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Hermenêutica do art. 217-A do Código Penal

Hermenêutica do art. 217-A do Código Penal

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O presente texto se propõe a discutir a exata dimensão da proteção contida no art. 217-A do CP, à luz dos princípios penais e de hermenêutica.

INTRODUÇÃO

Tema cada vez mais recorrente é acerca do consentimento da vítima em crimes sexuais quando ainda adolescentes ou sendo pessoas incapazes, mormente quando se constata na sociedade que é cada vez mais comum iniciação precoce em relações sexuais.

Acompanhamos hoje a geração “Y” de perto, totalmente conectada com a informática, e sintonizada com as informações trazidas pela Internet, despertando curiosidade e desejo cada vez mais precoce para tudo que é feito no mundo dos adultos, cujo contexto se insere a sexualidade.

O Direito, como tutor de fenômenos socais, mormente quando bens jurídicos estiverem em conflito, como é o caso da liberdade sexual, não pode ficar a par dessa discussão e constatação.

Nesse contexto, que o presente texto se propõe a discutir a exata dimensão da proteção contida no art. 217-A do CP, à luz dos princípios penais e de hermenêutica.

Do crime de estupro de vulnerável.

O crime de estupro de vulnerável, presente no art. 217-A do Código Penal, traz como conduta típica ter conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos, nas mesmas penas incorrendo quem pratica as ações descritas alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Pois bem. O tipo não faz referências a violência ou grave ameaça, mas apenas a condição particular da vítima, parecendo ser um crime de leitura fechada.

Todavia, situações intermediárias e excepcionais põem o intérprete em conflito, tornando necessário um abrandamento da leitura do dispositivo em questão, sob pena de ficarmos diante de uma antinomia jurídica, proibindo ao mesmo tempo que se permite.

Deve ser lembrado que a interpretação do presente crime deve ter em mente que os conflitos existentes na aplicação da norma jurídica são quase sempre aparentes, cabendo ao hermeneuta sempre a melhor interpretação que não negue vigência a nenhuma das regras e garanta a aplicação de ambas, evitando interpretações incoerentes.

Nessa tarefa hermenêutica importante salientar o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, o qual não só vale para a criação de crime, mas também para limitar o seu espectro de abrangência, devendo o hermeneuta identificar o grau de aplicação da norma aos fatos ocorridos.

Vejamos uma antinomia criada pela leitura fechada do artigo de lei em questão.

Ao incriminar o sexo ou ato libidinoso com doente mental que não tenha discernimento para a prática do ato, embora vise proteger a sua condição de fragilidade, também impõe negação do direito a uma vida sexual regular e de procriação a esse mesmo sujeito.

Lembremos que a missão do Direito Penal é proteger bens jurídicos relevantes e GARANTIR AS LIBERDADES INDIVIDUAIS e coletivas, por meio da coerção. Assim, o legislador não pode suprimir a liberdade de alguém a pretexto de querer protegê-la.

Ademais, nunca se pode esquecer que ao mesmo tempo que não existem direitos absolutos também não existem regras absolutas ou totalizantes, uma vez que a absolutização de um direito ou regra implicaria, inevitavelmente, a negação mesma do Direito como um todo.

De modo que, apesar de inegável importância de tal proteção a pessoas em condição de fragilidade, situações hão de haver que põem o interprete em conflito. Imaginemos uma doente mental, com formação perfeita das gônodas sexuais e que possua relevante grau de entendimento, ainda que comparável a uma adolescente, mas que se sinta bem ao lado de imputável, com o qual tenha até filho, mantendo com ele relacionamento estável.

Psicoterapeutas da área não negam a sexualidade do doente mental, pois muitos deles, senão todos, a depender do tipo de problema, têm a plena capacidade reprodutiva. Há, pelo contrário, até recomendação, de modo a torná-los menos agressivos, e facilitar o relacionamento interpessoal. Para tanto, recomendamos a leitura ao texto escrito pelo Dr. Fabiano Puhlmann Di Girolamo para a da Revista Nacional de Reabilitação - Ano V - Nº 24 - Janeiro/Fevereiro 2002¹, corroborando com o nosso sentir.

Segundo o texto citado, os pais e professores da área de saúde e educação precisam lembrar que a vivência sexual do deficiente mental, quando bem conduzida, implementa o desenvolvimento afetivo, a capacidade de estabelecer contatos interpessoais, fortalecendo a auto-estima o bem-estar, o amor-próprio, e a adequação à comunidade.

Todavia, em leitura fechada do delito de estupro de vulnerável, incriminando o só fato de manter conjunção carnal com pessoas elencadas no tipo em questão, uma doente mental jamais terá o direito de relacionar-se com pessoa imputável, pois o agente que aceitasse dar-lhe uma chance incorreria em crime bárbaro, sendo condenada a, em nome da proteção, levar uma vida casta, só podendo admitir sexo entre inimputáveis, como se houvesse categorização ou espécie de homem, o que foi vedado em julgado do STF ao tratar do tema de racismo.

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. (...) 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. (...). (STF - HC: 82424 RS , Relator: MOREIRA ALVES, Data de Julgamento: 16/09/2003, Tribunal Pleno).

Entendemos que a mesma leitura relativizada ao crime em questão proposta acima deve também ser aplicada a maiores de 12 anos e menores de 14, pois neste espaço intermediário de idades temos situações aparentemente conflituosas, caso desconsiderássemos o consentimento da vítima a prática sexual.

