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O etnodesenvolvimento como forma de inserção do desenvolvimento sustentável junto aos povos indígenas brasileiros

O etnodesenvolvimento como forma de inserção do desenvolvimento sustentável junto aos povos indígenas brasileiros

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O etnodesenvolvimento é uma forma de pensar o desenvolvimento sustentável para determinadas comunidades cuja cultura é marginalizada pelos ideais capitalistas

Resumo: O presente artigo científico pretende analisar criticamente os conceitos de etnodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável a fim de demonstrar sua diferença se comparado ao desenvolvimento meramente econômico, predominante na atualidade como uma ideologia. Tal ideologia hegemônica sufoca culturalmente os países subjugados, como o Brasil, que desvalorizam e marginalizam internamente suas culturas diferenciadas, a exemplo da dos povos indígenas. Neste contexto o etnodesenvolvimento surge como um instrumento de valorização cultural, pois propõe trazer os ideais de desenvolvimento sustentável para as comunidades indígenas sem desconsiderar sua cultura. Após esta abordagem conceitual, concluir-se-á que o mesmo pode obter sucesso junto as comunidades indígenas brasileiras, contudo, deve ser minuciosamente planejado e preparado levando-se em consideração as peculiaridades locais, e não apenas implantado de forma impessoal.

Palavras-chave: Etnodesenvolvimento. Desenvolvimento Sustentável. Povos indígenas.


INTRODUÇÃO

O presente estudo insere-se em um cenário global onde, de um lado, observa-se a supervalorização do desenvolvimento econômico dentro dos ideais capitalistas e de outro um crescente reconhecimento da diversidade cultural.

Especialmente no Brasil, com a Constituição Federal de 1988, foi dada ênfase merecida ao multiculturalismo, que passou a permear diversos dispositivos dedicados à proteção da cultura.

Primeiramente, pretende-se abordar o conceito de desenvolvimento sustentável em oposição ao desenvolvimento considerado apenas sob o viés econômico, a fim de demonstrar a importância de haver uma reação ao “sistema monocultural” imposto pelos atores do capitalismo buscando assim, um resgate das identidades locais.

O etnodesenvolvimento, como uma nova forma de implantar o desenvolvimento sustentável, se enquadra neste contexto, como um instrumento inovador e contra hegemônico. Assim é que, posteriormente tratar-se-á sobre o etnodesenvolvimento local como uma busca pelo desenvolvimento junto às comunidades indígenas, que considere a diferença cultural ali existente.

Para tanto, discutir-se-á seu conceito, ainda pouco explorado pela doutrina jurídica, tendo como base os ensinamentos de Rodolfo Stavenhagen e Batalla.

Por fim buscar-se-á verificar se, diante de um país multicultural, como o Brasil, que já possui proteção Constitucional à esta diversidade, especialmente no que toca aos indígenas e quiliombolas, o etnodesenvolvimento dentro do conceito a ser adotado, é capaz de proporcionar o desenvolvimento sustentável para estas comunidades.

Para este estudo, utilizou-se como metodologia o procedimento de análise bibliográfica, que abrange pesquisa documental, em livros e produção de fichamentos e resumos. O método de abordagem utilizado para a consecução da presente pesquisa é o dedutivo, uma vez que basicamente, parte de teorias e leis, predizendo a existência de fenômenos. O método de procedimento utilizado foi o histórico-comparativo pois pretende acompanhar a evolução do objeto pesquisado pela história, como se verá, especificamente evolução histórica concomitante à legislativa, cujas influências da primeira sobre a segunda é inegável; e porque busca o comparar elementos buscando as diferenças e semelhanças entre os mesmos.


1 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL: UM CONCEITO QUE LIBERTA

Há muito, desde a colonização das terras latino-americanas é que a cultura destes povos é marginalizada pelos atores do desenvolvimento econômico, cultura esta que é imposta de cima para baixo como a correta e a melhor a ser seguida, desvalorizando as culturas nacionais dos países historicamente sobrepujados.

