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Comentários sobre incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor

Comentários sobre incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor

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Analisam-se alguns pontos importantes das incorporações imobiliárias (Lei nº 4.591/64) à luz do Código de Defesa do Consumidor.

1. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA: CONSTRUÇÃO HISTÓRICA, FUNDAMENTO LEGAL E DELIMITAÇÃO CONCEITUAL

A Lei nº 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias, foi promulgada em 16 de dezembro de 1964. Nasceu em pleno regime de exceção, sua gênese se deu poucos meses após o golpe militar de 31 de março de 1964, que destituiu o, até então, Presidente da República, João Goulart.

A Lei das Incorporações Imobiliárias (LDI) completará, portanto, em dezembro próximo, cinquenta anos de existência. Ao longo de quase meio século de vigência, foi alterada pela Lei nº 4.864/65, que criava medidas de estímulo à indústria de construção civil, e passou por uma profunda reforma com a edição da Lei nº 10.931/2004, que criou o Patrimônio de Afetação e incluiu à Lei nº 4.591/64 os artigos 31 A à 31 F e deu nova redação a outros dispositivos dessa lei. O Decreto nº 55.815/65 de 08 de março de 1965, que regulamentava a escrituração dos registros criados pela Lei nº 4.591/64 nos Cartórios de Registro de Imóveis, foi revogado pelo Decreto nº 11 de 18 de janeiro de 1991.

Pode-se afirmar que a atividade de incorporação imobiliária surgiu para a sociedade antes mesmo de surgir para o direito. Essa atividade econômica tomou impulso no desenvolvimento econômico do país, principalmente por força da industrialização nos principais centros urbanos brasileiros. “A partir da década de trinta do século passado, tem-se um aumento considerável na construção de edifícios de vários andares com divisões internas para venda isolada de cada uma.” (NUNES, 2014, p. 232).

É nesse contexto histórico que surge uma figura importante no mercado imobiliário brasileiro: “o incorporador”. Não conhecido à época com essa nomenclatura, pois isso só se daria com o advento da Lei nº 4.591/64, mas já era uma espécie de organizador ou intermediário que aproximava pessoas com objetivos comuns, ou seja, pessoas dispostas a pagar por uma moradia, ainda que fosse construído depois, e pessoas que possuíam um terreno e gostariam de vender.

Observa-se que a incorporação imobiliária já existia de fato, detinha elevada relevância no contexto socioeconômico, contudo, não havia, até a edição da Lei nº 4.591/64, nenhum diploma legal que regulasse a atividade da incorporação e essa vacância durou aproximadamente trinta anos.

Portanto, não existia nada que obrigasse o “incorporador”.

Embora fosse o organizador do negócio, nem sempre se apresentava como parte integrante dos contratos ou de quaisquer outros atos negociais, portanto, em muitos casos não poderia ser responsabilizado pela incorporação que articulou. (CHALHUB, 2012, p. 2)

A Lei das Incorporações Imobiliárias surgiu da necessidade de se regulamentar a atividade de incorporação em nosso país. Até então, as incorporações se davam por contratos atípicos e não vinculavam o incorporador às operações imobiliárias por ele intermediadas. O incorporador era comparado ao corretor de imóveis, ao construtor, ao proprietário do terreno, a um gestor de negócios ou um mandatário. “Diante desta variedade polimorfa de atividades era, com efeito, impossível definir o incorporador dentro de fórmula tradicional das figuras componentes de qualquer contrato típico.” (PEREIRA, 2014, p. 193)

Caio Mário da Silva Pereira foi responsável por redigir o anteprojeto que culminou na Lei nº 4.591/64, norma especial que regulamenta o condomínio em edificações e a atividade de incorporação imobiliária, e esta tem por definição legal:

Art. 28. As incorporações imobiliárias, em todo o território nacional, reger-se-ão pela presente Lei.

Parágrafo único. Para efeito desta Lei, considera-se incorporação imobiliária a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas, (VETADO).

Para Melhim Namem Chalhub, define-se incorporação imobiliária:

No campo dos negócios imobiliários, a expressão incorporação imobiliária tem o significado de mobilizar fatores de produção para construir e vender, durante a construção, unidades imobiliárias em edificações coletivas, envolvendo a arregimentação de pessoas e a articulação de uma série de medidas no sentido de levar a cabo a construção até sua conclusão, com individualização e discriminação das unidades imobiliárias no Registro de Imóveis. (2012, p. 10)

A atividade de incorporação imobiliária é bastante complexa, é uma verdadeira cadeia produtiva, pode-se dizer que é a soma de esforços coordenados e continuados com escopo de construir, ou fazer construir, alienar unidades imobiliárias autônomas e entregá-las averbadas e devidamente individualizadas, seguindo os preceitos da lei de incorporação, com a participação de profissionais das mais diversas áreas do conhecimento humano tais como: incorporadores, construtores, engenheiros, arquitetos, advogados, corretores, administradores e contadores, entre outros trabalhadores e profissionais.

A atividade de incorporação imobiliária é definida na doutrina com uma atividade eminentemente empresarial, ou seja, tem como objetivo final o lucro. O incorporador ou uma sociedade empresária que desempenham esse papel com profissionalismo e habitualidade serão considerados “empresa imobiliária”.

1.1. Sujeitos da Incorporação Imobiliária: Direitos e obrigações

Os protagonistas desse negócio jurídico são o incorporador, a quem a lei lhe empresta definição própria, e limita as pessoas que podem assumir esse papel, e, o adquirente, o outro sujeito na relação jurídica, embora não tenha definição legal específica, pode-se afirmar que é toda pessoa física ou jurídica que deseja adquirir uma ou mais frações ideais definidas no Memorial de Incorporação com assento no Cartório de Registro de Imóveis.

Eventualmente, pode-se verificar a presença do construtor como partícipe na incorporação imobiliária. Isso ocorre quando o incorporador não assume o papel de construtor e acaba por contratar o serviço de construção civil, através de um responsável técnico ou empresa de construção civil. Lembre-se de que o incorporador é responsável por qualquer dano, prejuízo ou atraso na entrega da obra causado pelo construtor, cabendo-lhe ação regressiva contra o construtor se este tiver culpa (art. 43, II LDI).

O art. 29 da Lei nº 4.591/64 confere ao incorporador definição legal:

Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a termo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas.

