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A efetividade da jurisdição arbitral

A efetividade da jurisdição arbitral

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A decolagem plena da arbitragem depende do rompimento da cultura do litígio existente na sociedade brasileira. A jurisdição arbitral se afigura como uma alternativa válida, adequada e, sobretudo, efetiva face ao sistema judiciário formal.

Resumo: O presente trabalho científico foi realizado com o objetivo de apresentar a efetividade da jurisdição arbitral. Para tanto, analisou-se, especialmente, o viés histórico-evolutivo da arbitragem, seu novo amoldamento frente à terceira onda renovatória de acesso à Justiça e sua importância diante da atual crise de efetividade do Poder Judiciário. Nessa seara, foram elencadas as vantagens da arbitragem, as quais certificaram sua efetividade como alternativa à jurisdição estatal para resolução de controvérsias inerentes a direitos patrimoniais disponíveis. Traçou-se, ainda, a constitucionalidade e jurisdicionalidade do instituto, além da detecção do aumento gradual de sua utilização no país. No mais, discorreu-se que a decolagem plena da arbitragem depende do rompimento da cultura do litígio existente na sociedade brasileira, constituindo tal superação dever dos operadores do Direito. Ao final, concluiu-se que a jurisdição arbitral realmente se afigura como uma alternativa válida, adequada e, sobretudo, efetiva face ao sistema judiciário formal.

Palavras-chave: Arbitragem, jurisdição, efetividade, acesso à Justiça, crise do Poder Judiciário.

Sumário: INTRODUÇÃO. 1. ARBITRAGEM. 1.1. Precedentes históricos. 1.2. A arbitragem na legislação brasileira. 1.3. Conceito. 1.4. Natureza jurídica. 2. JURISDIÇÃO. 2.1. Evolução do conceito de jurisdição. 2.2. Ondas renovatórias de acesso à Justiça. 2.3. Redimensionamento do conceito de jurisdição e jurisdicionalidade da arbitragem. 2.4. Constitucionalidade da arbitragem. 3. A CRISE DE EFETIVIDADE DO PODER JUDICIÁRIO. 4. A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO ARBITRAL. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS


INTRODUÇÃO

O Estado moderno passa por uma crise de jurisdição. Não se trata de uma crise que questiona o poder, dever e atividade do Estado de aplicar o direito aos casos concretos, objetivando resolver os conflitos de interesses e garantir a paz social, mas versa sobre uma crise de efetividade na prestação jurisdicional.

Há muito, o formalismo processual tradicional não consegue compatibilizar uma resposta, a tempo e modo, aos anseios dos jurisdicionados. A evolução da sociedade – representada, em especial, pela globalização, tecnologia, velocidade da informação e alto grau de complexidade das relações jurídico-sociais – demanda uma renovação ou redimensionamento do conceito de acesso à Justiça e de jurisdição, sob pena de colapso no modelo vigente de entrega de pacificação social.

Nesse cenário, constatada a necessidade premente de disponibilização de meios alternativos de solução de conflitos aos jurisdicionados, foi promulgada, em 23 de setembro de 1996, a Lei nº 9.307, a qual aperfeiçoou o instituto da arbitragem no arcabouço jurídico nacional.

Assim, diante da importância de uma prestação jurisdicional efetiva, o presente estudo analisará a arbitragem e sua norma regulamentadora com vagar nos seguintes tópicos: (i) precedentes históricos da arbitragem, inclusive na legislação brasileira; (ii) natureza jurídica da arbitragem; (iii) evolução e redimensionamento do conceito de jurisdição; (iv) ondas renovatórias de acesso à Justiça; (v) jurisdicionalidade e constitucionalidade da arbitragem; (vi) crise de efetividade do Poder Judiciário; (vii) efetividade da jurisdição arbitral.

Especificamente, demonstrar-se-á que a jurisdição arbitral não usurpa a jurisdição estatal, desmistificando, assim, o dogma do monopólio do Estado na prestação jurisdicional – pedra angular da tese de inconstitucionalidade do instituto.

Imiscuir-se-á no debate sobre a identificação da natureza jurídica da arbitragem; tema complexo e conflituoso na doutrina. Serão apresentadas três proposições doutrinárias que se digladiam: a primeira, defendente da natureza contratual da arbitragem; a segunda, da natureza jurisdicional; a terceira, da natureza mista, híbrida ou sui generis (amálgama das duas correntes anteriores).

Tratar-se-á também das três ondas renovatórias de acesso à Justiça, enfocando, sobretudo, a terceira, visto que esta forma a base de pensamento da evolução e redimensionamento do conceito de jurisdição.

Com efeito, serão enumeradas as virtudes da arbitragem, as quais certificam sua efetividade, além do que se debaterá sobre a necessidade de superação da cultura do litígio judicial reinante no Brasil.

Noutro giro, examinar-se-á a crise de efetividade do Poder Judiciário como expressão da indispensabilidade de instalação dos meios alternativos de solução de controvérsias.

Destarte, somente após o estudo da problemática acima mencionada será possível delinear a jurisdição arbitral como uma alternativa – célere e eficaz – ao Poder Judiciário, no que toca à resolução de controvérsias inerentes a direitos patrimoniais disponíveis.

No mais, importante ressaltar que o estudo em tela se vale, essencialmente, do método analítico e dedutivo, tendo por campo de análise o Direito brasileiro em seu estágio atual. Dessa sorte, a partir da compilação de normas, doutrinas, trabalhos acadêmicos e artigos/webartigos inerentes ao tema, realizar-se-á uma confrontação entre as ideias esposadas e buscar-se-á um norte interpretativo para a jurisdição arbitral e seu substrato de efetividade, nos lindes da Lei nº 9.307/96.

Finalmente, pontua-se que o debate ora proposto foi escorado nos ensinamentos e ideias de renomados autores especializados no estudo dos meios alternativos de solução de litígios. Dentre esses notáveis, recorreu-se à orientação daqueles que dispensaram uma atenção especial ao instituto da arbitragem, especialmente: Carlos Alberto Carmona, Alexandre Freitas Câmara, José Carlos de Magalhães, Ricardo Ranzolin, Luiz Roberto Ayoub e Marco Aurélio Gumieri Valério.


1. ARBITRAGEM

1.1. Precedentes históricos

Inicialmente, salienta-se não haver consenso entre os estudiosos do Direito Processual a respeito da origem do instituto da arbitragem.

Em resumo, há duas posições mais destacadas. A primeira defende o nascimento do instituto na Grécia, enquanto a outra sustenta seu início em Roma.

Observa-se que ambas correntes apresentam citações e arquivos históricos que realmente remontam à instituição arbitral. Também não poderia ser diferente, pois o método de organização dessas civilizações foi precursor no desenvolvimento de diversas ferramentas modernas, em especial as de cunho jurídico. Nessa seara, de inteira aplicação os ensinamentos de Renan (2002, p. 58):

Para uma mente filosófica, isto é, para alguém que se concentra na origem das coisas, não há nada mais do que três histórias de real interesse no passado da humanidade: a história grega, a história de Israel e a história de Roma. Estas três histórias combinadas constituem o que se pode ser chamado de história da civilização, a civilização significando o resultado da colaboração alternada da Grécia, Judéia e Roma.

Na mitologia grega, existem várias passagens que fazem referência à eleição de cidadãos privados como terceiros pacificadores de contendas. Dentre essas passagens, emerge a Guerra de Tróia, a qual teria como gênese o processamento de uma arbitragem. Valério (2004, p. 33) bem resume esse acontecimento:

A Guerra de Tróia teria como substrato primordial o arbitramento realizado pelo pastor PÁRIS, filho de PRÍAMO e HÉCUBA, no Monte Ida. Coube a este pastor a escolha da deusa mais bela entre ATENA, HERA e AFRODITE, que disputavam, como prêmio, a maçã de ouro. O pleito foi decidido em favor de AFRODITE, que subornou o árbitro, prometendo a este, o amor da mulher que ele escolhesse. HELENA, a escolhida, fora raptada pelo próprio PÁRIS, dando início à jornada bélica vencida pelos atenienses.

Esse método de resolução de lides propagado no panteão grego acabou por reverberar na sociedade. O expediente arbitral grego era dividido em duas fases, sendo a primeira nada mais que uma tentativa de (re)conciliação e, persistindo o conflito, passava-se à etapa de arbitragem propriamente dita, que era certificada através de juramento. No mais, o resultado da demanda era gravado em placa de mármore ou de metal e colocada nos templos das respectivas cidades para conhecimento de todo o povo (NAZO, 1997, p. 25).

A penetração dos princípios da arbitragem na sociedade grega pode ser aferida na obra De legibus, onde Platão dizia que o mais sagrado dos tribunais é aquele que as partes mesmas hajam constituído e escolhido de comum entendimento.

Vale anotar que a Grécia também possuía um modelo estatal de solução de litígios. Assim, conviviam lado a lado a via estatal e a privada/arbitral de composição de contendas, até a dominação romana no século II a.C..

Noutro giro, alguns doutrinadores defendem que a arbitragem precursora do modelo contemporâneo de arbitragem desenvolveu-se em Roma e somente após o século III d.C., ou seja, a partir do período pós-clássico do Direito Romano.

