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A desaposentação e o ativismo judicial

A desaposentação e o ativismo judicial

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A postura ativista do Poder Judiciário tem contribuído para a consolidação do instituto da desaposentação?

INTRODUÇÃO

Após o advento da Constituição Federal de 1988, verificou-se no Brasil o fenômeno denominado neoconstitucionalismo, consubstanciado, dentre outros aspectos, na expansão e fortalecimento do Poder Judiciário.

Ademais, ao longo dos últimos anos, percebeu-se a verdadeira releitura do conceito de jurisdição, bem como do alcance do princípio que garante o amplo acesso ao Poder Judiciário, previsto no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, que teve como consequência a judicialização de todos os conflitos, que envolvem desde pequenos interesses privados até litígios que interessam a toda a sociedade.

Diante do contexto histórico, político e econômico, caracterizado, muitas vezes, por omissões dos Poderes Legislativo e Executivo no cumprimento das suas competências constitucionais, vocacionadas à elaboração e implementação de políticas públicas, o Poder Judiciário, seguindo uma tendência do direito em todo o mundo, tem adotado um modo de agir mais efetivo na concretização de direitos sociais e fundamentais.

A atuação mais incisiva do Poder Judiciário, denominada ativismo judicial, embora bem intencionada, merece a devida atenção, porquanto tem alcançado todos os ramos do direito.

Interessa à presente pesquisa, especificamente, o impacto do ativismo judicial no âmbito do Direito Previdenciário, e o papel por ele exercido na consolidação da tese que tem preocupado sobremaneira o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, ente responsável pelo gerenciamento do Regime Geral de Previdência Social na realidade institucional brasileira. Trata-se, como bem se verá, da chamada desaposentação.

O presente estudo tem a finalidade de compreender em que consiste a desaposentação, analisando o papel da jurisdição e da jurisprudência ativista na consolidação deste instituto, apesar de não encontrar reconhecimento no âmbito do INSS (Poder Executivo) ou tampouco estar referido na legislação previdenciária.

Para tanto, realiza-se uma breve incursão teórica acerca dos fundamentos e principais conceitos da Previdência Social brasileira no bojo do primeiro capítulo, com ênfase para os aspectos relacionados àquele que é, por excelência, o típico benefício de qualquer sistema previdenciário: a aposentadoria.

O segundo capítulo se voltará para uma abordagem que visitará alguns conceitos do direito processual civil, a bem de analisar o conceito de ativismo judicial e a sua conformação em um ambiente pós-positivista.

O terceiro capítulo, por fim, buscará compreender o fenômeno da desaposentação, destacando em que situações ela pretende ocorrer, o tratamento legislativo sobre o tema (ou a ausência dele) e o posicionamento já consolidado no âmbito do INSS (autarquia previdenciária).

Feito isso, buscar-se-á averiguar algumas decisões judiciais acerca do tema, de modo a se verificar o papel exercido pela jurisdição – ativista – na própria concepção da desaposentação.


1. SEGURIDADE SOCIAL E PREVIDÊNCIA SOCIAL

A já tradicional distinção dos direitos humanos – ou fundamentais –, bem elucidada na obra de Norberto Bobbio (1992) intitulada “A era dos direitos”, proclama a existência de pelo menos três gerações ou dimensões de tais direitos. A Seguridade e a Previdência Social, pelas características que lhes são inerentes e que serão abordadas adiante, se inserem no que se convencionou chamar de direitos fundamentais de segunda dimensão, cujo marco histórico inequívoco é o século XIX.

O que caracteriza tais direitos, ao contrário dos direitos de liberdade que lhes antecedem, é justamente uma nova conformação do indivíduo diante do Estado. Com efeito, o Estado deixa de ser o inimigo a ser limitado e combatido pela ideia de liberdade, e passa a ser um efetivo interventor na realidade social, buscando garantir o usufruto de garantias mínimas sem as quais não há liberdade possível ou exercitável.

Ou seja, surge com a segunda dimensão de direitos fundamentais a figura do Estado protetor ou Estado-providência, responsável pelo bem-estar social, ao qual compete oferecer algum tipo de assistência a pessoas que, sem o amparo do poder público, decerto não seriam capazes de ter uma vida minimamente aceitável ou quiçá de exercer a liberdade outrora reconhecida na dimensão ou geração antecedente de direitos fundamentais.

E a seguridade social, com suas formas de manifestação, visivelmente se insere neste modelo de Estado Social – ou Estado de bem-estar social – como facilmente se depreenderá do que a seguir se expõe.

1.1. Conceitos e princípios constitucionais aplicáveis

Ao versar sobre a previsão constitucional e a natureza jurídica da Seguridade e Previdência Social, Fábio Zambitte Ibrahim destaca com peculiar clareza o fato de que

A proteção frente aos riscos sociais há muito deixou de ser de responsabilidade puramente individual, pois é claramente observável uma crescente intervenção do Estado na busca de uma perfeita materialização do abrigo social. Diversos infortúnios, como invalidez, velhice, acidentes e doenças, acompanham a sociedade desde a sua origem, porém, o método de tratamento deles variou significativamente. (IBRAHIM, 2011, p. 3)

Com efeito, o referido autor festeja o fato de que a evolução do sistema protetivo tenha representado um considerável avanço na medida em que subtraiu do trabalhador a condição de único responsável pela sua manutenção, tornando possível (e necessário) que o Estado intervenha em momentos de dificuldade, de modo a garantir a própria sobrevida dos necessitados, assegurando-lhes, assim, dignidade humana.

E outra não é a perspectiva adotada pelo legislador constituinte de 1988, na realidade jurídico-institucional brasileira, realidade histórico-constitucional que se pretende analisar no bojo do presente estudo.

Afinal, o art. 6º da Constituição Federal brasileira enumera uma série de direitos sociais cuja efetivação se reclama, quais sejam: saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados.

Tais direitos, como é cediço, devem ser garantidos pelo Estado, dentro de uma perspectiva eminentemente social, sem demérito do primado pelo trabalho também ressaltado no art. 193 do mesmo texto constitucional.

Logo, é possível concluir que o Brasil procura seguir, em forte medida, os moldes do Estado Social, referido alhures, o que se torna muito evidente no texto constitucional hodiernamente vigente.

E o sistema de seguridade social brasileiro está inserido justamente neste contexto, encontrando tratamento constitucional bastante preciso no Capítulo II do Título VIII da Carta Política de 1988, donde se depreende ser formado por três categorias ou vertentes elementares: Saúde, Previdência Social e Assistência Social.

A Saúde, que por dicção constitucional expressa é universal (acessível a todos, indistintamente) e dever do Estado, consiste em políticas públicas que visem a reduzir os riscos de doenças ou agravos, ou, ainda, que possibilitem o acesso a ações e serviços nesta seara.

A Previdência Social, por seu turno, “[...] é seguro sui generis, na medida em que as pessoas contribuem obrigatoriamente na busca de uma garantia, uma proteção, na eventualidade de um infortúnio, como doenças e incapacidades para o trabalho em geral”. (IBRAHIM, 2011, p. 7)

A assistência social, por fim, constitui direito apenas de quem dela necessitar, e tem aí certamente sua principal característica, eis que verdadeiramente preenche um espaço que não comporta proteção previdenciária, aplicando-se a eventos infortunísticos bastante semelhantes aos previstos no seio da Previdência Social, só que em relação a pessoas que não exercem atividade laborativa e, como tais, não participam do regime protetivo ordinário (contributivo).

Ainda sobre este tema, traz-se a lume uma feliz análise levada a efeito por Hermes Arrais Alencar, que bem distingue tais vertentes do sistema securitário brasileiro, à luz da existência ou não de caráter contributivo:

[...] Os três ramos integrantes da Seguridade Social constituem tutela base; arquétipo harmônico de segurança social que colima amparar o cidadão em face das desventuras previamente assinaladas no próprio Texto Supremo.

Entre os traços distintivos desses segmentos da Seguridade Social, quiçá o maior deles, está o caráter contributivo, necessário apenas na esfera previdenciária, expressamente consignado no art. 201, da Constituição Federal. A Constituição, por outro lado, ao tratar da Saúde no artigo 196 e da Assistência Social no artigo 203, afirma ser aquela direito de todos e dever do Estado, ao passo que a Assistência Social é restrita a quem dela necessitar. Ambas prescindem de contribuição direta à Seguridade Social, para efeitos de fruição. (ALENCAR, 2011, p. 26)

Dito isto, é possível afirmar que, além de terem destinatários específicos (conjunturalmente), Saúde (Art. 196 e seguintes da Constituição) e Assistência Social (Art. 203 e seguintes da Constituição) se distinguem da Previdência Social (Art. 201 e seguintes da Constituição), também e marcadamente, pelo caráter contributivo que se atrela a esta última espécie, cuja finalidade é atender, em face de eventos infortunísticos constitucionalmente previstos, cidadãos que exerçam atividades laborativas remuneradas e que, nesta condição, recolham contribuições para o financiamento do sistema.

Na descrição destes eventos infortunísticos é bastante esclarecedora a percepção de Hermes Arrais Alencar (2011), com fundamento nas previsões constitucionais correspondentes, no sentido de que a Previdência Social serve para proteger e atenuar o amargor dos dissabores da vida, ou seja, o sofrimento causado pelos riscos sociais devidamente identificados no art. 201 da própria Constituição Federal.

Tais riscos, como bem assevera o referido autor, podem ser de origem patológica, quando relacionados a doenças ou invalidez que impeçam o exercício de atividades laborativas, ou mesmo decorrer de fases recessivas do ciclo econômico, como nas hipóteses de desemprego involuntário (risco de origem econômico-social).

Na mesma esteira, há também riscos sociais acobertados pelo sistema previdenciário brasileiro que curiosamente se conjugam com momentos de alegria, ainda que acompanhados de certa dose de dificuldade  financeira. É o que ocorre, por exemplo, quando a parturiente tem direito ao salário de maternidade.

E Hermes Arrais Alencar enumera, ainda, outros eventos passíveis de ensejar a cobertura ou proteção previdenciária.

[...] O inciso I do art. 201 garante proteção à idade avançada (origem biológica). Importante o registro quanto à nomenclatura contida na redação original do artigo 201, antes da Emenda Constitucional nº 20, a proteção recaía sobre a “velhice”. O signo velhice está intimamente atrelado à ideia de senilidade, degeneração progressiva das faculdades físicas e psíquicas decorrentes do transcurso do tempo. O estigma da senilidade está associado à perda da capacidade laborativa, atraindo a presunção de invalidez. De outra margem, a expressão idade avançada atrai nova concepção do fenômeno em face da esperança de vida atual (a última etapa do ciclo vital situa-se na fase seguinte, a quarta idade), lastreado no conceito de ancianidade (este signo avoca experiência, não incapacidade), o intento constitucional é garantir o direito ao descanso. [...]

Entre os riscos constitucionalmente definidos no seguro social, verifica-se, por fim, que quando se fizer notar a cessação de renda por motivo de morte ou reclusão do segurado, protegidos estarão os respectivos dependentes pelo benefício de pensão por morte e de auxílio-reclusão, cabendo enfatizar que, na atualidade, este último ficou restrito aos dependentes de segurado de baixa renda. (ALENCAR, 2011, p. 27)

Nota-se, assim, que variados são os eventos acobertados pelo sistema previdenciário constitucionalmente estabelecido.

Interessam à presente pesquisa, todavia, os eventos passíveis de ensejar a concessão daquela que, por excelência, é a principal prestação previdenciária, a aposentadoria.

Para tanto, desenvolver-se-á em tópico próprio, mais adiante, uma discussão mais detida acerca das modalidades de aposentadoria previstas no Regime Geral de Previdência Social.

Antes disso, todavia, e já realizada a adequada localização da Previdência Social no contexto constitucional brasileiro, e marcadamente dentro do macrossistema de Seguridade Social, convém trazer a lume, doravante, alguns dos principais princípios constitucionais ou premissas básicas aplicáveis à Previdência Social brasileira, ao menos no que concerne à sua forma de manifestação mais corrente, que é o Regime Geral de Previdência Social. Tal debate, como bem se perceberá, faz-se indispensável para a futura discussão que se pretende realizar acerca da desaposentação.

Pois bem. Vale-se, também aqui, do raciocínio de Hermes Arrais Alencar, que aponta cinco premissas basilares da Previdência Social brasileira, a saber:

O termo previdência social é delineado no artigo 201 do Texto Republicano, que rege as premissas básicas, a saber, a) ser organizada na forma de regime geral; b) de caráter contributivo; c) de filiação obrigatória; d) observância dos critérios de preservação do equilíbrio financeiro e atuarial; e) destinada a atender a cobertura dos eventos de doença, invalidez, morte, idade avançada, maternidade, desemprego, salário-família e auxílio-reclusão. (ALENCAR, 2011, p. 35)

A análise de tais premissas – algumas delas verdadeiros princípios – é bastante relevante, porquanto bem situará os argumentos que se contrapõem na análise do fenômeno da desaposentação.

Analisa-se, destarte, cada uma das premissas ou princípios referidas no pensamento do supracitado autor ou decorrentes da organização conceitual por ele empreendida.

A existência de um regime geral de previdência faz com que o mesmo se aplique, indistintamente, a todos os cidadãos que exerçam atividades laborativas remuneradas, ressalvadas as exceções previstas no próprio texto constitucional (art. 40), que, como é cediço, residem nos servidores públicos, civis e militares, dos entes federativos brasileiros, bem como nos detentores de mandato eletivo federal, estadual ou municipal, quando amparados por regime de previdência exclusivo, ou seja, por regime próprio de Previdência Social.

Ou seja, participam do regime geral aqui abordado a avassaladora maioria dos trabalhadores brasileiros, concernentes àqueles que desenvolvem atividades laborativas remuneradas na inciativa privada e, como tais, são partícipes obrigatórios do regime previdenciário, devendo, nesta condição, verter contribuições para o custeio dos benefícios que pretendem futuramente usufruir.

E aqui se chega às duas premissas ou princípios seguintes do Regime Geral de Previdência Social: o seu caráter contributivo e a filiação obrigatória que lhe é inerente.

Com efeito, já foi exposto anteriormente que um dos principais pontos de distinção entre a Previdência Social e as demais vertentes da Seguridade Social reside justamente no caráter contributivo que lhe é inerente.

E diante disso, convém esclarecer que a contribuição não advém exclusivamente dos filiados ao regime previdenciário, mas de todo um sistema solidário de financiamento. Trata-se, afinal, de corolário natural do princípio da solidariedade estabelecido pelo art. 195 da Constituição Federal.

