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Garantia de emprego e estabilidade em caso de discriminação

Garantia de emprego e estabilidade em caso de discriminação

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1. Introdução

Desde sua inserção constitucional como norma-princípio até a plena regulamentação por leis posteriores, o combate à discriminação tem sido um fator constante na legislação brasileira, mas ainda são necessários esclarecimentos sobre o seu alcance no Direito do Trabalho.

A discussão contemporânea consiste no alcance da lei n.º 9.025/95 que, defenderia os direitos da mulher contra demissão por ser gestante, mas que, conforme será adiante defendido, trata-se de norma de combate à discriminação genérica nas relações de trabalho.

Será preciso partir da análise principiológica, para constatar que norte existe para o juslaboralismo e, assim, comparar a estrada ditada por princípios com a evolução normativa desde a Carta Magna de 1988. Alcançar-se-á, deste modo, a própria vontade do legislador. A doutrina tem esclarecido a questão ao abordar a condição de grupos politicamente minoritários em busca de garantia de emprego. Estes serão vistos separadamente: portadores do vírus HIV, pessoas com deficiência física, mental ou sensorial, grupos étnicos.

Para respeitar o método dialético, partiremos da análise dos fenômenos mais complexos e abstratos para compreender o caso particular concreto. Neste movimento racional, será possível enxergar nas partes a vigência do todo normativo, assim visaremos à harmonia do sistema jurídico na análise não apenas legal, mas eminentemente jurídica dos institutos.


2. A Relevância dos Princípios Jurídicos sobre Estabilidade

Apesar da ausência mesmo de posições doutrinárias consolidadas sobre o tema, há sólido caminho para a investigação jurídica no Direito Constitucional, como defende Luis Roberto Barroso ao ressaltar a relevância dos princípios à interpretação jurídica:

Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete (BARROSO, 2001: 20).

Assim, a ponderação entre princípios, visando-se à máxima harmonia possível do sistema jurídico, pode permitir ao intérprete do caso concreto analisar com segurança discussões cujo tema não se encontra literalmente transcrito nas normas, mas já encontraria pleno tratamento jurídico. Os princípios gerais de Direito, segundo Paulo Nader, permitem ao operador jurídico atribuir sentido às normas. Sem eles, os comandos legais manter-se-iam desvinculados da vida social, pois não existiria um sistema jurídico teleologicamente orientado, deles tudo decorre para conectar as normas ao seu tempo (1995:234). Cabe, assim, grande atenção ao art. 8º da CLT:

Art. 8º - As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por eqüidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.

Luiz de Pinho Pedreira da Silva, recorda a pressuposta hipossuficiência do trabalhador na Justiça do Trabalho:

/.../ quase todos, senão todos os princípios específicos do Direito do Trabalho poderiam ser sintetizados num só: o de proteção ao trabalhador, que constitui a causa e o fim imediato deste Direito, porque o seu objetivo mediato e último é o equilíbrio social (apud BARROS, 1998:241).

Neste sentido, mesmo as fontes do Direito do Trabalho têm em um dos princípios, pelo histórico das lutas operárias no Brasil, seu máximo fundamento, superior mesmo às normas à primeira vista antagônicas que possam existir em nosso ordenamento jurídico. Com estas breves considerações, torna-se possível interpretar a legislação referente ao tema.


3. Evolução Normativa da Questão

O Preâmbulo constitucional antecipa o tratamento do tema, ao informar que o povo brasileiro institui, por seus representantes, a Constituição de 1988 visando assegurar os valores "de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social", sendo logo após erigida como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Entre os objetivos fundamentais, o tema retorna à baila pois o art. 3º, IV, defende a promoção do bem de todos "sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O caput do art. 5º, sem receio de parecer repetitivo, ressalta mais uma vez: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza".

