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Natureza jurídica das políticas públicas

Natureza jurídica das políticas públicas

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O presente artigo busca delinear um conceito jurídico de políticas públicas partindo-se da distinção do vocábulo com demais conceitos frequentemente utilizado na Ciência Jurídica no âmbito da Administração Pública.

 

Resumo: O presente artigo busca delinear um conceito jurídico de políticas públicas partindo-se da distinção do vocábulo com demais conceitos frequentemente utilizado na Ciência Jurídica para dizer respeito às atividades da Administração, dentre eles o ato político e o ato administrativo. Visa-se com isso alcançar um argumento técnico para legitimar a submissão das políticas públicas à análise jurisdicional.

Palavras-Chave: Políticas Públicas – Ato Político – Discricionariedade – Poder Judiciário.

Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito de Ato Político; 3.Conceito de Políticas Públicas; 3.1 Natureza Jurídica das Políticas Públicas; Conclusão; Referências.

 


1. Introdução

 O presente artigo busca efetivar uma análise perfunctória entre os conceitos ato de governo e políticas públicas. O interesse na temática adveio das constantes discussões jurisprudenciais e doutrinárias a respeito da possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas. Seria possível um órgão judiciário interferir diretamente nas escolhas administrativas exteriorizadas através de políticas públicas? As políticas elaboradas pelo Executivo devem respeitar estritamente o previsto na Constituição Federal, ou devem também espelhas uma interpretação dos princípios constitucionais implícitos e explícitos?

 Os órgãos do executivo alegam que na elaboração das políticas públicas estão revestidos de atos de governos, os quais não estão passíveis de controle por parte do Judiciário, no que  tange ao seu mérito, pois este elemento do ato é fruto de uma escolha discricionária do administrador. Em contrapartida, os simpatizantes do controle jurisdicional defendem que não existe plena discricionariedade e que mesmo as políticas públicas, reconhecidamente instrumentos de atuação do Executivo, estão passives do controle realizado nos tribunais desde que este seja feito com o único intuito de garantir eficácias aos direitos previstos constitucionalmente.

Diante dessa controvérsia, busca-se no presente artigo trazer o conceito formal das terminologias ato de governo e políticas públicas, e depois proceder a uma comparação dos conceitos a fim de encontrar-se um elemento diferenciador entre eles e refletir sobre a possibilidade de controle jurisdicional das políticas públicas, sem se descuidar da análise jurisprudencial para entender qual o real sentido da expressão no momento de sua aplicação.

É importante termos em mente que o controle jurisdicional não se revela como uma invasão das atribuições de cada poder, mas ao reverso é a efetivação do mecanismo de freios e contrapesos que resultará numa efetiva fiscalização do coerente exercício das atribuições legais de cada poder, e que tem por fim último a realização de uma sociedade mais justa e igualitária, onde os poderes da União unam forças para a realização de uma verdadeira justiça social.


2. Conceito de Ato Político

Todo ato administrativo é uma manifestação de vontade que produz um resultado jurídico no mundo exterior, alguns acarretando também uma alteração no mundo fático. No estudo dos atos administrativos os manuais de direito administrativo costumam abordar uma clássica distinção entre estes e os chamados atos da administração, entendidos estes últimos como aqueles que sempre emanam da Administração Pública, entretanto nem sempre com as prerrogativas de que se vale a Administração para executar seus atos.

A doutrina aceita que o ato administrativo é uma espécie de ato jurídico, possuindo todos os elementos inerentes ao seu gênero, qual seja: sujeito, objeto, vontade e forma. Ocorre que, essa vontade emanada no ato administrativo não pode se confundir com a vontade individualizada do agente, que tem sua perfeita expressão nos atos jurídicos do direito privado. A vontade administrativa deve ser uma vontade com finalidades específicas e dispostas em lei, não pode ser resultado de uma conduta do agente que possa não resultar em um fim público e permitido em lei.

Assim, ao passo que o ato administrativo pode ser considerado uma espécie do gênero ato jurídico, o mesmo não pode se dizer a respeito dos atos da administração, pois tais atos muitas das vezes servem apenas para executar uma vontade já emanada em um ato administrativo.Classicamente estuda-se que o ato administrativo é composto por cinco elementos: finalidade, competência, forma, motivo e objeto.

Os três primeiros elementos constitutivos do ato são considerados vinculantes, ou seja, não dão margem à vontade do administrador para flexibilizá-los dentro dos parâmetros legais tendo a sua previsão em lei e vinculando o administrador quanto a obedecê-la. Por seu turno, os dois últimos elementos, motivo e objeto são considerados como elementos discricionários possibilitando determinada margem de flexibilidade ao administrador no momento de elaborar o ato, são os elementos que compõem o mérito administrativo.

Tendo por base a ideia de que o ato administrativo é uma espécie de ato jurídico, e que, portanto teriam idênticos elementos estruturais, podemos fazer a correlação entre os elementos constitutivos de gênero e espécie da seguinte maneira: ao sujeito do ato jurídico corresponde o elemento competência do ato administrativo. Cumpre, entretanto salientar que o sujeito do ato administrativo não pode ser qualquer pessoa, mas um sujeito que esteja agindo pela Administração Pública ou em nome desta. A competência para expedir atos administrativos é irrenunciável – decorrência do princípio da indisponibilidade do interesse público – imprescritível e improrrogável. A falta de competência para elaboração do ato acarreta na sua nulidade (art. 2º, Lei 4.717/65), e está caracterizada quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou.
No que diz respeito ao objeto e a forma do ato jurídico, estes possuem a mesma noção em ambos os conceitos, já o elemento finalidade não encontra correspondente no conceito de ato jurídico, isso porque esse ato privado não exige de seu sujeito uma vontade específica para que se forme, bastando que ocorra uma vontade jurígena, ou seja, aquela que pretende efeitos no mundo jurídico.

 O último elemento, vontade pode ser relacionado com o motivo do ato administrativo, entretanto essa correlação da vontade comporta mais um elemento do conceito do ato administrativo, qual seja o objeto, pois os elementos objeto e motivo formam o mérito administrativo, e assim a vontade do administrador, considerado como elemento discricionário e que se distancia da apreciação jurisdicional por dizer respeito a critérios de conveniência e oportunidade da administração.

O motivo pode ser entendido como a situação de fato ou de direito que serve de fundamento para a vontade do agente quando pratica o ato administrativo. O objeto é a finalidade imediata a ser alcançada pelo ato, é o que se deseja fazer. Entre o objeto e o motivo, o elemento que verdadeiramente imputa ao ato o seu caráter discricionário ou vinculado é o motivo, e nessa esteira Carvalho Filho faz preciso esclarecimento:

Tendo em conta o tipo de situação por força da qual o ato é praticado, classifica-se o motivo em motivo de direito e motivo de fato. Motivo de direito é a situação de fato eleita pela norma legal como ensejadora da vontade administrativa. Motivo de fato é a própria situação de fato ocorrida no mundo empírico, sem descrição na norma legal. Se a situação de fato já está delineada na norma legal, ao agente nada mais cabe senão praticar o ato tão logo seja ela configurada. Caracterizar-se-á, desse modo, a produção de ato vinculado por haver estrita vinculação do agente á lei. Diversa é a hipótese quando a lei não delineia a situação fática, mas, ao contrário, transfere ao agente a verificação de sua ocorrência atendendo a critérios de caráter administrativo (conveniência e oportunidade). Nesse caso é o próprio agente que elege a situação fática geradora da vontade, permitindo assim, maior liberdade de atuação, embora sem afastamento dos princípios administrativos. (CARVALHO, 2013, p.114)

Muito se estuda a respeito dos limites da discricionariedade administrativa, questionando-se até onde o administrado tem a sua vontade livre de apreciação das demais autoridades, e até onde o seu agir está em conformidade com a lei e os princípios defendidos no ordenamento jurídico permitindo que um desvio das finalidades legais, mesmo que o ato esteja perfeitamente concluído, enseje a sua anulação por não atender as prioridades da lei.