Da leitura do artigo, pode-se entender, equivocadamente, que qualquer pessoa física ou jurídica pode assumir o papel de incorporador, contudo, quando se analisa o art. 31 do mesmo diploma, verifica-se que a lei impõe uma série de limitações subjetivas, ou seja, apenas as pessoas determinadas no conteúdo desse artigo podem assumir essa atividade:

Art. 31. A iniciativa e a responsabilidade das incorporações imobiliárias caberão ao incorporador, que somente poderá ser:

a) o proprietário do terreno, o promitente comprador, o cessionário deste ou promitente cessionário com título que satisfaça os requisitos da alínea a do art. 32;

b) o construtor ou corretor de imóveis.

c) o ente da Federação imitido na posse a partir de decisão proferida em processo judicial de desapropriação em curso ou o cessionário deste, conforme comprovado mediante registro no registro de imóveis competente.[1]

  A lei conferiu ao proprietário do terreno a permissão de ser incorporador. Nada mais natural que o proprietário possa ser incorporador, pois goza de plenos direitos reais sobre o imóvel objeto da incorporação. Além dele, a lei franqueou ao promitente-comprador, o cessionário deste ou o promitente cessionário o direito de ser incorporador, mas acrescentou-lhe condições previstas na alínea “a” do art. 32 da lei em exame:

Art. 32. O incorporador somente poderá negociar sobre unidades autônomas após ter arquivado, no cartório competente de Registro de Imóveis, os seguintes documentos:

a) título de propriedade de terreno, ou de promessa, irrevogável e irretratável, de compra e venda ou de cessão de direitos ou de permuta do qual conste cláusula de imissão na posse do imóvel, não haja estipulações impeditivas de sua alienação em frações ideais e inclua consentimento para demolição e construção, devidamente registrado

A lei exige título, em forma de instrumento público, de promessa irretratável e irrevogável, de compra e venda ou de permuta, que conceda imissão imediata do promitente-comprador, cessionário comprador ou promitente cessionário na posse do imóvel (terreno), não haja estipulações impeditivas de sua alienação em frações ideais, que conste consentimento para demolição e construção e que seja registrado em Cartório de Registro de Imóveis, como prevê o art. 167, I, 9 da Lei nº 6.015/73, Lei de Registro Público, o título de promessa, cessão ou promessa de cessão que conferiu direito real ao promitente comprador, cessionário ou promitente cessionário do terreno.

A lei permite que o construtor e o corretor de imóveis, ambos no exercício regular da profissão, possam ser incorporadores, contudo, o art. 31, §1º impõe uma condição expressa, eles devem estar investidos de mandato por instrumento público (procuração pública), outorgado pelo proprietário o terreno, promitente comprador ou promitente cessionário, que faça menção expressa da lei, com transcrição do §4º do art. 35 no corpo do instrumento de mandato e com poderes para que possam concluir todos os negócios tendentes à alienação das frações ideais de terreno, e que se obrigam pessoalmente pelos atos que praticarem na qualidade de incorporadores.

A figura do incorporador é imprescindível para o lançamento da incorporação no mercado imobiliário. Não existe incorporação sem incorporador. Como a própria lei determina: “Nenhuma incorporação poderá ser proposta à venda sem indicação expressa do incorporador, devendo também seu nome permanecer indicado ostensivamente no local da construção.” (Art. 31, § 2º LDI)

O incorporador somente poderá negociar sobre as unidade autônomas após ter arquivado no Cartório de Registro e Imóveis competente os documentos exigidos no art. 32 da Lei nº 4.591/64.

O ato jurídico básico do negócio jurídico da incorporação imobiliária é o memorial de incorporação que será arquivado no Registro de Imóveis e registrado na matrícula do terreno para o qual estiver projetada a edificação objeto da incorporação (CHALHUB, 2012, p. 39).

Sem a apresentação desses documentos elencados na lei, ou sem que o Oficial de Registro de Imóveis tenha lhe conferido registro, o incorporador não pode oferecer, vender ou prometer vender unidades autônomas que serão construídas ou estejam em construção, sob pena de incorrer em contravenção penal relativa à economia popular previsto no art. 66, I da lei em exame.

O arquivamento do memorial de incorporação é pré-requisito para oferta pública das unidades integrantes da futura edificação e constitui a gênese da proposta do incorporador; esse registro legitima o incorporador a realizar a oferta pública e formular a proposta. (CHALHUB, p. 41, 2012)

Todavia, caso o incorporador efetive a alienação de unidade imobiliária antes do registro do memorial de incorporação, como determina a lei, essa venda não será considerada nula, desde que, o incorporador possa sanar a irregularidade. Para clarificar, tem-se a jurisprudência do STJ no REsp. 192315/MG:

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA. APARTAMENTOS EM CONDOMÍNIO DE EDIFÍCIO. FALTA DE REGISTRO DO MEMORIAL DE INCORPORAÇÃO NO CARTÓRIO DE IMÓVEIS. ART. 32, LEI 4.591/64. INEXISTÊNCIA DE NULIDADE OU ANULABILIDADE DO CONTRATO. IRREGULARIDADE SANÁVEL. CPC, ART. 462. INOCORRÊNCIA NO CASO. PRECEDENTES. RECURSO DESACOLHIDO.

I - A jurisprudência desta Corte afasta a nulidade ou a anulabilidade (nulidade relativa) do contrato de promessa de compra e venda por descumprimento do art. 32 da Lei n. 4.591/64, que exige o registro do memorial da incorporação no Cartório de Imóveis.

II - Todavia, se não sanada a irregularidade, pode o promissário comprador postular a resolução do contrato de promessa de compra e venda, em face do inadimplemento da obrigação por parte da incorporadora.

Concluído o registro da incorporação, o incorporador pode, em fim, iniciar suas ofertas e vendas. Ele terá prazo de 180 dias para negociar as unidades previstas no registro de incorporação. Caso não seja possível efetivar a venda de todas unidades no prazo de 180 dias, o incorporador deverá atualizar a documentação, revalidando o registro de incorporação por igual prazo.

Uma atividade empresarial de tamanha complexidade, como é uma incorporação imobiliária, não pode, jamais, prescindir da publicidade para vender seus produtos imobiliários, sob pena de fracassar todo o empreendimento. A lei das incorporações obriga o incorporador que faça constar em seus anúncios, impressos, publicações, propostas, contratos, preliminares ou definitivos, o número do registro e o cartório de imóveis onde foi registrado (art. 32, §3º).

Deve-se levar em consideração que a lei é cinquentenária, e não poderia prever o surgimento da internet, das mídias digitais e das redes sociais, veículos de publicidade com grande alcance e bastante utilizados por incorporadoras e construtoras na conquista de consumidores. Portanto, é salutar que toda e qualquer mídia, meio de comunicação ou publicidade, que faça menção à incorporação, deve vir acompanhada da informação do registro de incorporação.

O incorporador tem o direito assegurado, no art. 34 da lei em análise, de desistir da incorporação. Para tanto, a lei lhe impõe certos limites para o exercício desse direito. Ele deve arquivar no Cartório de Registro de Imóveis, conforme preceitua a alínea “n” do art. 32, declaração expressa que trate do prazo de carência.  O prazo de carência é de no máximo 180 (cento e oitenta) dias, a partir do termo inicial da incorporação, ou seja, seu registro no Cartório de Registro de Imóveis competente. Esse prazo de carência é improrrogável (art. 33, §6º LDI).

Caso o incorporador queira realizar a denúncia da incorporação, ou seja, a desistência, ele deve comunicar por escrito ao Registro de Imóveis e aos adquirentes que já tenham efetivado proposta de compra.

Expirado o prazo legal de carência, não denunciada a incorporação, o incorporador se obriga a concluir o negócio, portanto, “(...) não pode mais fugir às consequências da falta de concretização do negócio” (PEREIRA, 2014, p. 221)

Feita a denúncia da incorporação, o incorporador tem até 30 dias, a partir de então, para devolver aos adquirentes os valores pagos, caso contrário, os adquirentes poderão por via executiva exigir a devolução dos valores pagos corrigidos por índice de preços (previsto no contrato) e acrescido de juros de 6% ao ano.