Destaque-se, todavia, a importância da contribuição do trabalhador, inerente ao exercício da atividade laborativa, que além de financiar o sistema servirá também para o cálculo do benefício que ele próprio futuramente – e eventualmente – usufruirá. Todavia, é certo que tal forma de contribuição não constitui, nem de longe, a única fonte de financiamento do sistema previdenciário.

Registre-se, outrossim, a premissa da filiação obrigatória, que subtrai qualquer aspecto de voluntariedade na participação do trabalhador assalariado no sistema previdenciário constitucionalmente previsto. Traz-se a lume, sobre este aspecto, a visão de Fábio Zambitte Ibrahim, para quem

Essa obrigatoriedade de filiação ao sistema estatal de previdência é norma de ordem pública, sendo defeso ao segurado alegar que não deseja ingressar no sistema por já custear regime privado de previdência. A compulsoriedade tem várias justificativas, em especial, a conhecida miopia individual, isto é, a pouca importância dos mais jovens com o futuro, e a solidariedade previdenciária, garantidora do pagamento de benefícios àqueles com cotização insuficiente. (IBRAHIM, 2011, p. 8)

E na análise desta obrigatoriedade de filiação, eis que salta aos olhos um outro princípio absolutamente relevante do sistema previdenciário brasileiro, e que possui estreita relação com a temática que será mais adiante abordada.

Trata-se, como se vê acima, do princípio da solidariedade, segundo o qual há, na sociedade como um todo, uma repartição dos riscos sociais. Trata-se de um sistema de repartição simples. Com efeito, não obstante o valor do benefício eventualmente concedido ao partícipe do regime seja calculado à luz das contribuições por ele vertidas, não é correto asseverar que tais contribuições possuíam, quando pagas, um cunho individual ou individualista. Ao contrário, visavam a atender a um pacto social de solidariedade, de viés intergeracional, fruto de uma teoria que se baseia

[...] na independência das relações jurídicas. Segundo se dessume dessa teoria, a situação jurídica de “segurado obrigatório” decorre do singelo exercício do trabalho remunerado. O empregado, o trabalhador avulso, o empregado doméstico, o segurado especial e o contribuinte individual são segurados obrigatórios da Previdência desde o primeiro dia que realizam o fato social “trabalho remunerado”, e desde esse marco estão protegidos pela apólice constitucional previdenciária. A relação de custeio é diversa e não se confunde com a de benefício. Aquela é afeta ao Ministério da Fazenda, enquanto esta ao Ministério da Previdência. (ALENCAR, 2011, p. 46)

E diante dessa diversidade da base de financiamento – típica do regime solidário de custeio do sistema previdenciário – é forçoso atentar, outrossim, para o necessário equilíbrio financeiro e atuarial que deve necessariamente lhe ser inerente.

Com efeito, em tempos de indiscutível alteração demográfica, é tema recorrente a necessária sustentabilidade dos sistemas previdenciários mundo afora, e na realidade brasileira não haveria de ser diferente. Afinal, o aumento da expectativa de vida, aliado ao planejamento familiar, tem modificado sensivelmente a chamada pirâmide etária, de tal sorte que é cada vez maior o número de pessoas em idade avançada (longevidade) e claramente reduzido o quantitativo da população jovem. Com isso, consolida-se uma diminuição da população economicamente ativa, ao que se alia um incremento de gastos na rede de seguridade social – notadamente no âmbito previdenciário (aposentadorias e pensões) – o que enseja até mesmo a discussão acerca da validade – ou possibilidade de manutenção – do sistema de repartição simples, eis que o pacto intergeracional referido alhures tende a ruir em algum momento. (IBGE, 2009)[1]

Desta feita, a Emenda Constitucional nº 20 teve o condão, dentre outras tantas alterações que realizou no sistema previdenciário, de destacar a relevância do princípio do equilíbrio financeiro-atuarial, cuja finalidade é lhe conferir verdadeira sustentabilidade.

Foi com base nesta ideia – ou intenção – que se desconstitucionalizou o critério de cálculo das aposentadorias, outrora fixado no próprio texto da carta política, e que passou a ser tratado em legislação específica, de natureza infraconstitucional.

Isso permitiu, ademais, a criação do fator previdenciário por intermédio da Lei nº 9.876/99, instituto que tem a nítida finalidade de conferir equilíbrio financeiro-atuarial ao sistema previdenciário brasileiro, compatibilizando o cálculo do benefício de aposentadoria com as contribuições vertidas pelo segurado à Previdência Social e com a sua perspectiva de sobrevida.

Além disso, a mesma emenda constitucional acima referida trouxe também o fim da aposentadoria proporcional (mantida apenas em norma transitória), com a clara finalidade de evitar a aposentadoria precoce.

Tais medidas, aqui mencionadas como meros exemplos, são decorrência clara do princípio ora abordado, do equilíbrio financeiro-atuarial do sistema previdenciário, que apregoa a necessidade peremptória de que se adeque o volume de benefícios pagos pela Previdência Social ao montante arrecadado em sede de custeio, de modo a evitar o chamado déficit previdenciário.

Por fim, e ainda na senda do pensamento de Hermes Arrais Alencar acerca das premissas constitucionais basilares do sistema previdenciário brasileiro, quadra atentar que não obstante o legislador constituinte tenha determinado ao legislador ordinário o tratamento da grande parte das questões afetas à matéria previdenciária – o que se deu, com maior ênfase, por intermédio da Lei nº 8.213/91 – é certo que os eventos ou riscos sociais passíveis de ensejar cobertura previdenciária estão previstos no bojo da própria Constituição Federal.

Depreende-se da leitura do texto constitucional, a cobertura de eventos de origem patológica (doença e invalidez), de origem biológica (idade avançada, maternidade e morte) e ainda de origem econômico-social (reclusão, desemprego involuntário, aumento da família).

1.2. Aposentadorias do Regime Geral de Previdência Social

Analisados os principais aspectos constitucionais acerca da Previdência Social, em continuidade da abordagem que se pretende empreender no bojo da presente pesquisa, faz-se forçoso tratar, ainda que sucintamente, das diversas modalidades de aposentadoria previstas para o Regime Geral de Previdência Social, com vistas à ulterior discussão, no âmbito do terceiro capítulo deste estudo, da chamada desaposentação.

Afinal, a aposentadoria é considerada a prestação por excelência do sistema previdenciário, porquanto mecanismo de substituição da renda decorrente do trabalho, que passa a existir no momento de jubilamento do trabalhador, atendendo ao seu interesse individual (de repouso e ócio remunerado) e ao interesse social (ciclo natural da vida).

Passa-se a verificar, destarte, que espécies de aposentadorias são previstas no ordenamento jurídico brasileiro, especificamente, repita-se, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social, que é aquele aplicável por excelência aos trabalhadores da iniciativa privada, como dito alhures.

Prefacialmente, convém registrar que não existe no âmbito do Regime Geral a figura da aposentadoria compulsória, prevista apenas no Regime Próprio de Previdência Social e decorrente do alcance, pelo servidor público, de determinada idade, hoje fixada, pela Constituição Federal, em 70 (setenta) anos.

As aposentadorias do Regime Geral estão bem delineadas na Lei nº 8.213/91, e são de quatro espécies, a saber: por invalidez, por idade, por tempo de contribuição e especial. Cada uma possui características e contornos próprios que serão brevemente analisados doravante.

A aposentadoria por invalidez, prevista que está nos arts. 42 a 47 do já referido diploma legislativo, tem como causa um evento de natureza patológica. Com efeito, serve para atender ao segurado que, estando ou não em gozo de auxílio-doença (outro benefício também previsto pelo sistema previdenciário brasileiro), apresente-se incapacitado definitivamente para o trabalho, porquanto insuscetível de reabilitação para o exercício de atividade laborativa que lhe assegure subsistência.

Observados os requisitos de carência – de doze meses, dispensada em casos de acidentes, sejam ou não decorrentes do trabalho – tal benefício será concedido após a verificação da incapacidade laborativa pelo órgão previdenciário (Instituto Nacional do Seguro Social - INSS), que possui médicos-peritos habilitados para a aferição da impossibilidade efetiva do exercício, pelo segurado, de atividades remuneradas.

Trata-se, como é cediço, de benefício que se pretende permanente, porquanto decorrente da percepção, pelo próprio órgão previdenciário, de que o segurado não possui condições de saúde para retornar ao mercado e se sustentar pelo próprio trabalho.

Não obstante, nada impede que o benefício em questão seja ulteriormente revisto, em face de uma mudança da situação fática, caso se verifique uma recuperação da capacidade laborativa por parte do segurado aposentado.

Ademais, o aposentado por invalidez estará sempre obrigado, por expressa dicção legal, a se submeter a exames médicos agendados pelo órgão previdenciário, bem como a processo de reabilitação patrocinado pelo INSS e a tratamentos médicos gratuitos (à exceção de cirurgias e transfusões de sangue, os quais são facultativos). Afinal, o primado da ordem econômica brasileira, como bem se vê do art. 193 da Constituição Federal, é sempre o trabalho.

Já a aposentadoria por idade está regulada nos arts. 48 a 51 da Lei nº 8.213/91, sendo a que se assegura ao segurado que completar 65 (sessenta e cinco) anos de idade se homem, ou 60 (sessenta) anos de idade se mulher, idades estas reduzidas em cinco anos para os trabalhadores rurais e assemelhados, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar.

Observada a carência, que ordinariamente é de 180 (cento e oitenta) contribuições mensais, este benefício será concedido na forma da legislação de regência (o cálculo do salário de benefício é variável e a aplicação do fator previdenciário é facultativa).

Note-se, destarte, que o evento ensejador da aposentadoria por idade é bastante claro, qual seja, o atingimento de uma idade avançada que faz surgir para o segurado o que se pode chamar de direito ao repouso. Para além disso,

Em decorrência da melhora significativa nas condições de vida, o risco idade avançada reporta-se à verdadeira política de emprego, mecanismo de recompensa aos mais experientes, e ainda aptos ao labor, pelas décadas de trabalho dedicadas à sociedade, a fim de permitir o ingresso dos mais jovens. De um lado o dirito ao descanso, de outro, o direito ao trabalho. (ALENCAR, 2011, p. 61)

A aposentadoria por tempo de contribuição, por seu turno, é certamente uma das mais comporta discussões. Prevista que está nos arts. 52 a 56 da Lei nº 8.213/91, não possui risco social que lhe seja atrelado (eis que independe de idade), e não possui muito espaço na legislação previdenciária alienígena. Além do Brasil, apenas no Irã, no Iraque e no Equador existe mecanismo semelhante de aposentação, que contemple como requisito apenas o tempo de contribuição do partícipe do sistema previdenciário, conforme assevera Fábio Zambitte Ibrahim, para quem:

A aposentadoria por tempo de contribuição é um benefício que sofre constantes ataques, pois este não é tipicamente previdenciário, já que não há qualquer risco social sendo protegido – o tempo de contribuição não traz presunção de incapacidade para o trabalho.

Após todo o debate, foi opção do constituinte derivado a manutenção deste benefício, tendo como requisitos 35 (trinta e cinco) anos de contribuição, se homem, e 30 (trinta) anos de contribuição, se mulher. Há redução de 05 (cinco) anos para professor(a) que comprove, exclusivamente, tempo e efetivo exercício em função de magistério na Educação Infantil, no Ensino Fundamental ou no Ensino Médio. (IBRAHIM, 2011, p. 31)

Nota-se, destarte, que os requisitos da aposentadoria em questão não estão relacionados a nenhum evento ou risco social, mas tão somente ao implemento de determinado número de contribuições ao sistema previdenciário.

Registre-se, outrossim, que não há paralelo desta espécie de aposentadoria no âmbito dos regimes próprios de previdência, aplicáveis no âmbito do serviço público, os quais sempre contemplam o requisito etário para fins de aposentação.

E foi com fulcro nas questões acima referidas – e notadamente na inexistência de risco social a ela atrelado – que mostra-se bastante razoável o argumento de que seria necessária a própria extinção da aposentadoria por tempo de contribuição. Entretanto, não foi este o caminho eleito pelo arcabouço normativo brasileiro, que com vistas a salvaguardar a manutenção do equilíbrio financeiro-atuarial do sistema previdenciário, optou não pela extinção da aposentadoria em questão, mas pela criação fator previdenciário, que tende a adequar o valor da renda mensal do benefício de aposentadoria ao número de contribuições vertidas pelo segurado e à sua expectativa, devendo tal instituto ser aplicado peremptoriamente nos requerimentos de aposentadoria por tempo de contribuição.

Por fim, quadra referir a quarta modalidade de aposentadoria do Regime Geral de Previdência Social, que é a aposentadoria especial.

Com efeito, tal modalidade está prevista nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213/91 e possui natureza extraordinária. É devida a alguns segurados que se encontrem em situação bastante específica, visando a preservar sua integridade física.

Afinal, deve ser concedida apenas ao segurado que trabalhar, durante 15, 20 ou 25 anos, a depender do caso, em condições especiais e prejudiciais à saúde ou à integridade física.

Mitiga-se o tempo de contribuição, em razão da exposição do segurado a agentes físicos, químicos e biológicos acima dos limites aceitáveis, o que sem dúvida é passível de lhes impingir prejuízo à integridade física ou mental em grau mais severo.

Trata-se, portanto, de benefício de cunho preventivo, e que justamente por tal motivo impede que, após a sua concessão, o segurado antes exposto ao agente nocivo, permaneça no exercício da atividade que lhe era prejudicial, assim como de qualquer outra que também o seja.

1.3. Concessão do benefício de aposentadoria no âmbito do Regime Geral de Previdência Social: natureza jurídica do ato administrativo

Realizada esta sucinta análise acerca das modalidades de aposentadoria previstas pelo Regime Geral de Previdência Social, convém agora refletir acerca da natureza jurídica do ato concessivo da aposentadoria, elemento deveras relevante para a discussão que se pretende realizar quando do enfrentamento do tema desaposentação.

Com efeito, ao conceder uma aposentadoria o órgão previdenciário termina por proferir uma decisão administrativa, caracterizada pelo reconhecimento da existência de um direito e pela geração de uma série de efeitos correspondentes. Um ato administrativo típico, com todos os seus atributos.

Fábio Zambitte Ibrahim, em sua obra sobre desaposentação, destina tópico específico para este tema, registrando que

A concessão da aposentadoria é materializada por meio de um ato administrativo, pois consiste em ato jurídico emanado do Estado, no exercício de suas funções, tendo por finalidade reconhecer uma situação jurídica subjetiva. É ato administrativo na medida em que emana do Poder Público, em função típica (no contexto do Estado Social) e de modo vinculado, reconhecendo o direito do beneficiário em receber sua prestação.