A possibilidade de apreciação do mérito administrativo pelo poder judiciário decorre do princípio da inafastibilidade do judiciário previsto no inciso XXXV, do art. 5º, da Constituição Federal. Em regra os atos administrativos satisfazem interesses coletivos ou individuais, extinguindo, modificando ou reconhecendo direitos, podendo por esta razão serem revistos pelo Judiciário.

 É justamente o controle desta discricionariedade que alimenta discussão a respeito da diferença entre políticas públicas e atos políticos. Seriam os conceitos similares ou comportariam alguma distinção? Os atos políticos são entendidos como atos expedidos predominantemente no exercício das funções executivas e legislativas e que não comportam o controle jurisdicional.

Dentro desse diapasão, onde se discute os limites do controle da discricionariedade administrativa e ainda mais, os limites das funções institucionais do Estado na atribuição de controle recíprocos, surge o chamado ato político. Os atos políticos são os atos que emanam do exercício da função política, desempenhada predominantemente pelo Executivo e pelo Legislativo, e se caracteriza pela prática de atos de interesse geral decorrente de competência constitucional, estando tais atos imunes ao controle jurídico sobre seu mérito, pois como já é cediço não há afastamento do Judiciário no que tange a legalidade do ato.

Não se confundem os conceitos de ato administrativo com ato político, visto que os atos administrativos dizem respeito à organização da administração, na satisfação da lei e dos objetivos administrativos que acarretam algum tipo de interferência no  interesse individual, seja para ampliá-lo ou reduzi-lo. Já o ato político refere-se à própria organização do Estado, como nação soberana, diz respeito à estrutura, à condução dos negócios públicos, para satisfação de conveniência do Estado no exercício dos poderes diretamente concedidos pela Constituição.

 Assim, pode-se afirmar que os atos políticos segundo a sua natureza não são passíveis de controle jurisdicional, porque não interferem em direito subjetivo como os atos administrativos, mas por visarem também a concretização do quanto previsto em diploma legal, no caso a Constituição Federal, não escapam do controle jurisdicional ao ultrapassarem os limites imposto por ela e se vestirem de atos arbitrários, ou deixar de aplicá-la revelando uma omissão administrativa.

Outro ponto importante, entre a distinção ato administrativo e ato político, reside no que tange a discricionariedade. A discricionariedade apresentada nos atos políticos é bem mais ampla que a dos atos administrativos, e a poderíamos chamá-la de uma discricionariedade política ou governamental. Todavia, ambas, a do ato administrativo e a do ato político, encontram barreiras nos direitos individuais, nas liberdades e nos direitos subjetivos públicos, que servem como limitadores da atuação estatal. Acaso tais prerrogativas individuais sejam atingidas pelo ato político, certamente abrirá espaço para o reexame pelo Poder Judiciário.

 Cabe aqui também fazer um adendo quanto aos conceitos de ato político e ato de governo. A professora Kaline Davi, em seu artigo “O Direito Administrativo, os atos de governo e os direitos sociais: uma análise a partir do neoconstitucionalismo” conceitua o ato de governo como aqueles atos emanados do mais alto escalão de governo, são os atos que definem as políticas a serem adotas pelo governo a fim de concretizarem os objetivos adotados pela gestão. Os atos de governo refletem as diretrizes defendidas por determinada gestão política, sendo o reflexo do que se deseja implementar. Assim, as decisões governamentais são livres e voluntárias, cada gestor escolhe e aponta onde e como quer investir, mas sempre primando pela obediência aos limites legais e constitucionais, acima de tudo. Os atos de governo servem também para concretizar preceitos constitucionais revelando-se assimilando-se mais com o conceito de políticas públicas , como veremos, do que com o conceito de ato político.

A teoria do ato de governo nasceu na França, alicerçada em lei de 24 de maio de 1872, segundo a qual determinados atos não seriam suscetíveis de recurso diante do Conselho de Estado, nem seriam título suficiente para base de reclamação eficaz por prejuízos sofridos. Essa teoria do ato político se espalhou por diversos países, onde foi amoldada a necessidade de cada sociedade, assim surgiram diversas doutrinas sobre o tema, mas, as três com mais destaques são: a negativista, que não admite a existência do ato de governo; a teleológica, que leva em conta o elemento finalístico do ato; e por fim, a teoria da natureza do ato que distingue Governo de Administração.

Para a primeira teoria não tem muito que se explanar, haja vista que encontra uma solução fácil para aos problemas que possam surgir apenas negando a existência da categoria ato de governo. A segunda teoria, a teleológica ou finalística, afirma que o caráter governamental do ato dependerá do fim visado pelo mesmo. Tal teoria é muito arriscada ao abrir um grande espaço de discricionariedade para a administração que pode ensejar em arbítrio. A referida ideia parte do pressuposto que, qualquer ato do governo pode se transformar em ato de governo se o emitente do ato assim declarar em sua finalidade.

Para a última teoria o ato é considerado de governo a partir do esclarecimento das noções de governar e administrar. Governo á a parcela do Poder Executivo responsável pela eleição das diretrizes de gestão, elaboração de metas e políticas a serem desenvolvidas. A Administração é a ação vital do Poder Executivo é a função responsável pela execução de tais políticas, bem como pela elaboração dos atos administrativos com reflexos na esfera privada.

A dita teoria influenciou as Constituições Federais de 1934 e 1937, que em uma enumeração casuística distinguiu os atos de império e os atos de gestão, entendendo-se como ato de governo todo aquele que figurasse expressamente na lista taxativa jurisprudencial apresentada. De fato a dificuldade material em perceber quando uma mesma autoridade está realizando função de governo ou função administrativa é a das mais complexas. Nesse diapasão cabe aqui trazer o conceito de Laubaderf a respeito do ato de governo, que apesar de datar de 1963 não perdeu sua contemporaneidade:

O ato de governo representa, de modo exato, na medida em que subsiste, menos a expressão de função particular do Estado do que categoria de decisões, cuja subtração ao exame judicial ou contencioso se explica mais por motivos políticos do que por motivos jurídicos. (LAUBADERF apud CRETELLA, p. 77)

O conceito de governo no estado contemporâneo não se resume mais a simples ato de gerir o presente, mas se perfaz no planejamento do futuro, na adoção das medidas e metas que poderão concretizar os objetivos eleito pelas escolhas políticas. Di Pietro (1999) afirma que a administração tem uma função co-legislativa, pois existem atos administrativos que não são apenas uma execução das leis, mas uma mudança da realidade jurídica, como os casos de intervenção, serviço público e polícia, revelando a face política da administração.