Percebe-se que o registro da incorporação na matrícula do imóvel onde será erigido o empreendimento é o termo inicial de todo processo, ou seja, é pré-requisito para os demais atos supervenientes.

O principal objetivo desse registro é oferecer aos potenciais adquirentes das unidades autônomas do empreendimento elementos que lhes permitam avaliar a segurança jurídico-patrimonial do negócio que poderão vir a celebrar com o incorporador (GHEZZI, 2011, p. 98)

            Pode-se dizer que serve de preparativo para consecução das outras etapas do negócio jurídico. Após o registro da incorporação, temos a fase que o incorporador oferta ou coloca à venda as unidades previstas no memorial de incorporação. Nesta fase, o incorporador vai contratar com os adquirentes individualmente. Para isso precisará de um instrumento contratual típico, na forma escrita e que contenha direitos e obrigações para ambas as partes.  

1.2. Os contratos de incorporação imobiliária           

A incorporação imobiliária é uma atividade empresarial que promove ações coordenadas e continuadas com o objetivo de: construir, ou fazer construir, alienar, averbar a construção e individualizar as frações ideais e instituir o condomínio edilício. Estas são as etapas necessárias até a consecução final de todo o empreendimento imobiliário proposto pelo incorporador.

Após o registro da incorporação no Cartório de Registro de Imóveis, a lei, então, permite que o incorporador possa alienar as unidades previstas no memorial de incorporação. É a partir da alienação das unidades que se arrecadarão os recursos monetários ou creditícios necessários para a conclusão do empreendimento projetado pelo incorporador.

Para que se efetive as vendas, ou promessas de venda, faz-se mister a utilização de um instrumento contratual, que vincule as partes contratantes, e estabeleça um relação jurídica com direitos e obrigações reciprocamente determinados. Portanto, para que o incorporador possa dar prosseguimento ao seu projeto e comece a receber numerário ou crédito pelas vendas ou promessas de vendas, é imprescindível que ele e os adquirentes firmem um contrato específico para o fim que almejam.

O contrato é o negócio jurídico por excelência, onde o consenso de vontades dirige-se para um determinado fim. É ato jurídico vinculante, e criará ou modificará direitos e obrigações para as partes contraentes, sendo tanto o ato como seus efeitos permitidos, e em princípio, protegidos pelo direito. (MARQUES, p. 57, 2011)

Por se tratar de negócio jurídico por excelência, deve atender aos requisitos de validade em geral: agente capaz; objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não defesa em lei (art. 104, CC 2002).

Sob o prisma civilista, em suas lições preliminares no título V, capítulo I, para realização do contrato, deve-se observar sua função social, a boa-fé e a probidade entre os contratantes, sobretudo atentar para a relativização da liberdade contratual.

Os contratos celebrados entre incorporador e os adquirentes tem natureza jurídica bilateral, típico, oneroso, consensual, comutativo, solene e de execução continuada.

Bilateral porque encerra uma série de obrigações correspectivas para os participantes dos contrato (...), há, de um lado, a obrigação do incorporador de construir ou fazer construir edificação e entregar a unidade aos adquirentes e, de outra parte, há a obrigação do adquirente de pagar o preço, nos termos pactuados o respectivo contrato. (CHALHUB, p. 149, 2014)

“Enquadra-se como típico porque é regido por legislação própria, a Lei n. 4.591/64, que determina o sujeito da relação jurídica, seu objeto e disciplina condições, contornos e os efeitos.” (RIZZARDO, 2014, p. 248)   

Diz-se consensual porque as partes manifestam sua declaração de vontade; é oneroso porque existem obrigações e encargos recíprocos; é dito comutativo, pois existe equivalência entre as partes. O contrato é solene porque tanto a lei especial das incorporações e a lei geral civil assim determinam.  

A partir da celebração do contrato entre as partes, nasce uma relação jurídica com elementos obrigacionais e outro real. Para o incorporador surgem duas obrigações: uma de construir ou fazer construir o imóvel previsto no memorial de incorporação (obrigação de fazer), e outra, de entregar o imóvel averbado e individualizado, (obrigação de dar), ao passo que, para o adquirente surge a obrigação de pagar o preço, (obrigação de dar) e receber em transferência o domínio do imóvel (direito real).

1.2.1. Os contratos de incorporação em espécie

            Diversos são os instrumentos contratuais capazes de dar corpo ao negócio da incorporação imobiliária, entretanto este trabalho pretende analisar as duas espécies mais recorrentes na prática das empresas incorporadoras e que, por isso, ganham maior destaque na doutrina e na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça: são os contratos de promessa de compra e venda da unidade como coisa futura e de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária.  

1.2.1.1. Contrato de promessa de compra e venda da unidade como coisa futura

O instrumento mais utilizado pelas incorporadoras e reconhecidos como de maior incidência pela doutrina brasileira, é a promessa de compra e venda da unidade como coisa futura.

É prática consagrada no mercado a contratação da promessa de venda da unidade imobiliária como coisa futura, pela qual o incorporador, sendo proprietário do terreno e das acessões, promete vender a unidade e entregá-la “pronta”, por preço certo, reajustável ou não, acrescidos de juros ou não, assumindo o risco da construção, custe quanto custar, e podendo executá-la por si ou por terceiros; o promitente comprador, por sua vez, se obriga a pagar o preço convencionado, geralmente em parcelas, com atualização monetária e juros. Na linguagem corrente, esse contrato é conhecido como promessa de venda a preço fechado (PEREIRA, p. 232, 2014)

A promessa de compra e venda da unidade como coisa futura é contrato preliminar, e deve conter os requisitos essenciais do contrato definitivo, que será celebrado quando o adquirente pagar o preço e quitar o débito com o incorporador. Veja o que diz o Código Civil de 2002 sobre contrato preliminar:

Art. 462. O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado.

Art. 463. Concluído o contrato preliminar, com observância do disposto no artigo antecedente, e desde que dele não conste cláusula de arrependimento, qualquer das partes terá o direito de exigir a celebração do definitivo, assinando prazo à outra para que o efetive.

“O contrato vale para o adquirente como ‘compromisso preliminar de aquisição futura e, para o incorporador como promessa de construção e de venda.’” (CAMBLER, 1997, p. 87 apud CHALHUB, 2014, p. 185)

No contrato de promessa de compra e venda, o incorporador, promitente vendedor ou compromitente, se obriga a construir e entregar o imóvel concluído e transmite ao adquirente, promitente comprador ou compromissário, os direitos aquisitivos de usar e fruir sobre o imóvel, e conserva consigo o domínio, que só será transmitido após o pagamento do valor estipulado na avença e mediante novo contrato, agora de compra e venda.

O adquirente, promitente comprador, é titular de um direito real sobre a coisa, garantido pela lei civil vigente:

Art. 1.225. São direitos reais: (...)

VII - o direito do promitente comprador do imóvel; (grifo nosso)

Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel.

Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme o disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

O Decreto-lei nº 58/37 de 10 de dezembro de 1937, que dispõe sobre loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações, em seu art. 22, modificado pela Lei nº 6.014/73, também confere ao promitente comprador direito real sobre a coisa compromissada:

Art. 22. Os contratos, sem cláusula de arrependimento, de compromisso de compra e venda e cessão de direitos de imóveis não loteados, cujo preço tenha sido pago no ato de sua constituição ou deva sê-lo em uma, ou mais prestações, desde que, inscritos a qualquer tempo, atribuem aos compromissos direito real oponível a terceiros, e lhes conferem o direito de adjudicação compulsória nos termos dos artigos 16 desta lei[2], 640 e 641 do Código de Processo Civil[3]. (Redação dada pela Lei nº 6.014, de 1973)

Observa-se que a legislação civil brasileira, tanto no Código Civil de 2002, quanto em leis especiais, tem uma atenção especial para com o direito real do promitente comprador nas relações contratuais sem cláusula de arrependimento.

1.2.1.2. Contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária

Outra espécie de contrato também utilizada no mercado imobiliário para consecução do projeto de construção de um condomínio sob regime da incorporação imobiliária é o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária.

Nessa espécie contratual, o adquirente e o incorporador celebram um contrato definitivo de compra e venda com transmissão plena da propriedade em favor do adquirente, também chamado fiduciante, que, por sua vez, se obriga a pagar o preço estipulado na avença, à prazo certo, ao incorporador ou fiduciário e, em ato subsequente, transmite a propriedade fiduciária em favor do incorporador para garantir essa obrigação do financiamento. Outro fato importante que decorre dos contratos com garantia de alienação fiduciária de imóveis é o desdobramento da posse. “Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel.” (Art. 23, parágrafo único, Lei nº 9.514/97)

Por essa forma, o incorporador transmite ao adquirente a propriedade plena da futura unidade, por preço pagável a prazo, e, em ato subsequente, para garantia desse financiamento, o adquirente transmite ao incorporador a propriedade fiduciária da unidade que acabara de adquirir. (PEREIRA, 2014, p. 233)

Em tese, é perfeitamente possível esse arranjo contratual, contudo, na prática, o que se tem visto é uma configuração um pouco diferente, não na essência, mas na forma e na conformação das partes integrantes do negócio.

Na realidade, deve-se ter em mente que, o incorporador, na maioria das vezes, não dispõe de recursos monetários suficientes para executar integralmente o empreendimento imobiliário que lançou. Dessa forma, o incorporador recorre a uma instituição financeira que opere no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) ou no Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) para que ela promova contratos de mútuo com os adquirentes. Dessa forma, a incorporadora consegue antecipar os recursos financeiros que garantam a cobertura dos custos para construção do condomínio.   

Os valores do financiamento contraídos pelos compradores para pagamento do valor total do imóvel, como se pronto estivesse, são creditados à incorporadora, parceladamente, de acordo com o cronograma de obras, ao passo que, o comprador tem obrigação de restituir o financiamento com juros e correção monetária em favor da instituição financeira responsável pelo mútuo. Para garantir o crédito concedido em forma de financiamento imobiliário, a instituição financeira tem a garantia fiduciária da fração ideal do terrenos e suas acessões que serão erguidas ao longo da construção.

Nessa hipótese, o credor-fiduciário é a entidade de crédito ou instituição financeira que promoveu o contrato de mútuo com o adquirente. O incorporador é o vendedor da fração ideal, com obrigação de construir ou fazer construir e entregar o imóvel objeto do contrato, já o comprador ou adquirente é chamado de devedor-fiduciante.

Os traços de distinção entre os dois contratos, até então analisados, é objeto de comentário de Caio Mário da Silva Pereira:

Ao contratar a promessa de venda, o incorporador transmite ao adquirente os direitos aquisitivos sobre o imóvel, os iura utendi e fruendi, e conserva consigo o domínio, que só se transmitirá quando o adquirente complementar o pagamento do preço, fazendo-o mediante novo contrato, o de compra e venda.

Já ao contratar a compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária o incorporador transmite a propriedade plena ao adquirente e as partes firmam três contratos coligados, a saber, o de financiamento, o de compra e venda e o de garantia fiduciária; por essa operação o incorporador concede crédito ao adquirente e lhe vende a unidade, transmitindo-lhe desde logo o domínio pleno (diferentemente da promessa, em que só transmite os iura utendi e fruendi), e, em ato subsequente, o adquirente o alienará ao incorporador, ressalvo que essa alienação tem função exclusiva de garantia, e é por essa razão que a propriedade que o incorporador recebe é resolúvel, que se extingue automaticamente tão logo satisfeito seu crédito, independentemente de novo negócio jurídico e de intervenção judicial. (2014, p. 239)

O contrato de promessa de compra e venda da unidade como coisa futura e o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária são as duas espécies de contrato mais utilizadas nas incorporações imobiliárias, e, entre si, guardam algumas diferenças, sobretudo, no domínio do imóvel. “Na promessa, a permanência do bem no patrimônio do credor (promitente vendedor) é a regra, na alienação fiduciária, exceção” (PEREIRA, 2014, p. 240)

Além da diferença no que tange à questão dominial, tem-se que a promessa de compra e venda é contrato preliminar, ao passo que o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária é contrato definitivo. Aquele, depois do pagamento integral da avença, ainda assim, carece de um novo contrato para transmitir definitivamente o domínio ou a propriedade. Este, por sua vez, “com o pagamento da dívida, resolve-se a propriedade fiduciária do imóvel, revertendo a propriedade plena ao fiduciante (adquirente)”. (CHALHUB, 2012, p. 197).

Diz-se, então, que a propriedade do credor é resolúvel, pois verificada a condição, ou seja, o pagamento da dívida, automaticamente a propriedade do credor se resolve. Não sendo necessária nenhuma intervenção judicial ou extrajudicial. Basta que o credor forneça o termo de quitação e que o devedor fiduciante solicite o cancelamento do registro da propriedade fiduciária no Cartório de Registro de Imóveis. (art. 25, §§ 1º e 2º, Lei nº 9.514/97).  

   Analisado os pormenores dos contratos em espécie mais utilizados nas incorporações imobiliárias, pode-se afirmar que em comum são instrumentos que traduzem a vontade das partes de concretizar o negócio jurídico da compra e venda de unidade imobiliária em regime de incorporação imobiliária.

A Lei nº 4.591/64 carrega em sua essência a tarefa de proteger o adquirente, sabidamente vulnerável, pois está presumidamente em desvantagem econômica, técnica, jurídica e informacional em relação ao incorporador. Desta forma, a lei, tem em si, o escopo protetivo, de tornar as relações jurídicas mais transparentes e possibilitar um equilíbrio de condições contratuais.

