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A prevalência do interesse privado e a desconstrução da supremacia extrema do interesse público

A prevalência do interesse privado e a desconstrução da supremacia extrema do interesse público

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O interesse público não pode reinar de modo absoluto, pois o Estado só terá realizado seus fins se cada indivíduo que o compõe for respeitado e valorizado por sua essência.

Não raras vezes um particular, seja um indivíduo, seja uma pessoa jurídica, vê-se tolhido e limitado no exercício de um direito, em nome da supremacia do interesse público. Todavia, por vezes o interesse público é defendido de forma genérica de modo que, ao debruçar-se sobre os fundamentos do ato administrativo ou judicial que o eleva, não se pode aferir com precisão as exatas razões da limitação do interesse particular, frente a um interesse público.

Diante destas hipóteses, passa-se a questionar: o que vem a ser o interesse público? Qual o seu real alcance? A supremacia do interesse público pode ser, de fato, elevada a categoria de princípio? A sua flexibilização em detrimento da prevalência de direitos fundamentais não estaria condizente com os fundamentos da República Federativa do Brasil?

No propósito de lançar fundamentos para tais questões, os juristas Alexandre Santos de Aragão, Daniel Sarmento, Gustavo Binenbojm, Humberto Ávila e Paulo Ricardo Schier, na obra “Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público”,  organizada por Daniel Sarmento*, debatem em torno da dogmática que sustenta a supremacia do interesse público, trazendo elementos da doutrina estrangeira e análise de fatos, defendendo, em síntese, que a sociedade clama por mudanças em tais paradigmas.

Luís Roberto Barroso, ao prefaciar a obra, reconhece a ousadia da proposta dos autores, concordando que, diante do atual cenário de mudanças normativas e, principalmente, mudanças sociais, torna-se imprescindível uma reanálise da técnica jurídica dominante, inclusive no âmbito do Direito Administrativo.

O que se percebe é que a Constituição Federal de 1988, ao possibilitar o uso de princípios não expressamente previstos fez emergir, no seio doutrinário, argutos defensores da força normativa dos princípios, como fontes de regras jurídicas. A partir de então, surge uma crescente necessidade de interpretar-se todo o ordenamento jurídico, tendo como pano de fundo os dogmas da Constituição Federal. A isso se chama Constitucionalização do Direito, fruto do pós-positivismo.

Ao apresentar a obra que sugere a necessidade de desconstituir a supremacia extrema do interesse público, Barroso destaca que tal interpretação, ainda que decorrente de fundamentos da nova ordem constitucional, não há que afastar a importância do Estado como instituição de controle da sociedade, que o autor considera como o “protagonista da história da humanidade, seja no plano internacional, seja no plano doméstico” (p.10).

De fato, as ideias dos autores da obra não divergem de tal posicionamento.  Não buscam afastar a força do Estado, como ente indispensável a organização da sociedade. Porém, no atual cenário mundial, a perda de parte da soberania dos Estados é um inegável efeito da globalização.

Se em tempos remotos o foco do Direito era regular a vida em sociedade, momento em que as regras e decisões eram sempre fundamentadas no bem comum, hoje os interesses individuais passam a ocupar uma posição relevante, não mais se podendo afirmar que o interesse coletivo, a dar sustento a definição de “interesse público”, é o que traduzirá efetivamente a almejada paz e bem estar social.

Neste ínterim, destaca-se a importância do prefácio introdutório da obra, quando busca, com clareza, apontar a noção que traz o conceito de “interesse público”, no âmbito do direito contemporâneo.

Em que pese apenas inexpressiva parcela de doutrinadores debruçarem-se ao estudo do tema, torna-se indispensável discorrer sobre as dimensões que tal conceito alcança, para contextualizar a proposta de “desconstruir” o princípio da soberania do interesse público.

Neste linha, Barroso – invocando as lições de Celso Antônio Bandeira de Mello – relembra que o interesse público define-se por duas óticas: o interesse público primário e o interesse público secundário.

O interesse público primário correspondente a soma de interesses dos indivíduos, enquanto membros de uma sociedade. Se o Estado tem por fim organizar a sociedade e promover o bem estar, sua atuação não pode afastar-se das necessidades primárias dos indivíduos que o compõe. O interesse público secundário, de outro lado, relaciona-se às necessidades do Estado enquanto pessoa jurídica de direito público, e dizem respeito aos aspectos estruturais que o sustenta.