[...]

Como todo ato administrativo, o provimento da aposentadoria é um ato jurídico, praticado em observância aos ditames legais. Após o seu perfeito trâmite, atinge o status de pleno e acabado, alçando a categoria de ato perfeito, apto a produzir efeitos, in casu, o início do pagamento da renda mensal do benefício.

[...] pode ser definido como ato jurídico perfeito, resguardado contra alterações futuras em privilégio da segurança jurídica. (IBRAHIM, 2011, p. 35-36)

Tem-se, portanto, que para o referido autor a concessão da aposentadoria, pelo órgão previdenciário, configura, uma vez praticada, ato jurídico perfeito, com as prerrogativas inerentes a tal espécie.

No mesmo esteio é o pensamento de Adriana Bramante de Castro Ladenthin e Viviane Masotti, senão veja-se:

Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria.

Trazendo este conceito especificamente para o direito previdenciário, eminentemente um ramo do direito público, temos que o ato administrativo de concessão do benefício é o objetivo fim de um processo administrativo, instaurado pela manifestação de vontade do administrado, na busca de obter um benefício previdenciário. (LADENTHIN; MASOTTI, 2011, p. 61).

Tais autoras, todavia, esclarecem, em acréscimo, que o ato administrativo em questão, de concessão de uma aposentadoria,

[...] somente será perfeito, quando o beneficiário receber o primeiro pagamento. O ato administrativo de concessão, embora eficaz, precisa ser exequível para se tornar completo, sendo a eficácia apenas uma condição de operatividade do ato perfeito. Esta plenitude se dá quando há o saque da prestação previdenciária a ele disponibilizada. Enquanto o recebimento não ocorrer pode o segurado, a qualquer tempo, desistir do pedido. Neste caso, a única exigência do INSS é a comprovação, pelo segurado, de que não houve recebimento das prestações depositadas, ou o saque do PIS e/ou do FGTS, o que ocorrer primeiro.

Caso o beneficiário desista do pedido antes de recebê-lo, o ato administrativo será ineficaz. (LADENTHIN; MASOTTI, 2011, p. 63)

Parecem estar corretos os autores até aqui citados. Com efeito, é certo que a relação jurídica previdenciária se desenvolve muito antes do ato concessório de eventual aposentadoria.

Para além disso, é também cediço que o próprio direito à aposentadoria existe desde período anterior ao requerimento administrativo ou à concessão de tal benesse, eis que se inicia com o singelo implemento dos requisitos.

Afinal, nas relações jurídico-previdenciárias nasce o vinculum iuris, no plano da validade, com o implemento dos requisitos legais, mas sua eficácia somente se dá com o requerimento administrativo. Assim, com a reunião das condições ou requisitos do benefício, legalmente estabelecidos, nasce um direito potestativo à inserção da relação jurídico-previdenciária, já formada no plano da validade, no plano da eficácia, o mesmo ocorrendo quanto aos direitos subjetivos a ela atrelados. Tal direito potestativo, entretanto, somente se revestirá de eficácia em razão do requerimento administrativo, que lhe fará produzir seus efeitos ordinários, que normalmente se restringem às prestações mensais em determinado valor, cujo pagamento consiste num direito subjetivo.

Ressalva-se, todavia, a possibilidade de ineficácia registrada pelas autoras suprareferidas, quando o segurado não leva a cabo a pretensão deduzida e não lhe permite produzir efeitos concretos, ab initio, sequer chegando a perceber valores em decorrência da aposentadoria requerida.

Isto não subtrai, todavia, a caracterização do ato jurídico de concessão de uma aposentadoria como um ato jurídico perfeito, sendo esta a conclusão parcial que ora importa ao presente estudo, para resgate futuro em sede de debate mais específico.


2. A JURISDIÇÃO E O ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Até aqui se buscou tratar de conceitos elementares de Direito Previdenciário, com ênfase para a compreensão da cobertura previdenciária no contexto jurídico-institucional brasileiro, notadamente no que concerne àquele que é, por excelência, o principal benefício previsto pelo sistema previdenciário em vigor: a aposentadoria.

Todavia, a bem de melhor desenvolver a discussão que se pretende realizar no bojo do terceiro do capítulo, é mister que também se realize uma importante incursão teórica acerca de aspectos relacionados ao Direito Constitucional e ao Direito Processual Civil, com vistas a bem compreender a relevância da atividade jurisdicional no que tange à implementação de políticas públicas, o que reflete na exequibilidade do orçamento público, e a sua repercussão no âmbito previdenciário.

E é neste contexto, de discussão que vai além da seara previdenciária, que se posiciona o capítulo ora iniciado.

2.1. O pós-positivismo jurídico e o fortalecimento da jurisdição

Convém rememorar, prefacialmente, o conceito de jurisdição. Neste contexto, deve-se asseverar que, em oposição ao que ocorria nos primórdios da vida em sociedade, quando os conflitos de interesse eram resolvidos através da força, o Estado moderno assumiu o monopólio da solução das pretensões, fazendo valer o seu poder em detrimento à vontade dos particulares.

Assim, ao assumir o poder de dizer o direito aplicável ao caso concreto, impõe-se pelo Estado a proibição da autotutela, assim descrita por Luiz Guilherme Marinoni:

Antigamente, quando o Estado ainda não tinha poder suficiente para dizer normas jurídicas e fazer observá-las, aquele que tinha um interesse e queria vê-lo realizado fazia, através da força, com que aquele que ao interesse resistisse acabasse observando-o. Na verdade, realizava o seu interesse aquele que tivesse força ou poder para tanto, prevalecendo a denominada “justiça do mais forte sobre o mais fraco”.

Considerando o direito romano, sabe-se que a denominada “justiça pública” consolidou-se no período denominado de cognitio extra ordinem. Foi nessa fase que o Estado, por ter poder suficiente, passou a ditar a solução para os conflitos de interesses, não importando a vontade dos particulares, que na verdade já estavam submetidos ao poder do Estado, e deste seu poder de decidir os conflitos não podiam esquivar-se.

Impondo-se a proibição da autotutela, ou da realização das pretensões segundo o próprio poder do particular interessado, surge o poder de o Estado dizer aquele que tem razão em face do caso conflitivo concreto, ou o poder de dizer o direito conhecido como iuris dictio. (MARINONI, 2009, p. 31)

Ao poder conferido ao Estado para resolver as situações conflituosas e restabelecer a paz social dá-se o nome de jurisdição.

O conceito de jurisdição é bem desenhado por Freddie Didier Jr., nos seguintes termos:

A jurisdição é a função atribuída a terceiro imparcial (a) de realizar o direito de modo imperativo (b) e criativo (c), reconhecendo/efetivando/protegendo situações jurídicas (d) concretamente deduzidas (e), em decisão insuscetível de controle externo (f) e com aptidão para tornar-se indiscutível. (DIDIER JR., 2009, p. 67),

Ao assumir o controle da jurisdição, o Estado facultou aos interessados a busca ao Poder Judiciário para a realização dos seus interesses, por meio do exercício do direito de ação.

Com vistas a possibilitar o direito de ação, a Constituição Federal de 1988, no rol de direitos e garantias fundamentais constantes do seu Art. 5º, estabeleceu ser livre o acesso à Justiça, nos termos dispostos no inciso, XXXV, segundo o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O supracitado dispositivo constitucional traz em seu bojo, além do princípio do livre acesso ao Poder Judiciário, um alcance maior, que, conforme será exposto a seguir, ganhou diferentes conformações com a evolução das teorias constitucionalistas.

Com efeito, o direito de ação não pode mais ser compreendido como a mera obtenção de uma sentença. A inafastabilidade de acesso ao Poder Judiciário reclama, na visão contemporânea, uma compreensão mais alargada e uma análise mais detida.

Isso porque, com a Constituição Federal de 1988, floresceu no Brasil, em um ambiente pós-positivista[2], que já havia se desenvolvido na Europa ao longo da segunda metade do século XX, o que pode ser chamado de novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo, tendo como principais implicações, no plano teórico, o prestígio à força normativa à Constituição, a ampliação da jurisdição constitucional e a elaboração de novas formas de interpretação constitucional.

O ambiente pós-positivista, que seu ensejo ao fenômeno acima mencionado, decorreu do enfrentamento entre jusnaturalismo e o positivismo jurídico, modelos puros que guardam verdadeira antinomia enquanto correntes jusfilosóficas.

Para Luís Roberto Barroso,

O pós-positivismo se apresenta, em certo sentido, como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer a impossibilidade de tratá-los como espaços totalmente segmentados, que não se o novo direito constitucional ou neoconstitucionalismo é, em parte, produto desse reencontro entre a ciência jurídica e a filosofia do Direito. Para poderem se beneficiar do amplo instrumental do Direito, migrando do plano ético para o mundo jurídico, os valores morais compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução constante de seus significados.

Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a democracia, a República e a separação de Poderes. Houve, ainda, princípios cujas potencialidades só foram desenvolvidas mais recentemente, como o da dignidade da pessoa humana, o da razoabilidade/proporcionalidade e o da solidariedade. (BARROSO, 2011)

Com efeito, Luís Roberto Barroso é certamente um dos autores que melhor tratam deste tema no Direito Constitucional brasileiro, sintetizando o fenômeno da neoconstitucionalização nos seguintes termos:

Em suma: o neoconstitucionalismo ou novo direito constitucional, na acepção aqui desenvolvida, identifica um conjunto amplo de transformações ocorridas no Estado e no direito constitucional, em meio às quais podem ser assinalados, (i) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, cuja consolidação se deu ao longo das décadas finais do século XX; (ii) como marco filosófico, o pós-positivismo, com a centralidade dos direitos fundamentais e a reaproximação entre Direito e ética; e (iii) como marco teórico, o conjunto de mudanças que incluem a força normativa da Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional. Desse conjunto de fenômenos resultou um processo extenso e profundo de constitucionalização do Direito. (BARROSO, 2005)

Como consequência do neoconstitucionalismo e da emergência do pós-positivismo jurídico (marco jusfilosófico), modificou-se a forma de visão dos princípios constitucionais, que já não podiam ser vistos como meros valores, mas sim com toda a sua força normativa, a ser garantida por todos os poderes da República, em especial, pelo Poder Judiciário, a quem compete a interpretação constitucional. Essa necessária modificação é muito bem sintetizada nos ensinamentos de Zagrebelsky:

Las separaciones ley-derechos-justycia y princípios-reglas encunentran su unidad en la aplicación judicial del derecho, uma actio duplex de la que las concepciones positivistas de la jurisdicción han ocultado durante mucho tempo uma de las partes. En tales concepciones, la realidade a la que el derecho se aplica aparece siempre como ensombrecida y privada de todo valor, ya sen razone en términos de silogismo judicial, donde el hecho que se cualifica juridicamente constituye la premissa menor y la regla jurídica la premissa mayor, o en términos de subsunción del supuesto de hecho concreto en el supuesto de hecho abstracto, o en otros términos similares.

[...]

Según la concepción positivista tradicional, en la aplicación del derecho la regla jurídica se obtiene teninendo en cuenta exclusivamente las exigências del derecho. Exactamente eso significaban la interpretación y los criterios para la misma elaborados por el positivismo. Como, además, uma vez determinada la regla, su aplicación concreta se reducía a um mecanismo lógico sin discrecionalidad – y en caso de que hubiese discrecionalidad se afirmaba la ausência de derecho – se compreende que los problemas de la aplicación del derecho viniesen integramente absorbidos en los de la interpretacíon.

[...]

Operaba la máxima dura lex sed lex, que es la quintaesencia del positivismo acrítico. Hoy, por el contrario, la impossibilidade de alcanzar aquella composición abre uma cuestión que no afecta ya a la interpretacíon da ley, sino sua validez. Las exigências de los casos cuentan más que la voluntad legislativa y pueden invalidarla. (ZAGREBELSKY, 2003, p. 131)[3].

Nota-se, assim, uma nova percepção do papel do julgador no âmbito do cenário pós-positivista. A interpretação jurídica deixa de ser um exercício de mera subsunção normativa, e a efetivação da justiça se torna um fenômeno mais complexo e estrutural, decorrente de uma atividade judicante a ser exercido conforme as exigências do caso concreto.

Ao dispor que lesão ou ameaça a direito não deixará de ser tutelada jurisdicionalmente, o art. 5º, XXXV da Constituição Federal poderia, em tempos idos, ter um significado restrito e eminentemente formal (em um viés positivista clássico, certamente). Mas hodiernamente, indica que não mais é suficiente a possibilidade de mero acesso ao Poder Judiciário. É imperativo, para além disso, o acesso à ordem jurídica justa.

Não se despreza, destaque-se, a importância da lei escrita. Mas se ressalta, de outra banda, a normatividade dos princípios e o papel do intérprete (julgador) como verdadeiro partícipe na construção da norma em si.

Nesse sentido, leciona Marinoni:

O direito de acesso à justiça, atualmente, é reconhecido como aquele que deve garantir a tutela efetiva dos demais direitos. A importância que se dá ao direito de acesso à justiça decorre do fato de que a ausência de tutela jurisdicional efetiva implica a transformação dos direitos garantidos constitucionalmente em meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores.

Por essas razões, a doutrina moderna abandonou a idéia de que o direito de acesso à justiça, ou o direito de ação, significa apenas a sentença de mérito. Esse modo de ver o processo, se um dia foi importante para a concepção de um direito de ação independente do direito material, não se coaduna com as novas preocupações que estão nos estudos dos processualistas ligados ao tema da “efetividade do processo”, que traz em si a superação da ilusão de que este poderia ser estudado de maneira neutra e distante da realidade social e do direito material. (MARINONI, 2009, p. 32)

O magistério de Mauro Capelletti também deixa clara a importância do acesso à justiça, o que justifica a sua tutela especial:

[...] o acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos [...] que pretenda garantir e não apenas proclamar o direito de todos [...] o acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe o alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência (CAPELLETI; GARTH, 1988, p. 12/13)

O acesso à ordem jurídica justa em análise, podendo ser também caracterizado como acesso à tutela jurisdicional adequada, está calcado em alguns instrumentos basilares de efetivação do direito material.

O primeiro dos fundamentos necessários para a tutela efetiva pretendida é a possibilidade de acesso ao processo.

Entende-se como possibilidade de acesso ao processo a minimização, ou mesmo eliminação, de obstáculos que impeçam o ajuizamento das demandas judiciais, dentre os quais, a ausência de recursos econômicos.