Como já foi dito no início desse trabalho, a Lei nº 4.591/64 foi modificada pela Lei nº 10.931/2004, lei esta que trata, especialmente, dentre outros assuntos, sobre patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias. Esta lei incluiu o capítulo I-A “Do Patrimônio de Afetação” com os artigos 31A até 31F à Lei de Incorporações Imobiliárias. Para entender a definição de patrimônio de afetação, tem-se o art. 31A da Lei nº 4.591/64:    

Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.(Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

Patrimônio de afetação, em regime de incorporação imobiliária, é a segregação de bens, direitos e obrigações correspondentes a um determinado empreendimento. Esse patrimônio afetado permanece apartado do patrimônio geral do incorporador ou de outras incorporações promovidas pelo incorporador, seja ele pessoa física ou jurídica. Essa universalidade de direitos e obrigações é destinada à consecução da incorporação, com escopo de concluir o empreendimento com entrega dos imóveis previstos no memorial de incorporação e o registro dos títulos aquisitivos em nome dos adquirentes.

A incomunicabilidade entre o patrimônio afetado e o patrimônio geral do incorporador é característica essencial do instituto, que visa resguardar e tutelar os bens, direitos e obrigações que tem por finalidade a conclusão de determinado empreendimento, almeja, portanto, afastar os riscos patrimoniais que possam prejudicar ou frustrar a incorporação. Não há, entretanto, desmembramento ou cisão do patrimônio geral, nem criação de uma nova personalidade. Veja o que diz o §1º do art. 31A:

§ 1o O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

Entende-se que o legislador perdeu uma boa oportunidade de conferir às incorporações imobiliárias maior segurança jurídica e patrimonial aos adquirentes, quando deixou “a critério do incorporador” a decisão de afetar ou não o patrimônio que será destinado a consecução da incorporação. Essa também é a visão de Chalhub:

A despeito do grande alcance econômico e social desse mecanismo no contexto das incorporações imobiliárias, a parte inicial do art. 31A peca por deixar os adquirentes à mercê dos incorporadores, pois, ao invés de estabelecer a afetação como regra geral, compulsória, deixa sua adoção a critério do incorporador. (...)

Nada justifica que esse instrumento seja manejado a critério do incorporador, pois a proteção da economia popular não pode ser objeto de conveniência particular, mas, ao contrário, é matéria de interesse público que, a exemplo do que sucede no âmbito das relações de consumo, decorre do ‘reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo’ (Lei nº 8.078/1990, art. 4º, I), daí a necessidade de intervenção legislativa ‘para compensar eventual desvantagem contratual e garantir a segurança jurídica em favor do contratante mais fraco, impondo, para tal, regime jurídico próprio para determinadas atividades’.

Ao deixar a afetação a critério do incorporador, a Lei nº 10.931/2004 concede vantagem exagerada ao incorporador, agravando ainda mais a vulnerabilidade dos adquirentes e contrapondo-se ao fundamento axiológico da norma, expresso na concepção original do anteprojeto do Instituto dos Advogados Brasileiros e em todos os Projetos de Lei da Câmara, que, unissonamente, caracterizavam o acervo da incorporação imobiliária como um patrimônio afetado à destinação específica de garantir os direitos patrimoniais dos adquirentes. (2011, p. 94-95)

Não obstante a lei ter deixado a critério do incorporador a adoção ou não de regime de afetação na incorporação imobiliária, é inegável que a intenção legislativa foi de atribuir aos adquirentes um pacote normativo de maior proteção contra a falência ou insolvência civil do incorporador.

Art. 31-F. Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

Sem essa visão protetiva, os adquirentes estariam ainda mais vulneráveis frente aos riscos de uma possível falência ou insolvência do incorporador, e que isso poderia ser bastante desastroso ao patrimônio do comprador e, por conseguinte, trazer perdas irreparáveis aos adquirentes.

A Lei nº 11.101/2005, em seu art. 119, IX, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência da sociedade empresária, estabelece que o patrimônio de afetação criado com destinação específica estará submetido à lei respectiva, ou seja, o patrimônio de afetação constituído para consecução de empreendimento em regime de incorporação imobiliária deverá obedecer à Lei 4.591/64.

Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras: (...)

IX – os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.

Nota-se claramente que, a incomunicabilidade se dá também em questões falimentares, o que gera uma segurança maior para os adquirentes, que não precisarão habilitar-se no juízo de falência para satisfazer seus créditos. O montante arrecadado, feito o balanço entre as receitas e as despesas do patrimônio de afetação, será utilizado em benefício dos adquirentes, que decidirão, em assembleia se continuam com a construção ou processam a liquidação do patrimônio de afetação. Veja o que afirma o art. 31F, §1º:

Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora. (Incluído pela Lei nº 10.931, de 2004)

Mesmo que a Lei das Incorporações Imobiliárias possa ter um caráter protetivo bem definido, como restou demonstrado, principalmente após as modificações implementadas pela Lei nº 10.931/2004, ela não pode ser aplicada isoladamente nos casos concretos de compra e venda ou promessa de compra e venda, principalmente, quando ficar evidente uma relação de consumo regulada por contrato de adesão ou não.

É inevitável que, nessas hipóteses, passe a operar o Código Civil, o Código de Defesa do Consumidor ou outro diploma legal, para regular e equilibrar essa relação jurídica, muito embora, a Lei nº 4.591/64 seja considerada norma especial em relação ao tema incorporação imobiliária.


2. ASPECTOS DO DIREITO DO CONSUMIDOR APLICÁVEIS ÀS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS

O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, foi idealizado durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, e o legislador constituinte determinou sua elaboração no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT em seu art. 48: “O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor”.

O Código de Defesa do Consumidor, ou simplesmente CDC, como é conhecido no meio acadêmico e jurídico, foi promulgado em 11 de setembro de 1990 e entrou em vigor 180 dias após sua publicação em 11 de março de 1991.

Foi editado o Decreto nº 2.181, em 20 de março de 1997, que veio regulamentar a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e as normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas no CDC.

O projeto de lei do Código de Defesa do Consumidor, quando ainda estava em gestação no Congresso Nacional, em sua exposição de motivos (CONGRESSO NACIONAL, online), deixou bem evidente a influência que recebera da Resolução da ONU 39/248 (ONU, online) que aprovou em sessão plenária em 09 de abril de 1985, em nível supranacional, uma política de proteção ao consumidor direcionada aos seus países membros, particularmente os países em desenvolvimento.

O Código de Defesa do Consumidor é um microssistema normativo autônomo, gerado no momento histórico da descodificação do direito privado como reflexo da constitucionalização das relações jurídico-privadas. Com o advento da Constituição de 1988, viu-se a necessidade de criar normas especiais para a proteção dos vulneráveis e dos hipossuficientes das relações jurídico-privadas.

O neoconstitucionalismo refletiu na realidade infraconstitucional na medida em que a codificação cedeu espaço à descodificação, à micronormatização e à consequente humanização, fruto dos reclamos de grupos sociais minoritários que pressionam no sentido da formulação de leis particulares que lhes são favoráveis. No aspecto contextual desse movimento de descodificação e micronormatização observa-se a constitucionalização de institutos que outrora eram regulados exclusivamente pelo Direito Privado. (MARQUES Jr, William, 2013, p. 337)  

É nesse contexto que surgem normas especiais de proteção ao consumidor, à criança e ao adolescente, por exemplo. Tem-se, portanto, uma evolução no Direito, com origem na codificação do direito privado promovido pelos ideais liberais da Revolução Francesa, até se chegar nesse momento de descodificação, com a consagração da proteção da pessoa como centro da relação jurídico-privada.      