Para a corrente retro, os gregos apenas produziram lampejos filosóficos sobre o sistema arbitral, até mesmo porque seria impossível nutrir um meio alternativo de resolução de lides num ordenamento jurídico que não possuía uma clara delimitação entre público e privado. Na sequência, afirmam que nem mesmo no período clássico do Direito Romano houve verdadeira arbitragem, porquanto o sistema processual vigente obrigava as partes a solucionar suas pretensões resistidas por meio de árbitros privados. Para melhor compreensão, apresenta-se:

A atuação de cidadãos privados através do ordo iudiciarum privatorum por vezes é referida como espécie de arbitragem. Entretanto, ali, o pretor apenas concretizava a litiscontestatio, encaminhando os litigantes ao iudex ou arbiter – cidadão privado romano listado no iudicium privatum, que conferia sua pronúncia (sentença) acerca do litígio. Por conseguinte, tal intervenção de julgador privado, de cunho necessário e obrigatório, não consistia ainda em uma alternativa ao processo normalmente estabelecido aos litigantes. Ao contrário, era a fórmula ordinária de solução de litígios prevista pelo Direito, própria do período da legis actiones e do processo formulário, até sua extinção no ano 294 d.C. […] (RANZOLIN, 2011, p. 20).

No Direito Romano Pós-clássico houve significativa alteração no modelo de pacificação social. Consolidou-se a cognitio extraordinaria: monopolização da função jurisdicional pelo Estado. Assim, a legislação suporte dessa mudança definiu o processo estatizado como meio ordinário de solução de lides. Contudo, em certas situações, o sistema facultou às partes a opção de resolver seus conflitos através da decisão de árbitros particulares por eles livremente contratados em detrimento do juízo estatal ordinário.

Ressalta-se que a via alternativa em exame aperfeiçoava-se através da conventio compromissi (similar à atual convenção de arbitragem) – o qual podia conter a denominada stipulatio poenae (espécie de cláusula penal em caso de descumprimento da conventio compromissi ou do dictum/decisão do árbitro) – e do receptum arbitri (aceitação da função de árbitro pelo particular). Cumpre registrar que a conventio compromissi e o dictum não tinham eficácia direta/vinculativa, porque seu cumprimento podia ser relegado pelas partes. Logo, a stipulatio poenae funcionava como um elemento coativo de adimplemento da contratação.

Dessa forma, a conventio compromissi pode ser conceituada como precursora da arbitragem tal qual a conhecemos hoje. Isso não só pelos princípios de pacificação social que a amoldou, mas, sobretudo, por consistir numa alternativa privada à regra da jurisdição estatal. Sobre esse instituto do Direito Romano Pós-clássico, transcreve-se:

Aqui, sem dúvida, flagra-se o embrião da arbitragem de direito privado, em que esta não se confunde com o processo estatal de solução de controvérsia e se constitui como via alternativa a ele, por força de escolha das partes – similar à sua configuração atual (RANZOLIN, 2011, p. 21).

1.2. A arbitragem na legislação brasileira

A arbitragem fincou-se em solo brasileiro juntamente com a colonização portuguesa. Dessa maneira, inicialmente, na incipiente sociedade brasileira, vigoraram as regras de arbitragem previstas nas Ordenações Afonsinas. A partir do ano de 1521, estas deram lugar às Ordenações Manuelinas. Finalmente, no ano de 1603, as Ordenações Filipinas reformaram as Manuelinas, produzindo um novo código legal, o qual tratava expressamente da arbitragem no Livro III, Título 16: “Dos Juízes Árbitros”.

No status de nação soberana, a arbitragem surgiu no Brasil, pela primeira vez, na “Constituição do Império, de 22/03/1824, em seu art. 160, ao estabelecer que as partes podiam nomear juízes-árbitros para solucionar litígios cíveis e que suas decisões seriam executadas sem recurso, se as partes, no particular, assim, convencionassem” (DELGADO, 2000).

Salienta-se que a Lei nº 556, de 25 de junho de 1850 – que instituiu o Código Comercial – e o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850 – considerado o primeiro código de processo brasileiro – continham regras prevendo tanto arbitragem facultativa quanto obrigatória. Ocorre que esse sistema duplo de arbitragem (facultativo e obrigatório) não prosperou. A Lei nº 1.350, de 14 de setembro de 1866, e o Decreto nº 3.900, de 26 de junho de 1867, revogaram, respectivamente, a arbitragem compulsória prevista no Código Comercial e no Regulamento nº 737.

Com efeito, a decisão de eliminar o juízo arbitral obrigatório foi correta, pois tal compulsoriedade chocava-se contra a principal característica do instituto, a saber, a autonomia da vontade (liberdade de contratar). Não obstante o acerto dessa decisão, “certo é que a supressão do juízo arbitral obrigatório provocou a decadência do instituto, que praticamente virou letra morta no direito brasileiro” (VALÉRIO, 2004, p. 51).

A Carta Republicana de 1891 repartiu a competência legislativa sobre o direito processual entre as unidades da federação. Consequentemente, diversos estados editaram códigos de processo, sendo que alguns desses códigos previam a arbitragem como meio alternativo de resolução de conflitos.

Diante do poder constituinte originário legitimador da elaboração da Constituição Federal de 1934, a competência legislativa em matéria processual e sobre arbitragem voltou a ser privativa da União, o que viabilizou a elaboração do Código de Processo Civil de 1939.

Em que pese as cartas políticas que sucederam à de 1934, a competência privativa retromencionada manteve-se inalterada. Vale pontuar que o Código de Processo Civil de 1939 foi revogado pelo Código de Processo Civil de 1973, o qual discorreu sobre o juízo arbitral nos artigos 1.072 a 1.102. Segundo Ayoub (2005, p. 24), o procedimento regulado por tais artigos mostrou-se ineficiente e inútil em razão da necessidade de submeter a decisão arbitral ao Poder Judiciário para conferir-lhe eficácia. Assim, na década de 1980, surgiram três anteprojetos de lei visando à modernização do epigrafado instituto. O primeiro foi publicado no Diário Oficial da União de 27 de junho de 1981, o segundo no de 27 de fevereiro de 1987 e o terceiro no de 14 de julho de 1988, todavia todos acabaram arquivados por motivos diversos. Somente em 23 de setembro de 1996, com a promulgação da Lei nº 9.307, é que a arbitragem ganhou novo corpo no ordenamento jurídico pátrio. Essa trajetória legislativa encontra bom resumo no magistério de Delgado (2000):

A história recente registra que a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, teve origem no Projeto de Lei do Senado de nº 78, de 1992. Antes, três projetos tinham sido apresentados e foram arquivados. A aprovação da lei resultou de um movimento iniciado pela denominada Operação Arbiter, comandada pelo Instituto Liberal de Pernambuco, tudo coordenado pelo Dr. Petrônio Muniz, advogado. O projeto em referência foi apresentado pelo então Senador Marco Maciel. Contribuíram para o aperfeiçoamento do texto da lei, valiosas sugestões, de juristas estudiosos do tema, incluindo-se os Doutores Carlos Alberto Carmona e Pedro Batista Martins, bem como a Doutora Selma Maria Ferreira Lemes. O autor do projeto, na exposição de motivos, esclareceu que a proposta legislativa apresentada levava em conta diretrizes da comunidade internacional, especialmente as fixadas pela ONU na Lei-Modelo sobre Arbitragem Comercial Internacional formulada pela UNCITRAL.

A Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), também conhecida como Lei Marco Maciel, possui sete capítulos e quarenta e quatro artigos. Sua base estrutural é a seguinte: Capítulo I – Disposições Gerais; Capítulo II – Da Convenção de Arbitragem e seus Efeitos; Capítulo III – Dos Árbitros; Capítulo IV – Do Procedimento Arbitral; Capítulo V – Da Sentença Arbitral; Capítulo VI – Do Reconhecimento e Execução das Sentenças Arbitrais Estrangeiras; Capítulo VII – Disposições Finais.

Sobre o assentamento da Lei de Arbitragem em nosso arcabouço jurídico, elucida Carmona (2007, p. 33):

[…] considerando a especificidade do instituto e o fato de que a lei contém normas que não podem ser consideradas apenas processuais, optou o legislador por estabelecer as regras acerca da arbitragem em diploma apartado do Código de Processo Civil, revogando todo o Capítulo XIV, Título I do Livro IV da Lei 5.869/73 e também o Capítulo X, Título II do Livro III do antigo Código Civil (Lei 3.071/16), na esteira, aliás, da tendência dos países que estão renovando sua legislação em matéria de arbitragem.

1.3. Conceito

Trata-se a arbitragem de um mecanismo privado de solução de litígios, que foi readaptado para ampliar o acesso dos jurisdicionados à ordem jurídica justa. A arbitragem contemporânea e outros instrumentos extrajudiciais de resolução de conflitos (v.g.: negociação e mediação) são conhecidos internacionalmente como Alternative Dispute Resolution (ADR). Essa expressão foi recebida pela doutrina e jurisprudência nacional com o significado de “meios alternativos de solução de controvérsias”. O conceito de ADR, cunhado pela comunidade internacional na década de 1960, arraigou-se e atualmente “é reconhecido em todos os países desenvolvidos, importando marcante revisão dos instrumentos jurídicos para a prestação de justiça” (RANZOLIN, 2011, p. 8).

Importante dizer que a arbitragem é um meio heterocompositivo de resolução de lides, enquanto a negociação e a mediação são técnicas autocompositivas. Isso significa que na arbitragem a contenda é solucionada por um terceiro imparcial alheio ao conflito; já na negociação e na mediação são as próprias partes, assistidas ou não por um facilitador, que resolvem a controvérsia.

No tocante ao conceito de arbitragem, seguem abaixo três visões produzidas por experts no assunto:

A arbitragem – meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo a decisão destinada a assumir a mesma eficácia da sentença judicial – é colocada à disposição de quem quer que seja, para solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam dispor (CARMONA, 2007, p. 51).

