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Direito, Constituição e Estado de bem-estar Social: algumas aproximações

Direito, Constituição e Estado de bem-estar Social: algumas aproximações

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No Brasil, a despeito de não ter havido, de fato, um Estado de bem-estar, a Constituição 1988 resgata seus ideais, mormente no que concerne às prestações sociais.

Resumo: Na medida em que a Constituição Federal brasileira retoma as promessas não cumpridas do Estado de bem-estar Social, torna-se necessário empreender os esforços na consecução de tal ideal. A exigência de políticas públicas e prestações sociais efetivas determina ao Estado, além de planejamento, a intervenção em setores específicos da sociedade. No entanto, o que muitas vezes se denota é um verdadeiro descompasso entre o texto e a realidade, tornando-se premente a necessidade de identificar o que obsta a implementação de tal modelo estatal no Brasil. Para tanto, o trabalho traz a perspectiva histórica do Estado de bem-estar para, após, traçar o cenário brasileiro, marcado por avanços e retrocessos em sua implementação.

Palavras-Chave: Estado de bem-estar Social, crise de implementação, Constituição Federal


INTRODUÇÃO

A experiência constitucional brasileira demonstra que o Estado de bem-estar Social encontra-se ainda carente de uma devida realização. Indubitavelmente, a maior contribuição do Welfare State para o direito constitucional foi o reconhecimento dos direitos humanos de segunda dimensão[1], que agregaram ao Estado um novo papel. Todavia, ainda há no Brasil um longo caminho a ser trilhado entre a declaração e a efetiva prestação dos direitos fundamentais sociais aos cidadãos.

O caminho para a concretização desses direitos fundamentais, contemporaneamente, torna-se possível com a instituição, pela Lei Fundamental brasileira de 1988, de um Estado Democrático de Direito, cuja principal característica revela a força normativa da Constituição, resgatando as promessas da modernidade, ou seja, as prestações do Estado de bem-estar.

Sendo assim, o presente trabalho tratará, de modo geral, do surgimento dos direitos fundamentais sociais e das propostas advindas com o Estado Social de Direito (Welfare State), naquilo que buscou minimizar a desigualdade gerada pelo individualismo liberal do século XVIII. Posteriormente, demonstrando que o constitucionalismo social no Brasil não passou de mera promessa, buscará demonstrar que o Estado Democrático de Direito instituído pela Constituição de 1988 retoma o compromisso para com a promoção da justiça social, intento que se viabilizará pela efetiva proteção e ampliação da dignidade da pessoa humana, o que será instrumentalizado pela efetivação dos direitos fundamentais sociais. Neste aspecto, poder-se-á definir o Estado brasileiro como Democrático e Social.

Sem pretender esgotar e trazer uma abordagem completa sobre o tema, o trabalho leva em conta os avanços e retrocessos deste modelo estatal (Estado de bem-estar Social) no Brasil e, adaptando-o ao constitucionalismo contemporâneo, buscar operar uma filtragem constitucional da reforma do Estado brasileiro, ocasião em que pode-se notar algumas tendências neoliberais no discurso e na prática.


1 BREVES REFLEXÕES ACERCA DO ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

O Estado de bem-estar Social, ou Welfare State, tem suas primeiras aparições no contexto de crise do Estado de Direito liberal-burguês, associado à própria evolução do modo de produção capitalista[2]. A relação ínsita ao capitalismo existente entre a acumulação de capital e a distribuição igualitária de renda na sociedade surge como causa para o aparecimento de um Estado voltado às questões sociais. A questão social é a que vai delimitar os traços característicos do Estado de bem-estar Social, com temas relacionados direta ou indiretamente ao processo produtivo, como relações de trabalho, previdência, saneamento, saúde, educação etc. (STRECK; MORAIS, 2006).

A fim de fundamentar o arcabouço normativo em que iriam percorrer as novas funções estatais, surgem novos documentos constitucionais, caracterizadores de um Constitucionalismo Social, dentre as quais podem ser citadas as Constituições Mexicana (1917), e de Weimar (1919)[3]. O Estado, então, deve passar a intervir na ordem econômica e social, a fim de tentar promover a igualdade em seu sentido material. Suas prestações passam a ser encaradas como um direito, uma conquista da cidadania, não mais como mera caridade (STRECK; MORAIS, 2006).

 No entanto, é preciso dizer que as primeiras formulações do Welfare State tinham por escopo a preservação do próprio capitalismo, isto no contexto dado entre a I Guerra Mundial e a crise de 1929[4]. Conforme Bento (2003, p. 4),

mesmo antes da depressão dos anos de 1930, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial, começou-se a autorizar o Estado a intervir na ordem econômica e social, para salvar o capitalismo de si mesmo. (...) Convém salientar que os objetivos desse novo perfil de Estado, ao se livrar ainda de forma branda das amarras liberais de não intervenção, consistiam na preservação do capital, vale dizer, garantir a sua acumulação sem solução de continuidade como condição de sobrevivência da própria economia de mercado.