“A lei consumerista é norma de ordem pública e de interesse social, geral e principiológica, ela é prevalente sobre todas as demais normas anteriores, ainda que especiais, que com ela colidirem.” (NUNES, 2013, p. 118). O CDC é lei inserida no contexto da pós-modernidade jurídica e é reconhecidamente pela doutrina como norma de 3ª dimensão[4].

O código de proteção ao vulnerável negocial é tida como norma principiológica, porque encontra amparo constitucional no art. 5º, XXXII, que diz: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Pode-se afirmar que a defesa do consumidor é cláusula pétrea e que, a norma, aqui em comento, guarda prevalência sobre outras normas especiais, e, estas, por sua vez, devem guardar respeito e consonância às normas consumerista naquilo que for determinado como relação de consumo.

Além de ser reconhecido como direito fundamental, a defesa do consumidor é princípio geral da ordem econômica insculpida no art. 170, V, CF/88:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)

V - defesa do consumidor; (grifo nosso)

2.1. Os princípios basilares do CDC à luz da Constituição de 88: dignidade da pessoa humana, vulnerabilidade, hipossuficiência, boa-fé objetiva e função social do contrato

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é a norma por excelência, em uma interpretação sistemática e planetária, na concepção do jurista argentino Ricardo Luis Lorenzetti, pode-se afirmar que ela é o Sol, irradiando seus princípios a todo ordenamento jurídico brasileiro, e, sendo assim, é a partir do estudo da Constituição, que se chega aos princípios basilares que norteiam o Código de Defesa do Consumidor.

Não se pode iniciar um estudo principiológico do CDC, sem antes buscar os princípios constitucionais que lhes conferem eficácia. São os princípios constitucionais que ajudam a construir os princípios incorporados ao CDC.

“A Constituição de 88, pela primeira vez na história dos textos constitucionais brasileiros, dispõe expressamente sobre a proteção dos consumidores, identificando-os como grupo a ser especialmente tutelado através do Estado (direitos fundamentais, art. 5º XXXII)” (NERY apud MARQUES, 2011, p. 620)

  Na concepção de José Afonso da Silva, “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” (2009, p. 105). Para Rizzato Nunes, “(...) a frente de todos está o superprincípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), como especial luz a imantar todos os demais princípios e normas constitucionais (...)” (2013, p.114)

Percebe-se nitidamente que a intenção do legislador foi de reafirmar na lei consumerista, no art. 4º, o respeito à dignidade da pessoa humana, com foco especial no consumidor. Desta forma, compreende-se a dignidade da pessoa como princípio a ser perseguido incansavelmente. 

E outro princípio tão importante quanto os demais, o princípio da igualdade, que deve ser entendido em sentido formal e material, ou seja, atribui igualdade de todos perante a lei, mas também permite que sejam conferidos tratamentos diferenciados àqueles que estão em condições de desigualdade. A Constituição Federal de 88 reconhece que certos grupos de pessoas, por sua flagrante vulnerabilidade, merecem proteção constitucional, portanto, quando lei infraconstitucional prevê o reconhecimento dessa vulnerabilidade, ela o faz em direta correlação ao princípio da igualdade ou da isonomia.

O princípio da soberania, fundamento do próprio Estado, serve de substrato ao CDC, quando permite ao Brasil, por sua condição de autonomia, ser signatário de tratados ou pactos alienígenas que sejam compatíveis com o exercício dos direitos sociais e individuais e se coadunam com o art. 7º do CDC.

A cidadania como princípio e fundamento da própria República, aqui em sentido amplo, não representando apenas o ser político, mas o indivíduo detentor de direitos e deveres e integrado a sociedade estatal.

Estes princípios, aliados aos específicos previstos no CDC, justificam que o consumidor tenha um tratamento diferenciado em relação ao fornecedor, pois sua condição, seja por questões econômicas, técnicas, educacionais ou jurídicas de inferioridade, permitem que exista esse tratamento desigual, ou em outras palavras, uma igualdade material, com escopo de se alcançar um equilíbrio de forças entre as partes envolvidas na relação de consumo.    

Os princípios basilares do CDC estão insculpidos, principalmente nos artigos 1º, 4º e 6º, embora em outros artigos possam existir princípios implícitos no contexto da lei. “Os princípios são abstraídos das normas, dos costumes, da doutrina, da jurisprudência e de aspectos políticos, econômicos e sociais.” (TARTUCE, 2014, p. 28)

Para Moraes, o art. 4º do CDC é verdadeira norma-princípio, ou norma-objetivo,

(...) podemos identificar no art. 4º do CDC a existência da ‘norma objetivo’ por excelência da lei consumerista, na qual está contida a política das relações de consumo, destacando-se como alguns dos princípios maiores o da vulnerabilidade, da harmonia das relações de consumo, e o da repressão eficiente e todos os abusos (2009, p. 68)

O princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido como fundamento da república brasileira, presente no art. 1º, inc. III da Carta Magna de 88, tem reforçada sua importância, agora, nas relações de consumo e destaca-se no CDC.

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade (grifo nosso), saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

O princípio da vulnerabilidade é corolário do princípio da dignidade da pessoa humana e do princípio da igualdade, e é condição intrínseca do consumidor, ou seja, a condição de vulnerável é presumida, para tanto, basta o enquadramento do sujeito como consumidor, nos termos da lei consumerista, estará ele albergado pela condição de vulnerabilidade.

Percebe-se que o consumidor, por definição legal e principiológica, é a parte sempre vulnerável nas relações de consumo, senão veja o que diz a Lei nº 8.078/90 em seu art. 4º, inc. I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; (grifo nosso)

Para Flávio Tartuce, “(...) a expressão consumidor vulnerável é pleonástica, uma vez que todos os consumidores tem tal condição, decorrente de uma presunção que não admite discussão ou prova em contrário” (2014, p. 34)

Outro princípio importante na construção das relações de consumo é o da hipossuficiência, que não deve ser confundida com o princípio da vulnerabilidade. Este é característica de todo consumidor, tal presunção é absoluta ou iure et de iure. Ao passo que, aquele deve ser observado no caso concreto, pois nem todo consumidor é hipossuficiente.

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente (grifo nosso), segundo as regras ordinárias de experiências;

Nota-se que a condição de hipossuficiência do consumidor vai muito além da sua condição econômica. A hipossuficiência legitima tratamento diferenciado ao consumidor, como por exemplo, o pedido de inversão do ônus da prova. Para Moraes, “(...) a definição sobre hipossuficiência é ope juris, cabendo ao magistrado a definição no caso concreto”. O mesmo autor leciona que “vulnerabilidade é uma categoria jurídica de direito material, enquanto hipossuficiência é de direito exclusivamente processual” (2009, p. 130; 136).

Outros dois princípios importantes para a interpretação das normas de consumo e dos institutos jurídicos a elas subordinadas são a boa-fé objetiva e a função social dos contratos.