O Brasil, mesmo sendo um país multicultural por tempos aderiu a esta hipnose capitalista, contudo, com o advento da Constituição Federal de 1988, no seu artigo 215 é que houve a merecida tutela à diversidade cultural brasileira:

Art. 215 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

§ 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais.

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do poder público que conduzem à:

I - defesa e valorização do patrimônio cultural brasileiro;II - produção, promoção e difusão de bens culturais;III - formação de pessoal qualificado para a gestão da cultura em suas múltiplas dimensões;IV - democratização do acesso aos bens de cultura;V - valorização da diversidade étnica e regional.

Assim é que percebe-se a (re)valorização cultural nacional. Sobre o assunto afirma Santilli:

O multiculturalismo permeia todos os dispositivos constitucionais dedicados à proteção da cultura.Está presente na obrigação do Estado de proteger as manifestações culturais dos diferentes grupos sociais e étnicos, incluindo indígenas e afro-brasileiros, que formam a sociedade brasileira, e de fixar datas representativas para todos esses grupos. (SANTILLI, 2005, pg.75)

Assim é que há o reconhecimento “do papel das expressões culturais de diferentes grupos sociais na formação da identidade cultural brasileira.” (SANTILLI,2005,p. 75)

Contudo, mesmo diante desta tutela jurídica nacional o sistema dominante costuma alegar que o saber local inexiste ou é ilegal, com isso apaga ou extingue as alternativas ou a realidade que estas representam. Desse modo, a realidade fica corrompida, criando rachaduras de fragmentação, o que é muito próximo ao que ocorre no emprego das monoculturas, que aniquilam as condições de desenvolvimento das demais espécies (SHIVA, 2002, p. 25).

Trata-se do emprego forçado dos ideais desenvolvimentistas sobre os países em desenvolvimento, por parte dos desenvolvidos no cenário global. Para Vandana Shiva, a diversidade garante o equilíbrio, o sustento, a justiça social e a eficiência na esfera multidimensional enquanto que a uniformidade institui a “instabilidade ecológica; controle externo, que acaba com a economia de subsistência; eficiência numa estrutura unidimensional, mas que é solapada no nível dos sistemas (SHIVA, 2002, p. 112 - 113)”.

Aduz o autor que é preciso tornar o poder sobre os recursos naturais entre o Norte e o Sul horizontal, reconhecer a validade do saber local para poder haver desenvolvimento de forma sustentável. (SHIVA, 2002, p.114)

Assim é que percebe-se que a marginalização cultural está diretamente ligada a valorização exagerada dos ideais capitalistas impostos aos países ainda em desenvolvimento, portanto é imprescindível discutir a respeito do desenvolvimento – sustentável antes de adentrarmos o etnodesenvolvimento propriamente dito e suas facetas.

Maria Beatriz Oliveira da Silva, em seu artigo Direito ao desenvolvimento e à sustentabilidade ambiental: Diálogos e conflitos no balizamento jurídico do desenvolvimento (sustentável), expõe as diversas facetas do conceito de desenvolvimento sustentável.

A autora afirma que se faz necessário um “desnudar” de palavras e sentidos, para que haja a (re)apropriação dos mesmos dentro de seus verdadeiros significados.

[...] a palavra “sustentabilidade” nasce, em um determinado momento histórico, vinculada à relação homem- natureza, e que quando passa a adjetivar o substantivo “desenvolvimento” adquire um caráter polissêmico e pluridimensional, portador de uma forte carga ideológica que gera fortes embates. (SILVA, 2013, p. 3)

Assim, a autora analisa a sustentabilidade como sendo um adjetivo do desenvolvimento e questiona então, o que seria o desenvolvimento. E este conceito, quando ideológica e estrategicamente bem inserido no cenário internacional é responsável, quando sofre distorções de sentido – associado ao mero crescimento econômico ou a novas formas de produção e consumo - pelo sufocamento cultural e marginalização de determinados grupos étnicos que não se adéquam ao mesmo.