 Este modelo de Estado Social (conservador), de início de século, não logrou operar as mudanças que se propôs, seja sob o aspecto econômico, seja sob o jurídico e o político[5]. Isto pode ser explicado, em certa medida, pelo curto período de duração das Constituições sociais, que, em virtude da baixa normatividade e efetividade, foram rapidamente suplantadas ou marginalizadas por regimes totalitários, a exemplo da Alemanha. A despeito disto, é inegável a importância da concepção trazida pelo constitucionalismo social no que se refere aos direitos fundamentais sociais (de segunda dimensão) e à transformação da esfera pública (HABERMAS, 1994).

A maior contribuição operada pelo constitucionalismo social se deu, evidentemente, pela proclamação de tais direitos, aqui denominados de direitos fundamentais sociais. Embora, de forma específica, os direitos fundamentais sociais consagrados fossem, em sua maioria, relacionados aos trabalhadores, o surgimento do Estado (de bem-estar) Social prestou-se ao amadurecimento do conceito e amplitude dos direitos fundamentais, que, nesse período, não mais eram vistos tão-somente como uma salvaguarda do indivíduo contra o arbítrio estatal. Traziam consigo, de outro modo, a ideia de dever prestacional. Deveras elucidativa, nesse sentido, as palavras de Zippelius (1997, p. 396) para quem

[o]s direitos fundamentais convertem-se, no Estado social, também em fundamentos de direitos a prestações face ao Estado, ou pelo menos em fundamentos de tarefas do Estado: as garantias de liberdade são aqui entendidas não só como permissão do laissez faire, mas também como garantias das condições do desenvolvimento da liberdade. O princípio da igualdade de tratamento converte-se em veículo para alcançar além de uma garantia jurídica meramente formal, um nivelamento social e principalmente económico.

Vale acrescentar que a efetiva transformação do Estado, passando a assumir a prestação de direitos fundamentais sociais garantidores de dignidade, ressurge com a devida força no contexto do segundo pós-guerra, fase de expansão do Welfare State[6]. A força adquirida pelas políticas keynesianas no que se refere à intervenção econômica contribuem para a expansão do Estado em suas funções, sobretudo nos países europeus. Bento (2003, p. 35-36) sintetiza as contribuições do Welfare State nos seguintes aspectos:

Do ponto de vista econômico, representou a obsolescência dos dogmas liberais, em especial o da mão invisível do mercado como único mecanismo regulador, em favor da atuação anticíclica do Estado como um segundo mecanismo de alocação de recursos, logrando assegurar o pleno emprego e serviços sociais que aliviam parcialmente o capital dos custos de sua própria reprodução e da reprodução da força de trabalho. No plano político, significou a ampliação da lógica democrática, que passa a extrair do pluralismo ideológico sua máxima fecundidade, em resposta à ameaça de regimes totalitários de direita e de esquerda. Por fim, eticamente, o Estado de Bem-estar traduziu o compromisso com os direitos sociais, a justiça distributiva e a cidadania.

A partir da década de 70, contudo, o Estado começa a sentir seu peso e a apresentar sinais de esgotamento[7]. Feitos estes breves apontamentos, passa-se à análise da (não) implementação de um efetivo Estado de bem-estar Social no Brasil e das possibilidades geradas pela promulgação da Constituição de 1988.

1.1 Da (não) consolidação de um Estado de bem-estar Social no Brasil

Na América Latina, todavia, o percurso do Welfare State não é dos mais prósperos, ou tão próximo do tipo-ideal previsto nas cartas constitucionais do período. Na esteira do que observam Streck e Morais, os países latinoamericanos possuem certas peculiaridades (processo de colonização, séculos de governos autoritários, industrialização tardia e dependência periférica) que obsta(ra)m a criação e ascensão de um Estado de bem-estar. Em verdade, o “intervencionismo estatal confunde-se historicamente com a prática autoritária/ditatorial, construindo-se o acesso da idéia de Estado Providência, aumentando as distâncias sociais e o processo de empobrecimento das populações.” (STRECK; MORAIS, 2006, p. 81).

No caso do Brasil, a construção de um Estado de bem-estar Social não se consolidou na realidade. Tal modelo estatal fora, primeiramente, vislumbrado por aqui com a Constituição de 1934, que, segundo Bonavides (2012), inaugurou a terceira grande época da história constitucional brasileira[8]. As conquistas sociais da época foram fruto da Revolução de 30, que, segundo Torres (2004, p. 143), marca o fim do Estado brasileiro como “grande instituição garantidora dos privilégios sociais e econômicos de uma elite rural, aristocrática e parasita.”

