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Sobre teoria do direito e o desenvolvimento histórico de seus atributos éticos

da antiguidade à pós-modernidade

Sobre teoria do direito e o desenvolvimento histórico de seus atributos éticos: da antiguidade à pós-modernidade

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O Direito é uma parcela da realidade ética a que estamos sujeitos na vida em sociedade.

Resumo: As relações entre a moral e a realidade jurídica passaram por grandes mudanças ao longo da história, tendo assumido tanto uma posição de interpenetração como separação em relação ao âmbito jurídico-normativo, desde a Antiguidade até os nossos dias. Atualmente, pode-se notar claramente uma faceta de abertura da teoria do direito à realidade social e aos conteúdos valorativos. O falso ideal de certeza herdado do positivismo legalista-estatista logo é identificado como obstáculo a uma concepção adequada da teoria do direito e cede espaço a alternativas hermenêuticas mais aprimoradas metodologicamente, que constituem uma nova epistemologia empírica justamente por saber reconhecer, para além dos fatos sociais, os diversos elementos responsáveis por uma nova concepção de Direito, formada com base nas variáveis éticas presentes na realidade contemporânea, a da pós- modernidade, e que moldam toda a vida humana e seu sistema de regulação da conduta, obrigando a uma abertura do sistema jurídico.

Palavras-chave: Filosofia do direito. História. Pós-modernidade. Ética.


1 INTRODUÇÃO

A teoria do direito assumiu formas variadas ao longo da história, sofrendo verdadeiras reviravoltas de acordo com os novos padrões éticos inseridos na comunidade humana e de acordo com a filosofia marcante e a importância de seu conteúdo para o desenvolvimento da ideia de juridicidade. A concepção mitológica logo foi abandonada em prol de uma racionalidade e assim aconteceu ainda com várias correntes filosóficas que foram importantes para o Direito. Além disso, é certo que alguns aspectos éticos estão de tal forma implicados nas transformações sociais e jurídicas que com elas se confundem, e por isso merecem uma análise apurada, com o fim de melhor esclarecer os motivos que levaram o homem a deixar de viver de uma maneira para adotar uma orientação diferente para suas condutas e, com isso, produzir uma verdadeira revolução no mundo jurídico e até na forma como se concebe a justiça ou o naturalismo como forma de apreensão do justo.

Por isso, a Ética, uma ciência que se preocupa com as razões do comportamento humano e suas qualificações, mostra-se relevante para, ao lado dos estudos sobre as condições de evolução histórica da humanidade, reconhecer-se a importância do Direito em nossa sociedade e descrever melhor suas características e tendências numa realidade evidentemente hostil à certeza e de caráter multiforme, que consiste na coexistência de pontos de vista contrários ou, até mesmo, inconciliáveis entre si, os quais podem ser tomados como parâmetros de justificação e sentido das ações humanas por qualquer pessoa, sem que se possa atribuir-lhes falta de conveniência, já que essa pluralidade, que é de padrões éticos, científicos ou metafísicos, é fruto de uma natural evolução da existência humana.

Assim, busca-se aqui o esforço para se fazer elucidar e compreender mais profundamente os fundamentos éticos da teoria do direito através de uma investigação histórica a partir da Antiguidade, passando pelo Medievo e a Era Moderna, para se chegar à contemporaneidade do estado das relações entre Ética e Direito, analisando-se importantes teorias jusfilosóficas acerca do assunto, alcançando-se a feição peculiar assumida atualmente.

Para tanto, deve-se ter em conta que o jurídico verdadeiramente é uma parcela da realidade ética a que estamos sujeitos na vida em sociedade, em outras palavras, trata-se de uma ciência ou conjunto de saberes que tem como fonte aspectos eticamente importantes para a organização da sociedade em que vivemos, que reflete o conjunto de transformações ocorridas através da história humana.


2 A ANTIGUIDADE E O DIREITO

Há que se destacar a característica marcante presente num período arcaico da história grega, qual seja, a possibilidade de se distinguir a sua política através da palavra nomocracia, devido ao culto do nómos, que pode ser definido como costume próprio a uma polis, ordem social e, mesmo, direito, como bem assinala Villey (2009). É uma época ainda de bastante presença do elemento mítico e teológico naquela cultura.

Por volta do século V A.C, ocorre um fato marcante, proporcionado pela crise resultante de algumas transformações da vida ateniense, propício ao desenvolvimento da filosofia do direito com base na oposição surgida contra o nómos pela justiça (diké) ou pela natureza e sua ordem (phýsis). E disso é testemunha a obra Antígona, de Sófocles, considerada uma das primeiras manifestações a atestar a importância do direito natural, mesmo ainda incipiente, e a introduzir um elemento existencial relevante nos estudos jusfilosóficos; além das obras de diversos sofistas, das quais emerge, por exemplo, um apelo à consideração da ordem natural e suas leis, em oposição às da polis (VILLEY, 2009).

Grande vigor intelectual e racional é impresso na filosofia do direito através de Sócrates, o qual desterra os ideais sofistas de arbitrariedade e convencionalismo sobre a justiça, e, ao contrário, insere o elemento que racionalmente fundamenta a autoridade das regras jurídicas como resposta ao ceticismo defendido pela sofística. Apesar disso, cabe mais propriamente a Platão e Aristóteles o desenvolvimento da doutrina do direito natural (VILLEY, 2009).

A própria concepção platônica funde a juridicidade à busca de uma ordem justa. Na obra A República, observa-se o exemplo de um estado ideal que está fundado sobre a justiça e a felicidade dos cidadãos que lhe é inerente, conforme uma tipologia que tende a considerar tudo, inclusive o direito, como proveniente de uma posição natural (PLATÃO, 2000, p.35) [1], e que concebe a justiça como aquilo que se mostra necessário para a concretização do bem comum, tendo-se em consideração a peculiar indissociabilidade marcante entre as noções de direito e justo.