Tais normas permitiram ao legislador traçar em suas promulgações um rumo, conforme pode ser conferido nas normas posteriores sobre o mesmo tema. Poucos meses após a promulgação da Constituição Federal, em 05 de janeiro de 1989, surgiu a lei n.º 7716, que definia os crimes resultantes de preconceito de raça e de cor. Apesar da denominação biologicamente absurda, uma vez que não há distinção racial entre os homens, sendo todos da mesma espécie homo sapiens, a mensagem fora devidamente clara. Atos discriminatórios nas relações de trabalho já se encontravam nos primeiros artigos desta lei:

Art. 1º - Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceitos de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

/.../

Art. 3º - Impedir ou obstar o acesso de alguém, devidamente habilitado, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos:

Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Art. 4º - Negar ou obstar emprego em empresa privada:

Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

Além destas normas, a lei n.º 7.716/89 foi posteriormente modificada em 1990 (Lei n.º 8.081) e em 1997 (Lei n.º 9.459). Mas entre ambas encontrava-se outra norma que esclarecia a discriminação nas relações de trabalho. A Lei n.º 9.029, de 13 de abril de 1995, tem em sua ementa: "Proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho, e dá outras providências" (grifo nosso). Talvez pareça possível afirmar que as normas não se refeririam a qualquer hipótese de discriminação mas à condição feminina, mas é surpreendente que operadores do Direito não leiam integralmente a ementa da lei que estão a comentar [01]. O art. 1º do referido estatuto é ainda mais evidente:

Art. 1º Fica proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal.

O art. 2º trata de práticas discriminatórias na admissão da mulher ao trabalho, mas o art. 3º adverte que, sem prejuízo do prescrito no artigo anterior, há penas adicionais que podem ser infringidas a quem discriminar o trabalhador. Todavia, é no art. 4º que se insere a mais polêmica das normas desta aparentemente translúcida Lei:

Art. 4º O rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, nos moldes desta lei, faculta ao empregado optar entre:

I - a readmissão com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, mediante pagamento das remunerações devidas, corrigidas monetariamente, acrescidas dos juros legais;

II - a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.

Se ainda há de juristas pátrios resistência à aplicação de tais normas, apesar dos princípios gerais de Direito e específicos do Direito do Trabalho além da recomendação neste sentido a que tendem as fontes do Direito pelo art. 8º da CLT, quaisquer dúvidas podem ser sanadas empregando-se norma posterior. A Declaração Sócio-Laboral do Mercosul, de 1998, assim assevera logo em seu art. 1º:

Art. 1º. Todo trabalhador tem garantida a igualdade efetiva de direitos, tratamento e oportunidades no emprego e ocupação, sem distinção ou exclusão por motivo de raça, origem nacional, cor, sexo, ou orientação sexual, idade, credo, opinião política ou sindical, ideologia, posição econômica ou qualquer outra condição social ou familiar, em conformidade com as disposições legais vigentes.

Os Estados-Partes comprometem-se a garantir a vigência deste princípio de não-discriminação. Em particular, comprometem-se a realizar ações destinadas a eliminar a discriminação no que tange aos grupos em situação desvantajosa no mercado de trabalho. (apud VIEIRA, 2000: 129).

As controvérsias que decorrem deste artigo são ainda mais nítidas quando recordamos as normas antes vigentes sobre a estabilidade do trabalhador. Pois a legislação ora vigente não mais assinala pela ampla e irrestrita eliminação da estabilidade, conforme será demonstrado.


4. A Estabilidade do Servidor Público e a Estabilidade Especial

Para servidores lotados em cargos de provimento efetivo, a Constituição Federal, em seu art. 41, com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 19 de 1998, permite a aquisição de estabilidade após três anos de exercício (período de estágio probatório [02]), o que é denominado estabilidade ordinária. Nestas condições, o servidor apenas deixará de ocupar o cargo e perderá sua função no serviço público: a) por sentença judicial transitada em julgado; b) por processo administrativo; c) por procedimento de avaliação periódica de desempenho; d) para assegurar o cumprimento de limite de despesa com pessoal ativo e inativo, segundo lei complementar (Lei de Responsabilidade Fiscal). Segundo o § 2º do mesmo artigo, em caso de invalidada a demissão, por sentença judicial, será o servidor estável reintegrado.

Fora da esfera pública, a CLT, em seu art. 492, disciplinou a estabilidade para trabalhadores com período superior a 10 anos de atividade em mesma empresa, não podendo este ser demitido se não ocorresse falta grave ou motivos de força maior. A Constituição de 1967 permitira a opção entre estabilidade com dez anos de tempo de serviço e fundo de garantia.

A Constituição de 1988 extingüiu esta opção, mantendo apenas o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, sem embargo do direito adquirido de trabalhadores que já desempenhassem suas funções antes de sua promulgação. De acordo com o texto constitucional vigente e da CLT, há apenas tipos especiais de estabilidade, que não garantem a reintegração ao cargo. Porém, a indenização em dobro em caso de demissão arbitrária ou sem apuração de falta grave [03].

