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O funcionalismo jurídico-penal alemão de matriz jakobsiana deslegitimado em poucas linhas

um brevíssimo ensaio

O funcionalismo jurídico-penal alemão de matriz jakobsiana deslegitimado em poucas linhas: um brevíssimo ensaio

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Trata da deslegitimação do funcionalismo jurídico-penal alemão especialmente aquele veiculado pelo autor Günther Jakobs, divulgador da polêmica Teoria do Direito Penal do Inimigo.

Por incrível que pareça, o positivismo comteano do século XIX e o reforço materialista que se seguiu a ele exercem até hoje forte pressão no pensamento jurídico, especialmente quanto a certa repugnância injustificada e deletéria existente contra a legitimação do Direito, em específico, o Penal, mediante a inclusão de argumentos valorativos e metafísicos.

Nesse caldo cultural e intelectual se produz o pensamento funcionalista alemão [1], com seus mestres e prosélitos a defenderem argumentações que não se sustentam perante um mínimo raciocínio lógico capaz de identificar uma retórica superficial.

Como a proposta deste trabalho é o enfrentamento do tema em poucas linhas e como realmente a questão não é de complexidade, segue-se direto ao ponto.

No funcionalismo jurídico-penal de um Güther Jakobs, por exemplo, adota-se uma teoria de prevenção geral positiva, em que a pena tem “função” de integração do ordenamento jurídico. Trocando em miúdos, a pena atua como uma manifestação estatal que confirma a vigência da norma infringida pelo criminoso. Nada mais que o reviver da velha “negação da negação do Direito” de matriz hegeliana, salpicada com teorias sociológicas luhmannianas que exploram as chamadas expectativas normativas e cognitivas. No mais, conforma-se um retorno anacrônico a um contratualismo já devidamente criticado como meramente idealista (Rousseau, Locke, Hobbes).  

Um primeiro ponto pouco explorado na crítica ao pensamento funcionalista, com ênfase em Jakobs, é sua sustentação básica em uma teoria sociológica, ou seja, em uma ciência do “ser”, embora humana e social, e não do “dever ser” para a construção de uma fundamentação do Direito, que é uma ciência normativa. Uma ciência normativa pode até se valer, no campo louvável da interdisciplinaridade e até da transdisciplinaridade, de muitos saberes, inclusive das ciências naturais. No entanto, não se pode sustentar de forma basilar em argumentos que busca fora de seu campo. É menos perceptível, mas seria o mesmo que a biologia encontrar sustento em uma ideologia política. E isso já aconteceu na história. Quem tiver curiosidade, pesquise sobre as teorias de um Engenheiro Agrônomo russo, Trofim Lysenko, acerca da transmissão hereditária de traços adquiridos, que dominou a “ciência” (sic) russa durante anos por ser considerada adequada a uma contraposição às teses ocidentais mendelianas. Isso se iniciou na década de 1940 e somente teve seu total descrédito em 1964, portanto pelo menos 24 anos de impostura foram possíveis devido à ingerência política no campo científico. O que se pretende demonstrar é que qualquer ciência pode perfeitamente se valer da interdisciplinaridade, mas deve, necessariamente, buscar seus fundamentos principais em seu próprio âmago, sob pena de criar teorizações artificiais, ideológicas, retóricas (no mau sentido) e frágeis até mesmo sob o prisma lógico.

No funcionalismo jurídico – penal a norma se legitima por sua própria existência, ou seja, a norma se legitima pela própria norma e nada mais. Ora, só não enxerga quem não quer o fato de que essa espécie de argumentação é circular. Conforma a conhecida “Petição de Princípio” (“Petitio Principii”) já diagnosticada há milênios por Aristóteles e consistente em pressupor na demonstração um equivalente ou sinônimo do que se quer demonstrar. Mais ou menos isso: a norma é legítima. Por quê? Porque é a norma. A pena é legítima. Por quê? Porque reafirma a norma. E por que é legítimo reafirmar a norma pela pena? Porque a norma existe e quando é negada deve ser reafirmada. Mas, por quê? Porque é a norma (infinitamente...).

E o pior de tudo isso é que com o funcionalismo não é somente a norma que se legitima por si mesma numa argumentação circular, mas sim o poder estatal e o próprio Estado, o que pode servir de base teórica pseudocientífica para qualquer ideologia absolutista ou totalitária. E não é preciso ir longe na história para encontrar os exemplos clássicos do Nacional Socialismo Nazista, do Comunismo Chinês, Soviético e Cubano, dentre outros, sempre sustentados em bases pseudociêntificas das mais diversas origens – biologia (racismo); economia (marxismo), física (materialismo) etc.