De certo modo atenta à questão social, a Revolução de 1930, que tinha à frente Getúlio Vargas, contribuiu para a promulgação da Constituição de 1934, que inovou no ordenamento jurídico brasileiro no tocante aos direitos sociais. Segundo Silva (1997), a Constituição de 1934, ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. Foi, enfim, um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo.

O texto constitucional contemplava, em sua maioria, regras atinentes aos direitos trabalhistas, criando a Justiça do Trabalho e o instituto do salário mínimo, por exemplo[9]. Sem olvidar a contribuição deste documento na realidade constitucional brasileira, mormente pela superação da concepção homem-indivíduo, a Constituição teve pouca aplicabilidade e curtíssima duração. Nas palavras de Barroso (2000, p. 20), a Constituição de 1934, “em uma fórmula de compromisso entre capital e trabalho, delineou o arcabouço formal de uma democracia social, que não se consumou”.

Sem entrar em detalhes sobre a experiência constitucional brasileira, o que importa dizer é que, no Brasil, não obstante a existência de documentos que delinearam os traços do constitucionalismo social, o Welfare State encontra-se (ainda) carente de implementação[10]. Para Bonavides (2012, p. 381), o Estado Social,

em razão de abalos ideológicos e pressões não menos graves de interesses contraditórios ou hostis, conducentes a enfraquecer a eficácia e a juridicidade dos direitos sociais na esfera objetiva das concretizações, tem permanecido na maior parte de seus postulados constitucionais uma simples utopia.

A despeito de tais avanços em matérias de direitos fundamentais sociais, o processo de modernização pelo qual passou o Brasil ao longo do século XX negligenciou a justiça social, gerando condições de desigualdade alarmantes. Avritzer (2002, p. 570) analisa, neste contexto, que “o processo de modernização brasileiro, que implicou na criação de uma burocracia especializada de acordo com as prescrições weberianas, não conseguiu, via esse processo, lidar com as necessidades sociais mais prementes do país.” Não sem motivo Hobsbawm (1995, p. 555) caracterizou o Brasil como “um monumento à negligência social”, ao compará-lo com o Sri Lanka em indicadores sociais.

Por isso, é forçoso reconhecer na Constituição de 1988 o resgate das promessas do Welfare State. Os seus fundamentos, objetivos e princípios (expressos e implícitos), agregam ao Estado Democrático de Direito as condições de possibilidade para o suprimento das insuficiências das etapas constitucionais anteriores, ainda não realizadas, “representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantias dos direitos humanos fundamentais” (STRECK, 2009, p. 37), o que exige do Estado marcante presença em diversas áreas da vida política, econômica e social.

 


2 A CONSTITUIÇÃO DE 1988 E A FORMAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE PARA UM ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL

Constata-se, literalmente, que o constituinte de 1988 teve por intenção primordial constituir a República Federativa do Brasil em Estado Democrático e Social de Direito, o qual, para além da acepção apenas política do termo, nos remete a uma verdadeira estrutura jurídica pautada em princípios garantidores dos direitos fundamentais[11]. Segundo Barroso (2010, p. 17), a Constituição de 1988

é o símbolo de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento para um Estado democrático de direito. Sob sua vigência, vêm-se realizando eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país a estabilidade institucional que tanto faltou ao longo da república[12].

Um traço marcante da Constituição brasileira de 1988 é a positivação de diversas normas próprias de um Estado de bem-estar Social. De início, veja-se seu preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Conforme Häberle (2001), o preâmbulo é uma espécie de Constituição da Constituição, funcionando como uma “ponte no tempo”, seja para evocar ou esconjurar o passado, a depender das circunstâncias históricas de cada processo constituinte; seja para falar ao presente, ocasionalmente orientando desejos; seja, enfim, para contemplar tanto o presente quanto o futuro e, com relação a este, ademais, para antecipar, quanto possível, o encontro de um povo com esse almejado porvir (MENDES et. al., 2010, p. 73-74).

A despeito do entendimento de que o preâmbulo é desprovido de força normativa, é forçoso reconhecê-lo como importante vetor interpretativo do ordenamento jurídico, pois, ainda que não possa ser exigido o seu cumprimento[13], de forma isolada, direta ou indiretamente, a Constituição a partir do texto preambular positiva preceitos orientadores. Vale destacar as palavras de Jorge Miranda (apud MENDES et. al., 2010, p. 76), para quem o preâmbulo “não é um conjunto de preceitos, é um conjunto de princípios que se projetam sobre os preceitos e sobre os restantes sectores do ordenamento – e daí, a sua maior estabilidade, que se compadecem de resto, com a possibilidade de revisão”.