Da relação entre os dois conceitos, uma distinção possível seria entender os atos políticos como resultados da função política do governo, função que lhe proporciona maior liberdade de escolhas, pois instrumentaliza as intenções governamentais que alçou os representantes do povo a ocupar seus respectivos cargos de forma legítima e democrática. Ao seu turno, a melhor explicação para os atos de governo seria entendê-los como resultado da atividade administrativa, de gestão propriamente dita, tendo certo grau de liberdade, mas sempre condizentes com as finalidades elencadas na Constituição. Entretanto, a doutrina não faz distinção no uso dos termos político e de governo, sempre se referindo as duas nomenclaturas quando pretendem fazer referencia a mesma ideia, e assim acredita-se ser o mais correto, nesse sentido:

“Negamos a existência de ato político como entidade autônoma. O que existe é sempre ato administrativo, ato legislativo ou ato judiciário informado de fundamento político. O impropriamente chamado ato político não passa de um ato de governo praticado discricionariamente por qualquer dos agentes que compõem os poderes do Estado. A lei é um ato legislativo com fundamento político; o veto é um ato executivo com fundamento político, a suspensão condicional da pena é um ato judiciário com fundamento político. Daí a existência de uma política legislativa, de uma política judiciária” (MEIRELLES,1996. p.45)

O autor Carvalho Filho (2013), em seu Manual de direito administrativo, defende que os atos da administração não comportam os atos políticos ou atos de governo, isso porque os atos da administração estão sempre vinculados à lei, sendo diretamente subjacentes a esta, ao passo que os atos de governo gozam de uma maior liberdade por resultarem de norma constitucional, acarretando no destaque do caráter governamental sobre o administrativo. Explana ainda que os atos políticos sofrem um controle diferenciado, que não significa ausência de controle, haja vista a possibilidade de tais atos ferirem direitos e garantias fundamentais, não podendo, portanto ser excluídos da apreciação jurisdicional, salientando que os atos políticos possuem fundamento constitucional.

O festejado Paulo Bonavides, em seu Curso de Direito Constitucional, afirma que as questões políticas não podem ser afastadas do Judiciário quando afetem direitos individuais. No mesmo sentido J. J. Gomes Canotilho assevera que, o ato político admite o controle jurisdicional quando o que se está em destaque é direito individual, mas pondera afirmando que na verdade quando os atos emanados do governo versarem sobre direito individual tratar-se-iam de atos administrativos.

Em arremate, pode-se afirmar que a grande imprecisão científica sobre o exato campo de abrangência do ato político ou de governo reside na imprecisão terminológica do vocábulo governo e político. Assim os autores nem sempre empregam as expressões no mesmo sentido.
 Ater-se ao argumento de que os atos políticos, e portanto os de governo, por estarem balizados na Constituição Federal não pertenceriam ao gênero atos administrativos e consequentemente estariam excluídos da apreciação jurisdicional é uma completa imprecisão, pois o Constitucionalismo Moderno busca realmente trazer todo e qualquer manifestação dos poderes para a filtragem constitucional. Em outras palavras, esse é o fenômeno da juridicidade administrativa.

A CF delimita a competência para emissão de atos políticos, dentro da concepção de separação de funções, inclusive como cláusula pétrea, no mesmo patamar das garantias individuais e do princípio da inafastabilidade da jurisdição. Quando se admite a interferência direta de uma das funções do estado por outra, é sempre autorizada expressamente no texto constitucional. 

Mas, o que afastaria os atos políticos dessa apreciação? Seria possível pensarmos os atos políticos como imunes ao controle jurisdicional e até que ponto? Em verdade, um primeiro argumento que pode subsidiar a afirmação de possibilidade de afastar o ato político da apreciação jurisdicional é o fato do ato político receber o mesmo fundamento constitucional que o princípio da inafastabilidade do poder judiciário, recebendo a mesma proteção constitucional conferida a prerrogativa jurisdicional.

Outro argumento a ser ponderado, diz respeito ao fato do ato político ou de governo emanar da função política do Estado, que difere da função administrativa. No exercício de tais funções cabe a prática de atos de interesse geral decorrente da competência constitucional, enquanto a função administrativa refere-se a prática de atos no interesse coletivo, satisfazendo o interesse de grupos, com nítida expressão de atividade administrativa. Por fim, é possível ainda argumentar-se a favor da exclusão dos atos políticos da esfera de apreciação jurisdicional, levando-se em conta a divisão das funções ou poderes estatais, que prima pelo equilíbrio entre o exercício das funções.

É sabido que a nossa CF adotou o princípio da separação dos poderes em seu art. 2º., nesses termos “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”, e, mais adiante, no art. 60, §4º, III, tornou cláusula pétrea a separação dos poderes, ou funções estatais, vedando qualquer proposta de emenda constitucional tendente a abolir tal separação.

No texto constitucional também encontramos dispositivos referentes a organização, composição e competência dos três poderes, a fim de alcançar o equilíbrio entre as funções. A Constituição Federal ao acolher a divisão tripartide com a especialização das funções e a determinação de competência, confere a mesma importância aos três poderes, não afastando a possibilidade de relativização desse princípio com o intuito de manter o equilíbrio possibilitando um controle recíproco para manutenção da correta divisão das funções, além de conferir efetividade à teoria dos freios e contrapesos. Quando se admite a interferência de uma das funções do Estado por outra, é sempre autorizada expressamente no texto constitucional, como ocorre com a possibilidade do chefe do Executivo editar medidas provisórias.

Tendo em mente que a intervenção de um poder em outro sempre decorre de autorização constitucional, o que se vislumbra hoje no cenário do controle das políticas públicas é sem sombra de dúvidas uma hipertrofia das funções jurisdicionais e consequentemente a politização do Poder Judiciário. A perspectiva politizada do Judiciário conferiu a este Poder um protagonismo e uma posição ainda mais relevante entre os demais Poderes do Estado fazendo-o surgir como um terceiro gigante, nas palavras do Mestre Mauro Cappelleti:

“É evidente que o Judiciário tem sofrido uma grande transformação nos últimos anos, no sentido de se afirmar como um grande e poderoso Terceiro Poder que requer a sua posição de destaque na sociedade, como também, sua afirmação como provedor das necessidades sociais e implementação dos direitos protegidos na legislação e que não encontram sua efetividade nas demais esferas de Poder. [...] A constatação de crescente sentimento de desilusão e desconfiança, não apenas em face dos parlamentos, que passaram se vincular essencialmente a questões políticas e partidárias, mas também em relação ao poder executivo, à administração pública e suas inumeráveis agências. De um lado, os parlamentos demonstraram o caráter fantasioso da sua pretensão de se erigirem em instrumentos onipotentes do progresso social. De outro lado, causou problemas não menos sérios também a emergência do estado administrativo. [...] Assim, de um lado, existe um gigantismo do Poder Legislativo, chamado a intervir ou a “interferir” em esferas sempre maiores de assuntos e de atividade; de outro lado, há o conseqüente gigantismo do ramo administrativo, profunda e potencialmente repressivo. Também para o Judiciário, tais desenvolvimentos comportaram conseqüências importantes, sobretudo o aumento da suas funções e responsabilidades. Pelo fato de que o “terceiro poder”, o Judiciário, não pode simplesmente ignorar as profundas transformações do mundo real, devendo impor-se aos novos e grandes desafios dos juízes. A justiça constitucional, especialmente na forma do controle judiciário da legitimidade constitucional das leis, constitui um aspecto dessa nova responsabilidade”. (CAPPELLETTI, 1999, p. 44-5)

Gingante que antes da invenção do Estado Liberal permanecia atrelado aos ditames do Executivo como se fosse uma função de governo e não um Poder independente em seu agir e pensar. No Brasil esse fenômeno do gigantismo do Poder Judiciário, ou melhor, esse maior destaque das funções jurisdicionais, aconteceram após a promulgação da Constituição de 1988 a qual atribuiu a este Poder diversas competências e o instrumentalizou de modo bastante rico. A transição política e o processo de redemocratização, que ocorreram no Brasil em meadas dos anos 80, contribuíram para o aumento da presença de procedimentos judiciais, de seus agentes políticos e de seus órgãos de atuação no contexto democrático nacional, o que significa o crescimento desse âmbito estatal como via de acesso a direitos que deveriam ser prestados voluntariamente pelas instituições públicas, mas que devido ao descaso e morosidade destas são levados ao Judiciário na tentativa de alcançarem a devida prestação garantida em lei.