Nas palavras de Barroso:

O interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica - que se trate da União, do Estado-membro, do município ou de suas autarquias. em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas. (p. 13)

Partindo-se destes pressupostos, ocorrendo uma situação de conflito entre um interesse público primário e um interesse público secundário, não soa duvidoso que há de prevalecer o interesse público primário, que é a manifestação dos fins imediatos do Estado.

Problema há de surgir quando antagonizarem-se de um lado, o interesse público revestido do interesse particular de um ou alguns indivíduos e, de outro lado, o interesse particular fundado em uma meta coletiva.

Isso porque a nova ordem constitucional, vigente a partir de 1988, foca o indivíduo, elegendo como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana e, com o fim de realizá-la, consagra uma série de direitos fundamentais.

É neste contexto que surge o grande embate: se o Estado deve realizar os fundamentos e objetivos inseridos no seu texto Constitucional, resguardando a observância aos direitos fundamentais do indivíduo, será coerente com a ordem vigente sufocar um direito desta categoria, em nome do “interesse público”?  E ainda, se a realização do interesse público, em sua dimensão primária, consiste em atender necessidades particulares, qual será o critério para resolução dos conflitos emergentes, dentro dos imperativos que se extrai da Constituição Federal?

Alexandre dos Santos Aragão analisa a questão da supremacia do interesse público, sob o foco dos elementos do Estado de Direito e da hermenêutica do Direito Público contemporâneo.

O autor pondera que, nas raízes históricas, o Estado necessitava de um instrumento que lhe assegurasse supremacia, perante os demais sujeitos da sociedade, para que mantivesse incólume o monopólio do poder. A este fim, emergiu o Direito Administrativo, introduzindo na ordem jurídica a supremacia do interesse público, como princípio a  sustentar a prevalência da vontade do Estado soberano.

Deste modo, em havendo conflitos, era inquestionável que o elemento de decisão fundamentava-se na supremacia do interesse público.

Entretanto, à luz da Teoria da Argumentação, há se considerar que a pluralidade de argumentos nas diversas questões tratadas pelo Direito Público exige uma metodologia adequada para limitar a atuação do julgar e do administrador, uma vez que torna-se superado o fundamento de que o Direito Público presta-se apenas a garantir o interesse do Estado.

Se como visto, atualmente vigora a ideia de que o interesse público realiza-se com a maior satisfação de interesses privados, de modo que tais conceitos deixam se ser antagônicos, urge indispensável a reanálise dos critérios até então balizados.

A técnica da ponderação dos interesses em conflito exige adequação. Isso porque tal critério implica demasiada subjetividade, a permitir que se invoque, como fundamento de decisão, um argumento genérico que, no fundo, antes de representar uma decisão “ponderada”, justificará uma verdadeira arbitrariedade.

É o que o mundo já viu, como no exemplo citado por Aragão, em que medidas legais discriminatórias e atentatórias à liberdade de locomoção foram implementadas e consideradas constitucionais, em nome da segurança pública, dentro de uma ordem jurídica que resguardava aos indivíduos, o referido direito cerceado.

Para evitar tamanha aberração, a moderna hermenêutica jurídica sugere, como instrumento limitador da supremacia do interesse público, a readequação dos argumentos jurídicos utilizados, para que se defina, em um primeiro momento, o seu real alcance e, posteriormente, se fixe ordem de prevalência.

Nesta linha, deve-se ainda ponderar que os argumentos jurídicos diretamente relacionados à uma regra analisada devem prevalecer sobre os argumentos metajurídicos, de índole altamente subjetiva, que muitas vezes traduzirão apenas o perfil psicológico do julgador, ao invés de representar uma justa equação dos valores conflitantes.

A Constituição Federal vigente traz, em seu conteúdo, uma série de argumentos com carga de objetividade suficiente a embasar decisões que visam por fim a conflitos que envolvam um interesse público. Definindo o alcance de tais argumentos, as soluções jurídicas estarão mais direcionadas ao ideal de justiça e bem estar social, fins primários do Estado. É de ser ressaltado que tal instrumento delimitador já foi inclusive utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, tendo a corte afirmado que a invocação genérica de proteção de a “saúde pública”, não se mostrava plausível para embasar a produção de efeitos de ato normativo que trazia demasiado prejuízos à empresas de determinado setor.