Para Platão, a justiça deveria estar presente tanto no interior do homem como na polis. A sua metodologia preocupa-se com a descoberta do justo, à semelhança de uma arte, muito diferente da que decorre das teorias positivistas modernas. Baseia-se ela especificamente na observação sob um ponto de vista de objetivo, que alcança um universo exterior, dotado de idealismo a tal ponto de não ser apropriado chamar ao seu objeto direito natural.

Considerando a influência de Aristóteles, pode-se perceber de suas obras uma maior importância da experiência e da observação da linguagem, em contraposição ao idealismo platônico, mas sem desprezar o reconhecimento de uma ontologia inerente à natureza humana e ao cosmo já presente no platonismo. O espírito aristotélico é dono de uma noção mais aguçada sobre o direito, e de caráter mais empírico.

Para este a justiça seria, a par do sentido de virtude universal, uma maneira particular de interação, a ensejar a busca do meio-termo, baseando-se na finalidade de consecução da igualdade. Daí surgem duas funções específicas para o justo, o zelo pela distribuição dos bens, das honrarias e dos cargos públicos, e a busca da retidão nas trocas. Tudo isso estava subordinado à realização do equilíbrio social na Cidade-Estado, onde se dá a disputa de interesses distintos, surgindo disso o justo político (díkaion politikón), sua principal expressão (VILLEY, 2009).

Há que se atentar ainda para o fato de Aristóteles ter procedido a uma distinção entre direito e justiça, segundo a qual a ciência jurídica era considerada uma parcela bem distinta da ciência da justiça. Além disso, é fulcral o papel da felicidade enquanto finalidade última da vida humana, mas estando baseada na ação virtuosa da alma, diferente das atividades que têm por base o mero prazer, sendo necessária para isso a educação para a virtude a fim de fomentar esse ideal na vida das pessoas.

Ao examinarmos o direito natural aristotélico, percebe-se proeminentemente o tema da finalidade inscrita na noção de natureza das coisas, considerando os seres em potência, em sua plena realização; tornando-se possível a dedução, a partir dos fins, de pressupostos normativos, e sendo necessário o discernimento ativo de uma ordem valorativa. Concebe-se o direito natural como um verdadeiro método experimental, recebendo destaque o termo sob a designação de díkaion physikón, apto a demonstrar resultados compatíveis com as vicissitudes de tempo e lugar, pois mais parece prefigurar o direito comparado e a sociologia do direito, com sua abordagem empírica, aberta e cujos resultados não representam regras imutáveis e definitivas, o que seria inadequado ou limitado enquanto método (VILLEY, 2009).

Algo ainda a se considerar é a teoria da equidade (VILLEY, 2009), depreendida de suas obras Ética a Nicômaco e Retórica, e concebida como a realização plena da justa igualdade, e que não prescinde da justiça corretiva, a qual consiste na intervenção visando equilibrar as relações entre as partes em questão, tendo por base critérios diferentes dos méritos de cada um, para atenuar as consequências da lei escrita, através de uma decisão do juiz ou alguém semelhante que pode se mostrar livre para escolher os devidos instrumentos para a realização do justo. Além disso, seria necessária a apresentação de preceitos normativos em forma de lei escrita a fim de suprir a falta de concretude da matéria jurídica bruta resultante do método da observação natural, pois só assim é possível a elaboração de soluções jurídicas adequadas aos diversos casos.

Devido a transformações que ocorreram após o declínio das cidades-estados gregas, dá-se a marcante passagem da filosofia clássica para uma espécie de corrente filosófica baseada em certa universalidade, que tinha por centro a figura do homem enquanto indivíduo. Nesta direção foi o caminho trilhado pelos estoicos, os quais estavam preocupados com a autossuficiência humana e o bem estar individual, mas aceitavam resignadamente o que não podia ser manipulado pelo ser humano. Em algumas palavras, pode-se entender bem certas características do estoicismo:

[...] Por sob a aparência caótica da vida, os estoicos argumentavam que o universo era um ordenamento sistemático no qual o homem e o cosmo se comportavam segundo princípios finalísticos específicos. A razão e a lei operavam em toda a natureza. Os estoicos reinterpretaram as ideias pagãs sobre a prevalência de muitos deuses que, por trás dos eventos e acontecimentos, atuavam no sentido de influenciá-los (a perda da colheita, as intempéries, os malogros dos planos, etc.), colocando em seu lugar a ideia de uma substância racional de absoluta abrangência que impregnava todos os fenômenos universais. A palavra deus era usada para conceitualizar uma forma unificada de razão que controla e ordena a estrutura da natureza, determinando assim o curso dos eventos no mundo (MORRISON, 2006, p.61).

A lei natural de concepção estoica é influente apenas sobre a consciência moral individual, e é caracterizada como uma parcela da razão universal ordenada a conduzir as disposições humanas interiores; entretanto, acabará influenciando eficazmente o conteúdo jurídico, imprimindo-lhe um humanismo peculiar que põe ênfase na dignidade superior de cada ser humano, e verdadeiramente capaz de suavizar o tratamento ou, pelo menos, a dignidade do escravo e do peregrino (VILLEY, 2009). Cícero é um importante promotor dessa filosofia, e ele consegue justamente unir a ideia de uma lei natural universal, a razão superior conforme a natureza, com uma postura psicológica cética, de que surge uma herança filosófica importantíssima.


