Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/29319
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Súmula vinculante e segurança jurídica.

Uma análise do caso da Súmula Vinculante nº 3

Súmula vinculante e segurança jurídica. Uma análise do caso da Súmula Vinculante nº 3

Publicado em . Elaborado em .

O trabalho discorre sobre os pressupostos para a utilização do instituto da súmula vinculante como instrumento de realização do princípio da segurança jurídica, a partir do exame da atuação do STF no caso da Súmula Vinculante n. 3.

Sumário: 1 Introdução. 2 A segurança jurídica e a súmula vinculante. 2.1 A Segurança Jurídica. 2.2 Finalidades da súmula vinculante: segurança jurídica e efetividade. 2.3 A súmula vinculante e o Stare decisis. 2.4 Técnicas de aplicação e afastamento de precedentes do Common Law. 2.5 Pressupostos para aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante. 3 análise de caso. 3.1 Contextualização. 3.2 O afastamento da Súmula Vinculante n. 3 no julgamento do Mandado de Segurança 25.116. 4 Considerações Finais. 5 Referências.

Palavras chave: Segurança jurídica. Súmula vinculante. Requisitos para aprovação, aplicação e afastamento. Supremo Tribunal Federal.


1 INTRODUÇÃO

O objetivo do presente trabalho é, a partir do exame da atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) no caso da Súmula Vinculante n. 3[2], discorrer sobre a utilização da súmula vinculante[3] com um instrumento de realização do princípio da segurança jurídica.

  A valorização da jurisprudência em nosso ordenamento jurídico, evidenciada, por exemplo, pelos mecanismos formais de uniformização de jurisprudência introduzidos no processo civil brasileiro e pela criação de instrumentos de aceleração do processo com base na jurisprudência uniformizada, suscita vários debates na doutrina. Muito se discute sobre as causas e consequências desse fenômeno, que chega a ser visto por alguns como uma tendência de aproximação entre o nosso sistema jurídico – construído sob a tradição do Civil Law, que têm como principal fonte formal do direito as normas escritas – e o Common Law, cujo direito é, essencialmente, construído por meio da jurisprudência.[4]

Dentre esses instrumentos de uniformização da jurisprudência e de aceleração do processo, a introdução da súmula vinculante no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, gerou, em especial, bastante controvérsia[5]. Alguns a defendem, veementemente[6], outros a criticam de forma severa.[7]

A despeito de todas as discussões, o fato é que, seja ela boa ou ruim, há quase dez anos a súmula vinculante está em vigor e faz parte da realidade jurídica do Brasil, apresentando-se como uma tentativa de combater a insegurança jurídica e a relevante multiplicação de processos que dificultam a prestação jurisdicional no país (DINAMARCO, 2000, p. 1.445).

Por esse motivo, sem desmerecer a relevância das reflexões sobre as vantagens e desvantagens desse instituto, este estudo se propõe a investigar os pressupostos e requisitos necessários para que, no procedimento de aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante, esta sirva, na medida do possível, como um instrumento de combate à insegurança jurídica gerada pelas divergências de interpretação do Direito e pela instabilidade das decisões do Poder Público.

O intuito da pesquisa é, a partir do texto constitucional e das opiniões doutrinários sobre o tema, verificar, no caso concreto, em que medida o uso que o Supremo Tribunal Federal faz da súmula vinculante está em consonância com o ordenamento jurídico vigente, em especial com o princípio da segurança jurídica.

A segurança jurídica possui elevado grau de abstração em razão da sua pluralidade semântica e assume diferentes funções dependendo do contexto em que está inserida, podendo ser examinada em vários aspectos, dimensões e perspectivas (ÁVILA, 2012, p. 77-89)[8]. Por essa razão, é importante estabelecer em que sentido e sob que perspectiva esse termo está sendo empregado.

No presente estudo, cujo objetivo não é adentrar com profundidade a discussão sobre o conceito de segurança jurídica – matéria que, dada a sua complexidade, demandaria, por si só, um longo estudo – utilizaremos a definição formulada por Humberto Ávila e, por uma questão de coerência, também adota as demais definições, terminologias e classificações empregadas pelo autor ao tratar do princípio.

A opção por trabalhar com o conceito proposto por Ávila decorre, em primeiro lugar, do seu alinhamento aos objetivos deste estudo, visto que, tratando-se de um conceito mais complexo e abrangente, como o próprio autor declara, ele nos permite trabalhar com os diversos fundamentos, elementos, aspectos e dimensões da segurança jurídica.

Outra razão dessa escolha reside na preocupação desse autor com a prévia definição dos termos que emprega e da perspectiva que utiliza em cada caso. Considera-se essencial essa preocupação, por observar-se que na dogmática jurídica as divergências colocadas pela doutrina, quando examinadas a fundo, muitas vezes decorrem apenas de imprecisões terminológicas e das diferenças do enfoque adotado por cada autor para descrever um objeto.[9]

Esse problema é especialmente comum quando se tratam de temas com elevado grau de abstração, como a segurança jurídica, dada a pluralidade de significados, elementos, dimensões e perspectivas que o princípio comporta. Se esses pontos não forem previamente delimitados, torna-se inviável qualquer consenso doutrinário acerca do assunto. Não há como haver acordo sobre um objeto quando ele é observado por ângulos diferentes ou quando, embora sob a mesma denominação, os objetos examinados são distintos.