Assim, percebe-se que pode haver tanto uma visão positiva quanto negativa do desenvolvimento (SILVA, 2013, p.10). Neste sentido, pode-se citar as suas duas facetas, quais sejam, aquela onde o desenvolvimento está ligado apenas ao crescimento econômico, havendo aí uma “redução do conceito de desenvolvimento ao de crescimento econômico” (SILVA, 2013, p. 04) onde há uma super valorização dos índices quantitativos do crescimento econômico, que apesar de imperfeitos são a principal luta dos países para saírem da crise. Nesse sentido:

De outra parte, também é cada vez mais clara a idéia de que a erradicação da pobreza não depende apenas de altas taxas de crescimento e do progresso técnico; mais concretamente, dependeria da satisfação de necessidades básicas, que seria o verdadeiro objetivo a ser perseguido por uma política de desenvolvimento. (SILVA, 2013, p. 04)

De acordo com Amartya Sen o desenvolvimento é um processo de expansão de liberdades reais que as pessoas desfrutam o que contrasta nitidamente com as visões lineares de desenvolvimento como aquelas que identificam-no com o crescimento do Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de rendas pessoais, industrialização, avanço tecnológico ou modernização social. (SEM, 2000, p.17)

Para o autor, o principal fim e o principal meio do desenvolvimento é a expansão da liberdade, contudo o PNB seria apenas um meio de atingi-las já que para tal, outros determinantes também devem se concretizar “como as disposições sociais e econômicas (por exemplo, os serviços de educação e saúde) e os direitos civis ( por exemplo a liberdade de participar e discussões e averiguações públicas).” (SEN, 2000, p. 17)

Para o autor, o mundo de hoje nega as liberdades elementares a um grande número de pessoas e esta ausência de liberdades está estritamente ligada à pobreza econômica, já que rouba das pessoas a possibilidade de atender às suas necessidades mais básicas ou acesso a serviços públicos e à assistência social. Assim é que o desenvolvimento requer que se removam as principais fontes de privação da liberdade como a pobreza, a tirania; carência de oportunidades econômicas e destituição social sistemática; negligencia dos serviços públicos e intolerância ou interferência dos Estados repressivos. (SEN, 2000, p.21)

Silva, ao citar Sem em sua obra, afirma que o mesmo não nega o desenvolvimento econômico e acredita, seja ele essencial ao desenvolvimento, contudo Sen distinguiria o crescimento comparado ao desenvolvimento, mostrando que crescimento remete ao aumento quantitativo da produção material (PNB) enquanto que desenvolvimento remeteria a um processo muito mais rico, complexo multimensional, onde economia torna-se apenas um componente. (SILVA, 2013, p. 05)

Se houver a reunião do desenvolvimento à sustentabilidade, teremos desenvolvimento sustentável, contudo, diante deste desafio proposto, de “desnudar as palavras e seus significados”, o que significa desenvolvimento sustentável? Silva, resume em palavras claras as diversas facetas deste:

A polissêmica noção de desenvolvimento sustentável tem suas raízes em complexas e variadas reflexões dos anos de 1960 e 1970 acerca das conseqüências que o progresso técnico e o crescimento econômico desenfreado teriam ao meio ambiente. (SILVA, 2013, p. 06)

Assim, importante citar que no ano de 1972 foi realizada a Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente, em Estocolmo que

[...] colocou a dimensão do meio ambiente na agenda internacional e apontou a necessidade de qualificar o desenvolvimento de forma a diferenciar as práticas correntes de degradação ambiental, de novos procedimentos mais condizentes com a percepção da finitude dos recursos naturais.

Essa tomada de consciência leva com que, em 1983, seja aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, a criação de uma equipe denominada Comissão Mundial sobre Meio ambiente e Desenvolvimento, sob a presidência Gro Harlem Brundtland, primeira ministra da Noruega e, em 1987, a comissão publica o resultado de suas observações com o título de Nosso Futuro Comum (1988) também chamado Relatório de Brundtland.” (SILVA, 2013, p. 06)

Assim, pode-se denominar como conceito oficial de desenvolvimento sustentável o expresso no Relatório de Brundtland , ou seja, “aquele que procura satisfazer as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem as suas próprias necessidades.”