A arbitragem é o sistema especial de julgamento, com procedimento, técnica e princípios informativos próprios e com força executória reconhecida pelo direito comum, mas a este subtraído, mediante o qual duas ou mais pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou de direito público, em conflito de interesses, escolhem de comum acordo, contratualmente, uma terceira pessoa, o árbitro, a quem confiam o papel para resolver a pendência, anuindo os litigantes em aceitar a decisão proferida (CRETELLA JÚNIOR, 1988, p.129).

A arbitragem é instância jurisdicional, praticada em função de regime contratualmente estabelecido para dirimir controvérsias entre pessoas de direito privado e/ou público, com procedimentos próprios e força executória perante tribunais estatais (STRENGER, 1987, p. 197).

A conceituação apresentada, a qual está em sintonia com a Lei nº 9.307/96, revela que somente pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Extrai-se também que o instituto está montado sobre um claro tripé, a saber: (i) equivalência de efeitos entre cláusula compromissória e compromisso arbitral (convenção de arbitragem); (ii) eficácia da sentença arbitral independentemente de homologação pelo Poder Judiciário; (iii) fim do critério da dupla homologação das sentenças arbitrais estrangeiras (CARMONA, 2011).

Desse modo, verifica-se que, salvo situações excepcionalíssimas, o Poder Judiciário não intervirá na arbitragem. Nas hipóteses de resistência, que demandarem o uso de força ou coerção para o cumprimento da convenção de arbitragem ou da sentença arbitral, o Judiciário poderá ser invocado para dar suporte ao juízo arbitral, determinando, por exemplo, a condução coercitiva de testemunhas, implementação de tutelas de urgência e execução de sentença arbitral. No mais, o Judiciário poderá ser acionado para realizar o controle de legalidade do processo arbitral.

Ante o exposto, conclui-se que a arbitragem consiste num verdadeiro processo – instrumento de jurisdição – onde as partes, via convenção, escolhem um terceiro de sua confiança (árbitro) e definem as regras de julgamento, sendo que esse juiz privado examinará a controvérsia de maneira independente e imparcial e, ao final da instrução, proferirá sentença vinculativa. Esse decisum, que é um título executivo (art. 475-N, inciso IV, do Código de Processo Civil), não se sujeita a recurso e independe de homologação judicial.

1.4. Natureza jurídica

De acordo com os subcapítulos anteriores, a arbitragem recebeu nova roupagem através da Lei nº 9.307/96. Esse diploma legal revalorou as bases do instituto, fazendo emergir três proposições doutrinárias acerca de sua natureza jurídica. Existem duas correntes antagônicas e uma mista ou híbrida, donde sobressaem acirradas discussões no meio acadêmico, sem, contudo, poder se afirmar que uma vertente se sobrepõe à outra.

A primeira teoria, de cunho privatista, dita que a arbitragem instala-se por meio de uma entabulação – convenção de arbitragem – entre particulares para solucionar um conflito. Logo, o instituto seria um negócio jurídico de natureza privada, onde a lei muniu-o de eficácia suficiente para o julgamento de causas que tenham como objeto direitos patrimoniais disponíveis. Nessa ordem, o decisum do(s) árbitro(s) consistiria no simples cumprimento de formalismo legal, o qual as partes optaram por se submeter ao escolher essa modalidade de negócio jurídico. Nessa esteira, Ranzolin (2011, p. 57) leciona que:

No caso da arbitragem, a lei teria formulado regras tipicamente acessórias e regulatórias dos negócios jurídicos, como haveria outras regulações minuciosas em outras modalidades de negócios jurídicos – no negócio jurídico de locação, por exemplo.

Os defensores da tese privatista ou contratualista também asseveram que – dentre os elementos clássicos da jurisdição: notio, vocatio, coertio, iudicium e executio – falta à arbitragem os elementos coertio e executio e, por isso, impossível atribuir-lhe jurisdição. Em suma, a jurisdição permanece monopólio do Estado (VALÉRIO, 2004).

Grau (2002) e Zavascki (2000) já perfilharam posicionamento aderente à posição contratualista da arbitragem.

Lado outro, a corrente publicista propaga a natureza jurisdicional da arbitragem. Esclarece Câmara (2009, p. 10) que a arbitragem realmente se inicia por ato de direito privado (convenção de arbitragem), porém esse ato não pode ser confundido com a arbitragem em si. E continua o doutrinador, “é a natureza desta, e não daquele, que se busca, e tal natureza é, a meu juízo, a de função pública”.

Os publicistas aduzem que os princípios que informam a Lei nº 9.307/96 traçam de modo indelével a jurisdicionalidade da arbitragem. Esse atributo é explicitado quando a lei diz que: (i) “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário” (art. 18); (ii) “A sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo” (art. 31).

Assim, alegam que o conceito clássico de jurisdição – monopolizado pelo Estado – precisa ser redimensionado para compatibilizar-se com o vigente Estado Democrático de Direitos. A jurisdição é mecanismo de pacificação social, sendo que o Estado (que é o povo) delegou esse poder/função/atividade ao Poder Judiciário. Entretanto, aferido que o Judiciário não mais consegue atender adequadamente às demandas do povo, o Estado deve alargar o acesso à Justiça, criando opções de pacificação social efetiva, que, repisa-se, é o escopo maior da jurisdição.

Nessa ordem de ideias, modernizando o conceito de jurisdição e destacando o caráter jurisdicional da arbitragem ante os elementos clássicos da jurisdição, ressalta-se o seguinte argumento da tese em estudo:

[…] o único elemento necessário da jurisdição seria o iudicium, pois ele englobaria, de certa forma, a notio e a vocatio e poderia existir mesmo sem a coertio e a executio. Já essas duas últimas não poderiam existir sem o iudicium. Assim, o poder de dizer o direito seria o traço marcante da jurisdição e estaria presente na arbitragem (RANZOLIN, 2011, p. 56).

No mais, os adeptos dessa corrente explicitam que a arbitragem é verdadeiro processo, porque seu procedimento é realizado em contraditório substancial, os árbitros são juízes de fato e de direito – detentores de independência e imparcialidade, bem como a decisão arbitral é passível de trânsito em julgado. Por conseguinte, o processo arbitral, assim como o judicial, entrega pacificação social, isto é, reveste-se de jurisdição.

Câmara (2009), Néry Júnior (2004) e Carmona (1997) são exemplos de defensores da tese da natureza jurisdicional da arbitragem.

Por derradeiro, existe a doutrina que afirma a natureza mista, híbrida ou sui generis da arbitragem. O instituto seria, a um só tempo, contrato e jurisdição. A celebração da convenção de arbitragem – de base contratual – institui as diretrizes do juízo arbitral, todavia a sentença privada “não é ato integrativo do compromisso, nele tem seu fundamento e seus limites, mas seus efeitos decorrem da lei e não da vontade das partes” (MAGALHÃES, 1989, p. 100).

Destarte, em primeiro plano, o árbitro é investido por negócio jurídico de natureza privada. No plano seguinte, atua conforme as regras delineadas na convenção de arbitragem e consoante as disposições da Lei nº 9.307/96, que lhe entrega poderes e responsabilidades públicos de proferir uma sentença com revestimento de coisa julgada.

Portanto, a natureza jurídica da arbitragem seria o amálgama desses dois planos e no discurso de Ayoub (2005, p. 28-29):

[…] entende-se que a natureza jurídica da Arbitragem assume contorno dúplice, ou seja, uma natureza jurídica mista, porquanto envolve em sua concepção um pacto de vontades e em seu desenrolar a força da lei, emanada dos poderes conferidos ao árbitro, da força de sua decisão, bem como a capacidade de atender ao interesse de ordem social e coletiva.

Posicionaram-se pela defesa da corrente híbrida Lacerda (2006) e Almeida (2002).

Traçados os principais argumentos de cada posição doutrinária, observa-se que o embate entre elas provém substancialmente das diferentes interpretações dispensadas ao termo “jurisdicionalidade”. Nesse particular, valioso o estudo do conceito de jurisdição no capítulo subsequente.


2. JURISDIÇÃO

2.1. Evolução do conceito de jurisdição

Para o completo entendimento deste tópico, faz-se necessário analisar, primeiro, o conceito clássico de jurisdição, a partir da formação dos Estados nacionais modernos.

A expressão jurisdição – com a silhueta próxima à atual – conformou-se juntamente com a consolidação da figura jurídica do Estado moderno. O senso de unidade nacional soberana, a organização de um governo representativo lastreado no princípio da legalidade formal e a implementação da doutrina montesquiana de separação e interdependência das funções do Estado (Poder Executivo, Legislativo e Judiciário) moldaram essa nova forma de organização social. Nessa configuração, o Estado monopolizou a prerrogativa de distribuição do Direito (jurisdição), a qual passou à titularidade do Poder Judiciário.

Destarte, há jurisdição quando o Estado se impõe sobre os particulares, decidindo-lhes os conflitos de interesses com autoridade. Noutras palavras, a jurisdição clássica afigura-se na atividade através da qual o Estado (juízes) aprecia os conflitos de interesses e os julga, visto estar vedada a vingança privada (GONÇALVES NETO, 2006).

Sobre a concepção clássica de jurisdição, importante destacar as teorias formuladas por Giuseppe Chiovenda e Francesco Carnelutti, as quais influenciaram a doutrina pátria e que, não obstante atualmente defasadas, ainda encontram defensores.

Giuseppe Chiovenda, no intuito de romper o paradigma da natureza privatista do processo (então vigente no Estado liberal), pensou o processo como instituto de direito público, ferramenta de expressão da autoridade do Estado. Nesse norte, asseverou que a jurisdição, no processo de conhecimento, consiste na “substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual não só das partes, mas de todos os cidadãos, pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não existente uma vontade concreta de lei em relação às partes” (CHIOVENDA, p. 365). Sintetizando, a jurisdição, segundo a escola chiovendiana, é vista como função voltada à atuação da vontade concreta da lei (MARINONI, 2011).