Constata-se, assim, que o art. 4º da Lei n.º 9.029/95 assimila ambas condições, aquela da estabilidade hoje garantida apenas como direito adquirido àqueles trabalhadores que já labutavam antes da CF/88, e os supervenientes efeitos da estabilidade especial, pois permite, , a opção entre reintegração à função anterior à demissão e indenização em dobro.

Poderia, portanto, configurar-se como espécie de estabilidade, para empregados passíveis de discriminação social, quando a demissão for sem justa causa.


5. A Estabilidade em caso de Discriminação

O art. 7º, I, da Constituição Federal disciplinou o tema ao disciplinar como direito dos trabalhadores a proteção contra "relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos".

Mesmo não se tratando de lei complementar, mas ordinária, a Lei n.º 9.025 regulamentou o referido inciso, protegendo contra despedida arbitrária ou sem justa causa determinada condição ilícita motivadora de demissão: a discriminação de qualquer natureza.

Aparentemente, torna-se difícil qualquer tentativa de conceituação da discriminação em virtude de ser algo tão abrangente, mas a doutrina e a jurisprudência têm indicado limites à sua efetividade. A rigor, toda seleção de pessoal é uma forma de discriminação, pois são escolhidos, sob critérios, em parte subjetivos, novos profissionais. Mas se puder ser comprovado que entre estes critérios estão aspectos que não sejam essenciais ao exercício adequado da função, existirá discriminação conforme a lei, balisados por princípios jurídicos tais como a razoabilidade e a proporcionabilidade. Neste sentido, Martha Schmidt ressalta a discriminação com base não na demissão, mas nas dificuldades das mulheres para promoção funcional, em diferenças salariais para empregados que ocupam cargos semelhantes, apesar da jurista apresentar estatísticas de que as mulheres sob esta discriminação costumam possuir escolaridade superior a seus colegas do gênero oposto (SCHMIDT, 2001)

Demissões coletivas têm sido anunciadas por multinacionais e mesmo por grandes empresas brasileiras. Nestes casos, apesar do aparente absurdo de tal comentário, torna-se necessário garantir que seja plenamente aleatória a demissão, não podendo excluir grupos étnicos, classes sociais e ambos os gêneros, masculino e feminino.

O mesmo se dá quanto à aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, quando as prefeituras tiverem folha de pessoal superior a 50% de suas despesas. Neste sentido é valioso o exemplo de Márcio Túlio Viana, segundo o qual onde a lei nada dispõe deve viger o princípio da isonomia considerando-se empregados em mesma situação profissional:

/.../ se dois empregados, com o mesmo grau de culpa e iguais antecedentes, se envolvem na prática de furto, não pode o empregador despedir apenas um deles, pelo simples fato de ser chinês, católico ou comunista. Se o fizer, a dispensa será injusta, e a hipótese cai sob a incidência da Lei n. 9.020 (VIANA, 1998: 555).

Américo Plá Rodriguez torna ainda mais simples a questão, mesmo não se referindo a qualquer norma estritamente nacional. Pois o jurista considera discriminatório o comando aos empregados que tenha origem em aspectos estranhos à relação trabalhista. Se o empregado for excluído do seu cargo por condição específica que possua mas que não guarde qualquer influência sobre seu desempenho laboral, ocorre clara invasão da sua intimidade. São contestados, assim, questionários de avaliação laboral que exijam informações domésticas do trabalhador, assim como exames genéticos, sangüíneos, deve-se proteger a intimidade do trabalhador (RODRIGUEZ, 1998: 203). De modo semelhante, analisa Celso Antônio Bandeira de Mello:

/.../ as discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida /.../ (MELL0, 1998: 17).

Em caso contrário, será aplicável a lei n.º 9029, podendo ser readmitido o empregado ou tendo direito a indenização em dobro, caso comprove judicialmente fazer parte de grupo sócio-politicamente minoritário e que outros empregados deveriam ser demitidos em seu lugar. Esta estabilidade tem sido mensurada socialmente através de decisões que abordam a condição do portador do vírus HIV, conforme será adiante analisado.