Com a instituição inicial do Estado Democrático de Direito, nota-se que o constituinte buscou não somente a formulação formal de uma nova carta constitucional, mas, efetivamente, romper com o regime ditatorial que corroía os ideais democráticos e mortificava os direitos fundamentais alcançados até então[14]. Isso porque o referido modelo estatal é pautado, sobretudo, na garantia e concretização dos direitos fundamentais, de modo geral e, especialmente, dos de segunda dimensão, porquanto resgata as promessas do Estado de bem-estar Social. Exemplificando tal afirmação, note-se os incisos do art. 3º, que nitidamente trazem como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos.

O Estado Democrático de Direito pode ser definido então como uma organização política do poder, o qual se assenta em determinados princípios elementares e na declaração e garantia dos direitos fundamentais, cuja efetivação é sua finalidade e motivo pelo qual foi criado (TOLEDO, 2003, p.114). Princípios que antes se mostravam (in)suficientes dentro da realidade do Estado Liberal e do Welfare State merecem nova roupagem no Estado Democrático de Direito, possibilitando não somente sustentar a permanência de determinados direitos fundamentais, como também buscar a sua ampliação, horizontal e verticalmente, quantitativa e qualitativamente[15].

A Constituição, nesse contexto, dada sua supremacia, deve nortear toda e qualquer interpretação constitucional e infraconstitucional (constitucionalização do direito),[16] seja em razão das normas nela albergadas, seja em decorrência dos fundamentos e objetivos que constitui. Seus princípios e fundamentos devem inexoravelmente guiar a atividade hermenêutica e servir de meio para a manutenção e ampliação da dignidade da pessoa humana, do bem comum e para operar a máxima efetividade aos direitos fundamentais[17].O processo de elaboração de uma Constituição não é influenciado somente pelo contexto contemporâneo à sua criação. É verdadeiramente uma condensação inevitável de toda a história jurídico, política e social até então vivenciada, com vistas a construir uma nova realidade[18]. E, principalmente, quando esta Lei Fundamental tem a intenção de criar um Estado Democrático de Direito, deve abarcar em seu texto, direta ou indiretamente, meios que proporcionem aos cidadãos o efetivo exercício dos direitos fundamentais, de modo que também seja possível a realização da justiça social.

Sintetizando a ideia de supremacia constitucional e do papel exercido pela Constituição Federal no direito contemporâneo, vale transcrever a lição de Barroso (2009, p.84), segundo o qual

a Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como conseqüência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, a ordem jurídica contempla um conjunto de mecanismos conhecidos como jurisdição constitucional, destinados a, pela via judicial, fazer prevalecer os comandos contidos na Constituição. Parte importante da jurisdição constitucional consiste no controle de constitucionalidade, cuja finalidade é declarar a invalidade e paralisar a eficácia dos atos normativos que sejam incompatíveis com a Constituição.

A CF/88 contempla em seu texto diversos direitos fundamentais (individuais, sociais, coletivos, de nacionalidade etc.), sem prejuízo de outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5°, §2°). A positivação dos direitos de segunda dimensão, cuja gênese se deu, conforme estudado, no contexto do constitucionalismo social, é o grande traço do Estado de bem-estar na atual Constituição. Por tudo isso é que Bonavides sustenta que a CF/88 é “basicamente em muitas de suas dimensões essenciais uma Constituição do Estado social” (2004, p. 371). Para o constitucionalista,

os problemas constitucionais referentes a relações de poderes e exercício de direitos subjetivos têm que ser examinados e resolvidos à luz dos conceitos derivados daquela modalidade de ordenamento. Uma coisa é a Constituição do Estado liberal, outra a Constituição do Estado social. A primeira é uma Constituição antigoverno e anti-Estado; a segunda uma Constituição de valores refratários ao individualismo no Direito e ao absolutismo no Poder. (Id., Ibid.)

Dessas preciosas lições, e de tantas mais, é que o estudo da efetividade dos direitos fundamentais sociais não pode jamais se afastar. O contexto atual de concretização desses direitos é típico do Estado de bem-estar Social, cujo objetivo, a promoção do bem-estar, está inscrita/reproduzida, expressa e implicitamente, na Constituição brasileira. Em razão da positivação de tais metas no texto constitucional é que a Lei Fundamental brasileira é tipicamente dirigente e compromissória[19]. Nas palavras de Streck (2004) o estudo do constitucionalismo contemporâneo é tarefa que (ainda) se impõe. Para o autor, as

noções de força normativa da Constituição e de Constituição dirigente e compromissória não podem ser relegadas a um plano secundário, mormente em um país em que as promessas da modernidade, contempladas nos textos constitucionais, carecem de uma maior efetividade (Id., p. 78).