A reflexão sobre o Poder Judiciário como um poder político já é algo admitido pela doutrina e jurisprudência, o que é percebido não somente pela literatura jurídica, mas através da simples constatação de que por ser o direito algo criado pelo homem e para ele, nada mais natural que sejam políticos os órgãos vinculados à sua aplicação, pois como bem ressaltou Aristóteles o homem é essencialmente um ser político.

Assim, quando se está aqui analisando a politização do Judiciário não é pretensão afirmar que somente agora este Poder tornou-se político no sentido de passar a ser uma instituição que começou a atender interesses diversificados, mas que a partir da adoção do modelo do Estado do bem-estar social, e posteriormente do Estado Democrático de Direito, as demandas trazidas ao Judiciário não se restringem somente às questões privadas, mas também às contendas de cunho coletivo e social que exigem uma nova forma de análise, uma forma que leve em conta todo um contexto social e que não fique atrelada aos postulados que pregam a pura submissão à norma legal positivada.

Essa ausência de limitação ao campo de análise do magistrado pode gerar divergências ao atingirem áreas de atuação dos outros Poderes da União. A limitação formal impõe até onde e como o Poder Judiciário deve julgar, mas não ressalva o que ele não deve julgar deixando um fértil espaço ao surgimento de condutas consideradas ilegítimas e talvez ilegais. Acontece que essa possibilidade de intervenção em áreas de competência dos outros dois Poderes é fomentada pela judicialização de demandas que pleiteiam a prestações de direitos que exigem uma ação positiva por parte do Estado.

Nesse diapasão, se o Executivo e o Legislativo, no que diz respeito às suas obrigações constitucionalmente previstas, fizessem efetivar as normas que carecem de uma complementação legal ou de uma destinação de recursos para serem concretizadas, a exemplo dos direitos sociais, não haveria razão de ser para suscitar ao Poder Judiciário uma possível usurpação de funções, pois as demandas que versassem sobre essa prestação não chegariam ao seu conhecimento.

Mas, a realidade é bastante diversa, pois é notório que normas como os direitos fundamentais de segunda geração são por muitas vezes deixadas para segundo plano no rol de prioridades do Executivo e do Legislativo, o que só faz reforçar a importância de um Judiciário comprometido com o Estado Democrático de Direito e que busque através das medidas que lhe são disponibilizada fazer valer o que a Constituição estipulou. Tratando dessa intervenção judiciária na seara dos direitos sociais, bem lembrou Rogério Gesta Leal, a abordagem de Habermas sobre o tema, assim dispondo:

A tese de Habermas, aqui, diz respeito ao fato de que o problema fundamental desta invasão do Poder Judiciário no âmbito de relações sociais que deveriam estar marcadas pela decisão político-representativa, é que o conceito de direitos subjetivos que caracterizam estas relações está forjado numa concepção do paradigma liberal da autonomia privada, transformando todos os interesses em disponíveis e passíveis de tutela jurisdicional pervasiva e intervencionista. (LEAL, 2007, p. 14)

A politização do Judiciário é hoje uma consequência inevitável de sua função, haja vista as inúmeras demandas que lhe são apresentadas instando-o a posicionar-se diante de matérias essencialmente políticas e administrativas. Ao conferir muita liberdade aos juízes na condução das decisões administrativas corre-se o risco de acabarmos dando asas ao famigerado ativismo judicial, tendência que pode se mostrar em certos pontos como um risco ao princípio da separação dos poderes. Nas palavras de Ingeborg Maus, transcritas por Mont’alverne: “Nós temos uma constituição, mas a Corte Suprema nos diz o que a constituição é.”.

A solução no controle da discricionariedade é certamente manter-se o meio termo e conduzir o raciocínio dentro dos parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade, primando pela preservação das competências constitucionais definidas pelo poder constituinte originário e sem perverter as finalidades estatais também elencadas na Lei Maior. E nunca esquecer-se que o princípio da inafastabilidade jurisdicional, como também os princípios que fundamentam a  atividade discricionária do Estado, estão no mesmo diploma regulador, qual seja, a Constituição Federal, possuindo ambos força de norma constitucional e que não aceita hierarquização entre as mesmas.

A doutrina nacional se posiciona no sentido de não ser possível excluir da apreciação do Poder Judiciário, os atos de governo ou atos políticos considerados inconstitucionais, ou quando lesivos de interesse individuais ou mesmo de patrimônio público. Isso porque a nossa CF adotou o sistema de freios e contrapesos no art. 2º, bem como, o Estado de Direito ao qual também se submete a Administração Pública.

Quando o déspota esclarecido Frederico II da Prússia, na conhecida história do Moleiro de Sans Souci, pretendeu destruir o moinho que lhe tirava a vista do castelo de Potsdam, movido por interesse particular e não público, resistiu o súdito a tal ameaça exclamando: “Há juízes em Berlim”. Confiava o súdito no princípio da legalidade, sob o qual até os reis submetiam-se. Assim, pensar em princípio da legalidade é antes de tudo acreditar na existência de um Estado de Direito, que rege a todos, sem excluir o Governo.

 Em verdade, o que existe na Administração é a prática de alguns atos com maior densidade política e outros não, mas todos devendo respeito ao princípio da legalidade estrita, bem como ao preceituado na Constituição Federal no que tange aos objetivos elencados pela Lei Maior e que não são derrogados com a mudança de governo, mas devem ser objetivos a serem concretizados por qualquer gestão.

 Questionar se a existência dos atos políticos ou de governo seriam a própria negação do regime da legalidade, é uma resposta que se desenvolve em área de difícil demarcação. Entretanto, o que se pode ter por consolidado é que a prática do ato de governo não se constitui em decisão arbitrária, nem ameaça as liberdades públicas, ou ainda negação ao regime de legalidade. Ao contrário é indispensável à existência de atos políticos/de governo em toda a sociedade, visto que existem decisões a serem tomadas pelos chefes de governo que descem a aspectos que só o poder governamental tem meios de apurar.

Certo é que, o ato político atua em esfera difícil de ser demarcada, porque a discricionariedade política não possui fórmulas apriorísticas, que se existente, certamente, retirariam dessa prerrogativa a possibilidade de uma intervenção contínua, oportuna e rápida, adequada à imprevisibilidade do caso emergente. O âmbito político, imune, como tal, à intromissão indébita dos tribunais, compõe-se da apreciação de conveniências de natureza geral, considerações de interesse comum, de utilidade pública, de necessidade ou vantagem nacional, subordinada à competência dos que a exercem, aos freios da opinião pública e da moral social, mas autônoma em vasta órbita de atuação, dentro da qual a discrição do legislador e do administrador se move livremente.