6. A Jurisprudência e a Estabilidade do Trabalhador Portador do Vírus HIV

Apesar de não existirem normas específicas quanto à estabilidade de empregado que, por exames da empresa, seja descoberto que seja HIV positivo, a 3ª Turma do TRT da 15ª Região, no acórdão n.º 29.060/2000-SPAJ, de 15 de agosto de 2000, foi translúcida quanto ao tema, conforme sua ementa:

AIDS – Portadora de HIV tem direito à estabilidade no emprego – Dispensa imotivada presumida discriminatória – Reintegração determinada. Os direitos à vida, à dignidade humana e ao trabalho, levam à presunção de que qualquer dispensa imotivada de trabalhadora contaminada com o vírus HIV é discriminatória e atenta contra os princípios constitucionais insculpidos nos arts. 1º, incs. III e IV, 3º, inc. IV, 5º, caput, e inc. XLI, 170, 193. A obreira faz jus a estabilidade no emprego enquanto apta para trabalhar, eis que vedada a despedida arbitrária (art. 7º, inc. I, da Constituição Federal). Reintegração determinada enquanto for apta a trabalhar. Aplicação dos arts. 1º e 4º, inc. I da Lei n.º 9.029, de 13 de abril de 1995 (cf. CLT, art. 8º c/c CPC, art. 126, c/c LICC, art. 4º). Os riscos da atividade econômica são da empresa empregadora (CLT, art. 2º), sendo irrelevante eventual queda na produção, pois a recessão é um mal que atinge todo o país.

Contudo, esta decisão não foi pioneira e, conforme o próprio texto do acórdão, já existe entendimento jurisprudencial claro quanto ao assunto:

Portador do vírus HIV – Despedimento injusto – Presunção de discriminação – Reintegração. O despedimento injusto de empregado portador do vírus HIV, ainda que assintomático, presume-se discriminatório e, como tal, não é tolerado pela ordem jurídica pátria, impondo-se, via de conseqüência, sua reintegração. Referências: Constituição Federal, arts. 3º, IV, e 7º, XXXI (TRT – 3ª R no RO n.º 16.691/1994 – Ac. Da 3ª T – Rel. Juiz Levi Fernandes Pinto – in DJ-MG de 05.09.95).

Mas não apenas Tribunais Regionais têm decidido sobre a questão. No mesmo ano de 1995, o Tribunal Superior do Trabalho teve a oportunidade de se manifestar de acordo com a estabilidade do empregado discriminado:

AIDS – Reintegração – Despedida arbitrária e discriminatória. A aplicação da Lei n.º 9.025/95 de maneira analógica não tem o condão de atritar com as normas constitucionais garantidoras dos direitos "mínimos" dos trabalhadores, na medida em que, aqui, não se vislumbra simples despedida arbitrária, mas sim despedida arbitrária e discriminatória. Equivoca-se a embargante ao considerar que a decisão turmária lesiona preceito de ordem constitucional, uma vez que este órgão julgador tão-somente cuidou, e de forma bastante cautelosa, para que a Carta Magna deste País restasse devidamente observada e respeitada. Logo, tem-se que a própria Constituição Federal que proíbe de maneira inequívoca, no caput do seu art. 5º, qualquer espécie de discriminação. Depreende-se, pois, daí, que a supracitada norma também alcança as relações de trabalho (TST, no ED-RR n.º 217.791/1995-3 – Ac. Da 2ª T – Rel. Min. Valdir Righetto – in DJU de 22.05.98).

É preciso salientar que nas três decisões não foi utilizada apenas interpretação analógica, mas trilhou-se o caminho que, sem receio de cometer redundância, fora iniciado com os princípios jurídicos, norte da aplicação da lei. Na hipótese de ocorrer demissão sem justa causa de empregado portador da referida síndrome, ainda é necessário observar que a legislação securitária nacional assegura ao trabalhador que seu empregador apenas o demita após encerrar as possibilidades de sua reintegração ao trabalho, mesmo que em trabalho de hierarquia inferior verticalmente.

Se a empresa alegasse que não poderia sustentar empregado doente (apesar do vírus não necessariamente manifestar a doença e os medicamentos serem acessíveis gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde), seria o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) o responsável pelo pagamento do auxílio-doença se o empregado estivesse incapacitado para o trabalho após 15 dias consecutivos, do mesmo modo que se ficar comprovado que a incapacidade seja permanente, segundo o art. 59 da Lei n.º 8.213/91.