3 FILOSOFIA DO DIREITO E IDADE MÉDIA

Tragamos à cena primeiro Agostinho, o Santo e Bispo de Hipona, para logo dirigirmos o pensamento para a sua filosofia de influência platônica marcante, donde provém uma teoria do conhecimento pela iluminação divina, que se afasta muito do método da experiência propugnado por Aristóteles. Segundo ele, o conhecimento do bem, a justiça, o verdadeiro só seriam conhecidos por meio de Deus; e a própria lei eterna é um conceito amplamente vasto e presente em sua obra (VILLEY, 2009).

Uma marca de sua doutrina é a presença da inspiradora dicotomia entre a justiça profana e a justiça cristã, o que é representado pelas figuras da cidade terrena e da cidade de Deus. É feita uma crítica severa às instituições temporais e à justiça do direito romano por não atribuir a Deus a fonte do justo em primeiro lugar. Entretanto, fica evidenciada a autorização para se obedecer a leis injustas à medida que seja imprescindível à manutenção da ordem temporal, conforme o grau de utilidade (VILLEY, 2009).

Além disso, é marcante o tom acentuado de ascetismo (MORRRISON, 2006) que ressoa de sua obra, a qual convida o homem à mudança e à volta a Deus, e ao desprezo dos bens terrenos, devendo configurar sua vida para servir a uma verdadeira escatologia cristã segundo a qual a virtude que salva a pessoa de sua condição miserável só é alcançável pela intervenção da graça divina.

O tema do Direito Natural em Agostinho é sinônimo de imprecisão. Não se encontra uma teoria plausível sobre a ordem natural, mas apenas uma vaga referência à sua origem da providência divina e a subserviência à lei eterna, sendo a lei natural derivada da apreensão intelectual humana dos princípios eternos. E, assim, só seriam justas as leis estatais conformes ao direito natural que deriva da revelação divina, o direito eterno, e passando a ser muito privilegiada a relação do homem com Deus.

Fundamental também é o estudo da doutrina tomista, de Tomás de Aquino, fiel ao sistema aristotélico em alguns pontos, principalmente quanto ao Direito Natural, onde está pressuposta uma concepção teleológica para ele, marcada pelos fins sobrenaturais do homem (MORRISON, 2006). Aproveita a forte tendência teológica da filosofia platônica e a sua ideia de lei eterna, mas se afasta do idealismo e adota o método empírico. Para ele, a natureza humana não ficou destruída pelo pecado original, mas apenas doente, e não corrompida como para Agostinho e, mais tarde, Lutero. Mas seria perfeitamente possível o afastamento do homem da ordem natural de acordo com sua própria liberdade.

São notáveis as considerações tomistas sobre a razão e a vontade. A lei moral está fundada sob a natureza, ou seja, as tendências naturais presentes no homem quanto a certos comportamentos, ao lado de algumas propriedades fixas que compõem o Direito Natural. Além disso, a sua elogiável teoria apresenta uma marcante relação entre lei eterna, natural, humana e divina, digna de maiores explicações. A lei eterna seria o plano intelectual divino responsável pelo ordenamento de todas as coisas segundo seus fins, e do homem, especialmente, por causa de sua racionalidade. Lei natural é a porção da lei eterna respeitante ao ser humano, sua imersão nela por meio de sua racionalidade. Lei humana é qualquer legislação estatal, que deve estar orientada pelos princípios gerais da ordem natural. Ainda há a figura da lei divina, encontrada na revelação das escrituras sagradas e apta a auxiliar a pessoa na realização dos seus fins sobrenaturais.


4 O DIREITO DA MODERNIDADE

O fim da Escolástica e o advento da Era Moderna são sinônimos de um tempo de profunda instabilidade para o Direito, marcado pelos anseios de transformação profunda no campo ético trazidos pela Protestante, a qual representou uma transformação política e cultural significativa no pensamento ocidental, ao questionar a supremacia da Igreja Católica e propor um novo dogma de religiosidade, que contribuiu bastante para uma maior autonomia atribuída ao homem.

Mas antes dela, há que se atentar para a existência de uma corrente filosófica que enseja uma antecipação do positivismo jurídico, que é a doutrina de Guilherme de Ockham. Ela constitui o surgimento filosófico da via moderna (VILLEY, 2009), ao desprezar o realismo tradicional e defender o nominalismo, que destaca o papel do indivíduo e da subjetividade, e da sua designação, muito diferente da concepção de natureza das coisas ou do homem.

Conforme tal entendimento, o próprio pensamento substituiria o ser:

A metafísica de Ockham transporta para o mundo da linguagem e do pensamento, para o universo conceitual, o que pertencia, para os tomistas ao mundo do ser: os gêneros, as formas comuns e as relações. Estes agora são apenas conceitos, instrumentos, etapas no caminho do conhecimento de uma realidade exclusivamente singular, apenas um começo do conhecimento nebuloso dos indivíduos (VILLEY, 2009, p.231).

A Reforma Protestante é bastante rica em transformações para o Direito. Tem como princípio material a justificação pela fé, e não pelas obras; e como princípio formal a rejeição da autoridade da Igreja e o apelo ao livre exame da bíblia, e considera esta como a única fonte da doutrina cristã. Ao lado disso, é notável a transformação por que passa o mundo devido a seus pressupostos éticos.

Assim, Lutero proclama o desprezo pelo jurídico ao enfatizar que o cristão está desobrigado de obedecer a qualquer lei, sem que fique com dívidas perante Deus. Abandona-se a regra da justiça particular, o suum cuique tribuere, passando a coerção a ser a essência do fato jurídico devido à dissociação entre direito e justiça. A lei natural luterana só se identifica com a lei divina revelada, pois restaria apenas para cada um de nós uma natureza corrompida. Para ele, o direito era essencialmente positivista, já que inteiramente baseado nas leis humanas (VILLEY, 2009).