A boa-fé objetiva é “(...) uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo.” (NUNES, 2013, p. 181)

Analisando o art. 4º, inc. III, tem-se:

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé (grifo nosso) e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Portanto, denota-se que o CDC exige dos sujeitos da relação de consumo um respeito mútuo, um dever de probidade e uma busca pelo equilíbrio da relação consumerista. “A boa-fé objetiva traz a ideia de equilíbrio negocial, que, na ótica do Direito do Consumidor, deve ser mantido em todos os momentos pelos quais passa o negócio jurídico” (TARTUCE, 2014, p. 38).

A função social do contrato, é um princípio implícito no Código de Defesa do Consumidor, entretanto está bem explícito no Código Civil: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato (grifo nosso).”

 Como já visto nesta obra, o princípio da função social veio relativizar a autonomia da vontade “pacta sunt servanda” prevista nos contratos, sejam eles civis ou consumeristas.

A partir da análise dos princípios aqui expostos, com o auxílio de métodos hermenêuticos e do “diálogo das fontes” de Erik Jayme, pretende-se fazer uma conexão entre a lei das incorporações imobiliárias e o Código de Defesa do Consumidor, bem como conceituar e enquadrar os sujeitos e o objetos da incorporação imobiliária em subsunção aos sujeitos e objetos da norma consumerista, quando estabelecida a relação inequívoca de consumo.

Antes, faz-se necessário conceituar consumidor, fornecedor, produto e serviço e alinhá-los pela melhor interpretação, pela analogia, aos conceitos já delineados de adquirente, incorporador, unidade imobiliária ou fração ideal e construção.

2.2. O adquirente como consumidor

Da própria lei consumerista, em seu art. 2º, extrai-se a definição legal de consumidor:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

O informativo nº 510 da 3ª Turma do STJ define o conceito de consumidor:

Não ostenta a qualidade de consumidor a pessoa física ou jurídica que não é destinatária fática ou econômica do bem ou serviço, salvo se caracterizada a sua vulnerabilidade frente ao fornecedor. A determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica. Dessa forma, fica excluído da proteção do CDC o consumo intermediário, assim entendido como aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição, compondo o custo (e, portanto, o preço final) de um novo bem ou serviço. Vale dizer, só pode ser considerado consumidor, para fins de tutela pelo CDC, aquele que exaure a função econômica do bem ou serviço, excluindo-o de forma definitiva do mercado de consumo. Todavia, a jurisprudência do STJ, tomando por base o conceito de consumidor por equiparação previsto no art. 29 do CDC, tem evoluído para uma aplicação temperada da teoria finalista frente às pessoas jurídicas, num processo que a doutrina vem denominando “finalismo aprofundado”. Assim, tem se admitido que, em determinadas hipóteses, a pessoa jurídica adquirente de um produto ou serviço possa ser equiparada à condição de consumidora, por apresentar frente ao fornecedor alguma vulnerabilidade, que constitui o princípio-motor da política nacional das relações de consumo, premissa expressamente fixada no art. 4º, I, do CDC, que legitima toda a proteção conferida ao consumidor (...). (STJ online)

Percebe-se, após análise do informativo do STJ, que o entendimento exarado pela 3ª Turma, tem orientado a jurisprudência da referida Corte no sentido da existência de uma nova teoria, uma terceira vertente, que buscou nas teorias maximalista e finalista um equilíbrio na definição de quem é o consumidor, que continua sendo aquela pessoa física não profissional, com presunção de vulnerabilidade absoluta, mas se admite o consumidor pessoa física profissional e ou a pessoa jurídica, desde que comprovada a vulnerabilidade no caso concreto. Este novo pensamento, que nasce da construção jurisprudencial do STJ, ficou conhecido, nas palavras da professora Cláudia Lima Marques, por “finalismo aprofundado ou interpretação finalista aprofundada.” (2011, p. 350).

Resgatando o conceito de adquirente, promitente comprador, ou simplesmente comprador, visto no capítulo 2, observa-se com nitidez que, a pessoa física que comprar um “imóvel na planta”, se o fizer como destinatário final, será enquadrado como consumidor.

Caso o adquirente seja um investidor pessoa física, que tem interesse apenas especulativo, pois pretende revender o imóvel após concluído o empreendimento para auferir lucro, como ficaria sua situação? Ou caso o adquirente seja uma pessoa jurídica? Em princípio, não seriam considerados consumidores, posto que, em tese nem seriam considerados vulneráveis nem destinatários finais do produto, entretanto, se comprovada a vulnerabilidade de ambos no caso em concreto, à luz da jurisprudência do STJ, é possível o reconhecimento da condição de consumidores.

Este trabalho, portanto, filiar-se-á a teoria finalista aprofundada, consagrada pela jurisprudência do STJ, ou seja, o consumidor final é a pessoa física não profissional que retira o produto do mercado com intuito de consumi-lo em proveito próprio ou de outrem, mas também aquele profissional ou pessoa jurídica que demonstre no caso concreto sua vulnerabilidade.  

O CDC equipara a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, e sejam sujeitos em uma relação de consumo. Pode-se afirmar que compradores de unidades imobiliárias em regime de incorporação imobiliária, comprovada a relação de consumo, e que tenham seus direitos lesados por incorporador, por fatos previstos na lei especial quanto na lei consumerista, podem intentar ação coletiva com fulcro no art. 81, inc. II do CDC.

2.3. O fornecedor como incorporador

O Código de Proteção ao Vulnerável assim fala sobre fornecedor:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços

Do artigo conceitual, verifica-se que, a figura do incorporador se conecta diretamente ao conceito de fornecedor insculpido no CDC. Voltando no conceito geral de incorporador, determinado no art. 29 da Lei n. 4.591/64 e na doutrina até aqui analisada, tem-se que, podem ser incorporadores as pessoas físicas ou jurídicas, que efetuem ou não a construção e que compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno.

Visto isso, nota-se que o incorporador é sim um fornecedor, à medida que ele pode ser uma pessoa física ou jurídica, de direito privado ou de direito público, em raríssima exceção prevista (art. 31, c, LDI)[5], desempenha a atividade, leia-se também serviço, de construção e comercializa produto (unidade imobiliária autônoma) com profissionalismos e habitualidade.

2.4. O imóvel como produto           

O conceito de produto está previsto no art. 3º, § 1° do CDC “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial”.

Esse conceito de produto é universal nos dias atuais e está estreitamente ligado à ideia do bem, resultado da produção no mercado de consumo das sociedades capitalistas contemporâneas. É vantajoso o seu uso, pois o conceito passa a valer no meio jurídico e já era uado por todo os demais agentes do mercado (econômico, financeiro, de comunicações, etc). (NUNES, 2014, p. 139).

Quando a lei consumerista fala em bem imóvel, está empregando o mesmo conceito extraído da lei civil, que define imóvel como:

Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.

Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:

I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;

II - o direito à sucessão aberta.

Do conceito de incorporação imobiliária, verificado no parágrafo único do art. 28 da Lei nº 4.591/64, constata-se que o objetivo dessa atividade é promover a construção, para alienação total ou parcial de unidades autônomas, que nada mais são que bens imóveis por definição legal.

Portanto, o bem imóvel, objeto da relação jurídica que nasce de um contrato em regime de incorporação, bem como os direitos reais sobre esse imóvel e as ações que os asseguram, são, por definição legal produto à luz da lei consumerista.