Seguindo o propósito da obra, Sarmento discorre sobre a atual dicotomia entre os interesses públicos e privados, reafirmando a tese já levantada da insuficiência da supremacia do interesse público como critério de resolução de conflitos nesta seara.

Na busca de novos instrumentos dogmáticos e jurídicos que sirvam de alternativa ao embate, Sarmento analisa diversas teorias utilizadas pelo direito estrangeiro, afim de avaliar a compatibilidade de tais dogmas, frente a atual conjuntura constitucional brasileira.

A Teoria Organicista apregoa que as comunidades constituem-se um “corpo vivo”, formado por um conjunto de indivíduos, tal qual um corpo humano. Assim, o indivíduo deve ser considerado apenas como uma parte integrante de um todo, e não por seus valores em si mesmo. Deste modo, as necessidades particulares e os interesses individuais são totalmente desprezados, ante a necessidade de ponderar o que é importante para a coletividade.  O organicismo é a face totalmente oposta do individualismo: enquanto para esta teoria o indivíduo é o centro do Estado, o qual passou a existir para regular as relações sociais, para o organicismo o Estado e a comunidade são o foco, sendo, pois, plenamente aceito – segundo esta teoria, a supremacia do interesse público, independentemente do direito individual sacrificado.

Todavia, ainda que em um passado tal concepção possa ter fundamentado as controvérsias decorrentes dos interesses privados, frente aos interesses públicos, é inviável invocá-la nos dias atuais, por total incompatibilidade com o princípio da dignidade da pessoa humana.

Uma segunda teoria a servir de ponto de partida para criação de novos métodos de ponderação de interesses diante de conflitos emergentes é o Utilitarismo. Defendida por Jeremy Bentham e Stuart Mill, entre outros pensadores, a teoria utilitarista sustenta a igualdade absoluta de todos os integrantes da sociedade, de modo que a solução das controvérsias deve utilizar um critério quantitativo, puramente racional, afastando-se de qualquer carga valorativa. Em consequência, a observância dos direitos fundamentais somente justifica-se quando for o instrumento pelo qual seja possível garantir a maximização da felicidade e o bem estar geral, e não pela preponderância que se deve dispensar a noção de dignidade da pessoa humana.

O utilitarismo associa a noção de justiça ao de utilidade: o que importa é o maior número de interesses satisfeitos, ainda que para tanto tenha-se que ferir por inteiro a dignidade de um indivíduo, ou um menor grupo de pessoas. Para este teoria, os conflitos devem ser dirimidos com vistas a proporcionar a maior quantidade de pessoas felizes – a maximização da felicidade – independente dos caminhos que deverão ser trilhados para tanto.

Entretanto, de acordo com atual conjuntura jurídica brasileira, que consagra a Dignidade da Pessoa Humana como fundamento maior, a adoção da teoria utilitarista como instrumento para dirimir conflitos entre o interesse público e o privado, não encontra guarida.

Em sentido totalmente oposto, Sarmento traz à análise o individualismo. Esta teoria apregoa que o indivíduo é o centro da sociedade, devendo ser respeitado em todos seus anseios e sua liberdade, reconhecendo-se a prevalência do interesse privado sobre o interesse público. É a teoria que sustentou o laissez faire, laissez passer, que passou a reger a economia no período pós-revolução francesa. No entanto, em uma sociedade integrada por indivíduos das mais diversas estirpes, o respeito total ao individualismo pode trazer as indesejadas distorções em que os particulares mais fortes dominam os mais fracos. E é neste cenário que adveio o Estado Social, para inserir medidas limitativas a liberdade extrema pregada pelo individualismo. Analisando-se a aplicabilidade do individualismo frente aos postulados da Constituição, percebe-se a incompatibilidade da teoria diante de uma ordem jurídica que, no propósito de promover a dignidade da pessoa humana, e construir uma sociedade justa e solidária, eleva a categoria de direito fundamental uma série de direitos sociais. Em consequência, também não há de ser um instrumento adequado para dirimir o conflito objeto desta análise.