Já Francesco Carnelutti definiu o conceito de jurisdição a partir da ideia de lide. De acordo com Carnelutti (2000, p. 77) lide seria “um conflito (intersubjetivo) de interesses qualificado por uma pretensão contestada (discutida)”. Assim, para tal doutrinador, a prestação jurisdicional só se faria presente onde houvesse lide. Eventual atividade do juiz alheia à resolução de conflito de interesses não poderia ser taxada de jurisdicional.

Diante disso, dentro do sistema carneluttiano, a jurisdição amoldou-se como “atividade criada e organizada pelo Estado para pacificar os conflitos através da justa composição da lide” (RANZOLIN, 2011, p. 61).

Confrontando os conceitos de jurisdição acima delineados, nota-se que Francesco Carnelutti observou o processo do ponto de vista do interesse privado (finalidade das partes), enquanto Giuseppe Chiovenda debruçou-se numa perspectiva publicista (atividade do juiz). Outra diferença entre as teses foi exposta por Marinoni (2011, p. 11):

Para Carnelutti a sentença cria uma regra ou norma individual, particular para o caso concreto, que passa a integrar o ordenamento jurídico, enquanto que, na teoria de Chiovenda, a sentença é externa (esta fora) ao ordenamento jurídico, tendo a função de simplesmente declarar a lei, e não de completar o ordenamento jurídico.

Apesar dessas distinções, verifica-se que ambas as teorias carregam em seu âmago a noção de que a atuação do magistrado é voltada para a subsunção de uma premissa menor (fatos) a uma premissa maior (lei abstrata e genérica). Dessa forma, o produto da jurisdição sempre seria uma sentença declaratória, que poderia ser encarada como uma norma individual do caso concreto (Carnelutti) ou a simples aplicação da norma geral criada pelo legislador (Chiovenda).

Perceba-se que tais teorias são insuficientes para explicar a jurisdição no Estado Democrático de Direito, visto que foram engendradas sob a concepção de que a legislação infraconstitucional – supostamente completa e coerente – daria todas as respostas (direta ou reflexamente) para as controvérsias que permeassem a sociedade. Naquela época, a evolução tecnológica era lenta, inexistia o fenômeno da globalização e, sobretudo, as relações sociais não detinham a complexidade atual. Isso permitia o ideário de construção de um ordenamento jurídico completo e coerente, porquanto os conflitos de interesses eram assemelhados e previsíveis, o que potencializava a precisão do direito material. Nesse cenário, a interpretação da lei pelos magistrados era despicienda ou mínima, estando eles amarrados a um positivismo acrítico ou semicrítico. Os ensinamentos de Marinoni (2011, p. 42) corroboram o asseverado:

É fácil perceber que em uma sociedade legalmente igualizada, em que as relações têm características definidas como homogêneas, não há dificuldade na visualização das particularidades dos casos conflitivos. Por esse motivo, na época em se falava de “lei genérica e abstrata”, sequer se podia imaginar que um dia o juiz teria que “compreender” e atribuir “sentido” e “valor” aos casos concretos. O caso era visto como algo quase que predefinido e, nessa linha, a função do juiz era apenas preencher as suas particularidades. Como a jurisdição não precisava outorgar “sentido” ao caso, bastava a sua subsunção à norma geral mediante mera aplicação lógica.

No Estado Democrático de Direito, concebido sobre novos valores filosóficos, tornou-se imperativa a revisão do conceito de jurisdição. A evolução da complexidade das relações sociais e a velocidade dessa transformação certificaram a utopia de criação de um arcabouço jurídico total. Dessa forma, racionalizou-se a Constituição como norma fundamental de organização do Estado, ocupante do ápice da pirâmide normativa e informadora de todo o sistema jurídico. Por conseguinte, as lacunas legislativas e a norma infraconstitucional deveriam ser interpretadas pelos juízes à luz do caso concreto, bem como conforme os preceitos fundantes da carta política.

Nessa esteira, a efetiva prestação jurisdicional vai muito além da simples subsunção de premissa menor à premissa maior; passa pela compreensão do caso concreto no raciocínio decisório, o qual deverá se orientar pelos princípios constitucionais (explícitos ou implícitos) e direitos fundamentais, tudo a fim de cristalizar uma norma que regulará a lide.

2.2. Ondas renovatórias de acesso à Justiça

Previamente à abordagem das ondas renovatórias de acesso à Justiça, importante entender a própria concepção de “acesso à Justiça”.

O movimento de acesso à Justiça, capitaneado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, sustentou que o verdadeiro acesso à Justiça exige que o operador do Direito integre a realidade em sua visão jurídica, gerando um filtro sociojurídico na interpretação das normas produzidas pelo Estado. Esse aprimoramento interpretativo afasta a ideologia meramente formalista do Direito, a qual, historicamente, atravancou o acesso à Justiça por desconsiderar os aspectos social, econômico, político e cultural na efetivação do sistema legal. Coaduna-se com essas reflexões Ayoub (2005, p. 15-16) quando ressalta que:

O Acesso à Justiça exige tomada de consciência dos problemas, necessidades e deveres fundamentais, para que se alcance o perfeito desenvolvimento da atividade jurídico-judiciária, elemento primordial para uma resposta positiva aos anseios da sociedade. Trata-se principalmente de procurar respostas para superar as dificuldades e obstáculos que tornam o Direito inacessível à população. Esse movimento tem como escopo a distribuição igualitária das liberdades civis e políticas, ou seja, os Direitos Fundamentais que fazem parte de uma sociedade democraticamente organizada.

Assim, no entendimento de CAPPELLETTI e GARTH (1988), acesso à Justiça significa acesso à ordem jurídica justa e não apenas a simples possibilidade de o cidadão deduzir sua pretensão perante o Poder Judiciário. Afirmaram ainda que a ordem jurídica justa só pode ser alcançada se forem satisfeitas três ondas renovatórias de acesso à Justiça, a saber: (i) assistência judiciária para os pobres; (ii) tutela dos interesses metaindividuais; (iii) novo enfoque de acesso à Justiça.

Feitas essas considerações, passa-se ao exame individualizado das ondas renovatórias retromencionadas.

A primeira onda busca suprimir as desigualdades econômicas como entrave à efetiva realização da Justiça. A consecução dessa meta vem ao encontro ao objetivo da República Federativa do Brasil de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais.

Desse modo, no rastro de outros países, o Brasil consagrou a assistência judiciária gratuita aos necessitados. A Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, disciplinou a matéria, conceituando “necessitado” como “todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família” (art. 2º, parágrafo único).

A prestação da assistência judiciária gratuita compete à Defensoria Pública – da União, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Estados – incumbindo-lhe, fundamentalmente, “a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados” (art. 1º da Lei Complementar nº 80, de 12 de janeiro de 1994).

De mais a mais, esse modelo de Justiça gratuita confere aos legalmente pobres a isenção das custas processuais e honorários advocatícios.

A segunda onda empenhou-se na solução dos problemas de representação jurídica dos direitos coletivos lato sensu ou transindividuais ou metaindividuais dos cidadãos – que se dividem em direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos.

O Código de Processo Civil pátrio foi dimensionado para solver lides privatistas de caráter individual. Ocorre que, em razão da evolução política, social, cultural e tecnológica da sociedade, a tutela meramente individual mostrou-se insuficiente para solucionar as questões transindividuais – o que delineava um problema de denegação de justiça (CAPPELLETTI, 1977, p. 128). Contudo, através da promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma mudança de paradigma, pois a tutela coletiva foi guindada ao rol dos direitos e garantias fundamentais.

Assim, a tratativa dispensada pela Carta Magna de 1988 aos direitos coletivos permitiu o suprimento de um déficit de acesso à Justiça, bem como o estabelecimento da relevância social da tutela coletiva, caracterizada pela natureza dos bens jurídicos envolvidos (v.g.: meio ambiente, relações de consumo, saúde e educação), pelas dimensões ou características da lesão e pelo elevado número de pessoas atingidas (DIDIER JR. e ZANETI JR., 2009, p. 41).

A partir do balizamento constitucional, o qual revigorou, em especial, os comandos da Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85), observou-se a proliferação de estatutos jurídicos específicos de tutela coletiva (v.g.: Lei nº 7.853/89, Lei nº 7.913/89, Lei nº 8.069/90, Lei nº 8.078/90, Lei nº 8.884/94, Lei nº 9.494/97 e Lei nº 10.741/03).

Não obstante esse emaranhado legislativo, foi criado um microssistema processual para as ações coletivas. Esse microssistema foi concebido, sobretudo, através da intercomunicação entre a Lei de Ação Civil Pública e o Título III do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90). A junção desses diplomas legais traçou um procedimento “comum/ordinário” da tutela coletiva brasileira.

A desobstrução desse acesso à Justiça pode ser aferida pelas milhares de ações em trâmite movidas por partidos políticos, associações, sindicatos, Ministério Público etc., tratando de direitos metaindividuais dos cidadãos, “muita vezes sem que estes tenham sequer conhecimento de que (indiretamente) estão a litigar e de que diversos interesses seus estão em disputa” (RANZOLIN, 2011, p. 9).

