendo ser coberta por nenhum tipo de seguro.

O mesmo pode ser dito com relação à responsabilização ética do profissional. Não há como evitar – via seguro – que seja ele submetido ao julgamento de conduta dos Conselhos Regionais de Medicina, órgãos encarregados de zelar pelo fiel cumprimento das normas de conduta da categoria. Representações e denúncias podem ser feitas ao Conselho, onde existirá procedimento investigatório próprio, donde poderá advir desde simples censura reservada, chegando à cassação da licença profissional, em casos mais graves de condenação. Nesta instância corporativa, a esfera diretamente atingida não é a patrimonial, não possuindo o seguro o condão de minimizar os danos sofridos.

Outro item não coberto pelos seguros de responsabilidade médica são as condenações por dano moral. A Constituição Federal autoriza a cumulação de indenização por dano material e moral, decorrentes do mesmo fato. Há pouco mais de uma década, os pedidos de condenação por dano moral começaram a crescer em caráter exponencial. É raro haver demanda sem que seja formulado tal pedido. Por vezes, as condenações decorrentes destes são inclusive maiores do que as indenizações por dano material. Sem cobertura para tais casos, as apólices se tornam pedaços inúteis de papel, um custo a mais para o profissional condenado.

Conforme já mencionado anteriormente, a forma de financiamento do seguro teria também o efeito colateral de elevar o custo dos serviços médicos, já que teria de ser repassado ao consumidor final – o paciente, usuário dos serviços de saúde, que via de regra já são caros ou inadequados.

Paradoxalmente, o seguro pode vir também ser responsável pelo aumento de casos de erro médico. A contratação do seguro pode incutir no médico uma falsa sensação de segurança, uma idéia de blindagem patrimonial estimulada pela aparente proteção vendida com a própria idéia do seguro. Esta sensação, que é inerente ao produto pode estimular a negligência, já que a pressão para evitar o erro – teoricamente – é menor. Imagine-se um médico plantonista, que possua vários empregos para sobreviver, e que venha a realizar séries seguidas de estafantes escalas de trabalho.

Está este profissional, por óbvio, mais propenso ao erro – em sua condição de ser humano, e portanto, falível – em virtude da natural perda de reflexos e desgaste corporal. Possuindo seguro, está ele convicto de que não corre riscos, ou que estes são mínimos.

Em uma comparação nada extraordinária, a situação acima descrita se assemelha ao caso dos caminhoneiros que se submetem a longas e ininterruptas jornadas à frente do volante, buscando cumprir seus prazos de entrega em menos tempo, e que se sujeitam ao uso de medicamentos e/ou drogas para permanecer acordados na estrada. Via de regra, os acidentes registrados são mais freqüentes e fatais.

A posição defendida pelo médico Roberto Lauro Lana[5], demonstra o equívoco a que são induzidos os profissionais da medicina, ao lhes ser assegurada uma falsa tranqüilidade no exercício de sua atividade com a adoção do seguro de erro médico:

"Tal prática, se não extingue totalmente a alta prevalência do erro médico, serve comprovadamente para reduzir e manter sua incidência em níveis razoáveis, separando os bons dos maus profissionais, e as boas das más instituições de saúde. Sem dúvida, isto equivaleria a uma proteção ou garantia da qualidade da praxis médica, contribuindo para reforçar a relação médico-paciente, e orientando a livre escolha conscienciosa e responsável. Evidentemente, os maus profissionais e as instituições de baixa qualificação, enfim todos que perpetuam a ocorrência do erro médico, seriam a priori rejeitados pelas próprias companhias seguradoras em função do alto risco estatístico (atuarial) de erro profissional. Por outra parte, isto obrigaria a uma constante reciclagem e atualização dos conhecimentos médicos, bem como a um aperfeiçoamento das instituições prestadoras de serviços comprometidas com o padrão de qualidade. Apesar da histórica e tradicional resistência do cidadão brasileiro comum a qualquer tipo de seguro, não se pode tolerar imprevidência ou descaso com vidas humanas por simples medida de economia. Há que se premiar os bons e fazer julgar os maus profissionais pelos seus pares, afastando-os da função social de prestadores de saúde."