Optou-se por abordar o tema a partir do estudo de caso, por acreditar-se que o direito possui caráter instrumental, estando voltado para a solução de questões práticas da sociedade. Conforme observa Philipp Heck, o problema da criação do direito mediante a sentença judicial se encontra no centro da metodologia jurídica, pois a ciência jurídica é uma ciência normativa e prática. Sua finalidade não é a satisfação do desejo de saber, mais a resolução dos problemas da vida, e o direito que realmente importa para a vida é aquele que se realiza na sentença judicial. (HECK, 1999, p. 25-26).

Além disso, a utilização de exemplos aumenta o poder explicativo do texto, pois ajuda a tornar o estudo de assuntos densos, como o ora investigado, mais claro e objetivo. Nesse sentido, Ávila afirma que uma obra científica sem exemplos, além de precisar fugir do perigoso inimigo representado pela excessiva abstração, ainda acaba conduzindo a um paradoxo, porque tenta explicar o funcionamento sem mostrar como funciona, e a uma contradição performativa, porque tenha clarear sendo obscura. Alinhada a finalidade de facilitar o estudo do tema, a decisão de trabalhar com um único caso contribui para aumentar o seu poder ilustrativo e nos permite examiná-lo com maior profundidade. (ÁVILA, 2009, p. 32).

A escolha especificamente do caso da Súmula Vinculante n. 3, dentre tantas outras, decorre, além da curiosidade pessoal da autora sobre as questões relacionadas a esse enunciado[10], das peculiaridades envolvidas na aprovação da referida súmula e na posterior criação de exceção ao entendimento consubstanciado na sua parte final.

Isso porque, de acordo com a referida Súmula, o Tribunal de Contas da União (TCU) deve assegurar ao interessado o contraditório e a ampla defesa quando da sua decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que o beneficie, exceto quando se tratar da apreciação da legalidade de ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma[11] e pensão.

 Assim, conforme esse entendimento, tratando-se da primeira apreciação do ato concessivo pelo TCU, este não precisaria, antes de determinar a sua anulação ou revogação, chamar o interessado para se manifestar sobre a ilegalidade apontada no respectivo benefício. Nos casos da revisão ou cassação pela ilegalidade de aposentadorias, reformas e pensões já apreciadas anteriormente pelo órgão, há necessidade de contraditório prévio, consoante decidido no Mandado de Segurança 24.268.[12]-[13]

Contudo, posteriormente, no julgamento do Mandado de Segurança 25.116, o STF relativizou o entendimento acima, criando exceção à exceção prevista no referido verbete. Ao julgá-lo, o Tribunal adotou a tese de que, transcorridos cinco anos sem a apreciação do ato pelo TCU, em respeito ao princípio da segurança jurídica, haveria a necessidade de se assegurar o exercício do contraditório e da ampla defesa aos interessados, mesmo em se tratando de concessão inicial.

Nesse contexto, observa-se que o tema contempla aplicabilidade prática e que as questões nele inseridas merecem tratamento teórico mais aprofundado, cabendo analisar se, no caso concreto objeto deste estudo, a forma como o STF utilizou a súmula vinculante está alinhada à finalidade do próprio instituto de, entre outras coisas, diminuir a insegurança jurídica gerada pela falta de uniformidade e de estabilidade no processo de interpretação e aplicação do Direito pelos órgãos estatais.

Para isso, será preciso, inicialmente definir o princípio da segurança jurídica bem como tratar das finalidades da inserção da súmula vinculante no ordenamento jurídico Brasileiro. Em seguida, caberá apresentar algumas técnicas do Common Law de utilização de precedentes vinculantes e, depois, investigar os requisitos necessários para a aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante. Feito isso, será possível passar ao exame do caso concreto a fim de verificar se as finalidades e os requisitos do instituto foram, na prática, respeitados pelo Supremo Tribunal Federal aprovar a Súmula Vinculante n. 3 e, posteriormente, afastá-la no julgamento dos Mandados de Segurança 25.116.


2. A SEGURANÇA JURÍDICA E A SÚMULA VINCULANTE

A segurança jurídica pressupõe a estabilidade e a uniformidade na interpretação e aplicação do Direito pelo Estado, um dos objetivos almejados pela a súmula vinculante. De nada adianta que a lei seja conhecida e certa, se a sua interpretação e a aplicação variar a todo momento. Contudo, ao trocar as decisões individuais e concretas por enunciados gerais e abstratos, o Poder Judiciário assume nova feição e logo deve adotar novos critérios de segurança em suas decisões. Por esse motivo, na exata medida que tais enunciados sumulares, possam exalar efeitos gerais e abstratos, é imprescindível a utilização de critérios gerais que atribuam segurança e razoabilidade à sua adoção. (MARTINS, 2011, p. 196).