Nesse contexto, impende asseverar a criação dos Juizados Especiais Federais, utilizado pelos mais necessitados economicamente, que, por exemplo, frequentemente buscam o Poder Judiciário para elidir as decisões administrativas do órgão previdenciário, o INSS, tão referido no capítulo antecedente. Trata-se, sem dúvida, de um bom exemplo de facilitação de acesso ao processo judicial.

Outro fundamento do acesso amplo ao Poder Judiciário é a necessidade de decisão justa.

Daniel Amorim Assumpção Neves assim ensina sobre o tema:

Amplia-se o acesso, permite-se a ampla participação, mas profere-se uma decisão injusta. É fácil perceber que nesse caso tanto o acesso como a ampla participação não levaram as partes a lugar nenhum. Em razão disso, a terceira “viga mestra” é a decisão com justiça, ainda que o conceito de justiça seja indeterminado, suscetível de certa dose de subjetivismo, o que se pode afirmar, com segurança, é que a missão de decidir com justiça não significa a permissão de julgamento por equidade, espécie de julgamento reservado a situações excepcionais, expressamente previstas em lei (art. 127 do CPC). Trata-se de preferir a interpretação mais justa diante de várias possíveis, ou, ainda, de aplicar a lei sempre levando-se em consideração os princípios constitucionais de justiça e os direitos fundamentais.  (NEVES, 2011, p. 24)

Reafirma-se, assim, a preocupação pós-positivista com o conteúdo justo do direito, a ser corporificado no bojo dos processos judiciais estabelecidos. A busca pela interpretação mais justa diante das várias possíveis se coaduna com o cenário jusfilosófico aqui tratado.

Além das citadas bases para o acesso à ordem jurídica justa, faz-se necessária, ademais, a possibilidade de efetivação das decisões judiciais. Para tanto, dentre outros os mecanismos, está a necessidade de ampliação dos poderes dos magistrados para a garantia de eficácias das suas próprias decisões.

Sem a pretensão de exaurir todas as possibilidades de atuação dos magistrados para a garantia de eficácia das decisões, vale aduzir que diversos dispositivos do Código de Processo Civil concedem amplo poder de cautela aos juízes, nos últimos anos.

Sobre o poder geral de cautela, à guisa de exemplificação, importa trazer à baila as lições trazidas por Daniel Baggio Maciel, em seu artigo “O poder geral de cautela do juiz”, com trecho abaixo transcrito:

Quem ler o artigo 798 do Código de Processo Civil perceberá nele uma autorização que legitima o juiz a ordenar providências assecuratórias previstas expressamente em lei e outras que, embora não estejam especificadas normativamente, sejam necessárias à proteção do direito provável contra qualquer dano importante. As medidas de simples segurança que possuem regulação expressa em lei são chamadas "cautelares nominadas" (art. 813 e seguintes), ao passo que as demais são conhecidas por "cautelares inominadas". Atentos a essa previsão legal, podemos dizer que o poder cautelar geral do juiz é uma aptidão jurídica da qual está investido o magistrado para ordenar quaisquer medidas cautelares se presentes o “fumus boni iuris” e o “periculum in mora”. A título de exemplo, valendo-se desse atributo inerente à jurisdição, o juiz pode autorizar ou vedar a prática de determinados atos, impor a prestação de caução, ordenar a guarda judicial de pessoas e o depósito de bens (art. 799). Para GRECCO FILHO, "o poder geral de cautela atua como um poder integrativo de eficácia global da atividade jurisdicional, afinal, se essa atividade estatal tem por finalidade declarar o direito de quem tem razão e satisfazer esse direito, ela deve ser dotada de instrumentos para a garantia do direito enquanto não definitivamente julgado e satisfeito." Embora essa expressão de inspiração italiana indique o poder do juiz de determinar medidas de prevenção contra o dano iminente, melhor é entendê-lo como um “poder-dever”. Fala-se em "poder" porque é o juiz o agente público titular da jurisdição e a ele compete ordenar tais providências em conformidade com o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição da República. (MACIEL, 2008)

Nesse contexto, impende destacar que a ampliação dos poderes dos magistrados não é fato tão recente no ordenamento jurídico brasileiro, e não esteve adstrita tão somente à efetivação das decisões.

Outra emblemática demonstração da atuação ativa dos magistrados em causas judiciais reside na atividade voltada para o preenchimento das cláusulas gerais, existentes especialmente no Direito Civil.

Nota-se a relevância da atuação do órgão judicante no preenchimento das normas abstratas em questão, como bem se vê abaixo:

As denominadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, que fornecem um início de significação a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social e boa fé, dentre outras, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própria avaliação. (BARROSO, 2011)

Tem-se, assim, que a atuação mais efetiva e ativa do Poder Judiciário configura um dos grandes pilares do acesso à justiça.

Freddie Didier Jr. enuncia a evolução da jurisdição, elencando os fatos que compõem o cenário jurídico vigente, a fim de possibilitar o atual alcance da função jurisdicional, senão veja-se:

Não é mais possível utilizar a noção de jurisdição criada para um modelo de Estado que não mais existe, notadamente em razão de diversos fatores, tais como: i) a redistribuição das funções do Estado, com a criação de agências reguladores (entes administrativos, com funções executiva, legislativa e judicante) e executivas; ii) a valorização e o reconhecimento da força normativa da Constituição, principalmente das normas princípio, que exigem do órgão jurisdicional uma postura mais ativa e criativa na solução de problemas; iii) o desenvolvimento da teoria dos direitos fundamentais, que impõe a aplicação direta das normas que os consagram, independentemente de intermediação legislativa; iv) a criação de instrumentos processuais como o mandado de injunção, que atribui ao Poder Judiciário a função de suprir, para o caso concreto, a omissão legislativa; v) a alteração da técnica legislativa: o legislador contemporâneo tem-se valido da técnica das cláusulas gerais, deixando o sistema normativo mais aberto e transferindo expressamente ao órgão jurisdicional a tarefa de completar a criação da norma jurídica do caso concreto; vi) a evolução do controle de constitucionalidade difuso, que, dentre outras consequências, produziu entre nós a possibilidade de enunciado vinculante da súmula do STF em matéria constitucional, texto normativo de caráter geral, a despeito de produzido pelo Poder Judiciário.” (DIDIER JR., 2009, p. 67/68)

Evidencia-se, do excerto doutrinário acima citado, bem como de todo o exposto, a modificação, ao longo do tempo, do conceito de jurisdição, fortemente marcada pela ampliação dos poderes exercidos pelo órgão judicante e fortalecimento da jurisdição constitucional, impulsionadas pelo novo constitucionalismo, marcado pelo reconhecimento da força normativa da Constituição; pelo fortalecimento da jurisdição constitucional; e pelas novas formas de interpretação do texto constitucional[4].

2.2. Da efetividade ao ativismo judicial

Os direitos sociais, pertencentes à segunda dimensão de Direitos Fundamentais, estão previstos na Constituição Federal de 1988, em extenso rol, especialmente em seu artigo 6º, que considera como tais, sem prejuízo de outros, a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Tais direitos evidenciam deveres de prestação e proteção pelo Estado (demandam ações concretas do poder público) e, em algum grau, também obrigam o Estado à abstenção de atos que se afigurem contrários ao dever positivo.

Nesse diapasão, impende asseverar que os direitos sociais são exigíveis, inclusive mediante ação judicial, a fim de que seja dada a efetividade necessária à tutela constitucionalmente prevista.

Embora sempre fossem exigíveis judicialmente, no contexto do neoconstitucionalismo, a necessidade de garantir a materialização desses direitos não mais estava adstrita à norma posta, dando ensejo à doutrina da efetividade, conforme razões a seguir expostas.

Sobre o tema, preciosos são os ensinamentos do já referido Luís Roberto Barroso, ao tratar sobre a chamada doutrina da efetividade:

O reconhecimento de força normativa às normas constitucionais foi uma importante conquista do constitucionalismo contemporâneo. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa.

Nessa linha, as normas constitucionais, como as normas jurídicas em geral, são dotadas do atributo da imperatividade. Não é próprio de uma norma jurídica sugerir, recomendar, alvitrar. Normas constitucionais, portanto, contêm comandos. Descumpre-se a imperatividade de uma norma tanto por ação quanto por omissão. Ocorrida a violação, o sistema constitucional e infraconstitucional devem prover meios para a tutela do direito ou bem jurídico afetados e restauração da ordem jurídica. Estes meios são a ação e a jurisdição [...] (BARROSO, 2005)

Sobre a efetividade dos direitos sociais, igualmente preciosas são as explanações de Ingo Wolfgang Sarlet, senão veja-se:

Um problema central relacionado com a própria eficácia e efetividade dos direitos fundamentais sociais é o de estabelecer, no âmbito do marco constitucional brasileiro (e, portanto, de modo afinado com os limites do nosso direito constitucional positivo), os contornos do seu (dos direitos sociais) respectivo regime jurídico-constitucional, o qual, além do que expressamente – e implicitamente - foi estabelecido pelo Constituinte, tem sido objeto de fecundo – mas amplamente controverso - desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial.

[...] acabou sendo incorporada ao discurso constitucional brasileiro, até mesmo pelo fato de que o direito constitucional positivo assim o exige, a conhecida formulação de Robert Alexy ao enfatizar que os direitos fundamentais são posições jurídicas a tal ponto relevantes que o seu reconhecimento não pode ser pura e simplesmente colocado plenamente à disposição das maiorias parlamentares simples. Também por esta razão, os direitos fundamentais – para que tenham assegurada uma posição preferencial e privilegiada – devem estar blindados contra uma supressão ou um esvaziamento arbitrário por parte dos órgãos estatais, em outras palavras, pelos poderes constituídos, além de terem sua normatividade plenamente garantida, o que implica o reconhecimento de uma dupla fundamentalidade formal e material. (SARLET, 2001)

A Constituição Federal de 1988, segundo o referido autor, alinhou-se a tal modelo, inserindo em seu bojo um extenso rol de direitos fundamentais, aos quais cuidou de atribuir a condição de cláusulas pétreas, ou seja, limites materiais à atuação retificadora do texto constitucional (art. 60, § 4º).

O reconhecimento dos direitos sociais como direitos judicialmente exigíveis trouxe, como consequência, a transferência, ainda que com diversos temperamentos, de questões que antes eram tidas como exclusivamente definidas como de competência e responsabilidade dos Poderes Executivo e Legislativo.

Inegável, portanto, que a valorização do papel do Poder Judiciário deu ensejo a uma crescente judicialização de matérias que antes não eram tão amplamente discutidas na via judicial. Ou seja, questões que outrora eram restritas ao âmbito legislativo ou à execução concreta de políticas públicas por intermédio dos poderes eleitos, passaram a desaguar em processos judiciais, outorgando ao Poder Judiciário a manifestação final e conclusiva.

Nesse contexto, vale asseverar a definição de judicialização, também delineada por Luís Roberto Barroso, tema bastante em voga em tempos atuais:

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. Essa expansão da jurisdição e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de se pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiram o modelo inglês – a chamada democracia ao estilo de Westminster –, com soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade. Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito. Os precedentes podem ser encontrados em países diversos e distantes entre si, como Canadá, Estados Unidos, Israel, Turquia, Hungria e Coreia, dentre muitos outros (...). (BARROSO, 2008)

Ainda sobre a judicialização das políticas públicas, veja-se o ensinamento de José Sérgio da Silva Cristóvam:

A extrema rapidez com que se alteram os cenários político e econômico, aliada à crescente complexidade da sociedade contemporânea, tem exigido um profundo redimensionamento do papel do Direito e das instituições jurídicas no corpo social. [...]

A superação do positivismo jurídico exige uma revisão de vários institutos jurídicos e inúmeras teorias que, embora servissem ao modelo liberal de Estado de direito, atualmente não se sustentam no seio do novo constitucionalismo: a teoria liberal da separação de poderes, a própria noção de soberania, o papel do Poder Judiciário no controle da Administração Pública, o controle jurisdicional da discricionariedade e do mérito administrativo, e, o objetivo central deste texto, a justiciabilidade de políticas públicas. (CRISTOVAM, 2005)

Com efeito, depreende-se de tudo o quanto aqui escrito que a judicialização nasce de fatores de naturezas diversas, sendo certo que a ascensão do Poder Judiciário é apenas um deles.

O multicitado Luis Barroso traz a lume o que enxerga como sendo as principais causas do fenômeno ora estudado. A primeira delas, segundo o referido autor, seria a própria redemocratização do país, que 

[...] teve como ponto culminante a promulgação da Constituição de 1988. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos Ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira. (BARROSO, 2008)

Para além disso, destaca-se também a constitucionalização abrangente, caracterizada na realidade brasileira pelo caráter mais que analítico do texto constitucional de 1988, que enfrenta diversas matérias não propriamente constitucionais, que em momento pretérito eram objeto de tratamento legislativo ordinário. Para Luís Roberto Barroso, em verdade,

[...] Essa foi, igualmente, uma tendência mundial, iniciada com as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi potencializada entre nós com a Constituição de 1988. A Carta brasileira é analítica, ambiciosa, desconfiada do legislador. Como intuitivo, constitucionalizar uma matéria significa transformar Política em Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. (BARROSO, 2008)

Ressalte-se, ainda, que também representa um importante fator de judicialização a conformação atribuída pelo legislador constituinte ao sistema brasileiro de controle de constitucionalidade das leis e atos normativos. Trata-se, como é cediço, de

[...] um dos mais abrangentes do mundo. Referido como híbrido ou eclético, ele combina aspectos de dois sistemas diversos: o americano e o europeu. Assim, desde o início da República, adota-se entre nós a fórmula americana de controle incidental e difuso, pelo qual qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei, em um caso concreto que lhe tenha sido submetido, caso a considere inconstitucional. Por outro lado, trouxemos do modelo europeu o controle por ação direta, que permite que determinadas matérias sejam levadas em tese e imediatamente ao Supremo Tribunal Federal. A tudo isso se soma o direito de propositura amplo, previsto no art. 103, pelo qual inúmeros órgãos, bem como entidades públicas e privadas – as sociedades de classe de âmbito nacional e as confederações sindicais – podem ajuizar ações diretas. Nesse cenário, quase qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alçada ao STF. (BARROSO, 2008)

Em suma: para o autor aqui referido, três são os fatores decisivos para a chamada judicialização na realidade jurídico-institucional brasileira. A redemocratização do país, a abrangência do texto constitucional e o desenho conferido ao sistema de controle de constitucionalidade pátrio.