O Estado Democrático de Direito é, portanto, o locus privilegiado (STRECK, 2004) onde desaguam os ideais não efetivados do constitucionalismo social, mormente no que se refere aos direitos de segunda dimensão. E não sendo estes eficazmente garantidos pelas instâncias eleitas para sua promoção (Legislativo e, principalmente, Executivo), cabe ao Poder Judiciário possibilitar tal fruição, uma vez que, no cerne do fenômeno do constitucionalismo democrático, cabe, sobretudo, a este Poder a guarda da Constituição e a busca por sua efetividade[20].

No entanto, entre a declaração dos direitos fundamentais de segunda dimensão e a elaboração e implementação de políticas públicas que os realizem há um longo e árido caminho. Na percuciente observação de Sampaio (2010, p. 333), “[o]s direitos sociais ainda dependem de muita água sob a ponte. Os números da moratória social são alarmantes: um alto índice de pobreza e de desigualdade material convive com um número excessivo de analfabetos e de mortalidade infantil”.


3 DOS OBSTÁCULOS CONTEMPORÂNEOS AO ESTADO DEMOCRÁTICO E SOCIAL DE DIREITO BRASILEIRO[21]

Paralelamente ao processo de consolidação da democracia no país, da busca pela efetividade de direitos fundamentais e redução da desigualdade social postulada pela Constituição, o Brasil da década de 1990 foi (é) influenciado por ideias neoconservadoras, tendo como maiores expoentes Margareth Tatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos EUA. A reboque do pensamento neoliberal ocorreu no mesmo período uma verdadeira reforma do Estado brasileiro, com vistas a configurar e implementar uma administração pública de matriz gerencial[22].

Para Bento (2003), o diagnóstico neoliberal da crise do Estado de bem-estar Social é traçado em dois aspectos fundamentais: o primeiro relacionado à crise fiscal e financeira, gerado em virtude as políticas sociais levadas a cabo desmesuradamente, gerando ainda mais desemprego e gastos com seguro social; ainda, a promoção dos programas sociais necessita de mais receita e elevação da carga tributária, o que geraria menos poupança do setor privado e aumento de contribuições e descontos na folha de pagamento. Como resposta à essa crise, o neoliberalismo propõe o retorno às leis do mercado, à ortodoxia econômica e à austeridade do orçamento público (Id., Ibid.)

Tratando da dicotomia público/privado, Sarmento (2006, p. 324) vai dizer que “a partir da crise do Estado Social, que se aprofundou na fase final do século passado, já se percebe um movimento de retorno do pêndulo em direção ao privado.” E acrescenta:

O Estado, antes visto como agente redentor das classes desfavorecidas e racionalizador da economia passa a ser associado no imaginário social à ineficiência, à burocracia excessiva, ao desperdício. No mundo todo são promovidos extensos programas de privatização de empresas estatais, buscando o enxugamento da máquina pública e a devolução de amplos setores da economia à iniciativa privada (Id., Ibid.).

Para o ideal neoliberal é de se notar que, uma vez em crise, o Estado de bem-estar Social necessita ser repensado e, quiçá, suplantado para o aparecimento de um novo modelo a subsidiar todo o novo ideário que se forma no final do século XX e está presente até os nossos dias. Neste contexto de redefinição do papel do Estado, Costa (2008, p. 863) salienta que a reforma faz com que o Estado deixe der ser o “responsável direto pelo desenvolvimento econômico e social, para se tornar seu promotor e regulador.”

Na linha de frente do pensamento neoliberal vinha a noção de desvencilhar do Estado determinadas tarefas, diminuindo-o para ser eficiente. Conforme Tenório (2005, p. 101) sobre a onda neoliberal “navegava o ‘Consenso de Washington’, que trazia dentro de containers o Estado-mínimo, o superávit primário, a não-reserva de mercado e outras commodities (...).” O Consenso de Washington (1989) foi fruto da concepção hegemônica dos princípios neoliberais, e foi realizado para discutir políticas econômicas para a América Latina. As medidas reformistas nele definidas foram defendidas por instituições como o FMI (Fundo Monetário Internacional), o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. Santos elenca as medidas contidas no “receituário”, quais sejam:

1) controle do deficit fiscal; 2) cortes de gastos públicos; 3) reforma tributária; 4) administração das taxas de juros; 5) administração da taxa de câmbio; 6) política comercial de abertura do mercado e liberação de importações; 7) liberdade para entrada de investimentos externos; 8) privatização das empresas estatais; 9) desregulamentação da economia, inclusive com a implantação de normas trabalhistas; e 10) garantia dos direitos de propriedade, inclusive propriedades industrial e intelectual.”

Destas breves linhas pode-se pressentir que, por uma filtragem constitucional, o pensamento neoliberal pode levar (ou até mesmo levou) a retrocessos sociais nefastos a determinadas camadas sociais, que dependem da prestação estatal para alcançarem níveis mínimos de dignidade. A redução da intervenção estatal em prol do desenvolvimento da economia de mercado é, muitas vezes, alheia aos custos sociais que a minimização estatal representa.