A terceira onda expõe um novo enfoque de acesso à Justiça. No Estado Democrático de Direito, o real acesso à Justiça aperfeiçoa-se numa prestação jurisdicional que resguarde os direitos fundamentais dos cidadãos, em especial o direito à tutela jurisdicional efetiva. Dessa maneira, a efetividade é a pedra de toque da amplitude de acesso à Justiça, devendo o Estado disponibilizar aos jurisdicionados meios eficazes, lídimos e céleres de resolução de conflitos. Sintetiza essa ideia Teixeira (1996, p. 887) ao elucidar:

Na ‘onda’ atual, a preocupação se volta para a efetividade dessa prestação, refletindo ideais de justiça e princípios fundamentais, tendo como idéias matrizes o acesso a uma ordem jurídica justa e a celeridade na solução do litígio, ao fundamento de que somente procedimentos ágeis e eficazes realizam a verdadeira finalidade do processo.

Nessa seara, a expressão “acesso à Justiça” teria melhor significação como “acesso à ordem jurídica justa”, visto que não basta ao Estado “conceder ao jurisdicionado o pleno acesso aos tribunais, sem a existência de condições mínimas satisfatórias à obtenção de justa composição do litígio […]” (WATANABE, 1988, p. 128).

A velocidade de desenvolvimento da sociedade e suas relações jurídicas cada vez mais complexas escancaram que a forma clássica de solução de lides – o processo estatal – está em crise, porquanto não constitui mais via suficientemente abrangente e efetiva de pacificação social. Nesse norte, se a entrega de Justiça efetiva é dever do Estado, este deverá sempre evoluir processualmente com vagar na implantação de instrumentos voltados para a solução de litígios sem a presença obrigatória do Poder Judiciário.

Aqui se inserem, por exemplo, a negociação, a mediação, a conciliação e, sobretudo, a arbitragem que são ferramentas extrajudiciais de pacificação social tão válidas quanto o processo estatal. Destaca-se que esses meios alternativos de solução de controvérsias ou Alternative Dispute Resolution (ADR) possuem, em muitos casos, melhor dimensionamento para solver lides que a Justiça pública, o que traduz efetividade no acesso à Justiça.

Essencial pontuar que nenhum desses meios é melhor ou pior do que o oferecido pelo Estado para a solução de conflitos; “todos eles concorrem para o melhor desempenho da atividade, função e poder de julgar, tarefas que não constituem mais um monopólio do Estado” (CARMONA, 2011, p. 10).

A intensificação de outros métodos de acesso do cidadão ao encontro da Justiça também é primordial porque nem mesmo a produção legislativa recente conseguiu mitigar a estagnação do modelo processual estatal vigente. Ainda que repensada a sistemática de prestação de serviços pelo Poder Judiciário (EC nº 45/04), criado rito processual menos formal (Leis nº 9.099/95 e Lei nº 10.259/01), reforçado o cunho conciliatório da audiência preliminar (Lei nº 10.444/02), recalibrada a via recursal (Leis nº 10.352/01, 11.187/05, 11.276/06, 11.418/06, 12.322/10 etc.), ampliada a tutela específica (Lei nº 10.444/02) e instituído o sincretismo processual (Lei nº 11.232/05), essas alterações não foram capazes, na prática, de rejuvenescer e garantir a efetividade da jurisdição estatal.

Portanto, a terceira onda renovatória sub examine consolida-se num sistema plural ou multiportas de solução de controvérsias – estatal e paraestatal – devendo seus integrantes ser informados indistintamente pelos mesmos princípios que garantam um processo e julgamento justo. Esse é o novo enfoque de acesso à Justiça, atendendo às observações de Ranzolin (2011, p. 10-11):

A projeção das ADR é norteada por um realismo jurídico, pelo qual o acesso à justiça deixa de ser tratado como um direito social alcançável pela previsão formal de instrumentos legais para seu exercício. Passa-se a encarar o acesso à justiça como um problema social de cunho material, que demanda soluções práticas efetivas, tendo em conta as peculiares dificuldades de cada um de seus componentes reais: sujeitos, instituições, contexto etc. O cidadão é enfocado como um consumidor de justiça, devendo os instrumentos serem multiplicados e adaptados para efetiva maior oportunização do acesso à justiça. Por isso, com as ADR, o fenômeno da pacificação das controvérsias ganha novas perspectivas funcional, teleológica e instrumental.

2.3. Redimensionamento do conceito de jurisdição e jurisdicionalidade da arbitragem

As transformações provocadas na concepção de jurisdição ante a implantação do Estado Democrático de Direito foram profundas, conforme ressaltado no subcapítulo 2.1. Além de fincar a supremacia da Constituição Federal na hierarquia das leis, estabeleceu que a legislação deve moldar-se e ser interpretada conforme as regras e princípios dessa norma superior. Assim, o positivismo acrítico de outrora deu lugar ao positivismo crítico.

Na evolução desse modelo de Estado, percebeu-se que a legalidade pura ou meramente formal não atendia aos anseios de efetivação do núcleo da Constituição, qual seja, os direitos e garantias fundamentais. Logo, a substância da norma – interpretada conforme a Constituição – importaria mais que o simples expediente de subsunção do fato à norma. A lição de Marinoni (2011, p. 3) aclara essa transformação:

A assunção do Estado constitucional deu novo conteúdo ao princípio da legalidade. Esse princípio agregou o qualificativo “substancial” para evidenciar que exige a conformação da lei com a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais. Não se pense, porém, que o princípio da legalidade simplesmente sofreu um desenvolvimento, trocando a lei pelas normas constitucionais, ou expressa uma mera “continuação” do princípio da legalidade formal, característico do Estado legislativo. Na verdade, o princípio da legalidade substancial significa uma “transformação” que afeta as próprias concepções de direito e de jurisdição e, assim, representa uma quebra de paradigma.

Destarte, incontestável que, no estágio atual do Estado Democrático de Direito, o acesso à Justiça e a tutela jurisdicional efetivos foram alçados à categoria de direitos fundamentais. A materialização desses direitos se dá através do processo, que, ao revés dos Estados pseudodemocráticos, resguarda as garantias máximas do devido processo legal na dimensão substancial (v.g.: contraditório, proporcionalidade, imparcialidade, isonomia etc.).

Nessa ordem, verifica-se que: (i) a jurisdição só pode se dar via processo; (ii) a função jurisdicional está subordinada às garantias constitucionais do processo; (iii) o Estado tem o dever de entregar Justiça efetiva – independentemente do meio disponibilizado – desde que não fira os direitos e garantias fundamentais.

O rol de constatações acima alicerça a necessidade de redimensionar o conceito de jurisdição. Em que pese o Estado ter a responsabilidade de prover uma ordem jurídica justa, isso não significa que a prestação jurisdicional é monopólio do Poder Judiciário. A jurisdição moderna deve ser entendida a partir do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, donde se extrai a legalidade e legitimidade de “criação de um sistema multiportas de solução de controvérsias, que dê à população opções válidas para a resolução de seus multifacetados litígios” (CARMONA, 2011, p. 2).

Em consonância com os argumentos supra, Ranzolin (2011, p. 63-64) explana que:

[…] o direito ao processo e à jurisdição passou a compor categoria atinente aos direitos fundamentais constitucionais. A garantia dos cidadãos de obterem um efetivo processo justo se coloca como elemento-chave de todo o sistema de prerrogativas da cidadania. Com tal elevação do significado de justiça e da própria jurisdição no sistema jurídico, sua conceituação atual não pode mais estar dissociada dessas estruturas jurídicas fundamentais de proteção do indivíduo. Tal importa, como referido, uma nova concepção do próprio Direito, sobrepujando a percepção meramente formal da lei – historicamente inoperante para remediar o arbítrio.

Pontua-se, então, que a concepção de jurisdição no sistema jurídico atual é calcada, basicamente, no caráter finalístico da função de prestar justiça de forma equidistante e imparcial em relação às partes. Nesse passo, nota-se que “justiça efetiva” e “jurisdição” não são termos coincidentes de significação, constituindo, o primeiro, dever privativo do Estado e significando, o segundo, poder ou atividade –estatal ou particular decorrente de outorga legal – necessário para o atingimento de tal dever.

Ademais, cumpre complementar que a tutela jurisdicional deve ser prestada na esteira das garantias do processo, isto é, a jurisdição só pode se dar mediante processo informado pelos princípios do devido processo legal, contraditório, ampla defesa, imparcialidade, igualdade das partes e livre convencimento. A partir dessa assertiva visualiza-se que o processo estatal é um processo garantista por natureza, entretanto essa qualidade não lhe é exclusiva, podendo apresentar-se também noutros processos, tais como o arbitral.

Traçadas as amplitudes do conceito de jurisdição e do processo garantista ante a realidade posta, resta patente a jurisdicionalidade da arbitragem. A Lei nº 9.307/96 amarrou a arbitragem a um processo garantista (art. 21, § 2º) e concedeu ao seu ato final – decisório – revestimento de coisa julgada. Assim, o legislador, cristalizando os direitos fundamentais de acesso à Justiça e tutela jurisdicional efetivos, determinou ser jurisdicional a arbitragem. A exposição de Alvim (2000, p. 87-89) racionaliza a questão:

Para quebrar de vez a resistência ortodoxa, optou o legislador por uma postura mais agressiva, dizendo com todas as letras, no art. 18 da Lei de Arbitragem, que ‘o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário’ […] Prescreveu também o art. 31 da nova Lei de Arbitragem que ‘a sentença arbitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo’. […] a amplitude do que significa a arbitragem ser jurisdicional radicaria no fato de que ela não pode ser considerada um simples equivalente jurisdicional, porquanto não proporciona um resultado equivalente à sentença, mas uma verdadeira e própria sentença, em tudo e por tudo idêntica, em valor jurídico e eficácia, à que se obtém através da jurisdição estatal.