Portanto, como adverte Maria das Graças Oliva Boness, a despedida neste caso será obstativa do benefício previdenciário, tornando possível a reintegração para ter direito ao benefício (BONESS, 1998: 324), hipótese, portanto, de dispensa obstativa, o que será explicado quando for analisada a condição da empregada doméstica gestante. Além disto, não poderiam alegar a dificuldade para adaptação do empregado por limitações de qualquer ordem, pois desde o ano 1991, com a Lei n.º 8.213, em seu art. 93, empresas com número de empregados igual ou superior a cem indivíduos são obrigadas a manter em seus quadros 2% a 5% de portadores de deficiências físicas [04].

Não se trata, portanto, de excentricidade de certa corrente jurisprudencial, mas da aplicação dos comandos já presentes no ordenamento jurídico, apenas visando-se à sua harmonização. Com estes esclarecimentos sobre temas cuja polêmica é crescentemente inócua, bastando para tanto a análise imanente dos temas, pode-se atingir parcela do problema cujo trâmite jurídico é difícil, pois as normas são particularmente obscuras, a condição da gestante empregada doméstica.


7. A Estabilidade da Empregada Doméstica Gestante

Quaisquer normas posteriores àquelas que determinam como deve ser harmonizado o sistema jurídico, quais sejam as normas-princípio e as fontes do Direito sem perder de vista os preceitos constitucionais, devem sustentar, segundo Hédio Silva Júnior, em sua interpretação de Celso Antônio Bandeira de Mello, limites claros para não desconsiderar o princípio da igualdade: "1. Proibição imposta ao legislador, que o impede de editar regras que estabeleçam privilégios; 2. Proibição imposta ao juiz, que o impede de dar à lei entendimento que crie privilégios e; 3. Proibição de discriminação no gozo de direitos" (SILVA JÚNIOR, 1998: VII).

Segundo Bandeira de Mello, para o desrespeito à isonomia ser devidamente identificado são necessários três critérios: aquilo que seja considerado como critério discriminatório, o fundamento para a discriminação ocorrer e se há proteção constitucional àquela discriminação (MELLO, 1998: 22).

Ao se partir da análise abstrata para o caso específico, aquelas regras hermenêuticas que balizam a compreensão genérica da presente discussão devem manter seus critérios ao conferir o caso particular. Pode-se, então, auferir a relevância da concessão de estabilidade especial para gestante que seja empregada doméstica.

Para a lei não é tão óbvio que tanto empregada doméstica quanto as demais trabalhadoras tenham como filhos seres humanos, pois a primeira poderá ser demitida no primeiro dia de atividade após ter gerado um de seus rebentos, enquanto às demais, suas patroas em potencial, cabe o direito à estabilidade. Logo, qualquer juiz que tratar questão trabalhista em que a reclamante seja empregada doméstica demitida por ser gestante com esta discriminação ilógica, anti-natural e que afronta os princípios do Direito e as normas constitucionais estará ferindo a Lei n.º 7.716/89 e cometendo crime de discriminação.

Resta empregar os critérios recomendados por Bandeira de Mello. A discriminação à mulher; à discriminação à mulher por ser empregada doméstica e quais os direitos atribuídos pela Constituição Federal à empregada doméstica. A condição laboral da empregada doméstica encontra-se regulamentada pelo art. 7º, parágrafo único, da Constituição Federal e pela Lei n.º 5.859/72.

Segundo o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), em seu art. 10, II, "b", fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto, até que lei complementar sobre o assunto seja promulgada.

Seria preciso aceitar a desumana tese de que existam duas categorias de mulheres, empregadas domésticas e demais, para considerar que o art. 10 do ADCT não se aplique a esta espécie laboral de trabalhadoras. A lei n.º 5.859/72 não elenca este entre os direitos, todavia, infelizmente, ainda é preciso lembrar que esta lei é anterior à Constituição Federal vigente, logo não pode ser o que regulamenta a Carta Magna. Se a licença à gestante do Art. 7º, XVIII, não deve prejudicar seu emprego nem seu salário, não poderá durante este período ser demitida.