Com acuidade, Bonavides dirige fortes críticas ao pensamento neoliberal, que, para o constitucionalista, cria mais problemas do que os intenta resolver. E acrescenta: “Sua filosofia do poder é negativa e se move, de certa maneira, rumo à dissolução do Estado nacional, afrouxando e debilitando os laços de soberania e, ao mesmo passo, doutrinando uma falsa despolitização da sociedade” (BONAVIDES, 2012, p. 589). Para Bonavides, as reformas neoliberais prestam-se verdadeiramente ao retrocesso social, capaz de gerar um “inevitável antagonismo fatal entre o Estado e a Sociedade.” (Id., p. 383).

Nesta mesma linha de análise seguem Streck e Morais (2006, p. 82), para quem a “globalização neoliberal-pós-moderna coloca-se justamente como o contraponto das políticas do Welfare State.” O contexto brasileiro, contudo, é ainda mais vulnerável aos influxos neoliberais, eis que aqui não houve efetivamente um Estado que providenciasse níveis satisfatórios de justiça e cidadania sociais. Os autores analisam ainda que o

estado interventor-desenvolvimentista-regulador, que deveria fazer esta função social, foi – especialmente no Brasil – pródigo (somente) para com as elites, enfim, para as camadas médio-superiores da sociedade, que se apropriaram/aproveitaram de tudo desse Estado, privatizando-o, dividindo/loteando com o capital internacional, os monopólios e os oligopólios da economia.

 Enfrenta-se, portanto, um dilema, cuja resposta é a cada dia revista, em virtude do aparecimento de novas perguntas. As recentes desonerações em matéria de Seguridade Social, por exemplo, colocam em cheque o Estado de bem-estar Social traçado na Constituição de 1988 (FAGNANI, 2012), assim com as atuais parcerias na saúde pública, cuja consequência é a redução progressiva do papel do Estado a financiador e comprador (FLEURY, 2012, p. 14).


4 CONCLUSÃO

Buscou-se trazer algumas considerações acerca do denominado Estado de bem-estar Social, cujo surgimento e expansão ocorreram ao longo do século XX. Embora suas primeiras formulações não chegassem de fato a implementar um Estado interventivo e garantidor de direitos fundamentais sociais, os ganhos obtidos pelo constitucionalismo social são sentidos até hoje.

No contexto do segundo pós-guerra é que ressurge este novo modelo estatal, com vistas a garantir o pleno emprego, as prestações em matéria de direitos sociais e o controle econômico. Como o tempo incumbiu-se de mostrar, na década de 70 o Welfare State entra em grave crise, propiciando a aparecimento de um novo ideário a justificar a diminuição do papel do Estado.

No Brasil, a despeito de não ter havido, de fato, um Estado de bem-estar, a Constituição Federal de 1988 resgata seus ideais, mormente no que concerne às prestações sociais. É cediço, no entanto, que há um grande déficit em matéria de efetividade dos direitos fundamentais de segunda dimensão, o que exige do Estado ainda mais direcionamento em suas políticas, de modo a promover a consecução dos objetivos e princípios constitucionais (art. 1º e 3º).

No entanto, o que o Brasil experimentou na década de 90 foi a reforma do Estado com vistas a diminui-lo para tornar-se eficiente. Além disso, tal reforma é vista por muitos como veiculadora de um ideário neoliberal que pode ser deveras nocivo ao Estado de bem-estar Social propugnado pela Constituição. Observam-se, recorrentemente, novas propostas surgindo de setores específicos do governo e da sociedade com a finalidade de desvencilhar o Estado brasileiro da promoção e garantia de direitos promotores de cidadania social.

Pode-se dizer, por consequência, que o Estado brasileiro é marcado por avanços e retrocessos no que se refere a implementação das propostas do Estado de bem-estar Social, mesmo quando o texto constitucional o determina. O descompasso entre o ideal e o real é algo a ser pensado, sendo que reflete a própria baixa efetividade da Constituição, gerada por sua baixa pré-compreensão (STRECK, 2009).

Neste sentido, o trabalho buscou demonstrar que doutrinas estrangeiras devem ser devidamente filtradas no contexto nacional, eis que o percurso histórico brasileiro em muito se difere dos países desenvolvidos, fazendo com que as consequências de uma irrefletida adoção de pensamentos diversos poderá levar a consequência também diversas.