Tal percepção é absolutamente acertada, eis que tais fatores efetivamente conduzem à discussão judicial de inúmeras matérias, que talvez não chegassem ao Poder Judiciário caso estivessem mais restritas ao processo legislativo majoritário. Acredita-se, destarte, que a judicialização, na forma aqui referida, configura verdadeira escolha do sistema constitucional brasileiro, que além de tudo o quanto já referido, impede o afastamento de apreciação de lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário, por expressa dicção constitucional.

Fenômeno muito próximo da judicialização, mas que com este não se confunde, é o que se pode chamar de ativismo judicial.

Afinal, com o aumento das questões potencialmente submetidas ao Poder Judiciário e com a já referida judicialização, os juízes passaram a ter maior participação na concretização do texto constitucional vigente, aplicando-lhe diretamente aos casos concretos. Neste contexto, perdeu força a clássica ideia de separação de poderes, e a interferência do Poder Judiciário sobre os demais foi ampliada.

Com efeito, é bastante comum a aplicação direta do texto constitucional, independentemente da atuação do legislador ordinário. Ademais, dado o caráter híbrido do controle de constitucionalidade brasileiro, qualquer juiz ou tribunal pode afastar a aplicação da norma legislada do caso concreto, sob o argumento ou percepção de que estaria a mesma dissonante com o texto constitucional vigente, ou seja, marcada pelo fenômeno da inconstitucionalidade. Para Luís Roberto Barroso (2008), os critérios de declaração de tais inconstitucionalidades passaram a ser cada vez menos rígidos que os de patente e ostensiva violação da Constituição.

Além disso, não raramente o Poder Judiciário tem, por intermédio dos processos que aprecia, imposto ou determinado condutas ou abstenções ao Poder Público, notadamente no que diz respeito às demandas relacionadas com a implementação de políticas públicas.

Acredita-se, relativamente ao ativismo judicial, que se trata de um modo de agir verdadeiramente decorrente da escolha do Poder Judiciário em maximizar a sua atuação diante das possibilidades trazidas pelo texto constitucional.

Não é tarefa fácil, contudo, segundo explica Vanice Valle, identificar as decisões judiciais que decorram da utilização do ativismo como salutares ou ofensivas às competências dos demais poderes. Isto porque, diante da subjetividade envolvida no tema, é igualmente tormentosa a identificação do fenômeno. Afinal,

[...] o parâmetro utilizado para caracterizar uma decisão como ativismo ou não reside numa controvertida posição sobre qual é a correta leitura de um determinado dispositivo constitucional. Mais do que isso: não é a mera atividade de controle de constitucionalidade – consequentemente, o repúdio ao ato do poder legislativo – que permite a identificação do ativismo como traço marcante de um órgão jurisdicional, mas a reiteração dessa mesma conduta de desafio aos atos de outro poder, perante casos difíceis. (VALLE, 2009, p. 21).

Vê-se, deste modo, apesar das dificuldades inerentes ao tema, que o ativismo judicial está calcado na intenção do Poder Judiciário em ampliar o seu espaço na efetivação dos valores e normas constitucionais.

De modo diverso, como já explicitado, a judicialização, como decorrência do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, é um fato que independe de qualquer vontade política neste sentido.

Nesse contexto, importa bem distinguir os conceitos em questão.

A judicialização e o ativismo são traços marcantes na paisagem jurídica brasileira dos últimos anos. Embora próximos, são fenômenos distintos. A judicialização decorre do modelo de Constituição analítica e do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de largo alcance político e moral sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Vale dizer: a judicialização não decorre da vontade do Judiciário, mas sim do constituinte.

O ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário. Trata-se de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso. Os riscos da judicialização e, sobretudo, do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias. (BARROSO, 2008)

Tem-se, assim, que, apesar das distinções quanto à origem, os dois institutos supramencionados possuem consequências parecidas, bem como demonstram a vertiginosa ascensão do Poder Judiciário, razão pela qual mereceram a análise ora esboçada.

A despeito das semelhanças, o ativismo judicial desafia o próprio sistema jurídico vigente ao agigantar o Poder Judiciário em detrimento das decisões e escolhas dos demais Poderes. Já a judicialização, como dito, decorre do próprio sistema.

Com isso, deve-se ressaltar a inevitabilidade da judicialização, ao mesmo tempo em que se afirma como necessária a avaliação dos riscos e limites do ativismo judicial, a fim de que este instituto seja também visto como imprescindível ao sistema jurídico, como solução para as omissões dos demais poderes da República ou na ponderação de interesses na colisão de princípios, sem, contudo, excessos que ponham em xeque o próprio princípio constitucional fundamental da tripartição dos poderes.

2.3. O ativismo judicial em matéria previdenciária

Na história recente do direito previdenciário brasileiro, muitos são os exemplos de decisões judiciais que evidenciam a postura ativista do Poder Judiciário.

Afinal, sendo a Constituição Federal de 1988 um texto analítico, é certo que ali são tratados diversos temas que não necessariamente são classificados como matéria constitucional. E um dos inegáveis efeitos decorrentes desta vastidão do texto constitucional é, sem dúvidas, a expansão da jurisdição e do alcance das decisões judiciais que buscam fundamento e razão de ser no bojo da própria carta política.

Além disso, tendo o texto constitucional tratado de matérias variadas, não raramente as discussões jurídicas mais simples são levadas até o órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro, que é o Supremo Tribunal Federal – STF, que tem por competência maior a própria guarda e proteção da Constituição Federal.

Logo, acredita-se que o STF tem funcionado, em diversas oportunidades, como verdadeiro ambiente fértil para o ativismo judicial referido alhures, eis que, na clara intenção de assegurar direitos constitucionalmente previstos, é levado a atuar efetivamente nos processos, até mesmo de forma contramajoritária, desconsiderando ou revisando a vontade externada pelos órgãos de composição eletiva (Poderes Executivo e Legislativo).[5]

Dito isto, quadra asseverar que essa dinâmica, de atuação jurisdicional mais severa e ativista, repercute inegavelmente no Direito Previdenciário. Afinal, há um tratamento relativamente detalhado da Previdência Social no bojo do texto constitucional (vide artigos 201 e seguintes da Constituição de 1988), e em diversos momentos o STF foi instado a se manifestar em ações relacionadas a este específico ramo do conhecimento jurídico.

E não apenas o STF, como é cediço, mas todos os órgãos jurisdicionais.

Isso porque, com o amplo acesso à justiça, facilitado pelos inúmeros instrumentos que visam o afastamento dos obstáculos, mormente os econômicos, de judicialização dos conflitos, bem como diante da nova postura do Judiciário com relação ao seu papel constitucional, muitas situações que envolvem matéria previdenciária vem sendo decididas em última análise pelo órgão judicante em desprestígio à legislação infraconstitucional vigente.

Antes de adentrar no estudo do caso que interessa ao presente trabalho, cumpre asseverar que muitas das decisões que são fortemente marcadas pelo ativismo judicial trouxeram grandes avanços para o direito previdenciário, e, por vezes, chegam a influenciar a alteração da legislação atinente ao tema.

Dentre casos emblemáticos que traduziram o ativismo judicial como expoente de um Poder Judiciário ativo e empenhado nas causas sociais, tem-se o reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal, e, por consequência, como ensejadoras de benefícios previdenciários.

O já muitas vezes citado Luís Roberto Barroso, em seu texto “Retrospectiva 2011 - Direito Constitucional e Supremo Tribunal Federal”, bem sintetiza a decisão em questão ao analisar o julgamento da ADPF 132 e da ADI 4.277:

Em ambas as ações, ajuizadas respectivamente pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro e pelo Procurador-Geral da República, o STF atribuiu interpretação conforme a Constituição ao art. 1723 do Código Civil, que regulamenta a união estável entre o homem e a mulher. Como se sabe, a mesma referência básica é encontrada no art. 226, § 3º da Constituição, que impõe ao Estado o dever de reconhecer a tais uniões informais o status

de família, sem prejuízo de facilitar sua conversão em casamento. Os opositores do reconhecimento invocavam justamente a literalidade dessas previsões, sobretudo do dispositivo constitucional. Em decisão unânime, o STF afastou o suposto óbice e estendeu expressamente o regime jurídico da união estável às uniões entre duas pessoas do mesmo gênero, atendidos os requisitos da união heterossexual.

[...] a postura interpretativa do STF, que construiu a necessidade de reconhecimento das uniões entre pessoas de mesmo gênero a partir da aplicação direta de princípios constitucionais. O ponto foi destacado por diversos Ministros, sobretudo pelo Ministro Gilmar Mendes, que saudou o precedente como a superação definitiva da teoria do legislador negativo. (BARROSO, 2012)

Essa decisão, que estava em consonância com outras decisões já proferidas pela Corte sobre o tema, ao dar a interpretação ao art. 226, §3º da Constituição Federal conforme os princípios contidos na própria Carta Magna, em postura ativista, demonstra a importância da atuação do Poder Judiciário na efetivação das normas constitucionais.

Por outro lado, por vezes, a atuação do órgão judicial, na tentativa de realizar os direitos sociais, acaba por implicar em ofensas significativas à esfera de atuação dos demais Poderes, à lei e à Constituição Federal, conforme se passa a demonstrar.

Tome-se como relevante exemplo, e que bem demonstrará até onde pode chegar a postura ativista do Poder Judiciário, o fato de que o INSS, órgão previdenciário na realidade jurídico-institucional brasileira (responsável pela gestão do regime geral) não raras vezes é instado ao cumprimento de decisões judiciais que, em tese, não deveriam produzir efeitos em relação a ele, por não ter participado da relação jurídica processual.

Consoante já mencionado, dentre as decisões judiciais que potencialmente geram efeitos em favor do demandante contra a Autarquia Previdenciária, ainda que esta não tenha figurado como parte do processo, estão as sentenças trabalhistas de reconhecimento de vínculo de emprego e tempo de contribuição, bem como as sentenças proferidas em processos de justificação judicial com pedido de reconhecimento de união estável, tramitados perante as Varas de Família.

Com relação às citadas decisões, ocorrem ainda diferentes tipos de situação, quais sejam: o INSS é intimado diretamente pelo Juízo, no âmbito do processo judicial, para cumprir a decisão proferida em processo no qual não figurou como parte, ou, no âmbito administrativo, a parte instruirá o seu pedido de benefício previdenciário com a sentença, esperando que ela produza efeitos idênticos.

Apesar de, no primeiro exemplo citado, afigurar-se mais clara a atuação judicial proativa, tem-se que, na segunda hipótese, embora a questão seja tratada por normas específicas no âmbito do INSS, na prática, as referidas decisões, quando apresentam validade questionada no âmbito administrativo, geram a judicialização da questão e, em regra, produzem presunção juris et de juri contra a autarquia previdenciária.

Assim sendo, apesar de decorrentes de situações diversas, o desdobramento é idêntico em ambos os casos, a saber: o INSS é instado a suportar efeitos de uma decisão judicial proferida em processo no qual não foi parte, seja porque, no âmbito do mesmo processo, foi intimado para fazê-lo, ou em razão da presunção juris et de juri que será produzida por essa decisão, quando eventualmente judicializada a questão em outro processo.

Outro claro exemplo de ativismo judicial em matéria previdenciária, como se verá no capítulo seguinte, está na própria ideia da desaposentação, que embora tenha surgido no âmbito da discussão doutrinária, ganhou força e expressão pelo acolhimento judicial que lhe foi conferido por variados juízes e tribunais brasileiros.

Estão pendentes de julgamento, atualmente, perante já referido STF, os Recursos Extraordinários de nº 661.256 e 381.367, que decerto resolverão definitivamente o tema, definindo, no âmbito judicial (e não nos poderes eleitos) se é possível a renúncia a uma aposentadoria já recebida para o percebimento de outra aposentadoria de maior valor, em razão da continuidade laborativa do segurado. O julgamento de tal demanda, de inegável repercussão social e econômica, trará importantes reflexos para a política previdenciária do país.

Pode-se atentar desde já, no entanto, e com vistas principalmente ao exemplo antecedente, que as prerrogativas conferidas ao julgador no sistema jurídico vigente não induzem plenos poderes, tendo em vista que, com efeito, os poderes dos juízes pode e devem encontrar limitações, sob pena de ilegalidade e/ou inconstitucionalidade.

Sobre esta necessidade de limitações, veja-se o comentário feito por Antonio Cláudio da Costa Machado:

A determinação judicial de atos a serem praticados pelas partes tem por balizamento as autorizações legais conferidas ao magistrado para a condução do processo rumo ao seu objetivo. Em outras palavras, o juiz só pode ordenar às partes aquilo que é da vontade da lei e não da sua própria. (MACHADO, 2013, p. 289)

Vê-se, portanto, que a busca pela efetividade das decisões, decorrente do neoconstitucionalismo, deve encontrar limites na lei o no próprio sistema constitucional, que determina, entre outras coisas, que os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário são independentes e harmônicos entre si.

Outro ponto limitador ao poder do juiz ativista está na garantia da ampla defesa e no princípio do contraditório inerentes ao processo judicial, pelos quais, com exceção das hipóteses legais, não poderá ser imposta uma obrigação a quem não figurou como parte.

Valiosas são as palavras de Glauco Gumeto Ramos, em obra coordenada por Freddie Didier Jr., que afirma a necessidade de postura garantista dos princípios acima citados em oposição ao arbítrio ativista dos magistrados, neste sentido:

Não há dúvida de que a ampla defesa é uma das decorrências do princípio maior do devido processo legal, de inequívoco nível constitucional. É ela, a ampla defesa, uma garantia a ser observada-viabilizada-concretizada pela autoridade estatal de maneira prévia ao “ato de fala” representativo do Poder. Insista-se no ponto: o Poder estatal só poderá ser exercido APÓS o exercício da ampla defesa pelo seu destinatário. Foi essa a opção constitucional! Do contrário, é Poder decretado com autoritarismo e arbitrariedade eis que exercido fora do devido processo legal, e isso passa ao largo do modelo semântico de processo prescrito na Constituição. (DIDIER JR., 2013, p. 250)

O supramencionado autor prossegue questionando a possibilidade de compatibilidade constitucional entre o ativismo judicial e a ampla defesa, ao que conclui:

Em primeiro lugar tenhamos em mente – em definitivo – que a ampla defesa não é um favor que o Estado nos confere, mas uma garantia constitucional decorrente do devido processo que é um dos fatores de legitimidade do processo jurisdicional de criação do Direito e do próprio exercício do Poder estatal. Em segundo lugar, tenhamos em mente – também em definitivo – que a ideologia do ativismo judicial viabiliza posturas mais incisivas, autoritárias e arbitrárias do juiz e do Poder Judiciário no curso de criação do direito criado através desse processo. Em suma, o ativismo judicial afeta o conteúdo dogmático da teoria da decisão judicial republicana e democrática e com isso acaba “criando” um modelo pragmático de processo apartado do modelo semântico decorrente dos enunciados prescritivos contidos na Constituição.