Muito semelhante a Lutero, Calvino propõe sua ética social voltada para uma maior realização econômica da pessoa quanto aquele, baseado nos ensinamentos dos textos bíblicos, com pretensões de severidade e influente sobre o meio temporal. Assim:

[...] Deseja ardentemente poder aplicar a maravilhosa rede de prescrições de conduta social contida na lei judaica, e, mais ainda nos profetas e nos livros sapienciais, como os provérbios do Eclesiastes, que ensinam uma sabedoria prosaica e um tanto utilitária, feita para o uso cotidiano (VILLEY, 2009, p.346).

O teor da doutrina protestante contribuiu muito para um desprezo da natureza humana conforme a razão, sendo substituída apenas por uma forma mais valorosa de religiosidade aos seus moldes. Por isso, foi afirmado que:

[...] A Reforma, em si mesma, não representou qualquer abertura espiritual, mas, sim, uma tentativa de retornar a um modo de vida em que Deus ocupa a posição central. A Reforma Luterana é uma reação ao antropocentrismo da Renascença e uma proposta de retorno a um tipo de cultura em que Deus reina com sua autoridade (MICHELON JÚNIOR, 2004, p.41).

O século XVII é particularmente rico para a modernidade ao reunir e consolidar o espírito e características notáveis para o desenvolvimento da filosofia do direito:

[...] Mas o século XVII parece ser o das grandes sínteses, em que todas essas correntes de origem às vezes antiga vêm confluir, produzindo sistemas completos, que suplantarão a antiga filosofia do direito aristotélico-tomista e se tornarão por sua vez clássicos. É a época de Bacon, Descartes e Leibniz, e de Grócio, Hobbes, Pufendorf e Locke (VILLEY, 2009, p.581).

Mostra-se de grande proveito a investigação das características da ciência moderna nascente, de cujos preceitos fazem parte os ensinamentos de Pascal e Descartes. Eis uma citação esclarecedora:

[...] O valor fundamental para a Ciência moderna é a certeza, e a primeira providência para afastar o perigo das incertezas é exilar as aparências (leia-se as percepções e sensações ou as qualidades secundárias ou a subjetividade) em um mundo do qual a ciência não deve ocupar-se (o mundo interior de cada um). O exílio da aparência objetiva o mundo, transformando-o em algo absolutamente mensurável e, portanto, cognoscível (MICHELON JÚNIOR, 2004, p.49).

Tomando-se, por exemplo, o legado de Descartes para a moderna filosofia do direito, qual seja, a criação de um novo método, fundado sobre estruturas lógicas inerentes ao próprio pensamento, além do apego à ordem para se atinja seguramente a verdade, procedendo ela, de forma integral, dos primeiros conhecimentos inatos até suas consequências lógicas; sendo, assim, estabelecidos, solidamente e por deduções sucessivas, em primeiro lugar a existência de Deus e de uma alma humana imortal, além de todo o mundo físico (VILLEY, 2009). Dessa forma, a própria metafísica cartesiana apresenta uma distinção entre o pensamento e a matéria e, por conseguinte, entre o dever-ser e os fatos. Implica, portanto, as dimensões do racionalismo e do naturalismo, também marcantes no pensamento jurídico moderno.

Digna de menção é a influência da doutrina de Hugo Grócio sobre o Direito. Ela foi responsável pelo estabelecimento de uma base laica para a doutrina do direito natural, segundo a crença no valor da natureza racional do homem como o verdadeiro elemento condicionante da normatividade jurídica. Sobre isso:

Grócio rejeita (sem ter feito o menor esforço por compreendê-la) a tese aristotélica de que o justo se situa nas coisas, ao passo que, ao contrário, a força, a prudência e a temperança teriam como sede o coração do homem. Segundo ele, o justo só pode estar no homem e sua fonte também está no homem, na sua razão, já que a razão é a essência da natureza (VILLEY, 2009, p.651).

Além da valorização da figura do homem e da sua ratio, a moralidade é erigida em fonte das regras jurídicas. É relevante o papel desempenhado no desenvolvimento do Jusnaturalismo moderno e no direito das gentes, o que pode ser considerado o embrião do direito internacional contemporâneo, assim:

Jus gentium, regras apoiadas no consentimento universal ou certificadas pela autoridade dos juristas romanos, e até regras do direito voluntário, contrato social estabelecendo o regime dos Estados modernos, pactos e tratados vão de fato fornecer a substância ao sistema de Grócio. Mas todo o esforço de sua doutrina consiste em reduzir convencionalmente essas regras à fonte primeira, a razão, ou seja, a lei moral (VILLEY, 2009, p.654).


5 CONTEMPORANEIDADE, ÉTICA E POSITIVISMO

Há que se destacar alguns fatos marcantes para o período histórico denominado Idade Contemporânea, que nasce ao lado da Revolução Francesa e das ideias iluministas. Além disso, destaca-se o legado filosófico de Immanuel Kant, responsável pela concepção inovadora de uma modernidade racional crítica, baseada no homem enquanto indivíduo dotado de liberdade, consagrando a autonomia individual como um importante paradigma ético da humanidade nos últimos tempos.

O que se entende propriamente por positivismo atualmente é uma herança que tem origem nas doutrinas de Thomas Hobbes e Jean-Jaques Rousseau, cujos principais elementos eram, respectivamente, a teoria imperativa do direito hobbesiana, além da sua ênfase posta na figura do Estado ou soberano, o Leviatã, a quem caberia harmonizar a condição natural dos homens em face da ordem social; já quanto ao segundo, destaca-se a ideia do contrato social de uma forma sólida e sóbria. Tudo isso foi responsável por desenvolver a teoria do poder estatal que culmina no desenvolvimento do positivismo legalista que inicialmente caracteriza esse período da história.

