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Marco Civil da internet: avanços e retrocessos

Marco Civil da internet: avanços e retrocessos

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Comentários sobre a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014.

Destaco abaixo alguns aspectos interessantes acerca da Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Comentei um a um os artigos reproduzidos.

"Art. 7o O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:

XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet."

Antes da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, a discussão sobre a aplicação do CDC aos contratos de prestação de serviços para acesso à internet era possível. Agora não é mais.

O CDC assegura ao consumidor o direito de prova invertida. Em razão disto, nos futuros processos envolvendo internautas e provedores a empresa terá sempre que fazer a prova da regularidade da prestação de serviços, arcando com o custo das perícias técnicas que forem necessárias.

"Art. 8o  A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.

Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que:

I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet; ou

II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil."

Este dispositivo se aplica especialmente ao Google e Facebook, empresas que estavam fornecendo dados dos usuários a NSA. Caso elas continuem a fazer isto sob alegação de que são obrigadas a cumprir a legislação norte-americana ambas poderão ser processadas no Brasil segundo a lei brasileira. Não há conflito de normas, pois no Brasil apenas a Lei brasileira deve ser aplicada e as empresas que operam aqui têm obrigação de respeitá-la.

"Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação."

A norma acima transcrita enterrou o sonho que alguns portais, provedores de internet e empresas que utilizam a rede mundial de computadores de maneira intensiva (como os Bancos, por exemplo) tinham de lotear e colonizar a internet de maneira a tornar o fluxo das atividades lucrativas mais rápidas e o das atividades não lucrativas mais lentas. A distinção na velocidade do fluxo de informação segundo interesses mercadológicos não é possível. A violação desta norma pode levar à responsabilização do infrator, inclusive por danos morais.

"Art. 10.  A guarda e a disponibilização dos registros de conexão e de acesso a aplicações de internet de que trata esta Lei, bem como de dados pessoais e do conteúdo de comunicações privadas, devem atender à preservação da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das partes direta ou indiretamente envolvidas.

§ 2o O conteúdo das comunicações privadas somente poderá ser disponibilizado mediante ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer, respeitado o disposto nos incisos II e III do art. 7o."

Este dispositivo tem por finalidade bloquear o acesso indiscriminado às informações dos cidadãos brasileiros. Qualquer órgão que infrinja esta norma estará violando a Lei (NSA, SNI, serviços secretos das Forças Armadas, inteligência das PMS e Polícia Federal). Caso o provedor ou website “colabore” voluntariamente com um destes órgãos fornecendo informações consideradas sigilosas pode ser responsabilizado civilmente.

"Art. 12.  Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa:

I - advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas;

II - multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção;

III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou

IV - proibição de exercício  das  atividades  que  envolvam os atos previstos no art. 11.

Parágrafo único.  Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento situado no País."

Antes do advento da nova Lei, não havia previsão de punições administrativas para empresas que realizam coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet. Agora há. O Estado passou ter instrumentos para coibir os abusos. Isto é bom, mas há sempre a possibilidade de ocorrerem distorções que estamos acostumados a ver administração pública municipal, estadual e federal (como favorecimentos ou perseguições de empresas por razões políticas, cobrança de propinas para não imposição de sanções administrativas, etc...).

"Art. 15.  O provedor de aplicações de internet constituído na forma de pessoa jurídica e que exerça essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos deverá manter os respectivos registros de acesso a aplicações de internet, sob sigilo, em ambiente controlado e de segurança, pelo prazo de 6 (seis) meses, nos termos do regulamento.

§2o A autoridade policial ou administrativa ou o Ministério Público poderão requerer cautelarmente a qualquer provedor de aplicações de internet que os registros de acesso a aplicações de internet sejam guardados, inclusive por prazo superior ao previsto no caput, observado o disposto nos §§ 3o e 4o do art. 13."

Com razão este tem sido o artigo mais criticado da nova Lei. O § 2o , do art. 15, da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014  não estabelece qualquer limite de prazo para a guarda de informações sensíveis dos cidadãos que usam a internet, de maneira que a critério da autoridade policial, administrativa ou do Ministério Público os registros de acesso a aplicações de internet podem ser guardadas por prazo indeterminado. Isto é preocupante, pois a história administrativa do Brasil é cheia de exemplos lastimáveis. Refiro-me aqui especificamente à cultura do segredo e ao desejo de controle total que permearam e ainda caracterizam o funcionamento do Estado brasileiro.