A jurisdicionalidade em tela também fica nítida quando da instituição da arbitragem, pois, nesse momento, evidencia-se o acionamento de uma função, uma atividade e um poder que não diferem daqueles entregues aos magistrados. Nesse sentido, veja-se:

[…] a função é de pacificar o conflito entre os contendentes; a atividade é tipicamente processual, utilizando-se o árbitro de um encadeamento de atos que pode ser diferente daquele empregado pelo juiz estatal, mas cumpre o mesmo objetivo; e o poder é o de decidir imperativamente, impondo às partes sua decisão (CARMONA, 2011, p. 8).

Vale lembrar que a jurisdicionalidade da arbitragem possibilita ao instituto integrar o sistema de prestação de Justiça efetiva, todavia isso não a torna absoluta. Os atos emanados do juízo arbitral que violarem os direitos fundamentais e as normas legais poderão ser invalidados pelo Estado (provedor dessa ordem jurídica justa), via Poder Judiciário. O controle de legalidade do processo e/ou da sentença arbitral encontra-se disposto no art. 33 da Lei nº 9.307/96.

Para concluir este subcapítulo, imperioso transcrever trecho da obra de Ayoub (2005, p. 36), onde há interessante entrelaçamento do atual viés da jurisdição e da jurisdicionalidade da arbitragem:

O segundo ato mostra o Estado preponderante, em sua vontade única, a fim de distribuir a luz social entre a sociedade. Ao conceber ao particular autonomia para instituir a forma de se obter a Justiça, de fazer valer seu Direito, efetivamente e sem delongas, o Estado não se isenta da responsabilidade que lhe é peculiar e primordial. Pelo contrário, ele proporciona diferentes oportunidades de promover a Justiça, respeitando os princípios e garantias fundamentais de um Estado Democrático de Direito, concebendo aos imediatos interessados, aos sujeitos polares da demanda a possibilidade de escolher entre o Tribunal Judicial tradicional e o juízo arbitral, prevalecendo o Princípio da Autonomia da Vontade.

2.4. Constitucionalidade da arbitragem

A Lei nº 9.307/96 potencializou a efetividade do juízo arbitral. O cerne desse incremento afigura-se no revestimento de coisa julgada dado à sentença arbitral contemporânea. Esse decisum dispensa a homologação do Poder Judiciário, produzindo, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença estatal.

Essa quebra de paradigma reacendeu acirrada discussão doutrinária sobre a constitucionalidade da arbitragem. Para alguns, o instituto em foco é inconstitucional, pois viola o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal – “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O art. 5º, inciso XXXV, consagra o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário e, sob a ótica dos defensores da inconstitucionalidade da arbitragem, esse regramento certifica o monopólio da prestação jurisdicional pelo Estado. Nesse passo, interpretam que qualquer conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida deve ser solvido obrigatoriamente pela jurisdição estatal. E complementam que a arbitragem atenta contra o irrenunciável direito de ação (pretensão processual) conferido às partes. Então, para essa corrente, a Lei nº 9.307/96 obstrui o acesso ao Judiciário, logo padece de manifesta inconstitucionalidade.

Aqueles que sustentam a constitucionalidade da arbitragem asseveram que o texto constitucional garante – e não obriga – o acesso ao Poder Judiciário. O princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário não traduz monopólio da jurisdição pelo Estado.

O princípio em questão deve ser interpretado conforme a história política nacional; daí exsurge sua verdadeira dimensão. A primeira vez que surgiu de forma expressa foi na Carta Política de 1946 (art. 141, § 4º), tendo sido repetido nas de 1967 (art. 150, § 4º), 1969 (art. 153, § 4º) e 1988 (art. 5º, inciso XXXV), e teve como fundamento a extirpação das denegações de justiça promovidas pelas ditaduras varguista e militar. Nesse sentido, anota-se:

O aludido princípio constitucional não teve o intuito de se referir à arbitragem ou a qualquer outro meio de composição extrajudicial, mas sim, o de se declarar o repúdio da sociedade a abusos cometidos durante a ditadura varguista. O dispositivo em questão teve por finalidade acabar com comissões e conselhos extraconstitucionais, responsáveis por inquéritos policiais e parlamentares, que eram levados de forma sumária, excluindo o reexame da questão pelo Poder Judiciário, sem a observação de princípios constitucionais como o do contraditório e da tutela jurisdicional (VALÉRIO, 2004, p. 103-104).

Dessa maneira, o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário foi cunhado como uma garantia/proteção do cidadão contra eventual abuso do legislador ou do Poder Executivo que impusesse coativamente o afastamento do devido processo legal e do controle jurisdicional. Vem de encontro a essa assertiva CARMONA (2007, p. 313) ao pontuar que “a norma inserida na Constituição Federal (art. 5º, inc. XXXV) encarta uma proibição dirigida ao legislador, e não àqueles que precisam resolver um litígio”.

Em decorrência do exposto, tem-se que tal princípio seria mais bem compreendido como “princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional”.

Na medida em que a arbitragem não exclui o Poder Judiciário – seja porque é uma opção e não via obrigatória de solução de controvérsias, seja porque seu processo e sentença não estão imunes ao controle de legalidade da jurisdição estatal – não há que se falar em inconstitucionalidade.

Ademais, o instituto em apreço possui amplitude limitada, já que só pode ser utilizado por pessoas maiores e capazes para dirimir litígios voltados a direitos patrimoniais disponíveis. Isso também é traço marcante de sua constitucionalidade, pois consagra o princípio da autonomia da vontade, além de salvaguardar os direitos da personalidade (v.g.: vida, liberdade, igualdade, segurança etc.).

Ressalta-se ainda que a convenção de arbitragem não constitui disposição acerca da pretensão processual. Nessa direção, Valério (2004, p. 106) ensina:

[…] com a celebração da convenção de arbitragem, as partes optam pela jurisdição privada, não significando renúncia ao direito de ação, mas um livre ajuste na forma pela qual se comprometem a compor sua lide, ademais, se o titular de um direito disponível pode renunciá-lo, então, por dedução lógica, pode escolher a forma de solucionar controvérsia em torno desse mesmo direito.

O debate sobre a (in)constitucionalidade do instituto da arbitragem foi sepultado em 12 de dezembro de 2001. Nessa data houve o histórico julgamento do Agravo Regimental em Sentença Estrangeira – SE nº 5206, onde o Pleno do Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, declarou constitucional a Lei nº 9.307/96. Segue o teor do acórdão:

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por unanimidade de votos, em prover o agravo para homologar a sentença arbitral, e por maioria, declarar constitucional a Lei nº 9.307, de 23.09.96, vencidos, em parte, os Senhores Ministros Sepúlveda Pertence, Sydney Sanches, Néri da Silveira e Moreira Alves, que declaravam a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 6º; do artigo 7º e seus parágrafos; no artigo 41, das novas redações atribuídas ao artigo 267, inciso VII, e ao artigo 301, inciso IX, do Código de Processo Civil; e do artigo 42, todos do referido diploma legal.

Posto isso, “não resta dúvida sobre a validade e eficácia plena de todos os dispositivos da Lei nº 9.307/96, sendo insustentável tese em contrário” (GAJARDONI, 2006, p. 53).


3. A CRISE DE EFETIVIDADE DO PODER JUDICIÁRIO

Incontroverso que a pacificação social é um dos escopos magnos do Estado Democrático de Direito. Para a consecução desse objetivo, o Poder Público garantiu aos cidadãos o acesso ao Judiciário. A interpretação do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional dispensada pelo Estado junto à população enraizou a ideia de exclusividade da jurisdição estatal para a solução de controvérsias. Nessa ordem, desenvolveu-se um procedimento formal – arrimado especialmente nos princípios do devido processo legal, contraditório e ampla defesa – para fazer atuar a jurisdição. O procedimento informado por tais princípios foi nomeado de processo jurisdicional ou, simplesmente, processo. Assim, pode-se dizer que o processo é o instrumento da jurisdição.

A fim de garantir uma ordem jurídica com distribuição igualitária das liberdades civis e políticas (direitos fundamentais), a doutrina, jurisprudência e legislador pátrio aderiram ao movimento universal de acesso à Justiça. Esse movimento, encabeçado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth e esmiuçado no subcapítulo 2.2., foi denominado de “Ondas renovatórias de acesso à Justiça”. As duas primeiras ondas das três que formam essa ideologia já foram incorporadas ao nosso ordenamento jurídico, contudo a terceira ainda rateia. Nesse sentido, aclara-se:

O direito pátrio, após ter alcançado, ao menos formalmente, os objetivos da primeira destas ondas renovatórias, qual seja, a garantia de assistência judiciária gratuita; e após ter se tornado o mais rico ordenamento jurídico no atendimento da segunda onda renovatória, consistente na tutela dos interesses metaindividuais, através de institutos como a ação popular, a ação civil pública e a ação coletiva para tutela dos consumidores, volta agora seus olhos para a terceira onda renovatória, que consiste na fase atual de preocupação dos modernos processualistas. Consiste esta terceira onda renovatória do Direito Processual no chamado “novo enfoque do acesso à Justiça”, através do qual se buscam meios mais adequados de tutela dos consumidores do serviço de prestação de justiça (CÂMARA, 2009, p. 1-2).

Com subsídio na transcrição acima, verifica-se que a implementação da primeira e segunda ondas renovatórias no sistema jurídico equiparou a prestação jurisdicional a uma prestação de serviço qualquer. Dessa maneira, pelo substancial encurtamento da distância entre o jurisdicionado e a porta de acesso à Justiça, todo cidadão foi alçado à categoria de potencial consumidor da jurisdição estatal.