O âmbito jurídico por seu turno possui divisas claras e limitadas, não podendo adentrar ao espaço das escolhas administrativas para apontar qual decisão é a mais coerente para o caso concreto, mas tão somente restringir-se a prolatar sentenças que realizem um controle de legalidade do ato praticado ou revelem um mandamento à administração a fim de que se pronuncie em caso de silêncio administrativo.

As decisões do Judiciário que porventura tenham conteúdo político, resultam da análise de atos com certo conteúdo político, mas não da análise de atos de conteúdo exclusivamente político. Quando o Judiciário recebe uma causa que possa resultar a análise de determinado conteúdo político deve lhe dispensar uma solução legal, a fim de garantir o que esteja protegido na Constituição, restaurando a situação jurídica que fora lesada. Nesse sentido, são esclarecedoras as palavras usadas pelo professor J. Cretella Júnior:

 Cumpre observar que, dentro do nosso sistema constitucional de freios e contrapesos, a afirmação de que “os atos exclusivamente políticos são imunes à apreciação jurisdicional” precisa ser entendida em seu sentido exato, que é: “os atos exclusivamente políticos são imunes à apreciação jurisdicional apenas no que encerram de político”, porque, integrando a ordem jurídica, à qual se submetem e adaptam, como atos jurídicos que são, devem concretizar-se de harmonia com o princípio da legalidade e conforme competência constitucional.” (CRETELLA, p. 83)

Um ato, ou é político, ou é não-político, ou seja, administrativo, distinguindo-se pela finalidade e conteúdo. Nas palavras de Cretella Júnior:

Consubstanciando medidas de objetivos políticos – finalidade – movimentando-se na área interna da ação governamental, jamais lesando direitos individuais, explicitados em texto claro de lei, mas podendo ferir, tão só, “interesses” – conteúdo –, o ato de governo desponta em toda a sua pureza incontrastável, nessas condições, pelo Poder Judiciário, que não o examina, em si, de imediato, podendo, porém, chegar até ele se dele resultarem outros atos que, de modo indireto, afetem direitos subjetivos. (CRETELLA, p.81)

  O ato político é ato legítimo do Poder Executivo. Além de se basear em umas das características dos atos administrativos, ou seja, a autoexecutoridade dos atos administrativos, que permite à Administração Pública fazer cumprir seus atos, sem a necessidade de aval por parte do Judiciário. Mas, dentro da expressão ato político há matizes sutis que distinguem cada espécie. Nem todo ato político tem o mesmo significado, o mesmo alcance, o mesmo cunho. Nessa esteira, passemos a analisara a políticas públicas na pretensão de encontra a sua real natureza jurídica, como atos políticos ou não.


3. Conceito de Políticas Públicas

As políticas públicas são necessariamente instrumentos de governança estatal, ou seja, são resultado da atividade precípua do Estado a de governar. E governar não é apenas gerir a situação presente, mas também projetar o futuro, pensando a sociedade com maior espaço de tempo.

A ideia de política pública como hoje a conhecemos, como um instrumento do qual se vale o Estado para proporcionar a concretização de valores e opções políticas, surgiu a partir da Segunda Grande Guerra Mundial, onde os Estados deixaram seu papel de Estado que se limita não invadir a esfera de liberdade do cidadão, para assumir o papel do Estado provedor ou intervencionista, que busca além dos respeito aos direitos individuais, efetivar as demandas da sociedade que passam agora a fazer parte do rol de deveres estatais e perfazem os chamados direitos sociais. Nas palavras de Fábio Konder Comparato (1997) “a legitimidade do Estado contemporâneo passou a ser a capacidade de realizar, com ou sem a participação ativa da sociedade, - o que representa o mais novo critério de sua qualidade democrática -, certos objetivos predeterminados” (p.43). Esse compromisso assumido pelo Estado contemporâneo em atender aos valores positivados na Constituição é umas das características do neoconstitucionalismo, e hoje o movimento neoconstitucionalista é o principal argumento para submeter as políticas públicas ao crivo do Judiciário.

Ana Paula de Barcellos elenca características dessa nova fase do constitucionalismo, e as divide em dois grupos: um que congrega elementos metodológicos-formais e outro que reúne elementos materiais. Dentro do primeiro grupo estão presentes três premissas fundamentais: a) normatividade da Constituição, ou seja, o reconhecimento de que as normas constitucionais também são dotadas de imperatividade, e como tais exigíveis perante os tribunais; b) a superioridade da Constituição em relação a ordem jurídica;  c) a centralidade da Constituição dentro do sistema normativo que integra, fazendo com que os demais ramos do direito só encontrem validade se estiverem em consonância com a norma superior – nessa perspectiva surge o direito administrativo constitucionalizado. No segundo grupo encontramos dois elementos caracterizando o neoconstitucionalismo, quais sejam: a) a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais; b) a expansão dos conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional.

Dentro desses grupos apresentados pela autora, encontra-se no segundo, que versa sobre os elementos materiais caracterizadores do neoconstitucionalismo, a razão do Estado contemporâneo ter se revestido do papel do Estado provedor, assim como, os elementos necessários para a compreensão da lógica de submissão das políticas públicas à apreciação jurisdicional. Isso porque, a incorporação explícita de valores e opções políticas nos textos constitucionais, e tendo por base que o novo movimento constitucional acredita na força normativa da Constituição, vincula o Estado a atender o quanto preceituado na Lei Maior de forma que desrespeitá-la é o mesmo que não cumprir uma norma com efeito vinculante para o gestor, gerando a possibilidade de intervenção do Judiciário na esfera administrativa.

No que tange a expansão dos conflitos específicos e gerais entre as opções normativas e filosóficas existentes dentro do próprio sistema constitucional, a autora identifica os conflitos específicos quando existe divergência entre comandos constitucionais, ao passo que os conflitos gerais dizem respeito ao próprio papel da Constituição que, ora é um diploma que impõe ao cenário político um conjunto de decisões valorativas – concepção substancialista, e ora tem apenas como papel garantir o funcionamento adequado do sistema de participação democrático, fincando a cargo da maioria, em cada momento histórico, a definição de seus valores e de suas opções políticas – concepção procedimentalista. Melhor explicando esse conflito, a autora relata que:

Esse conflito, longe de ser apenas um debate de interesse acadêmico, afeta a concepção do aplicador do direito acerca do sentido e da extensão do texto constitucional que lhe cabe interpretar e, a fortiori, repercute sobre a interpretação jurídica como um todo. É fácil perceber que uma visão fortemente substancialista tenderá a justificar um controle de constitucionalidade mais rigoroso e abrangente dos atos e normas produzidos no âmbito do estado, ao passo que uma percepção procedimentalista conduz a uma postura mais deferente acerca das decisões dos Poderes Públicos. (BARCELLOS, p. 8)

Vale ressaltar, as concepções substancialista e procedimentalista convergem em um ponto, ao afirmarem que os direitos fundamentais formam um consenso mínimo oponível a qualquer grupo político, ou seja, independente de considerar ou não a Constituição como uma norma com opções políticas cogentes, não há como se desvencilhar das imposições realizadas pelos direitos fundamentais, seja no sentido de exigir uma omissão estatal ou uma ação.