Assim, é latente o ideal de valorização da legislação civil, que tem por estandarte o Código Napoleão de 1804, e que particulariza a nossa arqueologia em termos éticos e jurídicos:

Na verdade, esse fundo comum de princípios filosóficos que ainda governa o método dos civilistas aferrados à tradição-positivismo jurídico, sempre submetido a alguns axiomas bastante vagos do direito natural, mais propriamente axiomas de moralidade, individualismo vinculado à noção de direito subjetivo [...] - esse fundo comum data da época do Código Civil e da Revolução Francesa, em outras palavras, da filosofia francesa do século das Luzes (VILLEY, 2009, p.583-84).

O direito positivo das codificações está umbilicalmente atrelado ao ideal cientificista moderno e, por isso, é expresso de maneira semelhante a um sistema lógico perfeito, reconhecendo-se aí uma particularidade dos códigos (VILLEY, 2009). Reforça o seu caráter o particular direito natural laico, além de certos direitos naturais, como os direitos do homem. A ética que embasa esse empreendimento é fruto dos ideais iluministas e revolucionários, donde os princípios brotam da natureza da nova ordem a se estabelecer, ao que Montesquieu expressa seu conceito de lei como uma relação necessária que deriva da natureza das coisas, e interessante a distinção natural proposta por ele, segundo a qual haveria uma quarta lei natural consistente no desejo de vida humana em sociedade (MONTESQUIEU, 2000, p.15).

Algo particularmente relevante seria a apresentação das origens da corrente liberal e utilitarista na filosofia do direito às vésperas do despontar da pós-modernidade. Para isso, é preciso analisar alguns elementos das obras de Adam Smith, Jeremy Bentham e John Stuart Mill.

Sobre o primeiro, deve-se ter em mente que sua obra é considerada fundamental para o que se considera o liberalismo clássico, que valoriza a livre acumulação do capital através da atividade econômica, cujo motor é o próprio interesse pessoal. O segundo é o pai do utilitarismo moderno, e o seu princípio de utilidade baseia-se do dever de buscar o prazer que interessa à satisfação pessoal, de uma maneira realmente indemonstrável, e que constituiria o princípio fundamental de uma nova filosofia moral, donde se extrai um cálculo que se preocupa com o aspecto quantitativo do prazer apenas; e duas ações, assim, seriam igualmente boas à medida que proporcionassem a mesma quantidade de prazer. Já o último é responsável por uma reformulação da concepção utilitarista por inserir a abordagem qualitativa sobre a questão do prazer. Além disso, é o criador do princípio de liberdade ou de dano, baseado na autodefesa como único motivo a justificar alguma intervenção na liberdade de ação de qualquer indivíduo, tanto em sentido coletivo quanto individual. Assim, a liberdade só é plena até o limite de garantir a incolumidade dos demais membros da sociedade (MORRISON, 2006).


6 O DIREITO NO DILEMA PÓS-MODERNO

Embora seja certo que o positivismo seja a corrente teórica dominante na pós-modernidade (MORRISON, 2006), ao seu lado coexistem várias outras perspectivas epistemológicas ou metodológicas, ao que parece analogamente à ética multiforme e pluralista presente atualmente no mundo. Pode-se citar o realismo jurídico e algumas teorias que representam um caráter sociológico a ser considerado na concepção do próprio direito, por exemplo.

Mas há uma descrição sintética e exata do problema da pós-modernidade:

A modernidade- o período da história social que se inicia com o Iluminismo no século XVIII- fundamenta-se em parte na crença de que será possível chegar à plena autoconsciência no que diz respeito à realidade social. A humanidade vai analisar o mundo, adquirir um conhecimento seguro e utilizá-lo para criar uma sociedade justa. A pós-modernidade pode ser definida como a percepção de que tal crença não tem validade alguma. Quanto mais conhecimento adquirimos, mais difícil fica narrar uma história-mestra, apresentar uma imagem racionalmente coerente da realidade social e das instituições fundamentais. Enunciar a verdade da realidade social tornou-se problemático. Definimos tal condição como o problema pós-moderno (MORRISON, 2006, p.15-16).

É visível entre nós o fenômeno da juridificação das esferas sociais, a qual expressa uma supervalorização jurídica pela sociedade. Mas é claro também que o Direito, mais que nunca, é visto como um servo fiel da economia, da política e da utilidade, ao passo que, mesmo assim, conserva o status de realidade pertencente ao mundo ético. Entretanto, já se pensa seriamente numa releitura e crítica acerca do fenômeno jurídico em nossas vidas, reinterpretando-se a nossa história social, e constituindo isso a principal tarefa filosofia do direito.

Devem-se considerar as ideias do importante jurista Hans Kelsen, idealizador da Teoria Pura do Direito, quem conduziu o debate sobre a teoria do direito a níveis de máxima valorização do positivismo. Assim, ele afirma que a ciência jurídica caracteriza-se como normativa, e isso porque sua tarefa é descrever e conhecer normas e, por isso, a própria conduta seria um objeto apenas mediato, em função de meramente fazer parte de um comando normativo de direito posto (KELSEN, 2006, p.79). Valoriza-se uma concepção de direito baseada num sistema de normas e adota-se um ideal de pureza metódica, que caracteriza a teoria pura.

Essa é tida por Kelsen como uma teoria geral do direito positivo, e pretende afastar do conhecimento jurídico-científico tudo que for estranho ao seu objeto, a norma jurídica. Sobre a teoria kelseniana, convém mencionar que está inserida num contexto ético-político e, por isso, assume certas características:

O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, é uma expressão ideológica de sua época, uma consequência do declínio do mundo capitalista liberal, marcado pela Primeira Guerra Mundial. Para a Jurisprudência, segundo essa doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque [...] essa teoria, fruto da época chamada racionalização do poder, é produto de um democratismo formal e vazio de conteúdo (DINIZ, 2003, p.10).[2]

Rejeita ele qualquer reconhecimento jurídico da doutrina do Direito Natural, uma vez que essa é claramente contrária ao positivismo moral e jurídico, pois pretende basear-se na ideia de natureza geral ou humana para terem reconhecida a validade das suas normas, a qual não está condicionada de nenhuma forma à vontade dos sujeitos cuja conduta tais normas regulam, mas é objetiva como qualquer lei causal natural, baseando-se em um fundamento metafísico-teológico (KELSEN, 1986, p. 7).