Aceitar como verdadeiras as premissas acima seria o mesmo que acreditar que o seguro contra roubo de veículos diminuiria o índice de ocorrência do delito, ou que o seguro de vida seria garantia de vida eterna. O seguro não pode ser tratado como solução, é paliativo apenas. Sua adoção generalizada pode inclusive levar à ocorrência de mais casos, consoante já visto em linhas transatas.

Improvável acreditar que a "relação médico-paciente" seria reforçada pelo seguro. Na esmagadora maioria das situações, um médico particular (não vamos considerar a hipótese de médico do sistema público de saúde, neste caso) é procurado por: a) ser conhecido; b) ser conveniado a um plano de saúde; c) referências de terceiros próximos; e d) preço. Em casos excepcionais, ainda se considera a notória especialização em determinada área. Em nenhuma destas situações, é plausível ter como primeira pergunta do paciente o fato de possuir ou não o médico seguro de risco profissional, e muito menos ser esta condição essencial à continuidade do atendimento/tratamento.

É falacioso também o argumento de que o seguro separaria os bons dos maus profissionais, por conta de uma natural seletividade na própria contratação do produto. É sabido que o interesse das seguradoras é ampliar a base de clientes, e não restringir seu campo de atuação. O máximo que poderia acontecer é o produto custar mais caro para estes "maus" profissionais, para cobrir o risco da contratação – o que, por certo, apenas acresceria o valor a ser repassado ao paciente, consumidor final dos serviços de saúde.

A titularidade de uma apólice de seguro não representaria um "selo de garantia de qualidade profissional". Ao contrário, poderia inclusive demonstrar a eventual insegurança do médico, que estaria a assumir uma atitude defensiva.

Observe-se que o correto, o desejável, seria buscar a eliminação do erro médico punível, e não paliativos para evitar a falência dos médicos infratores, que eventualmente venham a responder por seus atos ou omissões. Distingue-se aqui o erro médico punível – aquele decorrente de omissão, imperícia, negligência ou imprudência, do erro humano, aquele decorrente da própria condição falível do ser humano que, a despeito de todo o esforço e diligência, está sujeito a fatores externos, e à própria natureza não matemática da medicina. Este último é imprevisível, e mesmo inevitável. Já aquele primeiro pode e deve ser evitado, seja através de melhor qualificação, de melhores condições de trabalho, maior conscientização profissional, etc. Não importa como, mas não há justificativas para o erro médico punível. Acreditar que um seguro é garantia de reparação do erro é abstrair da realidade toda a gama de relações humanas envolvidas num ato médico.

Medida prática mais aproveitável seria a manutenção, por parte dos sindicatos e associações médicas e também por intermédio dos conselhos regionais de medicina, de defensoria jurídica composta por advogados especializados, habilitados tanto para a orientação preventiva, quanto para a defesa em processos judiciais, sejam eles de natureza civil ou penal.

Não é difícil perceber – após esta breve panorâmica fornecida por estudiosos do tema – que o seguro de responsabilidade profissional não pode sozinho ser responsável pela solução do grave problema que é o erro médico. É um paliativo – e nada mais do que isso. A efetiva solução do problema ainda depende de amplas discussões. Um conjunto de condições – econômicas, instrumentais e jurídicas – precisa ser criado e funcionar conjuntamente, sem o que se administrará apenas um analgésico, esquecendo-se de combater a verdadeira causa da infecção.


BIBLIOGRAFIA

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Noções de seguro. Artigo extraído da internet, diretamente do endereço (http://www.ibemol.com.br/artigos/default.asp?id=52), em 31/10/01.

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13. Vieira, Luzia Chaves. Responsabilidade Civil Médica. In Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 03, Ed. Síntese, pp. 147/159, jan/fev 2000.

Responsabilidade civil médica e seguro. Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2001.

14. Weiler, Paul C. Medical malpractice on trial. Harvard University Press, Cambridge, 1991.


Notas

1.Responsabilidade Civil do Médico. Ed. Revista dos Tribunais, 4ª ed., São Paulo, 2001, p 25.

2.Responsabilidade civil médica e seguro. Ed. Del Rey, Belo Horizonte, 2001, p. 135. Mantida a pontuação do original.