2.5. A construção como serviço

As incorporadoras podem construir ou contratar uma empresa ou responsável técnico que assumam esse papel de construtor. Contudo, o incorporador é responsável pela construção, e responderá civilmente por eventuais atrasos e pela não entrega da obra.           

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.           

Pode-se admitir portanto, que a construção de imóveis em regime de incorporação enquadra-se no conceito de serviço do CDC, posto que é realizado com profissionalismo e habitualidade, é um serviço remunerado e contratado por pessoas vulneráveis.

Importante frisar que, para saber se a relação jurídica tem como objeto um produto ou serviço é preciso examinar qual é o elemento nuclear do vínculo obrigacional. Caso seja uma obrigação de dar, o objeto da obrigação será um produto, ao passo que, se a obrigação for de fazer, o objeto será um serviço. (GHEZZI, 2011, p. 180)

No exame das incorporações imobiliárias e suas obrigações, verificou-se que o incorporador tem dupla obrigação para com o adquirente. Tem uma obrigação de dar, ou seja, entregar imóvel concluído, averbado e individualizado. Portanto, verifica-se claramente que se trata de alienação de produto ao consumidor. A segunda obrigação é de fazer, que consiste na construção de unidade imobiliária, assim, tem-se a caracterização de serviço previsto no §2º do art. 3º do CDC.    

2.6. Aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor às Incorporações Imobiliárias

            Depois de toda exposição dos princípios constitucionais e consumeristas, após a análise dos conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço, em comparação aos conceitos de incorporador, adquirente e unidade imobiliária ou fração ideal, é inegável que o Código de Defesa do Consumidor tem aplicabilidade à Lei das Incorporações.

Cláudia Lima Marques afirma que:

A aplicação do CDC ao contrato é pacífica, mas este ‘diálogo das fontes’ se dará entre a lei especial (Lei 4.591/64), o CDC, o Código Civil de 2002 (CC/2002) e a Lei do Patrimônio de Afetação (Lei 10.931/2004), sendo que esta acabou trazendo substanciais modificações à incorporação imobiliária no Brasil. (2011, p. 462)

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também se manifestou sobre a aplicabilidade do CDC à norma especial que trata de incorporação imobiliária no REsp. 80.036/SP, cuja parte da ementa se transcreve:

O contrato de incorporação, no que tem de específico, é regido pela lei que lhe é própria (Lei 4.591/64), mas sobre ele também incide o Código de Defesa do Consumidor, que introduziu no sistema civil princípios gerais que realçam a justiça contratual, a equivalência das prestações e o princípio da boa-fé objetiva. (STJ online)

            Para Melhim Namem Chalhub, deve-se atentar para as características próprias de cada negócio jurídico, posto que, os contratos de consumo e de incorporação tem estruturas e conteúdos particulares.

Disso decorre obviamente, que a eventual aplicação de princípios e normas contidas no CDC não deve ser feita de modo indiscriminado, devendo, antes ser verificada a adequação da norma à realidade fática e à tipicidade do contrato em questão, pois, na verdade, normas relativas às relações de consumo não são dotadas de fungibilidade que as tornem suscetíveis de aplicação sem ressalvas aos contratos de incorporação, salvo quanto às cláusulas gerais comuns a todas as modalidades de contrato. (2012, p. 328)

Das ideias expostas, conclui-se que não se pode interpretar as leis de forma estanques, isoladas do contexto social e do caso concreto. É necessário, pois, que exista um diálogo entre as diversas fontes legislativas, capazes de, juntas, dar o melhor entendimento sobre o direito em questão. Assim leciona Marques:

O diálogo das fontes é, pois, a aplicação simultânea, compatibilizadora, das normas em conflito, sob à luz da Constituição, com efeito útil para todas as leis envolvidas, mas com eficácias (brilhos) diferenciadas a cada uma das normas em colisão, de forma a atingir o efeito social (e constitucional) esperado. O brilho maior será da norma que concretizar os direitos humanos envolvidos no conflito, mas todas as leis envolvidas participarão da solução concorrentemente. (2011, p. 628)

A aplicação do CDC, indiscriminadamente, sobre os contratos de incorporação imobiliária, não parece realmente ser o melhor entendimento. Entretanto, comprovada a relação jurídica de consumo, e existindo uma interpretação do direito mais favorável ao consumidor no CDC ou no Código Civil ou em qualquer outro diploma legal, inclusive, deve-se privilegiar o vulnerável, não em detrimento do incorporador, no caso, fornecedor, mas porque assim determina a Constituição, quando eleva, à categoria de garantia fundamental, a proteção do consumidor.


Notas

[1] O ente previsto na alínea “c” do art. 31 não será objeto desse estudo pois se trata de situação abordada pelo Direito Administrativo.

[2] Art. 16. Recusando-se os compromitentes a outorgar a escritura definitiva no caso do artigo 15, o compromissário poderá propor, para o cumprimento da obrigação, ação de adjudicação compulsória, que tomará o rito sumaríssimo.

[3] Os arts. 640 e 641 do Código de Processo Civil foram modificados pela Lei nº 11.232/2005 e ganharam nova redação e numeração, passaram a ser o arts. 466-C e 466-A, respectivamente

[4] “Os direitos de 3ª dimensão ou geração são relativos ao princípio da fraternidade. Na verdade, o Código de Defesa do Consumidor tem relação com todas as três dimensões. Todavia, é melhor enquadrá-lo na terceira dimensão, já que a Lei Consumerista visa à pacificação social, na tentativa de equilibrar a díspar relação existe entre fornecedores e prestadores”. (TARTUCE, p. 9, 2014) 

[5] Essa exceção não será objeto de estudo pois é objeto do Direito Administrativo


Referências:

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______. Lei nº 4.591 de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Brasília, 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4591.htm> Acesso em: 30 mar. 2014.

______. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm> Acesso em: 30 mar. 2014.

______. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm> Acesso em: 30 mar. 2014

______. Lei no 10.931, de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei no 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis no 4.591, de 16 de dezembro de 1964, no 4.728, de 14 de julho de 1965, e no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm> Acesso em: 30 mar. 2014

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WATANABE, Kazuo. Código de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011 v. II


Autor

  • Oton Fernandes Mesquita Junior

    Advogado e sócio fundador do escritório Themótheo & Fernandes Advogados Associados; Graduado pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC; Pós-graduado em Direito Imobiliário pela Faculdade Metropolitana - FAMETRO em parceria com a Escola Superior da Advocacia do Ceará - ESA; Pós-graduando em Direito Civil pela UNIDERP – Anhanguera em parceria com a Rede de Ensino LFG; Pós-graduando em Direito Processual Civil pela UNIFOR; Corretor e avaliador de imóveis credenciado pelo CRECI.

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Informações sobre o texto

O texto aqui publicado faz parte do 2º e 3º capítulos do Trabalho de Conclusão de Curso - TCC que será defendida pelo autor em maio de 2014 para obtenção do título de graduação no curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JUNIOR, Oton Fernandes. Comentários sobre incorporação imobiliária à luz do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3997, 11 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28219. Acesso em: 26 abr. 2024.