A facilitação do acesso formal dos cidadãos à Justiça e a cultura do monopólio estatal de solução de conflitos redundaram, como era de se esperar, numa enxurrada de ações judiciais, ocasionando a estagnação do Poder Judiciário. Vale lembrar que a proliferação de demandas foi e é potencializada pela cultura do litígio criada no Brasil. Ocorrendo choque de interesses entre pessoas, pensa-se logo em dirimi-lo através do aparelho estatal, sem ao menos tentar-se um acordo prévio. Essa cultura assoberba a Justiça, gerando gastos públicos inúteis.

Destarte, a falta de infraestrutura ou de um plano estratégico dimensionado para o aumento exponencial do número de feitos, as formalidades do processo e a insuficiência de servidores e juízes são algumas das razões da crise de entrega da tutela jurisdicional. O pior produto dessas mazelas é a morosidade processual, “amplamente divulgada pelos meios de comunicação, demonstrando as dificuldades enfrentadas pelos cidadãos na busca da solução de seus conflitos por meio da tutela jurisdicional” (PETROCELLI, 2006, p. 50).

Para ilustrar a crise de efetividade do Poder Judiciário, Jorge Mussi, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, relatou que atualmente tramitam no Brasil oitenta e seis milhões de processos judiciais, volume impossível para o contingente de quinze mil juízes. Ante esses dados, ponderou que a sociedade está perdendo a paciência com o Judiciário, sendo imprescindível a união de advogados e magistrados para estimular a mudança da cultura do litígio e buscar a conciliação (2012).

No que tange ao formalismo processual – também causador de lentidão judicial – o legislador tem buscado uma redução ao mínimo indispensável das formas processuais. Porém, nem mesmo esse empenho legislativo, comentado no subcapítulo 2.2., conseguiu equilibrar a proporção entre o número de ações distribuídas e o número de processos extintos.

Com efeito, Petrocelli (2006, p. 42), ao comentar sobre a crise de efetividade da tutela jurisdicional do Estado, não deixa dúvida que:

A morosidade do Judiciário é hoje uma triste realidade, e deixa a sociedade à mercê de uma Justiça lenta e inadequada, que retarda sobremaneira o efetivo atendimento da prestação jurisdicional buscada, estimulando a injustiça, e a consequente descrença do Poder Judiciário.

Compilando o exposto, resta patente que o Estado garantiu apenas o acesso formal à Justiça ao jurisdicionado, o que é inócuo, porque o cidadão busca muito mais que a simples dedução de sua pretensão em juízo; objetiva uma solução efetiva da controvérsia, isto é, uma prestação jurisdicional que certifique, proteja (quando necessário) e, sobretudo, efetive/realize seus direitos. Esse é o “novo enfoque do acesso à Justiça” propugnado pela terceira onda renovatória de acesso à Justiça de Cappelletti e Garth. Em suma, é o acesso efetivo à ordem jurídica justa cristalizador da verdadeira justiça social.

Portanto, o Poder Judiciário – bastante congestionado, inclusive pelo próprio sucesso das duas primeiras ondas renovatórias retromencionadas – afigura-se como via não suficientemente abrangente para resolução e inibição de litígios, donde exsurgem vigorosos o instituto da arbitragem e outros meios alternativos de solução de controvérsias.


4. A EFETIVIDADE DA JURISDIÇÃO ARBITRAL

Nunca é demais lembrar que somente pessoas capazes poderão se valer da arbitragem para dirimir litígios referentes a direitos patrimoniais disponíveis. Esse é o campo de atuação do instituto, o qual possui significantes vantagens em relação ao Poder Judiciário para solucionar controvérsias que envolvam essa categoria de direitos. As proclamadas vantagens – que serão apresentadas na sequência – evidenciam a efetividade da jurisdição arbitral.

A arbitragem possibilita um incremento de qualidade da decisão final, visto que permite a escolha pelas partes de árbitros especializados na questão controvertida entre elas, o que, por certo, impactará positivamente na aceitação social do decisum. Corrobora esse pensamento Ranzolin (2011, p. 12) ao dispor:

A eleição de árbitros especialistas em seus campos de conhecimento possibilita julgamentos mais céleres, precisos e afinados à realidade e expectativa dos litigantes. Sem dúvida, a miríade de diversificação da vida social é impossível de ser totalmente abarcada por um magistrado de carreira – mesmo jurisconsultos experientes, com vidas inteiras de estudo, se julgam incapazes de opinar sobre áreas a que não se dedicaram.

Na esfera judicial, quando a pretensão deduzida em juízo envolve matéria técnica, há uma série de inconvenientes, a saber: (i) o magistrado, quase sempre, fica refém da opinião do experto; (ii) os peritos demandam tempo demasiado para elaborar o laudo; (iii) o procedimento para produção da prova pericial (art. 420 e seguintes do Código de Processo Civil) pode gerar novos conflitos (agora de ordem processual) entre as partes.

O juízo arbitral tende a evitar esses inconvenientes. Nele, os requerimentos de prova pericial nem sempre se justificam, pois pode ser feita pela tomada de depoimento de “testemunha técnica”. Sobre a prova pericial em sede arbitral e a testemunha técnica, esclarece-se:

[…] a virtude do depoimento da testemunha técnica está no fato de poder ser interrogada por ambas as partes, assistidas por seus técnicos e pelos árbitros, permitindo-lhes atestar-lhes a credibilidade e a pertinência de suas conclusões e afirmativas nos depoimentos que prestam. Não raro no processo arbitral a prova pericial é feita em audiência, com o depoimento de técnicos que participaram do objeto da controvérsia e, portanto, afeitos às peculiaridades do caso (MAGALHÃES, 2006, p. 65).

O sistema delineado na transcrição supra é melhor que o da simples prova pericial, onde o perito, estranho às características da matéria em debate, confecciona o laudo, juntando-o ao processo sem se submeter aos questionamentos e esclarecimentos em audiência. O comparecimento obrigatório do perito em audiência, para responder a esclarecimentos solicitados pelas partes (devidamente assistidas por seus técnicos), proporcionará uma atuação com maior cuidado e responsabilidade em suas análises e conclusões. “Permite, também, ao julgador, examinar-lhe a credibilidade e segurança nas conclusões a que chegou” (MAGALHÃES, 2006, p. 65).

Outra vantagem da arbitragem está no fato de não se poder desconsiderar que o conformismo diante de uma decisão proferida por alguém escolhido pelos próprios contendores tende a ser maior, tornando o litígio menos tenso e menos propício à multiplicação dos confrontos.

A arbitragem possibilita a construção de uma estrutura própria para o julgamento individualizado do conflito. Esse tratamento especial na apreciação da lide provoca o conformismo, sobretudo porque os árbitros, ao revés dos juízes, não possuem centenas de casos da mais variada ordem para decidir. Isso lhes permite o exame aprofundado da controvérsia, além do que lhes é facultada a possibilidade de discutir amplamente o caso em reuniões periódicas ou por meio eletrônico.

Na esteira desse tratamento especial, imperativo ressaltar que a arbitrarem promove a desburocratização do julgamento do conflito, porquanto são as partes que estabelecem as normas do procedimento para dirimir a controvérsia.

Não se pode olvidar que o processo arbitral encontra-se estruturado dentro dos princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento (processo garantístico), entretanto isso não quer dizer que a arbitragem foi engessada pelas regras do Código de Processo Civil.

O processo judicial é público e genérico, regulado por normas que tentam abarcar os mais diferentes tipos de litígios; o processo arbitral é privado e específico, sendo que suas normas procedimentais são redigidas para aquela questão e não para outras em tese. Daí por que os pressupostos daquele não são aplicáveis a este.

A flexibilidade do processo arbitral propicia às partes liberdade para escolher a forma e o encadeamento dos atos processuais, que serão adaptados ao direito material que precisam discutir. Nesse norte, diversos institutos e/ou regras incidentes no processo judicial poderão ser abandonados sem qualquer arrependimento, como, por exemplo, a forma dos atos processuais não precisa ser a do Código de Processo Civil e a ordem de produção das provas não precisa ser aquela estipulada na lei do processo. Nesse sentido, Carmona (2011, p. 9) pronunciou:

Nada impede que as partes escolham um procedimento completamente apartado dos parâmetros do Código de Processo Civil. É comum, por exemplo, que alguns órgãos arbitrais nacionais utilizem o sistema de apresentação ao mesmo tempo, pelas partes, de suas alegações iniciais, permitindo-se-lhes, depois, resposta também a ser apresentada no mesmo momento. Como conseqüência, abandona-se ao mesmo tempo o sistema seqüenciado previsto no Código (petição inicial, resposta, réplica, tréplica) e também a necessidade de apresentação de reconvenção (as duas partes formulam seus pedidos nas alegações iniciais). A preocupação com a forma da “petição inicial” é mínima (nesta fórmula procedimental o procedimento é dúplice, não há “autor” ou “réu”) e não é raro encontrar regulamentos arbitrais (quando a arbitragem for administrada) que não preveja regras rígidas sobre a estabilização da demanda, permitindo (ainda que com temperamentos) formulação de pedidos novos mesmo depois de apresentadas as alegações das partes.

[…]

Quanto à ordem de produção das provas, por fim, podem as partes (ou os árbitros, quando for o caso) estabelecer uma fórmula que nada tenha a ver com o Código de Processo Civil. Eventualmente será mais interessante produzir toda a prova oral para, só após, cogitar da produção de prova pericial; pode ser conveniente ouvir testemunhas técnicas ao invés de nomear peritos; pode ser interessante permitir que as partes tragam depoimentos escritos das testemunhas que pretendem ouvir, limitando eventual inquirição àquilo que declararam; as partes podem estabelecer um sistema de “chess clock” para a inquirição de testemunhas, concedendo-se a cada uma delas um determinado número de horas para ouvir quantas testemunhas quiser. As possibilidades são infinitas, e exatamente nesta possibilidade de criar e aplicar técnicas de acordo com a necessidade do caso concreto faz da arbitragem um método extraordinariamente eficaz de solução de controvérsias.