Para Sarmento, a Constituição Federal de 1988 apresenta um modelo liberal comunitarista, ou comunitarista liberal, porquanto busca conciliar os interesses particulares, na linha consagrada pelo individualismo, mas sem olvidar a necessidade de respeitar os interesses da coletividade. Dentro de tal ótica, é inviável a fixação de elementos fechados para dirimir os conflitos existentes entre indivíduos e sociedade, tendo em vista que a solução deve observar as mudanças no contexto social e político.

A Constituição Federal consagra, portanto, o “personalismo”, que, nas palavras de Sarmento “afirma a primazia da pessoa humana sobre o Estado e qualquer entidade intermediária, e reconhece no indivíduo a capacidade moral de escolher seus projetos e planos de vida” (.p.97). O personalismo defende a prevalência dos interesses do indivíduo, mas enquanto ser social, integrante de uma comunidade, dissociando-se da visão individualista extremada. Inegável, portanto, que para o personalismo a supremacia do interesse público a qualquer custo é impraticável, sendo indispensável adoção de critérios de limitação do poder do Estado.

No vasto estudo apresentado, em que os diversos autores reafirmam seus argumentos sobre a necessidade de desconstituir a supremacia do interesse público, e relevar o interesse privado como realização dos valores consagrados pela Constituição Federal vigente, extrai-se que o principal instrumento de limitação é a técnica da ponderação dos interesses em conflitos, com a aplicação do Princípio da Proporcionalidade.

De origem germânica, tendo como principal defensor Robert Alexy, o princípio da proporcionalidade propõe critérios objetivos a serem utilizados na resolução de conflitos de interesses, buscando uma solução harmônica de modo que nenhum bem jurídico seja excessivamente sacrificado, quando for necessário tutelar um bem que demanda – no caso – a tutela mais imediata.

Neste escopo, o princípio da proporcionalidade subdivide-se em três máximas a serem consideradas: (i) adequação; (ii) necessidade; (iii) proporcionalidade stricto senso. Pela adequação, sugere-se que o julgador ou administrador analise se a medida proposta, em que pese sacrifique algum bem jurídico, seja realmente a medida adequada a produção dos efeitos que se espera. Na verificação da necessidade, há de ser relevado se, no caso, inexiste outra medida menos gravosa a interesses alheios, que possa atingir os mesmos fins pretendidos. Em havendo alternativa menos gravosa, a medida sugerida não se mostra necessária e proporcional ao objeto que se busca tutelar. E por fim, a proporcionalidade em sentido estrito exige uma justa ponderação dos ônus e bônus que decorrerão do ato que suscita o conflito. Isso porque, ainda que a tutela pretendida seja relevante e indispensável, se, ao final, sua efetividade implicar em grande sacrifício de outros direitos ou bem jurídico, que não a justificam, a medida poderá ao final ser objetada.

Partindo-se de tais postulados, os conflitos emergentes no âmbito do direito público, envolvendo o interesse particular em detrimento do interesse público, não mais serão resolvidos pela simples imposição da supremacia deste último. Há de ser analisado, no caso concreto, a adequação e necessidade do ato que suscita o conflito, e, em especial, os sacrifícios decorrentes.

Isso porque, considerando-se o que outrora já se afirmara a respeito do caráter “liberal comunitarista” da Constituição Federal, qualquer conflito de interesses deve ser resolvido sem sufocar o ideal democrático, de respeito as liberdades individuais e dignidade da pessoa humana. Em assim sendo, se o ato que tutela o interesse público implicar em extremo sacrifício de algum dos direitos fundamentais assegurados, e cujos efeitos benéficos não serão suficientes para compensar o direito tolhido, então, no caso em concreto, não há que prevalecer a supremacia do interesse público, ante a desproporcionalidade da medida.

De fato, se, como visto, o interesse público reveste-se de uma soma de interesses privados, estes não podem ser excessivamente sufocados sob risco de plena contradição da tutela almejada. É de ser considerado, oportunamente, que casos haverão em que o interesse público deverá de fato prevalecer. Porém, não como decorrência de uma absoluta soberania, mas em razão de que na ponderação dos valores conflitantes, a harmonia está em optar pela medida que o representa, dentro dos postulados da proporcionalidade.

Para tanto, tal como sugerem os autores, urge indispensável objetivar os malfadados argumentos genéricos, para que a justa ponderação possa ser factualmente mais viável.