 Dentro dessa ideia de ações estatais exigidas constitucionalmente, vale fazer referencia aos objetivos fundamentais traçados no art. 3º da CF, objetivos que não devem distanciar-se de qualquer decisão estatal que vise o interesse de toda a coletividade. Antes de qualquer argumento de discricionariedade que possa ser usado para colocar outras pretensões à frente da efetivação dos objetivos fundamentais, aparece a imperatividade da norma constitucional que no novo prisma da constitucionalização do direito administrativo, não permite excluir a filtragem do ato administrativo do parâmetro constitucional.

Dentre as disposições mais conhecidas que exigem uma prestação estatal positiva estão os intitulados direitos sociais, que tiveram o seu rol definido no Brasil através do art. 6º, caput, da Constituição Federal, e são hoje considerados um fundamento das políticas públicas brasileiras e também o mais forte dos argumentos para permitir o controle jurisdicional sobre a formulação dessas ações governamentais. Os direitos sociais são considerados como direitos fundamentais de segunda geração que além das pretensões sociais, guarnecem também os direitos econômicos e culturais. Os direitos fundamentais são garantias alcançadas pela sociedade em um longo processo histórico marcado por pleitos e reivindicações. São considerados em sua gênese como direitos humanos, pois refletem condições que são pretendidas por toda a humanidade.

As lutas em torno do reconhecimento e da positivação a nível universal dos direitos fundamentais adveio após um longo período de desrespeito a essas liberdades, que se deu na Segunda Guerra Mundial, onde a humanidade presenciou uma total banalização dos direitos fundamentais do homem, sendo exigido após o seu encerramento que o mundo formalizasse o dever de respeito e manutenção dessas liberdades. Após a Segunda Guerra surgiram importantes documentos que firmaram esse compromisso a nível universal, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos assinada em 10 de dezembro de 1948, e a Convenção Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966. Esses são apenas dois dos documentos existentes que buscam proteger os direitos fundamentais de possíveis restrições e mazelas que possam lhes atingir.

Como propósito de uma melhor compreensão acadêmica dos direitos fundamentais, a literatura jurídica adotou uma divisão dessa categoria em cinco gerações. Uma primeira que corresponde aos direitos individuais, ou liberdades negativas; uma segunda que é formada pelos direitos econômicos, sociais e culturais que se traduzem em direitos públicos subjetivos e de caráter positivo; a terceira que se assentaria sobre a fraternidade; uma quarta condizente aos direitos que surgem em razão do movimento de globalização; e uma quinta e última geração que traria em seu bojo o direito à paz.

As políticas públicas são consideradas como instrumentos de efetivação dos direitos sociais. São os programas de ação do governo para alcançar objetivos determinados dentro de certo espaço de tempo e que inevitavelmente demandam dinheiro para se concretizarem. As políticas públicas são resultados de um processo político de escolhas de prioridades para o governo, pois a limitação dos recursos públicos exige essa análise de prioridades estatais, que sofrem influencia direta do estabelecido constitucionalmente.

Tendo por base de que a Constituição interfere, ou ao menos direciona as escolhas governamentais, não se pode conceber que a mesma Constituição aniquile o espaço de deliberação para escolhas das políticas públicas ou do destino a ser dado aos recursos públicos. A definição dos gastos públicos é um momento político majoritário, e que está circunscrito a determinadas exigências constitucionais, o que não se pode conceber é que o mesmo Estado democrático que elege direitos fundamentais de observação obrigatória por parte dos Poderes Públicos, admita também que seja retirada das mãos dos que foram legitimamente eleitos para tal fim, a escolha das políticas públicas e transferindo-a para as mãos dos juristas.

Assentado está que, as políticas públicas são instrumentos de governança estatal e que possuem como principal fundamento a efetivação dos preceitos constitucionais, devendo obediência a Constituição, frente ao poder normativo, centralizador e superior desse diploma legal. Feita essa pequena introdução a respeito da possibilidade de análise jurisdicional das políticas públicas, passemos agora a uma análise mais técnica desses instrumentos, seriam eles resultado da função política do Executivo, revestindo-se por assim dizer de atos políticos ou de governo? Ou seriam apenas atos administrativos, responsáveis pela concretização da norma legal, no caso a Constituição, ou seriam ainda leis e por tanto passíveis do controle de constitucionalidade quando afronte as regras e princípios constitucionais? Enfim, qual a natureza jurídica das políticas públicas, é o que passaremos a analisar.

3.1. Natureza Jurídica das Políticas Públicas;

Fábio Konder Comparato, em seu Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, afirma que as políticas públicas não devem ser entendidas como normas, nem como ato, mas engloba tais elementos, visto que as políticas devem ser entendidas como atividades, ou seja, um conjunto organizado de normas e atos tendentes à realização de um objetivo determinado. Em brilhante raciocínio o autor citado distingue os elementos que constituem as políticas públicas e revela a sua natureza diferenciada dos elementos que a compõem, vejamos:

A política com o conjunto de normas e atos é unificada pela sua finalidade. Os atos, decisões ou normas que a compõem, tomados isoladamente, são de natureza heterogênea e submetem-se a um regime jurídico que lhes é próprio. De onde se segue que o juízo de validade de uma política – seja ela empresarial ou governamental – não se confunde nunca com o juízo de validade das normas e dos atos que a compõem. Uma lei, editada no quadro de determinada política pública, por exemplo, pode ser inconstitucional, sem que esta última o seja. Inversamente, determinada política governamental, em razão de sua finalidade, pode ser julgada incompatível com os objetivos constitucionais que vinculam a ação do Estado, sem que nenhum dos atos administrativos praticados, ou nenhuma das normas que a regem, sejam, em si mesmos, inconstitucionais. (COMPARATO, p. 45)

Assim, também não é dado confundir o conceito de política pública com o de serviço público, visto que o primeiro é muito mais amplo englobando a coordenação e a fiscalização das prestações estatais, sendo os serviços públicos uma decorrência da efetivação das políticas, e que possuem regramento próprio a respeito de como devem ser prestados e de seu controle (Lei 8987/1995).

A origem normativa da política pública é a lei, o Poder Legislativo. Não é por outro motivo que Locke aponta o poder legislativo como o primeiro e fundamental direito positivo de todas as comunidades humanas, isso porque, se acreditarmos que o Estado Moderno nasceu de uma renuncia do homem em prol da preservação da vida, o primeiro instrumento utilizado para impor limites a vida em sociedade e consequentemente preservar a vida e a propriedade, foi a lei.  Lei que em sentido geral e abstrato regulamenta a atividade estatal e impõe limites ao convício social, deixando de lado o estado absolutista que se perfazia na vontade individual e soberana de seu chefe.

A CF prevê que tais ações governamentais devem ser expressas através de leis, é o que se vê, por exemplo, através do art. 165 da CF, que dispões sobre orçamento, que com expressões como diretrizes, prioridades, planejamento, dentre outras, deixa claro que o orçamento público é uma política pública governamental. Entretanto, não pode se desprezar que também as políticas públicas podem se materializar através de decretos e portarias, quando são mais pontuais, chamadas de programas de ação, como ocorre, por exemplo, com o Programa Bolsa Família que foi instituído por lei, mas regulamentados através do decreto nº 5.209/2004.