Em decorrência da flexibilidade do processo arbitral surge outra virtude do instituto, qual seja, a celeridade. A montagem de um procedimento específico para solucionar determinada controvérsia foca o debate sobre o mérito do caso e não sobre as secundárias questões processuais, que, na maioria das vezes, são a causa do emperramento da jurisdição estatal. Noutras palavras, no processo judicial as questões processuais tendem a tomar tempo e atenção em detrimento do mérito. Já no processo arbitral, pelo fato deste não prever recursos interlocutórios, sua marcha é conduzida normalmente sem maiores incidentes, que devem ser decididos pelos árbitros com observância dos princípios basilares que o informam. Em sintonia com o asseverado a doutrina de Magalhães (2006, p. 65) é objetiva:

A experiência desses dez anos de vigência da lei que regula a arbitragem confirma a rapidez e a pertinência das decisões, como podem atestar as instituições de arbitragem nas quais tem-se processado grande parte das arbitragens de maior complexidade. Mesmo em casos que requerem extensa fase instrutória, a duração média pode ser estimada em torno de um ano. Se se considerar nesse lapso de tempo o período que medeia entre a assinatura do termo de arbitragem, seguindo-se o prazo para as alegações das partes e respectivas respostas, a audiência para a tomada de depoimento pessoal e de testemunhas, e o da prolação do laudo, conclui-se pela celeridade do processo. Se a matéria não requer dilação probatória, a decisão pode ser dada em dois ou três meses, como acontece nas arbitragens no sistema de solução de controvérsias do Mercosul, em que as decisões têm sido tomadas nesse curto espaço de tempo.

Noutro giro, salienta-se que a arbitragem e demais meios alternativos de solução de controvérsias (v.g.: negociação, mediação, conciliação etc.) não surgiram para desafogar o Poder Judiciário – submerso na enxurrada de ações que lhe são distribuídas diariamente – mas para efetivar o direito do jurisdicionado de acesso a uma ordem jurídica justa. Nenhum desses métodos alternativos é melhor ou pior do que o disponibilizado pelo Estado para a solução de lides. Todos eles concorrem para o melhor desempenho da jurisdição. Todavia, não se pode negar que o crescente aumento do uso da arbitragem reflete indiretamente no juízo estatal, seja aliviando-o ou desobstruindo-o ainda que minimamente. Nessa perspectiva, segue matéria veiculada em 25 de abril de 2010 no Jornal O Estado de S. Paulo:

Por causa da morosidade do Poder Judiciário, a prática da arbitragem continua crescendo no País. O valor das pendências decididas por esse método de resolução de conflitos, em que as partes decidem não ir aos tribunais, passou de R$ 594,2 milhões, em 2007, para R$ 867 milhões, em 2008, e para R$ 2,4 bilhões, no ano passado. A informação é do site Consultor Jurídico, com base em pesquisa feita pela professora Selma Ferreira Lemes, do curso de arbitragem do GVlaw, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em São Paulo.

A apresentação desse rol de virtudes da arbitragem consagra sua efetividade, enquanto ferramenta proporcionadora de pacificação social. Conforme dito alhures, o grau de desenvolvimento da sociedade contemporânea clama por um sistema multiportas de solução de conflitos, que dê à população opções válidas para a resolução de seus multifacetados litígios. No Brasil, a instalação desse sistema multiportas ganhou melhores contornos com a publicação da Resolução nº 125, de 29 de novembro de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, a qual dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses.

Especificamente, a citada resolução enuncia sobre a ampliação do acesso à Justiça e da pacificação do conflito por meio dos mecanismos consensuais, considerando que a mediação e a conciliação são instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios.

Destarte, há um tencionamento político no sentido de integrar e operacionalizar a terceira onda renovatória de acesso à Justiça no ordenamento jurídico interno.

Por derradeiro, a efetividade da jurisdição arbitral atinge sua plenitude ante a possibilidade de controle de legalidade de seus atos pelo Poder Judiciário. Essa oportunidade de controle constitui direito indisponível e irrenunciável do cidadão – cláusula pétrea estampada no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal – substrato do Estado Democrático de Direito. Os ensinamentos de Ranzolin (2011, p. 13-14) complementam o quanto sustentado:

[…] a contratação da arbitragem e os decorrentes processo e julgamento arbitrais são estatalmente disciplinados, em detalhes, de modo a estabelecer convivência harmoniosa com o processo judicial, como institutos de um único sistema jurídico apto a atender as diversas demandas dos cidadãos por justiça.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arbitragem moderna – conforme regramento da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 – demonstrou a intenção do legislador brasileiro no sentido de integrar nosso sistema jurídico à terceira onda renovatória de acesso à Justiça.

A compreensão dessa ideologia de acesso à ordem jurídica justa perpassa pela nova amplitude do conceito de jurisdição frente ao engrandecimento das relações humanas oriundo do fenômeno da globalização.

O presente trabalho buscou a confirmação da efetividade da jurisdição arbitral através do estudo da jurisdição. Para tanto, discorreu sobre a evolução da jurisdição (saindo do positivismo acrítico para o crítico), mas, sobretudo, focou na terceira onda renovatória de acesso à Justiça que propugnou um redimensionamento do conceito de jurisdição compatível com os valores do Estado Democrático de Direito. Assim, a realização do direito do cidadão de efetivo acesso à Justiça determinou a superação da doutrina que defendia o monopólio da prestação jurisdicional pelo Estado. No mais, o crescente interesse popular na administração da justiça revela o escopo político da jurisdição e isso potencializa a tendência universal de ampliação de seu conceito (da jurisdição).

Essa mudança de paradigma projetou o movimento internacional em prol das denominadas Alternative Dispute Resolution, dentre as quais se destaca o instituto da arbitragem, e este, nos termos da Lei nº 9.307/96, embora tenha origem contratual, desenvolve-se com as garantias processuais básicas e finda com ato que tende a assumir a mesma função da sentença judicial; daí a sua jurisdicionalidade.

A consolidação da arbitragem como efetiva via institucional a mais dispensada aos cidadãos para obtenção de justiça adveio de decisão proferida em 12 de dezembro de 2001 pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal. No julgamento do Agravo Regimental em Sentença Estrangeira – SE nº 5206, o Excelso Tribunal declarou a constitucionalidade da Lei nº 9.307/96. A partir dessa decisão foram rompidos os preconceitos e ortodoxismos incompatíveis com o ideal de efetivação de uma ordem jurídica justa.

Com efeito, o correto entendimento da efetividade da jurisdição arbitral passa pela noção de que esse meio alternativo de solução de controvérsias não pretende suprimir a Justiça administrada pelo Estado. O que se almeja é a disponibilização de um canal melhor preparado para resolução de determinadas lides que envolvam direitos patrimoniais disponíveis. Noutras palavras, objetiva-se uma justiça confiável, rápida, econômica e ajustada às mudanças sociais e tecnológicas em curso. Portanto, através dessa estrutura, possibilita-se ao jurisdicionado optar pelo método mais afinado ao desembaraço de sua lide – facultando-lhe a justiça tradicional ou algum outro mecanismo adequado chancelado pelo Poder Público.

Conforme discorrido ao logo deste trabalho, as virtudes da arbitragem comprovam sua efetividade. O instituto preserva o princípio da duração razoável do processo: a uma, porque seu processo é bastante flexível, distanciando-se do formalismo excessivo do processo estatal; a duas, pois os árbitros possuem know how específico para julgar a controvérsia, produzindo soluções com técnica apurada e consequente satisfação das partes em litígio.

Por conseguinte, não resta dúvida que a arbitragem e demais modalidades de Alternative Dispute Resolution ensejam formas mais coexistenciais no estabelecimento da paz social, visto que exigem que as partes se envolvam responsavelmente na construção da solução da lide, além do que viabilizam maior celeridade e precisão na superação de determinados conflitos, auxiliando no desafogo do Poder Judiciário.

De mais a mais, conclui-se que, apesar do gradativo crescimento na utilização da arbitragem no cenário nacional, há uma questão que ainda atravanca sua plena decolagem/efetividade, qual seja, a cultura do enfrentamento ou litígio judicial arraigada em nossa população. O vencimento desse entrave é o mais árduo possível, porque a barreira cultural não cai de plano. Ela deve ser enfraquecida dia a dia até sucumbir por completo.

A divulgação dos propósitos e especificidades dos meios alternativos de solução de controvérsias (v.g.: negociação, mediação, conciliação, arbitragem etc.) junto à população é dever dos operadores do Direito. Nessa esteira, as faculdades de Direito tem papel primordial, porquanto formarão indivíduos conscientes da cultura arbitral e estes, por sua vez, polinizarão a sociedade com tais ideais. Tudo em prol da pacificação social efetiva que é o escopo maior da jurisdição.


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Autor

  • Alan Monteiro Gaspar

    Analista do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Especialista em Direito Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2014/2015). Especialista em Direito Processual Civil: Universidade Anhanguera – Uniderp (2011/2012). Especialista em Direito Processual: grandes transformações: Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL (2008/2009). Bacharel em Direito: Centro Universitário de Sete Lagoas – UNIFEMM (1998/2002).

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GASPAR, Alan Monteiro. A efetividade da jurisdição arbitral. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3933, 8 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27531. Acesso em: 28 mar. 2024.