Adota o eminente jurista uma posição que diferencia essencialmente a moral positiva do direito positivo com base no fato de as sanções meramente morais não possuírem o caráter de atos de coação, assim como porque a ligação entre a norma moral que impõe uma conduta determinada e a norma que estatui como sanção a aprovação, no caso de descumprimento, e a desaprovação, no de cumprimento, não é considerada tão essencial como a ligação entre ambas as normas em questão no domínio jurídico (KELSEN, 1986, p. 182). 

É uma concepção de extremo formalismo, bem como se mostra igualmente formal o próprio fundamento de validade do sistema jurídico, a norma fundamental, grundnorm, de caráter apenas ideal. E, por causa da neutralidade valorativa inerente ao arcabouço teórico kelseniano, a teoria pura mostra-se assaz aberta ao aspecto multiforme ideologicamente marcante dos tempos atuais.

Verifica-se atualmente, nas doutrinas acerca do direito, um abandono acentuado da antiga tese formalista e racionalista que tem como ápice a teoria de Kelsen sobre a ciência normativa do direito, sendo mais valorizada uma nova concepção jurídica, de caráter empírico, baseada nos fatos sociais, e semelhante a uma teoria sociológica do direito.

Assim, afastando-se do apego à ordem lógico-sistemática e ao culto do legislador, a juridicidade assume novas características, observando-se que o caráter do racionalismo herdado do Iluminismo perde espaço para centralidade do contexto social com suas múltiplas e incessantes relações, pois os fenômenos sociais, políticos, econômicos e históricos, ao influenciarem a construção e aplicação do direito, condenam as regras jurídicas a uma mutabilidade e a transformações perpétuas, inclusive modificam o caráter da normatividade jurídica (GOYARD-FABRE, 2007, p. 146).

 Léon Duguit é um expoente de uma corrente de caráter sociológico que critica a postura liberal da prática positivista herdada da Escola da Exegese. Ele proclama a teoria do direito social e insurge-se contra a doutrina democrática clássica, individualista, para defender uma construção humana fundada na solidariedade social:

Mas o grande erro dos teóricos do direito moderno reside, diz ele, no individualismo liberal que converteram em seu axioma de base: trata-se de uma afirmação a priori, pois o homem natural, isolado, que nasce livre e independente dos outros e com direitos constituídos com essa liberdade [...] é uma abstração sem realidade [...] O homem nasce membro de uma coletividade; sempre viveu em sociedade e só pode viver em sociedade. Portanto, se o ponto inicial de toda doutrina sobre o fundamento do direito deve ser o homem natural, este não é o ser isolado e livre das filosofias do século XVIII: é o indivíduo considerado em seus vínculos da solidariedade social (GOYARD-FABRE, 2007, p.154).

Para ele, não é plausível que a pessoa ostente as garantias naturais de liberdade e igualdade em direitos e obrigações da maneira como se costuma proporcioná-las, mas pretende ressaltar o caráter coletivo em que se insere o ser humano. Assim, atesta ser inadequada a doutrina individualista devido a suas pretensões ideais e absolutas, propondo um novo modelo de noção sobre o direito, não aceitando a ideia de um direito absoluto e ideal, mas sim da juridicidade baseada na evolução humana como fenômeno social (DUGUIT, 2009, p. 31). 

Através dessas ideias, ele concebe uma classe doutrinária própria, com que propõe defender o ideal de solidariedade social contra o individualismo, criando uma concepção socialista do direito, segundo a qual o homem seria um ser social justamente por estar submetido às obrigações das regras sociais em relação aos outros, derivando direitos dos poderes que ele possui para realizar os deveres sociais plena e livremente (DUGUIT, 2009, p. 35).

Ao lado dessa tendência sociologizante da teoria do direito, pode-se apresentar um viés designado como Realismo Jurídico para ela, que possui elementos conceituais voltados para uma imagem da realidade e que expressa mesmo uma ideia realista sobre o que é a juridicidade. Para isso, usando o exemplo das teses do livro Linguagem Jurídica e Realidade, de Karl Olivecrona (2005, p. 33) na qual este apresenta o ponto de vista de Hägerström, o enfoque realista considera teoricamente uma visão de alguns elementos epistemológicos que consagram a maneira objetiva e natural de tratar o direito, amparada por um ponto de vista filosófico empírico. Além disso, há que se atentar para o fato de o realismo jurídico ser nutrido por uma concepção de direito antimetafísica, que abandona qualquer consideração jurídica suprassensível, pois só estariam presentes traços de cientificidade na teoria jurídica.

Surgiu faz algumas décadas uma corrente jusfilosófica inaugurada por Herbert H. L. Hart e que se opõe à visão realista de retirar o direito das coisas segundo sua concepção de realidade. Ela difunde a necessidade de interpretação do conteúdo das regras textuais positivas e está centrada na figura do fato institucional, e por isso chamada de neo institucionalismo, cujos autores são Neil McCormick e Ota Weinberger (GOYARD-FABRE, 2007). Ela é um desenvolvimento a partir da ideia hartiana de textura aberta do direito, e pretende flexibilizar a ortodoxia que marcava o positivismo precedente.