Segundo Maria Paula Dallari (1996), o processo de formação das políticas públicas que inclui a eleição política das diretrizes e dos objetivos, se insere dentro do movimento de “procedimentalização da relação entre os poderes públicos”, expressão cunhada por Massimo Giannini. Para a autora esse movimento é que torna a política pública um importante instrumento de análise do direito administrativo, senão vejamos:

A formulação da política consistiria, portanto, num procedimento, e poder-se-ia conceituar, genericamente, os programas de ação do governo como atos complexos. O incremento das atividades concernentes à elaboração das políticas e à sua execução insere-se num movimento de “procedimentalização das relações entre os poderes públicos”, a que se refere, mais uma vez, Massimo Giannini. Esse fenômeno de procedimentalização, no qual sobressai o poder de iniciativa do governo – e que diz respeito aos meios, ao pessoal, às informações, aos métodos e ao processo de formação e implementação das políticas –, é o ângulo sob o qual se justifica e se faz necessário o estudo das políticas públicas dentro do direito administrativo. (DALLARI, p. 7)

O controle jurisdicional das políticas públicas pode incidir em três aspectos destas, primeiro na sua finalidade, segundo nos meios empregados para sua efetivação e terceiro na maneira de sua estruturação. Assim, uma política pública pode ser inconstitucional, e, por conseguinte passível de controle do Judiciário a caso sua finalidade não esteja compatível com a Lei Maior. A segunda hipótese que permitiria  análise judiciária da política implementada, seria no caso de os meios que seriam necessários para a sua efetivação não serem implementados.
Da mesma sorte também pode ensejar a sua judicialização pelo fato dos meios empregados para sua efetivação gerarem um efeito negativo na sociedade, desrespeitando outros princípios constitucionais, ou por simplesmente não serem promovidos os meios necessários para a sua efetivação. Nesse sentido, veja-se a ementa do julgado do RE 559.646, onde a Suprema Corte entende que determinada política pública é passível de controle do Judiciário em razão de lhe faltar as condições objetivas de implementação.

DIREITO CONSTITUCIONAL. SEGURANÇA PÚBLICA AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PROSSEGUIMENTO DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE INGERÊNCIA NO PODER DISCRICIONÁRIO DO PODER EXECUTIVO. ARTIGOS 2º, 6º E 144 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. 2. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo. Precedentes. 3. Agravo regimental improvido. (RE 559646 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 07/06/2011, DJe-120 DIVULG 22-06-2011 PUBLIC 24-06-2011 EMENT VOL-02550-01 PP-00144)

Também é possível encontrarmos uma política com finalidade constitucional, mas que se vale de instrumentos, leis e atos, que desrespeitam a mesma Constituição na qual se funda. Como exemplo dessa última possibilidade, Comparato cita o fato de uma política de estabilidade monetária fundada na prática de juros bancários extorsivos e na sobrevalorização do câmbio, pode-se se revelar, de modo geral, incompatível com os fundamentos constitucionais de toda a ordem econômica.

 A terceira hipótese de violação de análise jurisdicional de uma política pública que afronta a Constituição reside na sua maneira de estruturação, e é exemplificada por Konder Comparato na possibilidade de uma política estadual ou municipal de saúde pública desvinculada do sistema único de saúde imposto pelo art. 198, CF. Assim, em que pesa a política ter fins legais, meios hábeis a produzir efeitos, encontra-se estruturada de forma que não condiz com o sistema constitucional.

 Não se pode ainda olvidar da possibilidade de uma política pública ser sindicada ao Judiciário em razão de uma omissão do legislador ou do administrador. E nesses casos deve-se ter cuidado ante a possibilidade de abertura para um ativismo judicial muitas vezes descomedido. Nesse inter, o STF já se posicionou favorável à possibilidade de se requerer junto ao Judiciário a implementação de determinada Política Pública, vejamos:

EMENTA Agravo regimental no agravo de instrumento. Constitucional. Legitimidade do Ministério Público. Ação civil pública. Implementação de políticas públicas. Possibilidade. Violação do princípio da separação dos poderes. Não ocorrência. Precedentes. 1. Esta Corte já firmou a orientação de que o Ministério Público detém legitimidade para requerer, em Juízo, a implementação de políticas públicas por parte do Poder Executivo, de molde a assegurar a concretização de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos garantidos pela Constituição Federal, como é o caso do acesso à saúde. 2. O Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que a Administração Pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação de poderes. 3. Agravo regimental não provido. (AI 809018 AgR, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 25/09/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-199 DIVULG 09-10-2012 PUBLIC 10-10-2012)

Assim, não é mais surpresa que o Poder Judiciário, valendo-se do caráter normativo da Constituição, sentencie no sentido de impor ao Executivo ou ao Legislativo uma obrigação de fazer, visando a implementação de determinados comandos constitucionais que carecem de implementação de política pública para lograrem a sua devida concretização. Ao adotar tal posicionamento o Judiciário não o vislumbra como um ataque ao princípio da separação dos podres, mas pelo contrário, acredita ser uma forma de efetivação das normas constitucionais.

Frise-se também que as políticas públicas são vistas como medidas assecuratórias de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, ou seja, não é possível a concretização de tais demandas sem que esse conjunto de atos e leis (políticas públicas) sejam devidamente elaborado por quem lhes compete, resultando em uma obrigação constitucional, um dever jurídico do estado. Nesse sentido:

E M E N T A: RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA - EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) - COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF, ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão, prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF, art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional, juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art. 208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina. (RE 410715 AgR, Relator(a):  Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 22/11/2005, DJ 03-02-2006 PP-00076 EMENT VOL-02219-08 PP-01529 RTJ VOL-00199-03 PP-01219 RIP v. 7, n. 35, 2006, p. 291-300 RMP n. 32, 2009, p. 279-290)

O STF reconhece que a prerrogativa de elaboração das Políticas pertence ao Legislativo, mas acredita que em situações excepcionais pode o Judiciário intervir, a fim de que a política pública prevista na Constituição seja efetivamente implementada. Veja-se o seguinte julgado:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TRANSPORTE DE ALUNOS DA REDE ESTADUAL DE ENSINO. OMISSÃO DA ADMINISTRAÇÃO. EDUCAÇÃO. DIREITO FUNDAMENTAL INDISPONÍVEL. DEVER DO ESTADO. 1. A educação é um direito fundamental e indisponível dos indivíduos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu exercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo 205 da Constituição do Brasil. A omissão da Administração importa afronta à Constituição. 2. O Supremo fixou entendimento no sentido de que "[a] educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental[...]. Embora resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário determinar, ainda que em bases excepcionais, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam essas implementadas pelos órgãos estatais inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos encargos políticos-jurídicos que sobre eles incidem em caráter mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade de direitos sociais impregnados de estatura constitucional". Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento.(RE 603575 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 20/04/2010, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-05 PP-01127 RT v. 99, n. 898, 2010, p. 146-152)

O argumento de que o sistema de controle entre os poderes é o mais cogente para fundamentar a possibilidade de demandar em juízo a implementação das políticas públicas, não parece ser o melhor. Isso porque a própria Corte reconhece que a competência não é sua, mas valendo de excepcionalidades sindicaliza o ato da política ao seu crivo. Em verdade, deveria a Corte valer-se de argumentos técnicos para por fim a celeuma a respeito de ser ou não a política pública passível de controle pelo Poder Judiciário. E o principal argumento seria que por ser tais programas/políticas públicas um conjunto de atos e leis, e ser permitido que tais atos normativos sejam passíveis de controle de constitucionalidade pelo STF através do controle concentrado – art. 102, I, “a”CF – nada impede que sejam submetidos ao crivo do Judiciário.