O conceito de desenvolvimento sustentável é passível de muitas críticas, já que pode ser apropriado e flexibilizado de acordo com diversos interesses. Especificamente o conceito citado acima foi apropriado pelo discurso dominante e através da utilização deste conceito defendeu-se a ideia em torno da sustentabilidade, como sendo uma forma de preservação da ordem estabelecida, impedindo discordâncias frente ao propósito de um “futuro comum”, mas sempre dentro da ótica capitalista, legitimando a posse dos recursos naturais e desrespeitando a cultura das populações. (SILVA,2013, p. 08)

É de suma importância vislumbrar-se o desenvolvimento como um direito e, que se delimite o conceito de desenvolvimento por meio da apropriação de direitos, já que o desenvolvimento e bem-estar de todos passa pela apropriação de um conjunto de direitos humanos, como os políticos, civis e cívicos; direitos econômicos, sociais, culturais e direitos coletivos. É o que define Amatya Sem como sendo Liberdade. (SEN, 2000, p. 27)

Nesse sentido, afirma Silva que

a evolução do direito humano ao desenvolvimento está ligada a diversos fatores no decorrer de sua trajetória, entre estes, está o processo de descolonização ocorrido nos meados do século XX, fundamentado principalmente no direito a autodeterminação dos povos. (SILVA, 2013, p. 9)

Assim é que as disparidades no acesso aos frutos de desenvolvimento e a luta por autodeterminação está na origem do direito dos povos ao desenvolvimento. Importante destacar este caráter multidimensional do desenvolvimento, não apenas ligado à economia, ou seja, o desenvolvimento é um processo global que tem por bem estar da pessoa em duas dimensões, a individual e a coletiva e que está fundado na participação e equidade aos benefícios do desenvolvimento. (SILVA, 2013, p. 10)

Pode-se afirmar que não existe desenvolvimento se não for sustentável, ou seja, o direito ao desenvolvimento passou a significar, necessariamente, direito ao desenvolvimento sustentável, pois seria inadmissível, qualquer modalidade de desenvolvimento, que não atentasse ao fato de que a qualidade de vida do ser humano é dependente de um meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.

Assim denota-se da Declaração do Rio de 1992 que o desenvolvimento é um direito, mas um direito ao desenvolvimento sustentável, de acordo com seu princípio 4º: “para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento, e não pode ser considerada isoladamente deste.”

Trata-se de uma importante verificação de desenvolvimento sustentável, como um conceito pluridimensional, na verdade a sustentabilidade em si é um conceito que de acordo com Juarez Freitas é Multidimensional e abarca dimensões como a econômica, social, jurídico-política e ambiental. Tem-se o vício de analisar a sustentabilidade apenas sob o prisma da dimensão ambiental, aquela que garante através do artigo 225 da Constituição Federal “o direito das gerações atuais sem prejuízo das gerações futuras, ao ambiente limpo, em todos os aspectos”.

Contudo, é de importante destaque para a presente pesquisa a dimensão social da sustentabilidade e pensar-se no desenvolvimento sustentável sob este prisma, também é fundamental.

De acordo com Juarez Freitas em sua obra, Sustentabilidade, direito ao futuro, o autor afirma sobre a dimensão social da sustentabilidade, no sentido de não se admitir um modelo de desenvolvimento excludente e injusto – natureza imaterial do desenvolvimento. Ou seja, neste novo paradigma cabem apenas “distinções voltadas a auxiliar os desfavorecidos mediante aços positivas e compensações que permitam fazer frente à pobreza mediada por padrões confiáveis, que levem em conta necessariamente a gravidade das questões ambientais.” (FREITAS, 2012, p. 58) É nesta dimensão onde encontram-se os direitos fundamentais sociais.

De nada serve cogitar da sobrevivência enfastiada de poucos, encarcerados no estilo oligárquico, relapso e indiferente, que nega a conexão de todos os seres vivos, a ligação de tudo e, desse modo, a natureza imaterial do desenvolvimento. (FREITAS, 2012, p. 58)

Assim é que, partindo desta (re)apropriação conceitual do significado de desenvolvimento sustentável e a percepção de sua diferenciação do que é desenvolvimento econômico, percebe-se a necessidade de haver uma reação ao sistema imposto ideologicamente à sociedade como um todo.