3.Paul C. Weiler, professor da conceituada Harvard Law School, em sua obra entitulada Medical Malpractice on trial, transmite uma idéia bastante fiel das dimensões do problema em solo norte-americano, ensaio que achamos conveniente transcrever trecho elucidativo: "The most immediate, most obvious source of the perceived crisis in medical malpractice is the increase in total expenditures on medical liability insurance in the United States from about $60 million in 1960 to more than $7 billion in 1988. These national expenditures reached a plateau in 1988, and in many states even dropped in 1989, evoking newspaper headlines that heralded the end of the ‘malpractice nightmare’. But doctors understandably feared that the malpractice system was experiencing no more than a remission in its critical condition, already at na expenditure level that was more than a hundred times higher than it had been little more than a quarter-century earlier.

The costs of legal liability are a function of two variables: the frequency of initiating successful claims and the amount ("severity") of damages collected in successful claims. Both the frequency and the severity of medical malpractice claims have soared over the last two decades.

Frequency. The conventional measure of frequency in the medical context is the number of tort claims filed per 100 doctors. This ratio rose from about 1 per 100 doctors around 1960 to an estimated high of 17 per 100 doctors by the mid-eighties before settling back to around 13 per 100 at the end of the eighties. These higher claims rates do not simply represent a host of additional, largely spurious claims that doctors’ insurers can successfully fend off. Nearly half of all medical practice claims generate some payment, and this proportion has not dropped as the absolute number of claims has risen. According to even conservative estimates of claims frequency, roughly 1 in 25 doctors in the United States is now successfully sued for malpractice every year.

Severity. It is plausible to surmise that the large number of additional claims are a function of less severe and costly cases entering the tort system. Yet the evidence is again to the contrary. Amounts paid on successful claims rose sharply from the sixties into the eighties, making an even bigger contribution to the increase in premiums. The most eye-catching numbers are those reported by the RAND Civil Justice Project on jury verdicts in malpractice litigation in Chicago and San Francisco. The respective average jury verdicts (in constant 1984 dollars) in the two cities rose from $50,000 and $125,000 in the early sixties, to $600,000 and $450,000 in the early seventies, to $1.2 million in each city in the early eighties. Admittedly, the absolute amounts paid in these two cities as a result of jury verdicts are not representative of settlements nationally, and even in these jurisdictions jury verdicts are often cut back by trial judges and appellate courts. Nationally, however, the average malpractice settlement more than doubled from under $12,000 in 1970 to over $26,000 in 1975, then jumped to $45,000 by 1978, neary doubled again to $80,000 by 1984, and topped $100,000 by 1986 – an aggregate increase far in excess of inflation. Moreover, in states like New York and Florida that had among the highest claims frequency levels, the average settlement on paid claims was well over the national average. And there is, of course, a direct relationship between currently rising jury verdicts and the amounts that will be requeired to settle cases in the future, and consequently the likelyhood of attracting even more patients to file claims in a system that promises them more generous recoveries.

Another disturbing feature of the trend in claims severity is epitomized by the fact that in 1988 and 1989 malpractice litigation produced among the very highest personal injury awards in those years - $52 million from a hospital in Houston, Texas, and $54 million from a hospital in Los Angeles. In the eighties, aggregate liability expenditures were driven up by a relatively small number of extremely high damage awards (which included large sums for pain and suffering or punitive damages), rather than by paiments awarded in more typical cases, in which the focus was on tangible financial losses. The effect of this divergence between the median and the far higher mean award is that the premiums charged ex ante by insurers to bear the relatively unpredictable risk of a huge award are likely to be considerably higher than the amount eventually necessary to pay for total expenditures calculated after the fact.

Considered by themselves, these figures and trends appear terribly alarming; placed in the context of the overall health care system, they seem much less so. Although malpractice premiums are initially paid by the insured doctors and hospitals, these practice expenditures are incorporated into fees charged to patients, who are in turn typically covered against such charges by health care insurance. At the same time that total malpractice expenditures soared from $60 million to $7 billion, health care expenditures spiraled as well – from around $25 billion (or 5 percent of the GNP) in 1960 to $540 billion (more than 11 percento of the GNP) in 1988. In other words, malpractice insurance as a share of the nations’ total health care bill actually rose from just under 0.5 percent to a little over 1.0 percent during that period (though the $5 billion in doctors’ malpractice premiums was a much higher proportion of the $105 billion paid to physicians for their services). Indeed, because one of the key items of economic loss in malpractice cases is the medical expense incurred in treating the injury, awards (and consequently claims) have had to rise substantially simply to accommodate the much higher cost of doctors’ fees and hospital charges.