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Notas

[1] Utiliza-se o termo “dimensão” em vez de “geração” porque com isso é possível conceber que os direitos fundamentais não se sucedem, ou se superam, mas se complementam e se aprimoram, no sentido de que a evolução dos direitos humanos agrega novos valores à concepção dos mesmos. Para Antônio Augusto Cançado Trindade (apud MENDES et. al., 2009, 759-760), por exemplo, o termo geração “trata-se de uma classificação que, além de inconvincente, historicamente indemonstrável e juridicamente infundada, ainda tem servido de válvula de escape para que muitos governos, descomprometidos com a efetivação dos direitos sociais, nada façam para concretizá-los, a pretexto de que  mais importante é cuidar dos direitos civil e políticos – o que ele já ‘fazem’ -, até porque, para observá-los, na quase-totalidade dos casos, basta ‘não fazer nada’, ou seja, não cometer violências contra os cidadãos”.

[2] A relação mercantilista da sociedade liberal revela-se antagônica para Habermas, fazendo necessária a existência de um Estado intervencionista: “Processos de concentração e processos de crise arrancam o véu que encobre a ‘troca de equivalentes’ e desvelam a estrutura antagônica da sociedade. Quanto mais ela se mostra como um relacionamento simplesmente coercitivo mais urgente se torna a necessidade de um Estado forte.” (HABERMAS, 1994, p. 172-173).

[3] Vale salientar, contudo, que antes mesmo das Constituições mexicana e alemã, a Constituição francesa de 1848 delineou aquele novo modelo que surgiria anos após. Em seu art. 13, diz o texto  que o Estado estabelecerá “trabalhos públicos para empregar os braços desocupados”, visando, de certo modo, a propiciar um meio para erradicar a miséria e a improdutividade dos cidadãos. Neste sentido, com relação à Constituição Francesa de 1848, afirma Comparato (2010, p. 182) que “não se pode deixar de assinalar que a instituição de deveres sociais do Estado para com a classe trabalhadora e os necessitados em geral, estabelecida no art. 13, aponta para a criação do que viria a ser o Estado do Bem-Estar social, no século XX”.

[4] Conforme Streck e Morais (2006, p. 79): “Com a I Guerra Mundial, tem-se a inserção definitiva do Estado na produção (indústria bélica) e distribuição (alimentos etc.); com a crise de 1929, há um aumento das despesas públicas para a sustentação do emprego e das condições de vida dos trabalhadores; nos anos 1940, há a confirmação desta atitude interventiva, instaurando-se a base de que todos os cidadãos como tais têm direito a ser protegidos contra dependências de curta ou longa duração.”

[5] Ainda nas palavras de Bento (2003, p. 5) “o Estado Providência, ou Estado social conservador, nem logra superar a crise do capitalismo, nem dar sustentabilidade às instituições democráticas, nem evitar a emergência de regimes totalitários, que se aproveitaram justamente de sua fragilidade para desmontá-las, mas, pelo contrário, acarretou a preda da juridicidade das Constituições, tornadas, pela natureza programática de suas disposições, mais um documento político, uma carta de intenções, do que um diploma jurídico.”

[6] Bento (2003, p. 15) traz a definição de que a fase de expansão do Estado Social “diz respeito ao espetacular consenso político obtido em torno das políticas keynesianas de intervenção econômica e social.” E prossegue: “No pós-Segunda Guerra Mundial, a necessidade de reestruturação das economias européias, por um lado, e de fazer frente à assustadora expansão do socialismo soviético, por outro, resultou no Plano Marshall, o qual possibilitou que a economia mundial experimentasse um expressivo e ininterrupto crescimento econômico durante praticamente três décadas, combinado com um mais que proporcional aumento de qualidade de vida, de bem-estar e de pleno emprego.

[7] Para uma satisfatória compreensão deste período, consultar Bento, 2003, p. 35 e seguintes.

[8] Para o constitucionalista, esta época é marcada por “crises, golpes de Estado, insurreição, impedimentos, renúncia e suicídio de presidentes, bem como queda de governos, repúblicas e Constituições.” (BONAVIDES, 2012, p. 378)

[9] Bonavides (2004, p. 369) cita como novas matérias constitucionais: “a subordinação do direito de propriedade ao interesse social ou coletivo, a ordem econômica e social, a instituição da Justiça do Trabalho, o salário mínimo, as férias anuais do trabalhador obrigatoriamente remuneradas, a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa, o amparo à maternidade e à infância, o socorro às famílias de prole numerosa, a colocação da família, da educação e da cultura debaixo da proteção especial do Estado”.

[10] Oportunas as palavras de Mello (2006), para quem a Constituição Brasileira de 1988 representa perfeitamente o ideário do Estado Social, que, todavia, entre nós, jamais passou do papel para a realidade. Trazendo alguns exemplos, o autor cita ainda alguns artigos: arts. 1º, III e IV, 3º, 3º, I, III e IV, 7º, II e IV, 170, caput, e incisos III, VII e VIII, 184, 186, IV, 191, 193 e 194.