Estabelecidos estes parâmetros (=ampla defesa como garantia prévia; ativismo judicial como fator determinante a motivar postura mais incisiva, autoritária e arbitrária do titular do Poder jurisdicional), temos que a ideologia do ativismo judicial é capaz de subverter a garantia constitucional da ampla defesa. E isso, a mim me parece, nos é revelado inclusive de maneira intuitiva. (DIDIER JR, 2013, 250)

Com relação à possível oposição existente entre a postura ativista no processo civil e as garantias constitucionais processuais, elucidativo é o excerto abaixo, é forçoso, destarte, que se persiga um mínimo equilíbrio. A postura ativista não pode ensejar, sob pena de falibilidade do próprio sistema, a inobservância de direitos constitucionalmente tão caros e historicamente conquistados.

Neste sentido, é preciso atentar que

A atividade judicial ao suprimir direitos fundamentais em prejuízo do jurisdicionado, está contrariando a Constituição da República. Não se conhece estatística alguma, mas pelo que se apresenta notório, é possível imaginar que o poder que mais viola a Constituição da República é o Poder Judiciário. Basta lembrar alguns poucos exemplos e, logo é possível chegar a esta conclusão. Quem por anos e anos determinou a prisão do depositário infiel sem lei que cominasse pena, configurando prisão sem lei em afronta ao art. 5º XXXIX, da CF? Quem sempre determinou a retenção de dinheiro de incapaz sem o devido processo legal (sem expressa lei nesse sentido), em afronta ao art. 5, LIV, da CF? Quem cerceia defesa em processo ou procedimento, negando o contraditório e a ampla defesa, em afronta ao art. 7º, X, da CF? (...) (DIDIER JR., 2013, 221/222)

Logo, reafirmando a necessidade de equilíbrio, pode-se defender que o poder conferido ao juiz encontra importante grau de limitação no ordenamento jurídico vigente, não sendo lícito instituir obrigações que conflitem com tal ordenamento, ainda que se manifeste na amplitude da judicialização de questões sociais, mormente quando plenamente possível, no caso concreto, para a realização do direito, a aplicação do direito posto.


3. A DESAPOSENTAÇÃO

Analisados os aspectos gerais acerca do sistema previdenciário brasileiro (primeiro capítulo) e as questões atinentes ao exercício ativista da jurisdição, inclusive na matéria previdenciária (segundo capítulo), chega-se ao ponto nodal do presente estudo, consistente na chamada desaposentação.

No capítulo que ora se inicia, buscar-se-á bem compreender em que consiste tal instituto, averiguando-se a conformação normativa e o entendimento do INSS acerca do tema, para após se analisar a postura do Poder Judiciário diante das ações que lhe são submetidas nesta matéria.

3.1. Conceito e hipóteses de desaposentação

Antes de mais nada, convém bem compreender em que consiste a desaposentação. Em linhas gerais, trata-se de um ato de renúncia praticado por segurado do sistema previdenciário, já aposentado, em razão da possibilidade de obtenção de um benefício mais vantajoso, porquanto de maior valor mensal, em razão da continuidade laborativa posterior à obtenção da aposentadoria.

Sobre o tema, bastante elucidativa é a lição de Fábio Zambitte Ibrahim:

[...] a desaposentação seria a reversão do ato que transmudou o segurado em inativo, encerrando, por consequência, a aposentadoria. Aqui tal conceito é utilizado em sentido estrito, como normalmente é tratado pela doutrina e jurisprudência, significando tão somente o retrocesso do ato concessivo de benefício almejando prestação maior.

A desaposentação, portanto, como conhecida no meio previdenciário, traduz-se na possibilidade do segurado renunciar à aposentadoria com o propósito de obter benefício mais vantajoso, no Regime Geral de Previdência Social ou em Regime Próprio de Previdência Social, mediante a utilização de seu tempo de contribuição. Ela é utilizada colimando a melhoria do status financeiro do aposentado. (IBRAHIM, 2011, p. 35)

Nota-se, assim, à luz da lição acima transcrita, que a desaposentação se consolida em dupla conformação. A uma, significa a renúncia do segurado a um direito que já possui e já exercita, de percebimento de aposentadoria cujos requisitos, uma vez implementados, deram ensejo a uma concessão administrativa.

A duas, implica na pretensão de obter um novo benefício, de semelhante natureza, porém de valor mais elevado, o que há de ensejar, como bem referiu o autor citado, uma melhoria do status financeiro do aposentado.

Registre-se, outrossim, que o fundamento por excelência da desaposentação reside na continuidade laborativa do aposentado. Com efeito, permanecendo em atividade e percebendo salário, é certo que o aposentado continua também a verter contribuições previdenciárias ao sistema previdenciário, na condição de partícipe obrigatório, pelas razões bem salientadas no primeiro capítulo deste estudo.

Logo, o que se espera por intermédio da desaposentação é que tais contribuições, vertidas posteriormente ao deferimento da aposentadoria, independentemente da vontade do aposentado, possam lhe gerar algum tipo de proveito.

Note-se, portanto, que não é de todo complexo compreender o porquê da concepção da desaposentação. O argumento é bastante lógico e tem o claro intento de beneficiar o próprio aposentado.

Não obstante, a bem do adequado enfrentamento do tema, verifique-se a conceituação de outro autor também já diversas vezes referido, Hermes Arrais Alencar:

Neologismo trazido ao meio jurídico brasileiro no final da década de 1980, pelo doutrinador Wladimir Novaes Martinez, a desaposentação consiste no desfazimento do ato administrativo de concessão de benefício previdenciário de aposentadoria.

Aposentação é procedimento administrativo plenamente vinculado que deságua no ato de aposentadoria, ao passo que adicionado do prefixo “dês” esulta no procedimento administrativo de desconstituição do ato de jubilamento.

[...]

Com espeque na definição até aqui apresentada, evidencia-se que a terminologia desaposentação é plenamente cabível para as hipótese de, observado o devido processo legal, cancelamento da aposentadoria por motivo de ilegalidade do ato administrativo de concessão do benefício, quer decorrente de singelo erro perpetrado pelo servidor do INSS, quer por motivo de fraude ou dolo do beneficiário. A pessoa até então classificada no banco de dados da Previdência com status de “aposentada” perde essa roupagem jurídica com efeitos ex tunc, subsistindo a obrigatoriedade de ressarcir os cofres públicos, mediante devolução de todos os valores percebidos a título de aposentadoria. Cabível, em nosso sentir, a denominação desaposentação sempre que o ato concessório estiver eivado de ilegalidade, o que ensejará a anulação do ato administrativo. O fenômeno observado é, indubitavelmente, de cancelamento da aposentadoria, que a simbologia desaposentação assenta como uma luva. (ALENCAR, 2011, p. 73-74)

Perceba-se, destarte, que o citado autor traz a lume uma perspectiva um pouco mais precisa. Ele aventa claramente que a desaposentação reside no desfazimento (ou anulação) do ato de concessão da aposentadoria, ainda que em razão de erro do INSS ou fraude do segurado.

Afinal, em tais hipóteses, deixará de existir, porquanto anulada, a aposentadoria anteriormente deferida em descompasso com a legislação previdenciária.

Importa não confundir tal hipótese, todavia, com a

[...] cessação de aposentadoria por motivo de ilegalidade superveniente, como ocorre na aposentadoria por invalidez fundada no retorno do jubilado à atividade remunerada (art. 46 da Lei 8.213, de 1991), e da cessação da aposentadoria especial decorrente da volta do aposentado ao exercício de atividade prejudicial à sua saúde (art. 57, § 8º, da Lei 8.213, de 1991). Nas duas situações descritas a cessação do benefício opera efeitos ex nunc, a partir do retorno ilegal à atividade, permanecendo incólume o ato de deferimento da aposentadoria, que não é desfeito, e sim, cessado. (ALENCAR, 2011, p. 75).

Logo, é forçoso concluir que a desaposentação, seja na sua configuração de gerar proveito ao segurado, seja na anulação de ato administrativo pelo órgão previdenciário, é o instituto que torna sem efeito – ou invalida – o ato originário de concessão do benefício de aposentadoria.

Reconhece-se, todavia, que não se utiliza comumente o termo desaposentação para a segunda hipótese (anulabilidade pelo INSS). No mais das vezes, a doutrina previdenciária se refere à desaposentação apenas e tão somente como a modalidade de renúncia à aposentadoria pelo próprio segurado, para disso auferir melhor proveito, consoante inicialmente cogitado.

Veja-se, neste sentido, o conceito de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari, para quem a desaposentação é o “ato de desfazimento da aposentadoria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria, no mesmo ou em outro regime previdenciário” (CASTRO; LAZZARI, 2008, p. 534).

Adriane Bramante de Castro Ladenthin e Viviane Masotti, por seu turno, também se referem ao instituto em questão de maneira mais singela, concebendo-o como “renúncia ao benefício concedido para que o tempo de contribuição vinculado a este ato de concessão possa ser liberado, permitindo seu cômputo em novo benefício, mais vantajoso” (LADENTHIN; MASOTTI, 2011, p. 60).

Compreendida, assim, em que consiste a chamada desaposentação, convém agora analisar alguns aspectos normativos que lhe dizem respeito, bem como o posicionamento do órgão previdenciário – INSS – acerca do tema.

3.2. Desaposentação: aspectos normativos e visão do INSS[6]

Insta registrar, de início, que inexiste previsão normativa expressa para a figura da desaposentação, entendida como a renúncia do segurado ao benefício de que já usufrui para a obtenção de outro, mais vantajoso.

Com efeito, toda a discussão que se instaurou, notadamente no âmbito jurisdicional, relativamente ao tema, se deu ao arrepio da legislação de regência da questão previdenciária (de natureza infraconstitucional), que em momento nenhum prevê a modalidade de extinção ou renúncia de benefício aqui tratada.

Nada obstante, é corriqueiro o ajuizamento de ações por parte de segurados do Regime Geral de Previdência Social que, mesmo aposentados, permanecem trabalhando, e pleiteiam quase que uma revisão da renda mensal de seus benefícios, mediante alteração do período básico de cálculo, de modo que nele sejam incluídos os salários de contribuições relativos às competências posteriores à sua inativação, o que decerto só seria possível, em tese, mediante renúncia ao benefício originário.

Cinge destacar, destarte, que este tipo de pretensão tem sido levado ao conhecimento do Poder Judiciário, eis que o INSS a rechaça veementemente na seara administrativa, por compreender, dentre outros aspectos, que há, na tese da desaposentação, ofensa clara ao art. 18 da Lei n° 8.213/91, que assim dispõe:

Art. 18.  O Regime Geral de Previdência Social compreende as seguintes prestações, devidas inclusive em razão de eventos decorrentes de acidente do trabalho, expressas em benefícios e serviços: [...]

b) aposentadoria por idade;

c) aposentadoria por tempo de contribuição;

d) aposentadoria especial; [...]

§ 2º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social–RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)

Note-se, assim, que a legislação previdenciária é muito clara ao asseverar que, uma vez aposentado, o indivíduo que retornar ao regime previdenciário na condição de contribuinte, não fará jus a nenhuma outra prestação, salvo o salário-família e a reabilitação profissional, quando empregado.

Logo, compreende a autarquia previdenciária que a simples cogitação da desaposentação encontra impeditivo em texto expresso de lei.

Para a autarquia previdenciária, destarte, as contribuições vertidas ao Regime Geral de Previdência Social em momento posterior à inativação do segurado não podem gerar qualquer pretensão por parte do aposentado, nem para o recebimento de nova aposentadoria ou tampouco para a majoração da sua aposentadoria atual.

E diante da vedação legal aqui referida, é de se questionar, prima facie, por que motivo os aposentados que permanecem em exercício de atividade laborativa – economicamente ativos, portanto – devem continuar contribuindo com o sistema protetivo (previdenciário), já que dele tendem a não usufruir nenhum proveito, ou mesmo que usufruam, o farão em grau mínimo.

Sobre este tema, convém rememorar tudo o quanto discutido no capítulo primeiro do presente estudo.

Com efeito, os segurados já aposentados da Previdência Social equivocadamente acreditam que, ao contribuírem para o RGPS, o estão fazendo para benefício próprio, e que se o fazem posteriormente à aposentadoria já obtida deverão, necessariamente, auferir proveito disso.

Entretanto, conforme já se asseverou em momento pretérito, o sistema previdenciário brasileiro está calcado no princípio da solidariedade, e tal perspectiva (de auferir proveito das contribuições vertidas) apenas faz sentido para os segurados ainda não inativados, porquanto seus benefícios são calculados com base nos salários de contribuições constantes do chamado período básico de cálculo.

Quanto ao mais, é forçoso reconhecer que as contribuições previdenciárias são efetivamente tributo, da espécie contribuições especiais, que carregam consigo uma natureza não-contraprestacional[7], de tal sorte que é perfeitamente natural o seu recolhimento sem que daí provenha nenhum proveito econômico.

Como é cediço, as contribuições previdenciárias não se assemelham às taxas, tributos – estes sim – contraprestacionais que têm seu fato gerador atrelado a uma atuação estatal dirigida ao contribuinte.

É possível afirmar, destarte, que os aposentados que pretendem desaposentação confundem a contribuição previdenciária por eles recolhida, verdadeira contribuição especial, com taxa, equívoco efetivo e que desconsidera por completo o caráter solidário do sistema securitário brasileiro.

Ademais, a Constituição não subtraiu dos ganhos habituais de empregados já aposentados anteriormente a conotação de hipótese de incidência das contribuições previdenciárias. Com efeito, o art. 201, § 11 do texto constitucional vigente não faz distinção entre empregados já aposentados e empregados que não usufruem de aposentadoria. Ao contrário, menciona como partícipe do sistema previdenciário, na condição de contribuinte, o empregado a qualquer título.

Cuida-se, portanto, de situação jurídica aparentemente clara. A legislação previdenciária estabeleceu com clareza que para os trabalhadores já aposentados pelo regime geral, não há direito à repercussão das contribuições vertidas após a inativação para fins de concessão ou majoração de aposentadoria. Logo, atento ao princípio da legalidade, o INSS não reconhece como legítima a pretensão de desaposentação deduzida por diversos segurados.

Não é demais registrar que a contribuição previdenciária recolhida pelos aposentados que permanecem no exercício de atividade laborativa tem fundamento para a manutenção do equilíbrio financeiro-atuarial do regime previdenciário, servindo também como forma de efetiva consolidação do princípio da solidariedade, tantas vezes referido no presente estudo.

