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Limites do poder de disposição pelo Ministério Público de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos em sede de inquérito civil

Limites do poder de disposição pelo Ministério Público de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos em sede de inquérito civil

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Sumário: 1. Intróito. 2. Premissas postas. 3. É competente o Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos? 4. Limites do poder de disposição. 5. Conclusão.


1. Intróito.

A crescente conscientização dos direitos e garantias individuais, fruto das inovações trazidas pela Constituição Federal de 1988, acarretou no crescimento das demandas levadas ao Judiciário e na tutela dos interesses coletivos que restavam inócuos ante a impossibilidade material do exercícios deste direitos em juízo ou fora dele. O papel do Ministério Público nesse processo é de fundamental importância, pois com o advento da atual Carta Magna ampliou-se o campo de suas atribuições, incluindo expressamente a defesa dos interesses metaindividuais indisponíveis.

A defesa destes interesses importa ampla gama de atuação, não só dos membros do parquet, mas também de várias associações a que a lei atribui tal competência. Entretanto, muitas vezes, para defender eficazmente o bem-interesse posto em jogo, nem sempre o caminho do litígio é o mais proveitoso, como salienta o adágio popular: "é melhor um mal acordo que uma excelente demanda".

É nesta ótica que se insere o compromisso de ajustamento de conduta. Visa transacionar alguns tópicos da pretensão resistida para se tutelar adequadamente o bem que reclama proteção, acelerando a reparação do dano, contendo o dano etc.

O presente trabalho limitar-se-á à análise dos limites do poder de disposição pelo Ministério Público dos interesses difusos e coletivos em sede de inquérito civil. Assim, não adentraremos no campo da ação civil pública, nem comentaremos a competência transacional dos outros legitimados.


2. Premissas postas.

Para o deslinde do presente trabalho e em atenção aos objetivos que o mesmo se propõe, mister se faz estabelecermos algumas premissas básicas para o bom desenrolar do tema.

Assim, primeiramente, cumpre analisarmos o tema que nos foi proposto. O Ministério Público foi alçado pela Constituição da República em defensor da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CF). Fixemo-nos na defesa dos interesses difusos e coletivos. Tais interesses são definidos pelo Código de Defesa do Consumidor (art. 81, parágrafo único, da Lei 8.078/90) e caracterizam-se pela titularidade metaindividual, o que faz com que estes interesses sejam indisponíveis, posto não pertencerem ao legitimado a sua defesa em sua totalidade, embora pertença uma quota-parte.

Dispor significa poder dar, trocar, receber, ceder, acordar. Em sendo os interesses metaindividuais, pertencentes a toda a coletividade como o meio ambiente ou a uma classe de indivíduos, como um sindicato, poderia o Ministério Público dispor destes bens-interesses? A questão posta no título do presente trabalho visa problematizar os limites de disposição, isto é, se há limites é porque há poder de disposição. No mesmo sentido corrobora a maior parte da doutrina, assente em declarar o poder transacional do Ministério Público em sede de interesses difusos e coletivos.

O título do presente trabalho limita o tema estudado ao campo do inquérito civil, instrumento privativo do Ministério Público e utilizado para embasar futura Ação Civil Pública. O tema cresce em importância quando se tem em vista que o grau de resolução de litígios em sede de inquérito civil é total, ou melhor, chega-se a quase 100% (cem por cento).

Fixadas estas premissas básicas, impõe, ainda, uma última palavra sobre como se dá esta disposição ou transação como preferem os doutos. A lei, ciente das novas exigências impostas por uma sociedade de massa, buscou munir alguns entes para manejar ações coletivas, as quais objetivam tornar mais eficaz a tutela jurisdicional destes interesses, além de proporcionar a efetividade da tutela, que restaria impossível se fosse necessária a manifestação de todos os titulares do interesse difuso, e. g., o meio ambiente.

Foi, portanto, criado o termo ou compromisso de ajustamento de conduta, instrumento que possibilitou fixar os limites do poder de disposição pelo Ministério Público dos interesses difusos e coletivos.