Na década de 1950 o DOPS mantinha fichas de quase todos os cidadãos paulistas. Há documentos da Guerra do Paraguai, que são mantidos em sigilo até os dias de hoje. As autoridades relutam em divulgar documentos da Ditadura de 1964/1988. Recentemente a PM de São Paulo revelou num documento oficial que pretende manter sigilosos por mais de uma década os relatórios referentes à quantidade de material bélico não legal gasto durante a repressão às manifestações de 2013. Num país como o nosso é de se suspeitar de que o §2o , do art. 15, da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014  possa ser usado contra os interesses dos cidadãos.

"Art. 18.  O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.

Art. 19.  Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário."

Este artigo representa um evidente retrocesso. Antes da edição da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014  os provedores poderiam ser responsabilizados por conteúdo gerado por terceiros sempre que se recusassem a retirar de circulação material ofensivo a pedido do ofendido. A nova regra obriga o ofendido a primeiro recorrer ao Judiciário e só permite a responsabilização do provedor em caso de descumprimento de ordem judicial.

O Judiciário brasileiro é exageradamente lento e certamente não terá condições de imediatamente atender às demandas dos cidadãos num tempo razoável. Em razão disto, os provedores e websites (que lucram em razão das visitas às páginas associadas a propagandas, inclusive produzidas por usuários gratuitos de redes sociais ou instrumentos de busca/pesquisaon line) poderão continuar ganhando dinheiro com material ofensivo postado. Se a ofensa despertar interesse público (como o vídeo de uma atriz nua fazendo sexo na praia, por exemplo), maior será o lucro dos provedores e websites e seus proprietários se sentirão estimulados a cobrar mais pela propaganda associada ao mesmo e a retardar ao máximo o cumprimento de uma decisão judicial mediante recurso. O desequilíbrio criado pela nova regra é evidente e certamente sua constitucionalidade será questionada.

Todo cidadão tem direito à honra e a preservação de sua imagem (art. 5º, X, da CF/88) e, por decorrência, tem também o direito de exigir de um provedor de internet que ele retire de circulação material que considerou ofensivo. Caso o provedor não o atenda pode se tornar co-responsável pela circulação da ofensa e deve ser responsabilizado. A proteção conferida aos provedores e websites pelo art. 19, Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, entra em conflito direto com a CF/88, cujo art. 1º obriga o Estado a ter como fundamento o respeito à dignidade humana tutelada no citado art. 5º, X da mesma.

"Art. 20.  Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário."

Esta norma é inócua, pois a própria Lei 12.965 de 23 de abril de 2014 garante a proteção da privacidade, desobrigando os websites e provedores de internet de exigir a completa identificação dos internautas. Na prática, a internet continuará a possibilitar a ação daqueles que gostam de espalhar boatos, maledicências e ofensas pessoais na internet. Somente os internautas que não usarem perfis falsos ou que não conheçam as técnicas necessárias para mascarar seu IP poderão ser localizados. Além disto, vários websites permitem comentários anônimos e impossibilitam a verificação do IP associado aos mesmos (caso do Centro de Mídia Independente, por exemplo). A própria Lei admite a dificuldade de localização dos ofensores quando usa a expressão “Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo...”.

O resultado previsível é que os interessados poderão continuar a espalhar sua peçonha. O contraditório não lhes interessa, nunca lhes interessou. Vem daí a necessidade de se permitir ao ofendido requisitar diretamente ao provedor ou website a remoção do material ofensivo e o imperativo constitucional da responsabilização da empresa caso ela se recuse a retirar a ofensa de circulação após o aviso.


O texto integral do Marco Civil da Internet pode ser consultado aqui:

http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2011-2014/2014/Lei/L12965.htm



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RIBEIRO, Fábio de Oliveira. Marco Civil da internet: avanços e retrocessos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3968, 13 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27957. Acesso em: 16 abr. 2024.