Afinal, o sistema previdenciário brasileiro é, como já dito, de repartição dos riscos, e não de capitalização. Ou seja, o trabalhador contribui para o sistema como um todo, e não para a sua aposentadoria, sendo absolutamente irrelevante o fato de que o mesmo não venha a auferir nenhum proveito econômico disso.

Registre-se, ainda, que a Constituição Federal não proíbe a taxação dos inativos por contribuição previdenciária, imunizando, apenas, os rendimentos do próprio benefício de aposentadoria ou pensão, senão veja-se:

Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:

[...]

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;

A Lei n.º 8.212/91, por seu turno, prevê expressamente a condição de segurado obrigatório – e, como tal, contribuinte obrigatório, do aposentado que retornar à atividade laborativa:

Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas: [...]

§ 4º O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social-RGPS que estiver exercendo ou que voltar a exercer atividade abrangida por este Regime é segurado obrigatório em relação a essa atividade, ficando sujeito às contribuições de que trata esta Lei, para fins de custeio da Seguridade Social.

Perceba-se, portanto, que a contribuição vertida posteriormente à aposentadoria, na hipótese aqui cogitada, recai não sobre inativos, mas sobre trabalhadores ativos. Ou seja, pessoas que permanecem no mercado de trabalho e, como tais, devem contribuir para o sistema previdenciário.

Não é outra a posição de diversos estudiosos do direito previdenciário, podendo-se destacar o ensinamento de Daniel Machado Rocha e José Paulo Baltazar Junior:

Sendo o regime de financiamento da previdência social, nos termos da CF inspirado pelos princípios da solidariedade e da obrigatoriedade, a contribuição não pressupõe, sempre, uma contraprestação.

Na redação atual do dispositivo focado, o segurado aposentado poderá habilitar-se apenas aos benefícios de salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado. Paradoxalmente, o art. 103 do RPS assegura à aposentada que retorna à atividade o pagamento de salário-materindade, hipótese que, além de rara na prática, em princípio seria ilegal.

O tempo de serviço posterior à aposentadoria não pode ser empregado para a revisão de aposentadoria proporcional. (ROCHA e BALTAZAR JÚNIOR, 2008, p. 110-111).

Destaque-se, outrossim, que a aposentadoria já usufruída por determinado indivíduo tem sua renunciabilidade – ou disponibilidade – ainda mais questionada após o saque da primeira parcela do FGTS ou do PIS, possibilidade já abordada alhures.

Com efeito, tal constatação encontra fundamento claro na redação atual do Decreto n.º 3.048/99, onde se lê:

Art. 181-B.  As aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis. (Incluído pelo Decreto nº 3.265, de 1999)

Parágrafo único.  O segurado pode desistir do seu pedido de aposentadoria desde que manifeste esta intenção e requeira o arquivamento definitivo do pedido antes da ocorrência do primeiro de um dos seguintes atos: (Redação dada pelo Decreto nº 6.208, de 2007)

I - recebimento do primeiro pagamento do benefício; ou (Incluído pelo Decreto nº 6.208, de 2007)

II - saque do respectivo Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Programa de Integração Social.

Logo, residiria também em tal aspecto – indisponibilidade por preclusão lógica ou consumativa – a inviabilidade do instituto da desaposentação, eis que não seria dado ao aposentado renunciar do benefício que usufrui após o proveito econômico aqui aduzido (saque do FGTS ou do PIS).

No mesmo sentido, é de se questionar a renunciabilidade da aposentadoria enquanto direito fundamental que a mesma configura. Veja-se, sobre o tema, análise de Hermes Arrais Alencar:

O direito à aposentadoria decorre do ideal da dignidade da pessoa humana, e por essa razão é enquadrado constitucionalmente como direito fundamental. A renúncia a direitos fundamentais é tema sempre presente nos tribunais ao redor do mundo, que, no mais das vezes, têm atribuído interpretação no sentido da indisponibilidade, da irrenunciabilidade, prevalecendo o aspecto coletivo do direito fundamental ao interesse momentâneo e individual da renúncia. (ALENCAR, 2011, p. 82).

Perceba-se, assim, que segundo o pensamento acima perfilhado, a renúncia à aposentadoria já obtida esbarraria também na indisponibilidade de tal direito, porquanto fundamental.

Não obstante, é de se reconhecer que na hipótese em tablado, a renúncia a ser praticada pelo segurado, caso admitida a desaposentação, não tem como finalidade a pura e simples não fruição de um direito fundamental constitucionalmente previsto. A rigor, o que pretende o segurado é renunciar a um direito que já exercita, para exercê-lo, novamente e sem seguida, de uma maneira que se lhe apresenta como mais vantajosa.

Outra não é a percepção de Fábio Zambitte Ibraim, que rechaça a irrenunciabilidade cogitada alhures:

[...] desde que a renúncia tenha objetivos que se coadunam com o ideal previdenciário, não há razão técnica ou legal para o seu impedimento. [...] a renúncia à aposentadoria não implica renúncia  ao próprio tempo de serviço que serviu de base para a concessão do benefício, pois se trata de direito incorporado ao patrimônio do trabalhador, que dele pode usufruir dentro dos limites legais. [...] é perfeitamente válida a renúncia à aposentadoria, visto que se trata de direito patrimonial de caráter disponível, inexistindo qualquer lei que vede o ato praticado pelo titular do direito, se não contraria qualquer interesse público. (IBRAHIM, 2011, p. 53).

Tal posicionamento, como se verá no tópico seguinte, encontra eco em algumas manifestações jurisdicionais, que tem acolhido a tese da desaposentação.

Todavia, é de se advertir que tal entendimento possui algumas vicissitudes. Afinal, desconsidera por completo o ato jurídico perfeito praticado pelo INSS quando do deferimento original do benefício, bem como o expresso tratamento legal conferido ao aposentado que retorna ao mercado de trabalho, consoante sobejamente referido no presente estudo.

Por fim, outro aspecto comumente abordado no estudo da desaposentação, é de caráter sucessivo em relação a tudo o quanto já foi aqui referido.

Afinal, caso se admita a possibilidade de renúncia de benefício de aposentadoria vigente para a percepção de uma nova aposentadoria, mais vantajosa, há quem defenda que isto deveria estar condicionado ao menos à devolução integral, com as atualizações devidas, de todos os valores recebidos pelo aposentado desde o seu benefício originário (então renunciado).

Sobre este tema, veja-se a percepção de Wladimir Novaes Martinez:

[...] se a Previdência aposenta o segurado, ela se serve de reservas acumuladas pelos trabalhadores, entre as quais as do titular do direito. Na desaposentação terá de reaver os valores pagos para, inclusive, estar econômica financeira e atuarialmente apta para aposentá-lo novamente ou poder emitir a CTC. (MARTINEZ, 2005, p. 437)

A devolução de tais valores, no entanto, não pode descuidar de questão complexa e realmente importante: a natureza alimentar que lhes reveste. Afinal, em sua concepção original e imaculada, a aposentadoria deveria servir para substituir o salário do trabalhador, jubilado que foi pelo implemento do requisito que é próprio a tal benefício. Nestas condições, trata-se da verba a ser empregada na sua subsistência e na subsistência dos seus, possuindo natureza alimentícia, portanto.

Hermes Arrais Alencar, todavia, rechaça com propriedade tal raciocínio, ao aduzir que

Não há dúvidas, benefícios previdenciários ostentam natureza alimentar, aplicável, por inexistente norma específica em sentido contrário, a norma geral do artigo 1.707 do Código Civil Pátrio. Por corolário, é facultado o exercício do direito à aposentadoria, mas este é irrenunciável.

Torna-se patente, a ausência de rigor técnico, afirmar-se, a um só tempo, a admissibilidade de renúncia, e no instante subsequente falar-se da natureza jurídica dos benefícios previdenciários, enquadrando-os como de índole alimentar, para efeitos de eximir a devolução dos valores recebidos. Mas, assim são deduzidos os pleitos em juízo, sem se atentar à coerência do discurso. (ALENCAR, 2011, p. 88).

Depreende-se da lição acima que, em princípio, é irrenunciável o direito à aposentadoria. Mas caso tal seja admitido, como bem se vê, a devolução dos valores recebidos é medida que se impõe, até para que se mantenha a coerência do discurso e, mais importante que isso, o equilíbrio financeiro-atuarial do sistema previdenciário.

3.3. O ativismo judicial e a desaposentação

O tópico antecedente serviu para esclarecer que a desaposentação é medida não prevista em lei e que não encontra amparo no posicionamento institucional do órgão previdenciário responsável por gerir o Regime Geral de Previdência Social (INSS). Questiona-se, todavia, se, a despeito desta omissão legiferante e administrativa, seria possível a ocorrência ou admissão de tal fenômeno.

Afinal, vê-se que os poderes constituídos pelo sistema democrático regular (Executivo e Legislativo) possuem uma posição claramente contrária ao instituto estudado, pelas razões já referidas.

Não obstante, em tempos de ativismo judicial – tema do segundo capítulo –, tem sido cada vez maior o número de precedentes jurisprudenciais favoráveis à tese da desaposentação, o que vem ensejando diversas condenações do INSS na esfera judicial.

A título de ilustração, foram colacionadas algumas importantes decisões judiciais sobre o tema, oriundas de variados Tribunais Regionais Federais brasileiros, cuja transcrição de trechos das ementas se faz salutar.

O Tribunal Regional Federal da Segunda Região, por exemplo, com alegação de análise sistemática do ordenamento jurídico, possibilita a renúncia à aposentadoria percebida pelo segurado para a concessão de novo benefício, rechaçando até mesmo a necessidade de devolução dos valores já recebidos em razão do benefício renunciado, senão veja-se:

PREVIDENCIÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE RENÚNCIA À APOSENTADORIA. PROVA PRÉ-CONSTITUÍDA. EXAME RESTRITO À MATÉRIA DE DIREITO. ANÁLISE SISTEMÁTICA DO NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO ACERCA DA POSTULADA DESAPOSENTAÇÃO. POSSIBILIDADE. NÃO EXIGIBILIDADE DE DEVOLUÇÃO DOS VALORES MENSAIS DEVIDAMENTE RECEBIDOS. CARÁTER ALIMENTAR DA PRESTAÇÃO EM FOCO. PRECEDENTES DO EG. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. [...] 3. Do exame amplo e sistemático da legislação que disciplina a matéria, verifica-se que não obstante inexistir previsão legal expressa a autorizar a renúncia de aposentadoria em manutenção, tampouco existe preceito legal que, expressamente, estabeleça óbice a ato de cancelamento de benefício. 4. A Constituição Federal é clara quando dispõe que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei (artigo 5º, inciso II), de maneira que a ausência de dispositivo legal que proíba expressamente a renúncia de benefício previdenciário constitui circunstância que deve ser interpretada como possibilidade legal de revogação do benefício, não havendo que falar em violação de ato jurídico perfeito ou de direito adquirido, na medida em que não ocorre prejuízo para o indivíduo ou mesmo para sociedade. 5. A renúncia à aposentadoria é um direito personalíssimo, eminentemente disponível, subjetivo e patrimonial, decorrente da relação jurídica constituída entre o segurado e a Previdência Social, sendo, portanto, passível de renúncia independentemente de anuência da outra parte, sem que tal opção exclua o direito à contagem de tempo de contribuição para obtenção de nova aposentadoria. [...] 7. No que se refere à discussão sobre a obrigatoriedade ou não de devolução dos valores recebidos durante o tempo de duração do benefício original, o eg. Superior Tribunal de Justiça tem firme entendimento no sentido de que a renúncia não importa em devolução dos valores percebidos, pois enquanto perdurou a aposentadoria pelo regime geral, os pagamentos, de natureza alimentar, eram indiscutivelmente devidos. Precedentes do eg. STJ. 8. Não prospera a tese de que a desaposentação implicaria desequilíbrio atuarial ou financeiro do sistema, pois tendo o autor continuado a contribuir para a Previdência Social, mesmo após a aposentadoria, não subsiste vedação atuarial ou financeira à renúncia da aposentadoria para a concessão de um novo benefício no qual se estabeleça a revisão da renda mensal inicial. 9. Cumpre ainda afastar a argumentação de que seria irrenunciável e irreversível o ato de concessão de aposentadoria no âmbito do RGPS, a teor do art. 18, § 2º, da Lei 8.213/91, [...] porquanto aplicável à espécie o consignado pelo Min. Marco Aurélio, do eg. STF, ao proferir voto como Relator no Recurso Extraordinário nº 381.367/RS, no sentido de que o aludido preceito legal (§ 2º do art. 18 da Lei 8.213/91) não se coadunaria com o disposto no art. 201 da CF/88, [...] (TRF 2ª Região, Primeira Turma Especializada, Apelação 201250010066418, Relator Desembargador Federal Abel Gomes, E-DJF2R - Data:18/12/2013)

Também o Tribunal Regional Federal da Terceira Região, valendo-se de pronunciamento pretérito do Superior Tribunal de Justiça, se posiciona neste sentido, consoante se depreende da decisão a seguir ementada:

PREVIDENCIÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. ART. 557, § 1º, CPC. DECADÊNCIA. NÃO OCORRÊNCIA. DESAPOSENTAÇÃO. RENÚNCIA AO BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA OBJETIVANDO A CONCESSÃO DE OUTRO MAIS VANTAJOSO. POSSIBILIDADE. DEVOLUÇÃO DE VALORES. DESNECESSIDADE. RECURSO REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA. FATOR PREVIDENCIÁRIO. MATÉRIA ESTRANHA AO FEITO. AGRAVO DESPROVIDO. – [...] O C. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.334.488/SC, submetido ao regime do art. 543-C do CPC, firmou entendimento de que os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja preterir para a concessão de novo e posterior jubilamento. [...] (TRF 3ª Região, Sétima Turma, Apelação 00111531420094036105, Relatora Desembargadora Diva Malerbi, e-DJF3 Judicial 1, DATA:31/01/2014)

Em acréscimo, cumpre destacar, ainda, o posicionamento esboçado pelo Tribunal Regional Federal da Quarta Região, que também torna dispensável a devolução das parcelas pretéritas do benefício percebido pelo segurado que pretende a desaposentação, tendo em vista que a exigência poderia tornar inviável a efetivação da tutela jurisdicional concedida.