Exemplo: maior de 12 anos já é considerada adolescente pelo ECA, e por isso, pode sofrer medida socioeducativa caso faça sexo com outro menino de 10 anos, pois estaria, em tese, praticando ato infracional equiparado a estupro de vulnerável. Mas se essa mesma menina de 12 anos relacionar-se com adulto de 18 anos, ela se torna vítima e o agente réu.

Veja só o absurdo então: caso fazer sexo com menor de 14 anos for sempre estupro, é melhor para a pessoa de 13 anos, que já revele interesse, curiosidade e relativa maturidade corporal e psíquica, praticar sexo com maior de 18 anos do que com menino de 11 anos, pois com este ela é menor infratora à luz da disposição do ECA e com o de 18 quem sofre a ação do Estado é o maior de idade e a pobre menina será vítima.

É teratológico, mas esta é a conclusão que se chegaria caso o consentimento de quem é maior de 12 anos fosse desprezado. Limitaria a liberdade de escolha da adolescente e muito pior, estimularia uma menina já enquadrada em ato infracional a buscar satisfazer sua lascívia “precoce” com adulto, pois neste caso, ele quem sofre.

Lembremos que esse marco dos 12 anos fixados pelo ECA é muito mais plausível do que os 14 anos do Código Penal. O ECA chegou a esse patamar depois de discussão do Projeto de Lei com equipe interdisciplinar chegando a conclusão que em 1990 adolescente teria 12 anos, sendo que a Lei 12.015/2009 andou mal nesse sentido.

Veja que se em 1990 chegou-se a conclusão que 12 anos começa a adolescência, cuja idade serve inclusive para aplicação de medidas socioeducativas, imaginemos 23 anos depois (2013), como está a cabeça do jovem, diante de tanta tecnologia e informação. Crianças são cada vez mais precoces em todos os ramos do conhecimento e na manipulação de tecnologias o que permite dizer até que daqui a pouco até o ECA precisa ser revisado.

Na verdade a Lei 12.015/2009 apenas transportou o revogado artigo 224 que presumia a violência quando vítimas tivessem 14 anos ou fossem doentes mentais incapazes de entender o ato. Tal regra foi instituída em 1940, portanto, anterior ao estudo do ECA. À época do CP original, 1940, não se duvida que 14 anos pudesse ser o marco da adolescência, mas em 1990 isso já mudou, no entanto, não percebeu essa matriz interpretativa o legislador reformador de 2009, causando tal conflito.

O sistema jurídico não pode apresentar antinomias reais, devendo as regras em conflito serem sopesadas e afastada as interpretações que conduzissem ao caos ou incoerência como é a interpretação que não admite ter valor o consentimento da maior de 12 anos e menor de 14.

Entendemos, nesse prumo, que as hipóteses legais de vulnerabilidade têm, necessariamente, caráter relativo, admitindo, por isso, prova em sentido contrário.

Assim, ao menos em relação a adolescentes (maiores de 12 anos, como reza o ECA), é razoável admitir-se prova em sentido contrário à previsão legal de vulnerabilidade, de modo a afastar a imputação de crime sempre que se provar que em sentido de maturidade (precoce), o individuo de fato não sofreu absolutamente constrangimento ilegal algum, inclusive porque lhe era perfeitamente possível resistir, sem mais, ao ato.

Nos ensina ainda Luiz Flávio Gomes² que entre as causas excludentes do crime, por vezes supralegais, encontra-se o consentimento do ofendido. Segundo o autor, em relação a sua natureza jurídica, ora exclui a) a tipicidade formal (quando o tipo legal exige o dissentimento da vítima, como na invasão de domicílio, estupro com redação anterior a lei 12.015/2009), ora exclui b) a tipicidade material ou normativa, porque retira o desvalor da conduta e do resultado (isso ocorre quando o bem jurídico é disponível, a vítima capaz e o consentimento dado antes ou durante o delito, com consciência do agente em relação ao consentimento), ora exclui c) a antijuridicidade (constituindo causa supralegal, ocorrendo quando o juiz tem que valorar os bens jurídicos em conflito). E as vezes funciona como d) causa de diminuição de pena (seria o caso da eutanásia, pois a vida é bem irrenunciável, não servindo para excluir o crime, apesar de existir tendência a revisão desta tese).

Em todos os casos que excluem o crime fundamental é que o consentimento válido da vítima afasta a conflitividade que é barreira da incidência do Direito Penal. Sem conflitividade não há delito.


Notas

1 - Texto extraído http://www.artsbrasil.org.br/fase2/materia.asp?p=131. O Dr. do Fabiano Puhlmann Di Girolamo  é Psicoterapeuta e educador sexual, especialista em psicologia hospitalar de reabilitação pela F.M.U.S.P; em reabilitação pela Secretaria de Saúde do Estado; em sexualidade pelo Instituto H.Ellis; em integração social de pessoas deficientes pela Universidade de Salamanca-Espanha; Coordenador do serviço de psicologia da I.B.N.L; Membro do corpo docente dos cursos de pós-graduação da SBRASH e Faculdade de Medicina do ABC;

2 - Direito Penal, Parte Geral, v. 2, Editora Revista dos tribunais, 2007, pág. 368 e seguintes e 452.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA JÚNIOR, Geraldo Alves. Hermenêutica do art. 217-A do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3874, 8 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26600. Acesso em: 28 mar. 2024.