In that broader perspective, current malpractice insurance premiums – which in 1988 averaged about $16,000 per doctor (up from $8,000 in 1984), or 6 percent of the average practicioner’s gross revenues – might appear affordable, at least as a general matter. This optimistic judgment is subject, however, to three qualifications.

Specialty and location. The costs of malpractice premiums differ sharply, depending on the specialty and the location of the practitioner. For example, while a general practitioner in Arkansas or an allergist in Indiana spends less than $2,000 in annual malpractice premiums, the total malpractice insurance bill for a neurosurgeon in Dade County, Florida, or an obstetrician on Long Island, New York, is appproaching $200,000 a year, a differential that is not necessarily mathced by a comparable cushion in doctors’ revenues. Because these insurance costs are tipically fixed, rather than variable according to the level or the quality of individual practice, every doctor who wishes to open an office must pay the premiums or risk facing serious personal exposure to liability.

Revenue lag. Studies of the experience in the seventies show that doctors recovers most, if not all, the increased costs of malpractice insurance (now running as high as 25 percent of their gross revenues) by charging higher fees to their patients. However, the time lag that is inevitable in the process of adjusting medical fees to costs has been a special problem given the pattern of change in malpractice premiums. From the early sixties to the early seventies, premiums rose steadily and substantially, then suddenly doubled from $500 million to $1 billion between 1974 and 1976. After leveling off in real terms in the late seventies and early eighties, total premiums skyrocketed again, from $2.5 billion in 1983 to $7 billion in 1988. Physicians forced to absorb such erratic and unpredictable increases in what for many had become a substantial cost of practice took little consolation from macrostatistics that showed malpractice insurance premiums to be a comparatively insignificant component of the nation’s total health care bill.

Programs constraints. An additional element of the problem emerged in the eighties in the form of a variety of cost-containment programs adopted to stem the growth in the nation’s health care budget. One consequence of these programs is that doctors faced with sudden, huge malpractice premium increases (which are often retroactive for a year or more because of delays in insurance regulatory process) are prevented from unilaterally increasing the fees billed to patients to cover this additional cost of practice by regulations adopted by Medicare, Blue Cross, and other modes of patient insurance. Their frustration at being caught between two bureaucratic regimes helped motivate doctors to adopt vigorous collective action, which in turn prompted state governments to respond with tort reforms. This happened, for example, in New York in 1985, in Massachusetts in 1986, and in Florida in 1987.

It would be a mistake, however, to assume that these financial trends are the only important source of the current crisis atmosphere. In fact, for most physicians malpractice premiums are still only a minor component of their expenses, and an even smaller fraction of their gross revenues. Even though the startling percentage increase in malpractice costs has been disturbing, the absolute dollar amounts have been smaller than the increases in other office expenses (except for doctors practicing in the highest-risk specialties and locations)."

4."A responsabilidade civil médica na experiência brasileira contemporânea", in Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 2, abr/jun 2000, p. 74.

5.In "Porque um seguro de responsabilidade médica?" Artigo extraído da internet.


Autor

  • Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas

    Eduardo Vasconcelos dos Santos Dantas

    advogado em Alagoas e Pernambuco, consultor de empresas em Direito Médico, Direito do Trabalho e Direito do Consumidor

    é membro do comitê de legislação da American Chamber of Commerce (Recife), da Sociedade Brasileira de Direito Médico (SODIME) e do Instituto Brasileiro de Direito Bancário, pós-graduado em Direito Civil, com especialização em Direito do Consumidor pela Universidad de Castilla-La Mancha - Toledo, Espanha.

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DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. O seguro de responsabilidade civil e profissional. A falsa profilaxia do erro médico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 54, 1 fev. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2645. Acesso em: 28 mar. 2024.