 Da mesma sorte, se o que se quer questionar em determinada política é seu fundamento, por via de argumentos técnicos também seria possível submetê-la a apreciação do Judiciário, pois se um programa se funda em princípios inconstitucionais, tudo aquilo que decorrer dela também o será, e a consequência da declaração de inconstitucionalidade é erga omnes atingindo a todos indistintamente. Por fim, a atribuição dada ao STF de guardião da Constituição lhe permite muitas coisas, e dentre elas analisar a real coerência de determinada política pública, mas é preciso ter em mente que também são protegidas constitucionalmente as atribuições do Legislativo e do Executivo, não sendo dado ao guardião da Norma Maior o poder de desconsiderar os seus comandos a fim de estabelecer o que se entende por correto na visão de um Tribunal.


CONCLUSÃO

A possibilidade de controle e das políticas públicas está justamente na quebra do paradigma de vinculação a lei. Como leciona Gustavo Binenbojm o administrador deixa de estar plenamente vinculado à lei para buscar a suas fundamentações diretamente na Constituição Federal, abrindo espaço para o controle de sua atividade.

A força dos princípios no neoconstitucionalismo, princípios estes que também trazem consigo grande carga de direitos fundamentais implica numa necessária influencia deles sobre a elaboração das políticas públicas, isso porque, a nossa Constituição não é uma norma que desconsiderou os comandos principiológicas, mas pelo contrário pode ser caracterizada como uma constituição social, pois elenca em seu texto um rol considerável de direito garantidos aos cidadãos, como também os respectivos deveres do estado para assegurá-los, fortalecendo ainda mais essa dependência através de princípios que servem como base e norte dessa relação direito e dever.

Esses referidos deveres são concretizados através de políticas públicas. A fundamentação desses instrumentos de concretização de demandas sociais em berço constitucional é o que realmente legitima o seu controle por parte do Judiciário. No movimento de constitucionalização de todas as áreas do direito, o direito administrativo não passa despercebido, sendo também legalizado e legitimado na medida em que converge com os preceitos constitucionais. A judicialização das políticas públicas é, sem sombra de dúvidas, a materialização dessa nova concepção do direito administrativo, e quanto a isso não há o que se contestar. Entretanto, o objetivo a ser alcançado nesse artigo é entender a real natureza de tais instrumentos, seriam atos políticos ou atos administrativos, ou então resultado da atividade legislativa?

Pela análise dos julgados do Supremo Tribunal Federal conclui-se que o polo passivo nos processos que tenha por objeto requerer a implementação de políticas públicas, ou a implementação de demandas que viabilizem a sua concretização, é comumente o Executivo, isso porque, a atividade basilar desse poder é executar o que se está previsto em lei.

Entretanto, não se pode esquecer que a elaboração de uma política pública passa por um processo onde o Legislativo e o Executivo são os principais atores. A elaboração de uma política pública muitas vezes depende de uma iniciativa do Executivo e uma aprovação do Legislativo, como exemplo pode-se citar a política educacional prevista no art. 214 da CF que deve ser prevista por meio de lei complementar de iniciativa do Executivo (art. 24, IX). Assim, políticas públicas também são leis. Mas, por outro lado, é inquestionável que também se faz política pública por meio de atos exclusivos do Executivo, como um decreto – exemplo do programa Bolsa família regulamentado através do Decreto 5.209/2004.

É da conjugação da atuação desses dois poderes que surgem as políticas públicas, mas a aparição do poder Executivo como principal acionado quando se busca a concretização das políticas públicas, decorre do raciocínio sobre a normatividade da Constituição, ou seja, não se faz necessário elaborar uma norma com todo o seu processo legislativo para que se possa exigir do Executivo o seu dever de prover as demandas sociais, essa obrigação já está prevista na CF desde 1988.

Fixada a ideia de que as políticas públicas são elaboradas pelos dois poderes, questiona-se agora a razão do Judiciário estar presente nesta relação para fiscalizar se tais políticas são implementadas ou não. Vimos que a Constituição é um diploma com opções políticas que se revestem de obrigações constitucionais direcionadas aos respectivos Poderes, visando a concretização de determinados comandos. Como obrigações que são estão passíveis de serem sindicadas ao Poder Judiciário a fim de que logrem a sua execução. Aqui basta realizarmos um raciocínio simples: há uma obrigação prevista em lei (CF), logo, caso não seja cumprida enseja a sua execução. Entretanto, esse pensar aparentemente simples esbarra em uma prerrogativa da Administração que não pode ser esquecida pelos juristas, a discricionariedade administrativa.
O espaço de discricionariedade administrativa é o momento onde o administrador, valendo-se de juízo de conveniência e oportunidade, faz a opção que julga mais adequada para determinada situação. Ocorre que, essa discricionariedade não é tão ampla quanto se imagina, mas encontra limitações na própria lei e também na Constituição. Dessa forma, implementar um direito social, seja ele educação, trabalho, saúde ou qualquer outro previsto no caput do art. 6º da CF não é elemento discricionário do Administrador, mas uma obrigação deste, o que poderá ficar dentro da sua esfera discricionária são os meios utilizados para tais efetivações, e não se devem ou não serem implementados naquele ou nesse momento.

Conhecendo que as políticas públicas fazem parte da competência do Legislativo e do Executivo, que não encontram seus fundamentos em elementos discricionários do administrador, mas que se revestem de obrigações constitucionais, pergunta-se agora qual o argumento técnico que possibilite submeter políticas públicas à análise jurisdicional. Seriam as políticas públicas atos políticos, o que colocaria por terra todo o raciocínio até então desenvolvido, partindo do conceito que os atos políticos são os atos que emanam do exercício da função política, desempenhada predominantemente pelo Executivo e pelo Legislativo, e se caracteriza pela prática de atos de interesse geral decorrente de competência constitucional, e que estariam imunes ao crivo do Poder Judiciário, ou seriam tais políticas atos administrativos que dizem respeito à organização da administração, na satisfação da lei e dos objetivos administrativos que acarretam algum tipo de interferência no interesse individual, seja para ampliá-lo ou reduzi-lo.

Em nenhum dos conceitos trazidos à baila podem as políticas públicas se amoldarem, em verdade tais instrumentos são um conjuntos de atos, leis e serviços voltados para os desideratos constitucionais de erradicar a pobreza e a marginalização, de reduzir as desigualdades sociais, garantir o desenvolvimento nacional, dentre outros previstos no art. 3º da Constituição Federal. Não é possível encaixá-las em um conceito específico, mas também, certamente, não é recomendável se valer dessa mesma expressão, para se referir ao objeto judicializado. Em verdade, o mais adequado é que os julgado emanados dos Tribunais ou dos Juízos de primeiro grau façam referencia específica sobre qual objeto estão analisando, se uma lei, um ato administrativo ou um serviço estatal, e aí sim sobre tal objeto prolatem sua decisão, pois quando nos referirmos à política pública certamente o universo referido é muito amplo transpassando o campo da ciência jurídica e firmando olhares no campo da ciência política.

 


REFERÊNCIAS

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TEIXEIRA, Thaisa Sousa dos Santos. Natureza jurídica das políticas públicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3997, 11 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28208. Acesso em: 29 mar. 2024.