É marcante nessa teoria uma significativa abertura da teoria do direito ao aspecto axiológico, mesmo que de maneira indireta, mas sem implicar uma maneira transcendente de considerá-los, pois devem eles estar marcados por uma imanência adequada à sociedade liberal atual. Assim, a textura aberta seria um método de harmonizar, através da interpretação jurídica, a posição da regra de direito e seu arcabouço valorativo correspondente, sem desvincular-se da teoria positivista, que aqui assume uma feição empírica diferente do culto ao fato social.

Relativamente a isso, Hart, expressando aspectos da moral em sua teoria, afirma sinteticamente a essência do que está inserido no direito natural remanescente:

Na verdade, a reafirmação continuada de alguma forma da doutrina do direito natural deveu-se em parte ao fato de que o seu atrativo é independente, quer da autoridade divina, quer da humana, e ao fato de que, apesar de uma terminologia e de muita metafísica que poucos podem aceitar nos nossos dias, contém certas verdades elementares de importância para a compreensão não só da moral como do direito (HART, 2007, p.204).

No campo da Ética, é interessante o estudo realizado por Gerald E. Moore, e apresentado em seu livro Principia Ethica, que data dos primórdios do século XX, e tem reconhecido o valor de sua teoria ética para importantes questões de filosofia moral, podendo-se destacar a sua noção de naturalismo que aparenta uma maneira adequada de interpretar esse tipo de teoria, defendendo o afastamento de uma concepção extremada que caracteriza a falácia naturalista.

Uma teoria poderia, assim, ser considerada naturalista caso precisasse a posição de que para haver valor intrínseco em algo é necessário possuir alguma propriedade natural diferente do prazer, restando excluída uma parcela significativa de outros atributos essencialmente éticos para a vida nas sociedades contemporâneas. Dessa forma:

Argumentar que uma coisa é boa porque é natural, ou má porque não é natural, nos sentidos correntes do termo, é, portanto, falacioso, o que não impede que argumentos deste tipo sejam usados com muita frequência. Mas não pretendem geralmente fundamentar uma teoria sistemática da Ética (MOORE, 1999, p.132).

O mesmo Hart (1987, p. 72-73), debatendo o assunto da moral e da ordem social, conclui seu pensamento declarando o absurdo que seria a adesão à tese de que uma sociedade é idêntica à moral que reflete, de maneira que uma mudança da moral social pudesse representar, em dado momento histórico, a destruição dessa mesma sociedade, como se outra já tivesse tomado seu lugar. Pelo contrário, não se pode pretender manter a continuidade de uma ordem social sob o argumento de que qualquer mudança na moral compartida, cuja parcela mínima é imprescindível à existência da sociedade, possa significar uma ameaça à sua própria existência. Isso porque os preceitos da moral positiva refletem empiricamente os padrões sociais, o que não significa que não possa haver crítica da moral positiva com base em princípios morais gerais (HART, 1987, p. 46).  

Interessante é o confronto introduzido por Hart (2010, p. 206) entre o utilitarismo e a doutrina dos direitos naturais, quando explica a diferença entre eles, assim como entendida sua oposição quando da proclamação de Independências dos Estados Unidos da América de 1776, nos termos em que aquele seria um princípio maximizante e coletivo, que requer que os governos maximizem o saldo líquido da felicidade de todos quantos estejam a eles submetidos, ao passo que o Direito Natural seria princípio distributivo e individualizante, que conferiria prioridade aos interesses básicos específicos de cada cidadão individualmente.

É imprescindível ater-nos ao fato de que a doutrina jusnaturalista foi sendo substituída consideravelmente, em importância jurídica, pelo utilitarismo, o qual é muito mais afeito ao positivismo jurídico e representou uma influência marcante na filosofia moral e jurídica dos nossos tempos. Entretanto, operou-se recentemente uma série crítica contra essa doutrina filosófica, o utilitarismo, principalmente em relação ao princípio geral maximizante, que impõe a busca da maior felicidade do maior número em questões políticas e morais, por conta do filósofo político John Rawls, cuja filosofia política critica o utilitarismo e propõe uma teoria positiva de diretos básicos (HART, 2010, p. 219-220).

E continua Hart (2010, p. 220-221) afirmando que a atual defesa filosófica do reconhecimento de direitos humanos básicos não se reveste dos mesmos caracteres metafísicos ou conceituais das doutrinas dos séculos XVII e XVIII, quando os homens eram considerados possuidores desses direitos por natureza ou em decorrência de os terem recebido do seu Criador. Ao contrário a versão mais completa e articulada da crítica moderna ao utilitarismo tem maiores afinidades com as teorias do contrato social, que antes acompanhavam a doutrina dos direitos naturais.

E o mesmo (HART, 2010, p. 222-223) expressa, acerca dos direitos humanos, que eles são, sem dúvida, a razão de uma alteração profunda no estilo de diplomacia, na moralidade e na ideologia política do nosso tempo, ainda que muitas pessoas inocentes ainda estejam presas ou oprimidas e não tenham, até o presente momento percebido seu benefício. Considera ainda que a doutrina dos direitos humanos substituiu, pelo menos temporariamente, a doutrina do utilitarismo maximizante, tornando-se a principal inspiração filosófica para a reforma política e social.  

Sobre a pós-modernidade, Bittar (2009, p. 115) a concebe como o “estado reflexivo da sociedade ante suas próprias mazelas, capaz de gerar um revisionismo completo de seu modus actuandi et faciendi, especialmente considerando a superação do modelo moderno de organização da vida e da sociedade”. E continua ainda afirmando que a eticidade na pós-modernidade passa por, pelo menos, temas de investigação, que são a filosofia ética contemporânea e a modificação dos valores no contexto recente (BITTAR, 2009). Daí sabermos que se trata, a bem ver, de uma maneira de encarar o atual estado da vida social e humana com outros olhos, buscando tornar presente e aceitável a realidade da superação dos padrões éticos pouco flexíveis, de crítica à ética tradicional com a valorização cada vez maior da liberdade, onde parece estar institucionalizada uma crise existencial, axiológica, e principiológica, como se estivéssemos estabelecendo uma situação eterna de própria construção histórica e social do mundo, sempre a partir de relações transitórias, as únicas compatíveis com a acentuada volatilidade ética do momento presente.