DECADÊNCIA. DESAPOSENTAÇÃO. RENÚNCIA AO BENEFÍCIO PARA RECEBIMENTO DE NOVA APOSENTADORIA. POSSIBILIDADE. DIREITO DISPONÍVEL. ARTIGO 181-B DO DECRETO Nº 3.048/99. NORMA REGULAMENTADORA QUE OBSTACULIZA O DIREITO À DESAPOSENTAÇÃO. ART. 18, § 2º, DA LEI Nº 8.213/91. EFEITOS EX NUNC DA RENÚNCIA. DESNECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DOS VALORES PERCEBIDOS A TÍTULO DO BENEFÍCIO ANTERIOR. AUSÊNCIA DE ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. VIABILIDADE ATUARIAL. EFETIVIDADE SUBSTANTIVA DA TUTELA JURISDICIONAL. [...] 2. Os benefícios previdenciários possuem natureza jurídica patrimonial. Assim sendo, nada obsta sua renúncia, pois se trata de direito disponível do segurado (precedentes deste Tribunal e do STJ). 3. A disponibilidade do direito prescinde da aceitação do INSS. O indeferimento, com fundamento no artigo 181-B do Decreto nº 3.048/99, é ilegal por extrapolar os limites da regulamentação. 4. A admissão da possibilidade da desaposentação não pressupõe a inconstitucionalidade do § 2º do art. 18 da Lei nº 8.213/91. [...] 5. O reconhecimento do direito à desaposentação mediante restituição dos valores percebidos a título do benefício pretérito mostra-se de difícil ou impraticável efetivação, esvaziando assim a própria tutela judicial conferida ao cidadão. [...] 7. A efetivação do direito à renúncia impõe afastar eventual alegação de enriquecimento sem causa do segurado, uma vez que a percepção do benefício decorreu da implementação dos requisitos legais, incluídos nestes as devidas contribuições previdenciárias e atendimento do período de carência. De outra parte, o retorno à atividade laborativa ensejou novas contribuições à Previdência Social e, mesmo que não remetam ao direito de outro benefício de aposentação, pelo princípio da solidariedade, este também deve valer na busca de um melhor amparo previdenciário. [...] 9. A renúncia ao benefício anterior tem efeitos ex nunc, não implicando na obrigação de devolver as parcelas recebidas porque fez jus como segurado. [...] (TRF 4ª Região, Quinta Turma, Apelação 50095873020114047112, Relator Desembargador Federal Rogério Favreto, D.E. 14/02/2012)

Deve-se asseverar, ademais, que, consoante consignado em todos os acórdãos supracitados, o direito à desaposentação está consubstanciado em diversos precedentes exarados pelo Superior Tribunal de Justiça, cujo entendimento está bem sintetizado na decisão abaixo ementada:

RECURSO ESPECIAL. MATÉRIA REPETITIVA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ 8/2008. RECURSO REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. DESAPOSENTAÇÃO E REAPOSENTAÇÃO. RENÚNCIA A APOSENTADORIA. CONCESSÃO DE NOVO E POSTERIOR JUBILAMENTO. DEVOLUÇÃO DE VALORES. DESNECESSIDADE. 1. Trata-se de Recursos Especiais com intuito, por parte do INSS, de declarar impossibilidade de renúncia a aposentadoria e, por parte do segurado, de dispensa de devolução de valores recebidos de aposentadoria a que pretende abdicar. 2. A pretensão do segurado consiste em renunciar à aposentadoria concedida para computar período contributivo utilizado, conjuntamente com os salários de contribuição da atividade em que permaneceu trabalhando, para a concessão de posterior e nova aposentação. 3. Os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja preterir para a concessão de novo e posterior jubilamento. Precedentes do STJ. [...] (STJ, Primeira Seção, RESP 201201463871. Relator Ministro Herman Benjamin, DJE DATA:14/05/2013)

Vê-se, portanto, que em relação ao tema em tablado a postura do Poder Judiciário tem sido bastante ativista, porquanto se filia claramente à interpretação doutrinária que expressamente rechaça a interpretação jurídica conferida pelo Poder Executivo ao arcabouço legislativo atinente ao tema.

Ao assim atuar, exercendo a jurisdição de modo a executar o que compreende como sendo o conteúdo justo do Direito, o Poder Judiciário tem se imiscuído sobremaneira em uma matéria que, em tempos de positivismo jurídico clássico, competiria apenas aos poderes constituídos, Legislativo e Executivo, eis que representa verdadeiro constructo de um novo direito.

Os casos trazidos à colação são meramente exemplificativos. Denotam claramente que o Poder Judiciário, ao menos no âmbito dos Tribunais Regionais Federais aqui referidos, não acatou o tratamento normativo conferido ao tema, o qual conduziria, pelas razões já expendidas, ao desacolhimento das pretensões deduzidas nos processos judiciais citados. Afinal, não há previsão legal para o acolhimento de tal tese.

Logo, vê-se a própria criação judicial de um direito não previsto na norma positivada, fato que, por si só, evidencia um importante grau de ativismo no exercício da jurisdição.

Além disso, ao acolher as pretensões de desaposentação sem a necessidade de devolução dos valores recebidos no âmbito dos benefícios renunciados (aposentadorias precedentes), a postura ativista do Judiciário fica ainda mais evidenciada, havendo até mesmo de uma contradição intrínseca nas decisões ali proferidas.

Afinal, ao mesmo tempo em que admitem a renúncia a um benefício previdenciário, cujos valores mensalmente percebidos possuem natureza alimentar, os órgãos jurisdicionais têm dispensado a devolução dos valores decorrentes do benefício renunciado, sob o argumento do seu caráter alimentício.

Ou seja, o benefício não é alimentar para fins de renúncia, mas o é para que se impeça a devolução dos valores.

Nota-se em tal interpretação uma tentativa inequívoca dos órgãos judicantes de conferir efetividade às decisões por eles proferidas, praticando a justiça ideal para o caso concreto – maximização do direito do segurado, ainda que com prejuízo à racionalidade normativa e mesmo argumentativa.

No âmbito do 1º grau de jurisdição, em juízos monocráticos, é ainda maior o número e a incisividade de decisões judiciais que não apenas reconhecem o direito à desaposentação, como também dispensam por completo a necessidade de devolução dos valores recebidos no bojo do benefício renunciado (aposentadoria antecedente).

Quadra destacar, todavia, que ainda pendem de julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário Brasileiro, os Recursos Extraordinários de nº 661.256 e 381.367, que versam justamente sobre o tema aqui analisado.

Ambos são recursos interpostos pelo INSS, em razão do reconhecimento judicial do direito à desaposentação.

O Recurso Extraordinário n° 381.367 começou a ser julgado e teve o voto favorável do relator, ministro Marco Aurélio. O julgamento foi interrompido pelo pedido de vista do ministro Dias Toffoli, permanecendo em tal condição.

No caso do RE 661.256, ainda não existe manifestação do relator, que originariamente era o ministro Ayres Britto, o qual foi recentemente sucedido pelo ministro Roberto Barroso. As movimentações recentes deste processo dizem respeito, tão somente, à admissão de algumas pessoas jurídicas e instituições na condição de amici curiae.

Os dois casos, todavia, já foram objeto de reconhecimento de repercussão geral e decerto serão julgados em conjunto, por conta da identidade que lhes é inerente.

Quando da manifestação daquele Pretório acerca destes dois casos, acredita-se que o Poder Judiciário como um todo adotará uma postura terminativa acerca da questão em exame. Afinal, em tempos de objetivação do controle concreto de constitucionalidade, embora os casos em exame tenham chegado ao STF em sede de Recurso Extraordinário, é certo que a decisão daquela corte funcionará como verdadeiro norte interpretativo dos órgãos jurisdicionais em geral.

Resta saber se a postura adotada será a do ativismo judicial, ou, ao contrário, se o STF adotará caminho diverso, de contenção da atuação jurisdicional, reconhecendo a suficiência do tratamento legislativo hoje existente – e que, como dito, não prevê a modalidade de renúncia em exame.


CONCLUSÃO

A judicialização dos direitos, em especial, os sociais, e o crescimento da atividade jurisdicional no sentido de buscar dar efetividade às normas constitucionais correlatas, dentre outras causas, deram ensejo ao fenômeno conhecido como ativismo judicial.

Embora tenha o condão de efetivar direitos fundamentais, a atuação jurisdicional ativa deve observar as limitações impostas pelo ordenamento jurídico vigente, sob pena de questionamento da legalidade e/ou constitucionalidade da decisão proferida, bem como ser posta em xeque a sua autoridade.

Nesse contexto, a discussão da desaposentação serve como exemplo claro e inequívoco do ativismo judicial na seara previdenciária, com as virtudes e vicissitudes que lhe são inerentes.

Com efeito, sabe-se que o ativismo do Poder Judiciário é tanto maior quanto mais deficiente for a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo. Se os poderes constituídos bem atuam, a intervenção judicial tende a ser menos necessária. Trata-se, de um movimento pendular, que conduz o Poder Judiciário, em alguns casos, a ostentar uma postura ativista e, em outros tantos, a manter-se em autocontenção.

Não obstante, acredita-se que nas questões previdenciárias há uma tendência dos aplicadores da norma a perseguirem sempre a interpretação mais favorável ao segurado ou ao beneficiário do regime securitário, o que fica bastante claro nos precedentes jurisprudenciais colacionados acerca da desaposentação.

Logo, considerando-se que a postura ativista se faz presente no seio do Direito Previdenciário, é possível concluir que, especificamente no que concerne ao tema aqui estudado – desaposentação – o Poder Judiciário tem exercido um relevante papel de fomentador da tese jurídica que lhe dá sustentação, porquanto tem admitido, em variados juízos e tribunais, tal modalidade de renúncia a uma aposentadoria para a obtenção de outra mais vantajosa, inclusive sem devolução dos valores já percebidos anteriormente.

É preocupante, todavia, a postura ativista do Poder Judiciário na verdadeira criação de um novo direito, sem a necessária análise estrutural e sistêmica acerca da sustentabilidade do modelo previdenciário brasileiro. Afinal, é preciso que se mantenha o equilíbrio financeiro-atuarial do sistema previdenciário, de modo a se lhe conferir máxima higidez.

Faz-se mister, destarte, que o Poder Judiciário, ainda que ativista, bem dimensione os efeitos que elas geram sobre o sistema previdenciário.

Embora possa se concluir desde já pelo papel relevante exercido pela jurisdição – de caráter ativista – na consolidação da tese da desaposentação, a presente pesquisa só encontrará termo final quando do julgamento definitivo, pelo Supremo Tribunal Federal, dos Recursos Extraordinários de nº 661.256 e 381.367, eis que o pronunciamento daquele Pretório, como dito, decerto funcionará como norte interpretativo dos órgãos jurisdicionais em geral.

Não obstante, assevera-se que, para que seja salutar, faz-se necessário que a atuação ativista não implique na hipertrofia do órgão judicante, com a aplicação arbitrária da lei ou pela sobreposição aos demais Poderes, sob pena de carecer de respaldo constitucional, tendo em vista a necessária manutenção do equilíbrio entre os três Poderes.


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Notas

[1] Embora datado de 2009, o documento em questão demonstra claramente a inversão da pirâmide etária aqui referida.

[2] A presente pesquisa não pretende, pela sua estreiteza, analisar com profundidade a corrente jusfilosófica que se convencionou denominar pós-positivismo jurídico. Para tanto, seria imprescindível uma digressão teórica acerca do jusnaturalismo e do positivismo jurídico kelseniano, o que se mostra inviável no bojo de tão singelo estudo monográfico. Utilizar-se-á, portanto, como marco teórico para a compreensão do pós-positivismo jurídico, o autor Luís Roberto Barroso, diversas vezes referido ao longo do texto.

[3] “As separações lei-direitos-justiça e princípios-regras encontram sua unidade na aplicação judicial do direito, uma ação dupla da qual as concepções positivistas da jurisdição tem ocultado uma parte durante muito tempo. Em tais concepções, a realidade à qual o direito se aplica aparece sempre desprovida de valor, já sem razão em termos de silogismo judicial, onde o fato que se qualifica juridicamente constitui a premissa menor e a regra jurídica a premissa maior, ou em termos de subsunção do pressuposto concreto apo pressuposto abstrato, ou em outros termos similares.

[...]

Segundo a concepção positivista tradicional, na aplicação do direito a regra jurídica é obtida em razão exclusivamente das exigências do direito. Exatamente isto significavam a interpretação e seus critérios elaborados pelo positivismo. Como, ademais, uma vez determinada a regra, sua aplicação concreta se reduzia a um mecanismo lógico e sem discricionariedade – e em caso e que houvesse discricionariedade se afirmava a ausência de direito – se compreende que os problema da aplicação do direito são integralmente absorvidos na interpretação.

[...]

Operava a máxima dura lex sed lex, que é a quintessência do positivismo acrítico. Hoje, ao contrário, a impossibilidade de alcançar aquela composição abre uma questão que já não afeta a interpretação da lei, senão sua validade. As exigências dos casos contam mais que a vontade legislativa, e podem invalidá-la” (tradução livre).

[4] Aqui, mais uma vez, pela estreiteza do estudo realizado, fica prejudica uma análise mais profunda das novas categorias de interpretação constitucional, tais como as cláusulas gerais e a ponderação interpretativa. Parte-se da premissa básica de que houve um fortalecimento da jurisdição pelas razões já expostas, aspecto a ser retomado no decorrer da pesquisa.

[5] Vide, a este respeito, as retrospectivas que o estudioso Luís Roberto Barroso realizou acerca dos principais julgamentos do STF nos anos de 2011 e 2012. Foi utilizada neste trabalho, especificamente, a retrospectiva do ano de 2011, devidamente referida.

[6] O entendimento do INSS aqui referido é extraído, em grande parte, da “defesa mínima” para as ações sobre desaposentação, elaborada pelo Departamento de Contencioso (DEPCONT) da Procuradoria Geral Federal (PGF), responsável pela representação judicial da autarquia previdenciária. Conteúdo disponível, em ambiente de intranet, em http://www.agu.gov.br/unidade/pfeinss.

[7] Sobre a natureza jurídica das contribuições previdenciárias, sugere-se a leitura do “Curso de Direito Tributário”, de Hugo de Brito Machado (2011).


Autor

  • Roberta Rabelo Maia Costa Andrade

    Possui graduação em Direito pela Universidade Católica de Salvador (2005), especialização em Direito Civil pela Universidade Federal da Bahia (2008) e especialização em Direito Público pela Universidade de Brasília (2013). Atualmente é Procuradora Federal - membro da Advocacia-Geral da União.

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Informações sobre o texto

Artigo elaborado como estudo monográfico de conclusão do curso de Pós-Graduação em Direito Público junto à Universidade de Brasília (UNB).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Roberta Rabelo Maia Costa. A desaposentação e o ativismo judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3940, 15 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27329. Acesso em: 29 mar. 2024.