Se a análise restritiva de Pessoa Cavalcante e Jorge Neto (2000) não admite que esta condição se trate de estabilidade, mas de garantia de emprego, e que os dois institutos jurídicos não se confundiriam, uma vez que a demissão sem justa causa ou arbitrária durante o período de licença incorreria na indenização em dobro à empregada, caberia a absorção dos efeitos jurídicos da estabilidade, mesmo que o nomen juris não seja mantido. Em caso de dúvida sobre a aplicabilidade, o princípio in dubio pro operario não deixa de ser útil, sanando em benefício da empregada quaisquer dúvidas.

Todavia, Pessoa Cavalcante e Jorge Neto (2000) defendem argumento válido para a concessão de estabilidade à gestante, quando se tratar de dispensa obstativa. Trata-se de circunstância em que o fim do contrato de trabalho tem por finalidade impedir que o trabalhador adquira certos direitos. No caso, seria obstado o direito ao salário-maternidade, que apenas pode ser concedido enquanto perdurar a relação de emprego. Seria, portanto, presumida a dispensa obstativa de direitos sempre que se tratar de demissão de empregada gestante, além de violar os princípios jurídicos da boa-fé e da razoabilidade.

Decisões judiciais em sentido contrário, estariam incorrendo em discriminação, segundo a sistemática de Bandeira de Mello já comentada, sendo recorríveis. Interpretações, bem como leis, não podem conceder privilégios, o que ocorreria no caso das demais empregadas em relação às empregadas gestantes, caso a elas não fosse permitida a sua estabilidade, conforme interpretação doutrinária e normativa.


8. Conclusão

Como foi objetivo do presente estudo demonstrar, não há porque se alegar insuficiência de normas para considerar que a estabilidade ainda tenha sua natureza jurídica incólume no sistema jurídico brasileiro. Oculta sob a denominação garantia de emprego, ainda é garantido pelas normas vigentes que o empregado possa ser reintegrado a suas funções e receber indenização em dobro.

O jurista não pode perder o hábito de aplicar as fontes do Direito, quais sejam princípios gerais de Direito ou específicos do Direito do Trabalho, pois é exata função da Hermenêutica jurídica sanar por meios lógicos, legitimados pela própria legislação, dúvidas na efetividade de comandos aparentemente desconexos.

Foi possível aplicar as regras consagradas pelo art. 8º da CLT em casos de discriminação étnica e de gênero, de função no caso das empregadas domésticas gestantes, por motivos de saúde quanto a portadores do vírus HIV além de mencionar sua aplicabilidade para hipóteses de proteção a pessoas com deficiência. Em todas estas situações, não temos dúvidas quanto à proteção contra demissão arbitrária ou sem justa causa.

Deve-se visar à harmonização do sistema, apesar das suas regras de interpretação, para assim compreender não uma lei como autônoma, mas como engrenagem numa máquina que, ativada, pode decidir sobre conflitos de interesses.


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Notas

01 Não obstante o fato da lei n. 9.601 de 22 de janeiro de 1998 tratar tanto dos contratos de trabalho por prazo determinado quanto dos contratos por bancos de horas, sem que se alegue a ausência de efetividade da segunda modalidade por não constar na ementa legal, apesar de consistir em "matéria diversa daquela que seria seu objeto, modificando inclusive a lei geral" (VIEIRA, 2000: 103).

02 Todavia, o Supremo Tribunal Federal, em sua Súmula n.º 21, defende que "Funcionário em estágio probatório não pode ser exonerado nem demitido sem inquérito ou sem as formalidades legais de apuração de sua capacidade".

03 Art. 165; Art. 543, § 3º; art. 625-b, § 1º, da CLT; art. 10, II, "b" do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; art. 118 da Lei n.º 8213/91, art. 55 da Lei n.º 5764/71.

04 Sem embargo de quaisquer discussões ulteriores sobre sistemas de quotas para outros grupos sociais, cuja complexidade do aspecto do problema foi por razões metodológicas excluído do presente estudo, uma vez que tratar-se-ia de condição para o acesso ao trabalho, não para garantir o posto de trabalho àquele empregado que já o possua.


Autor

  • Sérgio Coutinho

    Sérgio Coutinho

    advogado em Maceió (AL), professor da Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais de Maceió (FAMA), especialista em Direito do Trabalho pela União das Associações de Ensino Superior do Ceará (UNICE), mestrando em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

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COUTINHO, Sérgio. Garantia de emprego e estabilidade em caso de discriminação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 56, 1 abr. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2833. Acesso em: 29 mar. 2024.