O leitor atento pode estar se perguntando: ora, o tema não aborda também os interesses individuais homogêneos? Sim, entretanto, é dissonante a doutrina e a jurisprudência quanto à legitimidade do Ministério Público para a defesa destes interesses, como veremos a seguir.


3. É competente o Ministério Público para a defesa de interesses individuais homogêneos?

A Constituição da República, em seu art. 127, caput, dispõe, verbis:

          "Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis"

E no art. 129, III, prescreve a Constituição de 1988, ad litteram:

          "Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

          III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos"(grifei)

Entende Hely Lopes Meirelles que a Constituição Federal não atribuiu competência ao Ministério Público para a proteção de interesses individuais indisponíveis, como por exemplo, o direito de obstar a cobrança de um tributo tido por inconstitucional. Em suas razões argumenta que tal equívoco foi causado pela Lei Complementar nº 75/93 e conclui: "Entendemos que a lei complementar só pode atribuir ao Ministério Público a defesa de interesses difusos e coletivos, não abrangendo sua competência para proteção de interesses individuais homogêneos disponíveis".(i) Posição com a qual concordamos inteiramente e, salvo poucas manifestações em contrário, prevalecente no seio de nossos tribunais, razão pela qual não o incluiremos na presente dissertação.


4. Limites do poder de disposição.

Fixada a premissa de que há o poder de disposição, cabe-nos, agora, vislumbrar os limites deste poder.

O inquérito civil constitui procedimento administrativo exclusivo do Ministério Público. Os outros legitimados à ação civil pública não possuem a faculdade de instituir este procedimento. Através deste procedimento o Ministério Público pode requisitar informações, documentos etc. para instruir a ação civil pública competente. Se não encontrar elementos que indiquem a autoria do possível dano ambiental ou não encontrar o mínimo de prova para propor a ação judicial, pode promover o arquivamento do inquérito civil ou dos documentos em seu poder.

O arquivamento deve ser motivado e submetido à apreciação do Conselho Superior do Ministério Público.

É dentro do inquérito civil que se pode promover o compromisso de ajustamento de conduta, previsto no art. 5º, § 6º, da Lei 7.347/85. Este instituto não é privativo dos órgãos do Ministério Público, mas de qualquer dos legitimados para a ação civil pública.

Segundo Paulo Affonso Leme Machado, ""ajustar" tem diversas acepções, mas vale aqui mencionar "convencionar", "combinar", "estipular". (...) O termo "acordo" retrata melhor a finalidade do "compromisso de ajustamento de condutas" do que o termo "transação"". (ii)

A corrente que admite a celebração de acordos encontra resistência nos teóricos conservadores, galgados na antiga concepção individualista do processo que ressalta a indisponibilidade dos interesses metaindividuais. Mas, como salienta Rodolfo de Camargo Mancuso: "no âmbito da ação civil pública, deve sempre prevalecer o interesse na efetiva tutela dos valores maiores da sociedade civil, a que esse instrumento está vocacionado (meio ambiente, patrimônio cultural, erário, consumidores, e outros), de sorte que, por vezes, aquela pontuação restritiva antes exposta poderá sofrer temperamentos no caso concreto". (iii)

Certo, outrossim, que o compromisso de ajustamento de conduta traduz um facere ou um não facere. Paulo Affonso Leme Machado nos dá uma idéia de como se materializa tal compromisso, verbis: "Dispor ou renunciar às obrigações legais é inadmissível por parte do Ministério Público. "É vedada a dispensa, total ou parcial, das obrigações reclamadas para a efetiva satisfação do interesse lesado, devendo a convenção com o responsável restringir-se às condições de cumprimento das obrigações (modo, tempo, lugar etc.), bem como deverão ser estipuladas cominações para a hipótese de inadimplemento"". (iv)

Resta demonstrado pelo festejado ambientalista os limites de disposição do Ministério Público quando celebrar ajustamento de condutas: não pode o parquet, em sede de inquérito civil renunciar ou desistir do direito em foco; deve, sempre, ter em mente o interesse público tutelado e as vantagens da celebração do ajuste; deve o compromisso não adentrar no campo material do direito, reservando-se questões procedimentais, como tempo, modo e lugar.