Trata-se de um “sistema monocultural” imposto pelos atores do capitalismo e se deve buscar, na (re)apropriação dos conceitos e significados também, o resgate das identidades locais.

É neste contexto que se enquadra o etnodesenvolvimento, como uma forma de trazer o desenvolvimento sustentável, dentro de seu verdadeiro sentido às comunidades cuja cultura é marginalizada, no presente estudo, dar-se-á enfoque aos índios que possuem, como visto, proteção constitucional de sua diversidade cultural.


2 O ETNODESENVOLVIMENTO COMO “INSTRUMENTO” DE VALORIZAÇÃO, LIBERTAÇÃO E PROTEÇÃO CULTURAL

O etnodesenvolvimento, trata-se de uma ação positiva e de inclusão, surgindo em um movimento que buscava o reconhecimento da diversidade cultural e étnica presente no interior dos distintos estados nacionais, movimento este que avança em conjunto com os ideais do desenvolvimento econômico. (LITTLE, 2002, p. 36)

No caso dos povos indígenas no mundo, suas demandas ganharam destaque e reconhecimento em fóruns mundiais, tendo como conseqüência, por exemplo, a Convenção de 1969 da Organização Internacional do Trabalho e o Grupo de Trabalho da ONU sobre povos indígenas. ( LITTLE, 2002, p.36)

Relativo a “América Latina, esse processo culminou com o reconhecimento oficial por parte dos Estados nacionais da diversidade cultural existente dentro de suas fronteiras e apartir da década de 80 passa-se a falar publicamente em Estados Pluri-étnicos e multiculturais,” (LITTLE, 2002, p. 36)tendo como conseqüência, no Brasil, como já observado, o artigo 215 da Constituição Federal, que protege a diversidade cultural nacional.

De acordo com Paul E. Little,

[...] esses direitos criaram novos desafios na esfera pública para esses países no que se refere ao estabelecimento de normas para uma democracia plural e igualitária que respeite as diferenças culturais. No plano econômico, porém, existe um desafio ainda maior: elaborar padrões de desenvolvimento econômico que levam em conta essa riqueza cultural. Esse desafio é particularmente difícil de ser superado devido às pretensões universalistas do desenvolvimento que não reconhecem diferenças frente às tarefas de modernização burocrática e tecnológica e à ideologia neoliberal vigente que tenta enquadrar a diversidade cultural dentro da categoria de consumidores diferenciados.

Assim percebe-se que também é um desafio para o plano econômico, que também trata-se de uma das dimensões necessárias a consecução da sustentabilidade, levar em conta essa riqueza cultural e permitir que haja o desenvolvimento desta, considerando-os também como atores econômicos e não apenas consumidores diferenciados.

Como já observado, o atual desenvolvimento de forma hegemônica marginaliza e desqualificam os saberes e técnicas dos povos locais, produzindo um “crescimento da ignorância” entre ambos os grupos. (LITTLE, 2002, p. 38). Mesmo assim de acordo com Little,

[...] as forças de desenvolvimento não podem ser simplesmente consideradas como nefastas para os povos camponeses e tribais, já que muitos desses mesmos povos estão ativamente procurando mais "desenvolvimento" dentro dos padrões hegemônicos. Estão mostrando avidez em conseguir cada vez mais produtos industrializados tais como tratores, caminhões, computadores, vídeo-gravadores, motores de popa, rádios, televisões, relógio, etc. Estão reivindicando mais clínicas com acesso à medicina ocidental, mais escolas com ensino nas línguas oficiais de seu país, mais acesso a treinamentos em uso das tecnologias de ponta, melhoramentos na infra-estrutura para a comercialização de sua produção, acesso direto à Internet desde suas aldeias, etc. Assim, parece que o desenvolvimento econômico e tecnológico continua sendo uma grande narrativa, porém não necessariamente em forma homogênea. (LITTLE, 2002, p. 38)