[11] A adjetivação que se dá ao Estado não é mera enunciação formal. Segundo Silva (1997, p. 120), a democracia há de ser um meio e instrumento de realização de valores essenciais de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária, em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos. Além disso, a democracia deve ser participativa, pluralista e destinada a romper com as opressões e desrespeito a todo e qualquer direito, principalmente os fundamentais.

[12] “(...) O Constitucionalismo, que esteve um tempo em descrédito, consagrou-se como a via adequada para implementar a mais adequada democracia possível. A força da Constituição disputou com os Partidos Políticos, com as Forças Armadas e com a crença fundamentalista. Mas restou vitoriosa. E vitoriosa porque ofereceu ao imaginário das pessoas aquilo de que elas não podem prescindir: legitimidade, limitação do poder e valores” (NALINI, 2010, p. 978).

[13] Cf. STF, ADI nº. 2.076, Relator:  Min. Carlos Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 15.08.2002, DJ 08.08.2003.

[14] Conforme Barroso (2010, p. 18), “[a] Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira. Sob sua vigência, superamos todos os ciclos de atraso: eleições periódicas, Presidentes cumprindo seus mandatos ou sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz”.

[15] Afirma Piovesan (2010, p. 24) que a Carta de 1988 introduz “indiscutível avanço na consolidação legislativa das garantias e direitos fundamentais e na proteção de setores vulneráveis da sociedade brasileira. A partir dela, os direitos humanos ganham relevo extraordinário, situando-se a Carta de 1988 como o documento mais abrangente e pormenorizado sobre os direitos humanos jamais adotado no Brasil”.

[16] Cf. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista de direito constitucional e internacional, São Paulo, n. 58, p. 129/173, jan.-mar. 2007.

[17] Segundo Streck (2002, p. 127-128), “a noção de Estado Democrático de Direito está, pois, indissociavelmente ligada à realização dos direitos fundamentais. É desse liame indissolúvel que exsurge aquilo que se pode denominar de plus normativo do Estado Democrático de Direito”.

[18] Ensina Barroso (2010, p. 15) que o poder constituinte “é um fato político, consistindo na capacidade de elaborar e fazer valer uma Constituição. Situa-se ele na confluência ente o Direito e a Política, e sua legitimidade repousa na soberania popular. Nas sociedades democráticas, costuma vir associado a um momento cívico especial, caracterizado pela mobilização ampla do povo em torno de novos valores e de uma nova ideia de Direito”

[19] “Ao propor a edificação de uma pátria justa, fraterna e solidária, a Constituição de 1988 pode ser caracterizada como uma Carta dirigente. Evidencia as trajetória adequadas para a consecução de uma sociedade qualificada pela justiça, fraternidade e solidariedade. Justamente por isso, reclama um protagonismo invulgar do operador do direito” (NALINI, 2010, p. 979).

[20] Veja-se como exemplo o caso da judicialização do direito à saúde, cujas demandas tratam, predominantemente, da busca por medicamentos e/ou tratamentos pela via judicial .” Dada a relevância do tema, o Supremo Tribunal Federal, visando à elucidação em determinadas questões atinentes ao direito à saúde, realizou nos dias 27, 28 e 29 de abril, e 4, 6 e 7  de maio de 2009, Audiência Pública destinada a ouvir advogados, defensores públicos, promotores e procuradores de justiça, magistrados, professores, médicos, técnicos de saúde, gestores e usuários do Sistema Único de  Saúde. Foram ouvidos, ao todo, 50 especialistas que abordaram os mais diversos temas, como, por exemplo, o acesso às prestações de saúde no Brasil e os desafios ao Poder Judiciário, a responsabilidade dos entes da Federação, o financiamento e a gestão do SUS, dentre outras questões de extrema relevância para a compreensão do tema. Os debates da Audiência Pública foram compilados, podendo ser encontrados em BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Audiência Pública: Saúde. Brasília: Secretaria de Documentação, Coordenadoria de Divulgação de Jurisprudência, 2009.

[21] A breve referência que ora se faz ao pensamento neoliberal não carece de uma análise aprofundada do que, de fato, o influenciou, seja no âmbito estrangeiro ou no contexto nacional. Isto é, pretende-se trazer para o presente trabalho a ideia principal do pensamento neoliberal de “enxugamento” do Estado, a fim de demonstrar que esta aposta no Estado mínimo pode gerar consequências nefastas à sociedade, mormente quando o seu pacto fundante – a Constituição – guia-se em direção oposta.

[22] Cf. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. A Reforma do estado dos ano 90: lógica e mecanismos de controle. Brasília: Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado, 1997.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LOPES, Nairo José Borges. Direito, Constituição e Estado de bem-estar Social: algumas aproximações. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3865, 30 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26563. Acesso em: 26 abr. 2024.