A falta de um referencial antropológico e humanista provoca uma corrosão interna na teoria funcionalista. O homem passa a ser instrumentalizado pelo Estado. Este não está a serviço do homem, mas o reverso. Daí se viola a máxima kantiana de não tratar um ser humano ou qualquer ser racional como meio para um fim, mas sempre como um fim em si mesmo. Vai por terra também aquilo que Hanna Arendt define como o “agir” humano, que consiste na atuação livre e soberana do homem na política. Até mesmo o chamado “agir comunicativo” de Habermas, muitas vezes apontado por Luhmann e chamado à baila no funcionalismo para justificar o fato de que uma suposta falha de comunicação justificaria a sustentação da norma por si mesma, somente pode decorrer de uma interpretação deturpada da teoria habermasiana, já que esta pressupõe, tem como pré – requisito a possibilidade de exercício do agir comunicativo por todos indistintamente e, inclusive, a possibilidade de renúncia a esse agir. Portanto, sustentar um funcionalismo, especialmente na área penal, punindo aquele que não se comunica de acordo com expectativas normativas é perverter toda uma tradição do conceito do “agir humano”. Já não se trata de um “agir”, mas de um “reagir” de acordo com certos adestramentos e imposições sociais e estatais. A dignidade humana se perde, o conceito de humanidade do homem se dilacera e, legitimando as normas (inclusive penais) e o Estado por eles mesmos, olvida-se que o único ser que se legitima por si mesmo, por sua própria existência, é o ser humano, seja ele quem for, seja ele como for, pense o que pensar, aja como agir.   

Na verdade, o funcionalismo é insustentável desde o próprio nome. “Função” tem origem etimológica no latim “functio”, que designa “execução, realização, performance”, “functus” (feito, realizado) e “fungi” (realizar, executar, levar cabo ou adiante). Em base indoeuropéia, “bheug”, designa “usar ou desfrutar”. Assim sendo, desde a origem etimológica até a semântica atual, “função” somente pode ser vista como algo instrumental, um meio para alguma coisa e jamais um fim em si mesmo. Além de instrumental, quando levada a fim em si mesmo, corre-se o risco já bem delineado antes, de ser convertida em elemento de instrumentalização ou reificação dos verdadeiros fins que passam a ser colonizados numa inversão valorativa e lógica (meio/fim x fim/meio, ou melhor, meio/meio convertido em fim).

A função não pode existir ou subsistir por si mesma, não pode se autolegitimar. Em termos jurídicos, sua natureza é meramente instrumental para a aplicação da lei de forma efetiva pelo judiciário e demais agências. Dessa maneira é inaceitável a tutela de simples “funções” pelo Direito Penal. Estas devem ser distintas dos bens jurídicos, estes sim objeto de tutela. O funcionalismo, ao elevar as funções estatais e suas normas em fins em si mesmos, que se autolegitimam e justificam inclusive a sanção criminal como mera confirmação da norma, inverte a lógica meio/fim, na verdade, mais que isso, a perverte.

No aspecto filosófico (teorético e prático) o funcionalismo é totalmente insustentável, é uma contradição em si mesmo, uma vez que nesse campo ou os problemas são enfrentados com fundamentos analíticos e lógicos demonstrativos, conduzindo a conclusões a partir de premissas autoevidentes, ou então o pretenso “filósofo” (do Direito ou em geral) não é capaz de fazer nada a não ser construir castelos de areia que ruem ao menor esforço de pensamento. Enfim, o funcionalismo somente retrata uma postura meramente poiética (do fazer), sem possibilidade de sustentação ou legitimação teórica de qualquer espécie quanto ao “por que” fazer. E sabe-se muito bem o quanto pode ser perigosa essa mania de pensar que tudo que se pode fazer deve, “ipso facto”, ser feito.


Nota

[1] Neste trabalho se enfoca criticamente o chamado funcionalismo “radical, sistêmico ou normativista”, preconizado destacadamente por Günther Jakobs. Não se aborda o funcionalismo “moderado” de Claus Roxin, com a visão político – criminal da defesa de bens jurídicos e nem o funcionalismo “contencionista, reducionista ou minimalista” de Luigi Ferrajoli e Eugenio Zaffaroni dentre outros, onde o Direito Penal tem a finalidade de conter o poder punitivo estatal e a própria vingança privada. Esses chamados funcionalismos não parecem retratar efetivamente uma visão estritamente funcional, mas sim permeada de valores humanos e humanitários que não permitem que a norma seja um fim em si mesma. O que, como se demonstrará, já não acontece com o funcionalismo radical. 


Autor

  • Eduardo Luiz Santos Cabette

    Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O funcionalismo jurídico-penal alemão de matriz jakobsiana deslegitimado em poucas linhas: um brevíssimo ensaio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3908, 14 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26905. Acesso em: 29 mar. 2024.