Assim percebe-se que, embora tenham sua cultura marginalizada pelos ideais de desenvolvimento dominantes, os povos tribais estão buscando o desenvolvimento dentro destes padrões hegemônicos, contudo, isso não significa que estão desconsiderando sua cultura, mas sim a modernizando, moldando-a para tornar possível uma adequação e sustento dentro do sistema de desenvolvimento imposto. Partindo desta análise,

[...] temos a tarefa de entender, desde uma perspectiva local, o que Sahlins (1997) chama da "indigenização da modernização" no qual a "tradição" é entendida como um processo de constante transformação. Longe de rejeitar tout court o desenvolvimento (mesmo ocidental, hegemônico e modernizador), temos que relativizar sua incorporação diferenciada por parte de grupos locais (LITTLE, 2002, p. 39)

E é neste contexto que inserem-se os ideais do etnodesenvolvimento, cuja elaboração e disseminação foi marcada por três eventos principais, de acordo com o autor Ricardo Verdum, quais sejam:

a) O Simpósio sobre “Fricção Interétnica na América Latina”, realizado em Bridgetown (Barbados) em 1971. Nesta reunião um grupo de onze antropólogos, após um amplo debate sobre a situação dos povos indígenas na América Latina, elaborou um documento chamado de Declaração de Barbados.

b) O Simpósio “Movimentos de Libertação Indígena na América Latina”, também realizado em Barbados, 1977.O documento final ficou conhecido como Declaração de Barbados II e foi firmado entre antropólogos e representantes de organizações indígenas do Equador, Argentina, Panamá, Venezuela, etc.

c) A Reunión de Expertos sobre Etnodesarrollo Y Etnocídio em América Latina” uma reunião internacional patrocinada Faculdad Latinoamericana de Ciencias Sociales e a Organização das Naçoes unidas pela Educação, a ciência e Cultura (UNESCO), realizada em San José da CoSTA Rica, em 1981, que resultou na Declaração de San José. (VERDUM, 2006, p. 72)

De acordo com o autor esta ultima declaração, denunciara o etnocídio a que estavam sendo submetidos os povos indígenas da América Latina e reivindica explicitamente o etnodesenvolvimento como sendo um direito dos povos indígenas e um dever dos Estados Nacionais. (VERDUM, 2006, p. 72)

Observa-se que na América Latina as duas principais referências sobre a idéia de etnodesenvolvimento são Rodolfo Stavenhagen e Guillermo Bonfil Batalla, cujas idéias passarão a ser analisadas.

Para Batalla é considerado o formulador da idéia de etnodesenvolvimento, militante no campo indigenista, que teve um papel de destaque nas décadas de 70 e 80 na crítica à políticas de desenvolvimento e às de caráter integracionistas. Senão vejamos:

[...] a idéia de etnodesenvolvimento refere-se ao “exercício da capacidade social” dos povos indígenas para construírem seu futuro de acordo com suas experiências históricas e recursos reais e potenciais de sua cultura e seguindo projetos definidos por seus próprios valores e aspirações.Ou seja, o etnodesenvolvimento pressupõe existirem as condições necessárias para que a capacidade autônoma de uma sociedade culturalmente diferenciada possa se manifestar, definindo e guiando seu desenvolvimento. (VERDUM, 2006, p. 83)

Diversos pensadores e estudiosos da área debruçam-se em estudos sobres as doutrinas de Batalla, buscando entender suas teorias, por exemplo, Verdum entende para o autor as comunidades somente serão efetivamente gestoras de seu desenvolvimento se for garantido a elas o direito de formar os seus quadros técnicos como engenheiros, professores, médicos e desde que possam estruturar e gerir as unidades político-administrativas responsáveis pela gestão dos seus territórios. (VERDUM, 2002, p. 72)