Neste norte, Humberto Ávila – no artigo “Repensando o ‘Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular’” traz ainda relevante crítica ao modelo atual da dogmática jurídica uma vez que, ao adotar com expressividade as normas princípios - que inicialmente deveriam servir de critério de interpretação e não de imposição - acaba por encobrir o ordenamento jurídico em suas lacunas, ao invés de clareá-lo.

Neste cenário, o autor destaca a primordial importância de definir o conceito do vocábulo "princípio", para que se possa, ao fim, aferir a exata medida de seu alcance. Ao fazer um profundo estudo a respeito da diferença entre princípio e regra, e dos efeitos que produzem as normas princípios, conclui o autor que a supremacia do interesse público não pode ser elevada à tal categoria normativa, dentro ordenamento jurídico.

Isso porque tal noção não apresenta os elementos mínimos necessários a configuração de uma norma-princípio, qual seja, a introdução de critérios interpretativos de normas jurídicas. Ademais, a noção de “interesse público”, apresenta-se excessivamente abstrata, sendo inviável aferir o seu alcance a aplicabilidade. Em consequência, Ávila afirma que o postulado do interesse público, ao invés de princípio, deve ser considerado como uma "regra abstrata de preferência no caso de colisão" (p.203).

Desta conclusão, extraem-se dois relevantes efeitos principais: primeiramente é que, ante a ausência de um “princípio da supremacia do interesse público”, torna-se inconcebível que a Administração Pública imponha restrições ao particular fundadas em tal conceito, ou mesmo exija o direcionamento de regras já existentes. Em consequência, o único critério delimitador dos conflitos emergentes das relações estabelecidas entre o interesse público e o particular há de ser a técnica da ponderação, fundamentada na sistematização das normas constitucionais. A efetividade deste entendimento – ressalva o autor – deverá ser objeto de outra análise.

A obra finaliza com as análises de Paulo Ricardo Schier, em seu Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamentais. Em que pese ter o mesmo escopo dos demais autores, busca enfocar uma análise fática, além dos aprofundamentos da dogmática feitos pelos demais autores.

Pondera o autor que, a despeito de considerar-se o interesse público uma norma-princípio ou não, e ainda, sem relevar a exata extensão de seu conceito, é lamentável o uso desenfreado na expressão “interesse público”, para justificar todos os atos do Estado, a ponto de considerarem-se legítimas certas ações, ainda que impliquem em uma estrição absurda às liberdades individuais. Deste modo, o fundamento que deveria dar sustento ao bem estar social e a consecução dos ideais democráticos, por ser utilizado de forma geral e abstrata, acaba por traduzir-se em ações autoritárias.

Em assim sendo, conclui o estudo reafirmando as teses já manifestadas, entendendo ser indispensável a invocação de instrumentos jurídicos de limitação da supremacia do interesse público, dando ênfase ao critério da ponderação de valores, de modo que a sociedade possa não mais enfrentar restrições excessivas nos direitos fundamentais, quando os interesse particular colidir com um interesse público.

E neste propósito, urge indispensável atentar aos elementos da ordem jurídica estabelecidos pela Constituição Federal, delimitando o seu alcance, para que a generalidade e abstrativização da justificativa não gere a repudiada incongruência do sistema.

Afinal, em que pese seja relevante atentar-se aos ideais coletivos na busca de uma sociedade harmônica e bem desenvolvida, o interesse público não pode reinar de modo absoluto, pois o Estado só terá realizado seus fins, se cada indivíduo que o compõe for respeitado e valorizado por sua essência, de modo que a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais consagrados no texto constitucional deixem de ocupar apenas o plano da dogmática.


Autor

  • Joseliane Sonagli

    Advogada, Professora de Direito Empresarial da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI/SC; pós-graduada em Direito Empresarial e de Negócios pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI/SC; mestre em Atividade Econômica e Desenvolvimento Sustentável na Pontifícia Universidade Católica do Paraná - PUC/PR

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Informações sobre o texto

O presente trabalho trata-se de uma resenha da obra de SARMENTO, Daniel (Org.). Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. 3. tir. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, elaborada em 31/07/2013

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SONAGLI, Joseliane. A prevalência do interesse privado e a desconstrução da supremacia extrema do interesse público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3890, 24 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26783. Acesso em: 19 abr. 2024.