E sobre as influências a que a ciência jurídica está sujeita na pós-modernidade, Bittar (2009) afirma que o sistema jurídico sofre diretamente os impactos pós-modernos, pois se trata, certamente, de um sistema dependente dos demais, quais sejam, social, cultural, político, econômico, científico, ético etc. Merecendo destaque a consideração de que uma das principais consequências da pós-modernidade sobre o Direito é a deficiência de eficácia do sistema jurídico como um todo, devendo esta ser repensada segundo os critérios realmente pós-modernos, bastante aquém da capacidade das tradicionais teorias jurídicas, assim como o fato de representar essa corrente filosófica uma rejeição do primado da razão, pelo menos da razão concebida após o advento da ciência moderna.

Algumas palavras sintetizam bem as características e o espírito da pós-modernidade:

O pós-modernismo jurídico não oferece soluções ou projetos pontuais que permitam uma interface a essa realidade criticada. Não há um constitucionalismo, um direito penal, um direito civil, um direito previdenciário ou um direito processual pós-modernos. Reside aqui a primeira crítica que o pós-modernismo jurídico imediatamente suscita: o seu niilismo. O pós-modernismo jurídico é abstração filosófica, especulação teórica, agitação intelectual, negativismo conceitual, anarquia moral, ambiguidade ética. (GODOY, 2005, p. 121).   

Assim, fica mais perceptível que, apesar de vivermos imersos em uma realidade jurídica fundamentalmente marcada pela herança teórica e conceitual positivista, a qual ainda guarda bastante importância, começam a ser mais consideradas algumas alternativas teóricas que propõe uma crítica aos modelos tradicionais de juridicidade, e atualizando a filosofia jurídica a partir de uma adequada concepção das relações entre o direito e seus vários fatores condicionantes, além de ver-se a Ciência do Direito ser concebida de uma forma diferente do pensamento positivista tradicional, numa abertura metodológica importante ao tratamento dos problemas jurídicos e sociais.    


7 CONCLUSÃO

Conclui-se que os passos dados em direção à pós-modernidade foram bastante árduos e difíceis para a humanidade, quase sempre fruto de transformações inquietantes para o espírito humano e veio a consolidar certas características marcantes de cada época e, certamente, marcar a maneira de evoluir historicamente aperfeiçoada desde as transformações da Reforma no irromper da Idade Moderna, e a isso aliadas algumas características filosóficas peculiares e que marcaram o cerne do espírito jusfilosófico moderno.

Atualmente, já a partir de uma reformulação trazida pela filosofia iluminista e positivista surgida ao lado da Revolução Francesa, observa-se uma crise existencial marcada pela incerteza e multiplicidade de doutrinas e teorias sobre o direito até mesmo antagônicas entre si, e que adotam elementos éticos distintos e nem sempre compatíveis entre si, quando se busca a resposta ao problema epistemológico pós-moderno, que na verdade, consiste numa perpétua celeuma, visto constituir ele mesmo a base coerente da existência humana atual, e que desafia a teoria e filosofia do direito a percorrer um itinerário incessante e marcado pela reinterpretação e a crítica.

Chega-se à percepção clara de que, no contexto atual da teoria do direito, de caráter extremamente aberto devido à complexidade da vida social, ela se mostra cada vez mais flexível ao tratamento das mais diversas realidades e problemas presentes na seara social, os quais obrigam a que haja sua consideração imediata pelo Direito, redefinindo o papel da justiça em relação aos que se ocupam em promovê-la, em vista da necessidade de levar em conta as múltiplas condicionantes da realidade jurídica incluindo aspectos políticos, econômicos e culturais como elementos obrigatórios de sua própria concepção, passando a constituir uma necessidade considerar-se o sistema jurídico de uma forma diferenciada aberta aos fatores que moldam a realidade vivencial dos nossos dias.


REFERÊNCIAS

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DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. O pós-modernismo jurídico. Porto alegre: Fabris, 2005.

GOYARD-FABRE, Simone. Os fundamentos da ordem jurídica. Trad. de Cláudia Berliner.  2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

HART, Herbert. O conceito de direito. Trad. de Armindo Ribeiro Mendes. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.

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______. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Tradução de José Garcez Ghirardi e Lenita Maria Rimoli Esteves. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

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MICHELON JÚNIOR, Cláudio Fortunato. Aceitação e objetividade: uma comparação entre as teses de Hart e do positivismo precedente sobre a linguagem jurídica e o conhecimento do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004

MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. O espírito das leis. Trad. de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes,1996.

MOORE, G. E. Principia Ethica. Trad. de Maria Manuela Rocheta Santos e Isabel Pedro dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

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PLATÃO. A república. Trad. de Pietro Nassetti. 2. ed. São Paulo: Martin Claret,2000.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. de Cláudia Berliner. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.



notas

[1]        O tema da justiça, assim como o do bem e do justo, é um dos marcantes na obra A República, do filósofo grego Platão, que, a partir de um ponto de vista idealista, elabora uma maiêutica que consagra o virtuosismo e exalta a naturalidade de uma ordem justa.

[2]   Para maiores esclarecimentos, consultar o início da obra A ciência jurídica, de Maria Helena Diniz.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MENEZES, Mielson dos Santos. Sobre teoria do direito e o desenvolvimento histórico de seus atributos éticos: da antiguidade à pós-modernidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3983, 28 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28973. Acesso em: 28 mar. 2024.