Para Batalla, são os próprios indígenas quem tomarão as rédeas do seu destino histórico e assim, em termos conceituais, o etnodesenvolvimento “se propõe ser uma alternativa tanto às teorias desenvolvimentistas etnocidas – que por diferentes razões tomam as “sociedades indígenas” e as “comunidades tradicionais” em geral como obstáculos ao desenvolvimento, à modernização e ao progresso.” (VERDUM, 2002, p. 73)

Já o estudioso Rodolfo Stavenhagen, autor da obra “Etnodesenvolvimento: uma dimensão ignorada no pensamento desenvolvimentista”, o grande desafio que surge com as novas identidades indígenas, com os novos movimentos sociais indígenas militantes que reivindicam reconhecimento de seus valores culturais e a reavaliação da posição dos índios nesta estrutura social, será como integrá-los na teoria do desenvolvimento. (VERDUM, 2002, p. 74)

Na América Latina, por exemplo, o etnodesenvolvimento, pensado e considerado em sua definição original significaria uma completa revisão das políticas governamentais indigenistas até aqui adotadas pela maioria dos Estados, e na sua maior parte por modelos marcantemente assistencialistas. (MEDEIROS, 2011, p. 167)

Stavenhagem parte de uma crítica a concepção linear evolucionista de pensar o desenvolvimento que foi predominante dos anos 50 até 70, concepção esta que considera regiões do mundo muito atrasadas econômica e social, cultural e politicamente, na maior parte colônias ou ex-colonias das potencias européiais.

Qual seria então o remédio para o atraso? O desenvolvimento, ou seja, crescimento econômico (VERDUM, 2002, p 74). Modernizar, é considerada a palavra da moda e

[...] a solução seria identificar os obstáculos à modernização, definir estratégias claras de introdução de inovações e promoção de mudanças culturais estava na ordem do dia.Instituições sociais tradicionais? Economia não monetária? Ausência de espírito empreendedor? Visão de mundo particularista e não universalista? Estaria aí a raiz do atraso. (VERDUM, 2002, p. 74)

Para o referido autor, o etnodesenvolvimento é o desenvolvimento de grupos étnicos no interior de sociedades mais amplas e, neste caso, os planejadores do desenvolvimento têm que aprender a “lidar com fatores étnicos”. Stavenhagem propõe, a formação de “Estados multinacionais, multiculturais e multiétnicos” onde as comunidades étnicas possam encontrar oportunidades de desenvolvimento social, econômico e cultural dentro da estrutura mais ampla.” (VERDUM, 2002, p. 75)

Este texto de Stavenhagen é amplamente utilizado como referencia do “indigenismo etnodesenvolvimentista”, contudo, a questão que se propõe o presente estudo é avaliar se, dentro dos ideais conceituais traçados, de desenvolvimento sustentável e etnodesenvolvimento, seria possível, no Brasil concretizar o etnodesenvolvimento.

Assim não se pode deixar de considerar o ideário corporativista do Brasil e logo não se pode lançar um olhar ingênuo às questões propostas pelo etnodesenvolvimento, já que, na maioria das pesquisas realizadas, algumas realidades ficam a margem da análise do termo, até mesmo da análise proposta por Stavenhagen. Nesse sentido:

[...] as assimetrias sociais e políticas características dos contextos interétnicos, necessidade de as populações se adequarem às regras do jogo para acessar “recursos técnicos e financeiros” disponibilizados para a promoção do seu desenvolvimento; a mercantilização da natureza e dos conhecimentos indígenas e sua inserção nos circuitos econômicos de mercado; a imposição de formas organizativas particulares (tipo sindical ou associativa) como forma de representação e requisito básico de acesso às instâncias de “participação” oficiais; a inserção de expoentes (lideranças) indígenas, na condição de intermediários legitimados pela ordem étnica e ela rede de apoio que consegue estabelecer dentro e fora da comunidade indígena, em sentido amplo nas estruturas de Estado constituídas para administrar o processo de “desenvolvimento com identidade indígena, etc. (VERDUM, 2002, p. 75)