A atuação do Ministério Público não é livre, pois conta com a fiscalização do Conselho Superior do Ministério Público, além do controlo jurisdicional, posto que celebrado o compromisso em sede de inquérito civil, este forma um título extrajudicial que pode ser anulado como os demais atos jurídicos; e, se homologado pelo judiciário, quando realizado em juízo, cabe ação anulatória, visto que haverá a formação de sentença por homologação. (v)

Celebrado o compromisso no inquérito civil, o mesmo será submetido a apreciação do Conselho Superior do Ministério Público que apreciará se o bem-interesse encontra-se bem tutelado e, então, os autos do inquérito serão arquivados.

Cremos, portanto, que resta pacífico o entendimento segundo o qual não são amplos os poderes de disposição pelo Ministério Público dos interesses metaindividuais em sede de inquérito civil. Estão limitados ao interesse público, à vantagem advinda ao bem tutelado com a celebração do acordo e às condições de cumprimento, tais quais, modo, lugar, tempo etc. da obrigação.


5. Conclusões.

Em síntese, há poder de disposição pelo Ministério Público em sede de inquérito civil, bem como em sede de ação civil pública de interesses metaindividuais. Tal inferência encontra respaldo na Constituição Federal quando atribui ao Ministério Público a defesa dos interesses difusos e coletivos. Defender não é só lutar para reparar, mas também fazer concessões que visem melhorar e acelerar a tutela que adviria com o provimento judicial. Para isto, recentes diplomas legislativos vêm prevendo o que se denominou compromisso de ajustamento de conduta, cujo objeto se manifesta num facere ou num não facere. A celebração desses acordos devem ser consentâneos com os princípios constitucionais da moralidade, publicidade e eficiência e devem ser submetidos sempre ao Conselho Superior do Ministério Público para acolhimento ou não.

O ajuste deve limitar-se ao modos operandi da prestação, nunca ao próprio direito material tutelado que não pertence ao Ministério Público, mas a toda a coletividade.

O termo de ajustamento de conduta insere-se na moderna teoria processual, cônscia do papel desempenhado pelas demandas coletivas numa sociedade de massa.

Havendo prejuízo decorrente da celebração do acordo, cumpre ao Conselho Superior do Ministério Público indeferi-lo, ou ao Judiciário recusar a homologação, ou ainda a qualquer do povo intentar ação popular visando à anulação do ato lesivo.

Do exposto, observa-se a importância do Ministério Público no desenvolvimento das questões democráticas e na defesa das instituições, mormente na defesa do meio ambiente, bem que, pelas características culturais de nosso povo, estaria fadado à depreciação e ao uso indiscriminado de seus recursos naturais, sem o correspondente benefício à comunidade.


6. Notas

  1. MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção, "Habeas Data". 19. ed. atual. por Arnoldo Wald. São Paulo: Melheiros, 1998, p. 146, nota 1.
  2. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 8. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000, 344-345.
  3. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, do patrimônio cultural e dos consumidores (Lei 7.347/85 e legislação complementar). 5. ed. rev.atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997, p.172.
  4. MACHADO, Paulo Affonso Leme. Op. Cit.,p. 344-345. Para Hugo Nigro Mazzilli: "(...) o compromisso deve versar as condições de cumprimento das obrigações (modo, tempo, lugar etc)". MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo – meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 10. ed. ver. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p.112.
  5. MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo – Meio Ambiente, Consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 10. ed. ver. ampl. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, 114.

7. Bibliografia.

MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2000.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil Pública: em defesa do meio ambiente, patrimônio cultural e dos consumidores: Lei nº 7.347/85 e legislação complementar. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997.

MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo – meio ambiente, consumidor e outros interesses difusos e coletivos. 10. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1998.

MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e "Habeas Data". 19. ed. atual. por Arnoldo Wald. São Paulo: Malheiros, 1998.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TRÓCCOLI JÚNIOR, Henrique. Limites do poder de disposição pelo Ministério Público de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos em sede de inquérito civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 44, 1 ago. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/274. Acesso em: 28 mar. 2024.