Assim, a problemática trazida até o momento engloba questões que não podem simplesmente ser desconsideradas na análise da implementação do etnodesenvolvimento nas comunidades indígenas até mesmo para verificar de que forma o mesmo será realizado junto a essas comunidades. Nessa linha de raciocínio, de acordo com Verdum, atualmente o que tem se visto é

o Estado (com ou sem a colaboração das chamadas agências nacionais de cooperação técnica e financeira, das ONGS ou das Igrejas) esforçar-se por promover, por um lado, mudanças na forma de organização social indígena. Assim, exige-se e eventualmente se outorgam incentivos para que diferentes grupos se organizem de uma forma particular e assim criam-se associações com registro oficial, capacidade de gestão de recursos financeiros, com capacidade de promover e mobilizar “o capital social” necessário para “gestão dos seus projetos de desenvolvimento sustentável”, contudo por outro lado, age-se como que “reconhecendo” os representantes” e porta-vozes” com quem se negocia a transferência dos recursos. Promove-se eventualmente a mobilidade social dos líderes deste grupo, incorporando-os as estruturas estatais. (VERDUM, 2002, p.76)

Diante destas afirmativas, importante restar cristalina a importância de haver a visão interna e o caráter participativo do conceito de etnodesenvolvimento, a participação dos indígenas submetidos ao processo de etnodesenvolvimento, deve ser colocada como requisito no planejamento, na execução e na avaliação o que requer acordo entre os técnicos e a população que é alvo da transformação.

Assim é que pode-se dizer que há neste diapasão uma “comunidade de argumentação”, entre os grupos e indivíduos portadores de culturas distintas, ou seja, uma comunidade onde a população para a qual se direciona o planejamento, no caso os indígenas, deve constituir em conjunto com os técnicos em etnodesenvolvimento, uma verdadeira comunidade de argumentação sem a qual seria completamente inviabilizado o planejamento.

Desta forma é que o etnodesenvolvimento ou desenvolvimento com identidade cultural é parte do movimento desencadeado ainda nos anos 70 de reação e reforma da ideologia do desenvolvimento, no que diz respeito especialmente à conotação economicista que o marcou.

Trata-se de manifestações culturais semelhantes a outros processos que geram esta modernidade híbrida, caracterizada por contínuos intentos de renovação por parte destes múltiplos grupos que representam a heterogeneidade cultural de cada setor e de cada país.

Assim, pode-se dizer que de acordo com Verdum, o “etnodesenvolvimento é, neste contexto, um sistema de significados criado com o objetivo de facilitar a inserção dos povos indígenas no marco das idéias, práticas e políticas desenvolvimentistas.” (VERDUM, 2002, p. 124) .


CONCLUSÃO

Assim é que, com base na explanação realizada no presente estudo, onde faz-se uma crítica ao pensamento linear e monocultural do desenvolvimento econômico, imposto aos países subjugados, como no caso, o Brasil, somada a diferenciação conceitual existente entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento sustentável, concluiu-se que o etnodesenvolvimento como uma forma de pensar o desenvolvimento sustentável para determinadas comunidades cuja cultura é marginalizada pelos ideais capitalistas, dentro de seu conceito estudado por Rodolfo Stavenhagen e Batalla, deve ser, minuciosamente estudado, caso a caso.

Especificamente, no Brasil, em decorrência de suas peculiaridades locais, o etnodesenvolvimento deve ser planejado cuidadosamente e não simplesmente aplicado com base em teorias, sob pena de se tornar mais um belo conceito criado para fantasiar uma inclusão cultural\econômica que não existirá.

Desta forma, pode-se considerar o etnodesenvolvimento como uma reação ao sistema hegemônico presente, já que busca valorizar e recuperar as identidades locais destas grupos indígenas, principalmente, os incluindo no sistema ou, os mantendo em si mesmos, dependendo da teoria a ser adotada, mas principalmente incluindo-os como agentes globais e não marginalizando-os ou excluindo-os da história do desenvolvimento.


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BARRIOS, Anelise Barboza; MENEZES, Cristiane Pauli de. O etnodesenvolvimento como forma de inserção do desenvolvimento sustentável junto aos povos indígenas brasileiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3962, 7 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28176. Acesso em: 28 mar. 2024.