Investigar esses critérios de segurança que devem ser observados para a aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante é o objetivo da primeira parte deste estudo. Antes disso, porém, é necessário estabelecer o que se entende como segurança jurídica.

2.1 A Segurança Jurídica

     Como já mencionado, no presente estudo, adotaremos a definição de segurança jurídica formulada por Humberto Ávila. Este – ao propor um conceito não classificatório de segurança jurídica, mas gradual e polivalente, que, ao invés de se basear no dualismo segurança-insegurança, funda-se no espectro gradativo que oscila entre um estado de fato de maior ou menor segurança; um conceito mais complexo e abrangente, que não se circunscreve a um de seus elementos, a uma de suas dimensões ou a um de seus aspectos, mas a apresenta como norma que se compõe de uma multiplicidade de ideais, de dimensões e de aspectos a serem conjunta e equilibradamente considerados; um conceito centrado no controle argumentativo e constatável pelo uso da linguagem, por meio do conhecimento de critérios e de estruturas hermenêuticas, e para o qual o Direito é produto da experiência e resulta da conjugação de aspectos objetivos e subjetivos inerentes à sua aplicação, deslocando a compreensão do princípio do paradigma da determinação para o paradigma da controlabilidade semântico-argumentativa – define a segurança jurídica como (ÁVILA, 2012, p. 93, 118-119 e 274-278):

(...) uma norma-princípio que exige, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na sua cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração, surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro[14]. (ÁVILA, 2012, p. 274).

Partindo desse conceito, nota-se que quando este estudo fala da segurança jurídica ele se refere a uma norma jurídica, ou seja, a uma prescrição normativa por meio da qual se estabelece, direita ou indiretamente, algo como permitido, proibido ou obrigatório. Embora não se negue a necessária correlação de todos esses sentidos, não se trata aqui da segurança jurídica como um fato (dimensão fática) ou como um valor (dimensão axiológica). Trata-se de uma norma (dimensão normativa) que prescreve a adoção de comportamentos que incrementem a confiabilidade e a calculabilidade do ordenamento jurídico. (ÁVILA, 2012, p. 115-116).

Observa-se, ainda, que a segurança jurídica de que se fala é uma norma da espécie princípio, ou seja, uma norma imediatamente finalística, que estabelece um estado ideal das coisas (um fim) para cuja realização é necessária a adoção de comportamentos que provocam efeitos que contribuem para a sua promoção (meios). (ÁVILA, 2012, p. 118-119).

Quanto à definição dos fins e dos meios que a segurança jurídica enquanto norma-princípio preconiza, Ávila ressalta a necessidade de especificar vários aspectos relacionados a cada um dos elementos estruturais da segurança jurídica para que se possa verificar quais são as condutas (meios) a serem adotadas a fim de promover o estado das coisas cuja realização ela determina. Sem esse processo analítico de redução de ambiguidades, o princípio da segurança jurídica, além de poder ser manipulado de modo arbitrário, ainda pode suscitar uma série de discussões meramente aparentes. (Ávila, 2012, p. 120-123).

Nesse sentido, Ávila enumera as indagações essências à compreensão do alcance e do sentido desse princípio: a) quanto ao fim (aspectos finalísticos) – Segurança em que sentido (aspecto finalístico-material)? Segurança do quê (aspecto finalístico-objetivo)? Segurança para quem, na visão de quem e por quem (aspecto finalístico-subjetivo)? Segurança a ser aferida quando e a ser aplicada quando (aspecto finalístico-temporal)? Segurança em que medida (aspecto finalístico-quantitativo)?; b) e quanto aos meios (aspectos instrumentais): Segurança como (aspecto instrumental-material)? Segurança adotada por quem (aspecto instrumental-pessoal)? (Ávila, 2012, p. 121).

Em relação ao sentido da segurança que o princípio preconiza (aspecto finalístico-material), o estado ideal das coisas a ser realizado é um estado de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade. Nessa acepção, o ideal de cognoscibilidade refere-se a uma perspectiva estática e atemporal, significando a possibilidade, formal ou material, de conhecimento dos sentidos possíveis de um texto normativo, a partir de núcleos de significação que possam ser reconstruídos por meio de processos argumentativos intersubjetivamente controláveis. Em outras palavras, em uma perspectiva estática, para o direito ser seguro, é preciso que o indivíduo tenha capacidade de compreender o seu conteúdo. (ÁVILA, 2012, p. 128-129 e 274).

A confiabilidade, por sua vez, refere-se a uma perspectiva dinâmica retrospectiva (voltada para o passado), denotando a exigência de estabilidade na mudança, como a proteção de situações subjetivas já garantidas individualmente e a exigência de continuidade do ordenamento jurídico por meio de regras de transição de cláusulas de equidade, abrangendo os elementos que proíbem a modificação ou determinado tipo de modificação no presente daquilo que foi conquistado no passado. Nessa perspectiva, a segurança jurídica estabelece a promoção de um estado das coisas em que os atos de disposição dos direitos fundamentais de liberdade são respeitados graças a exigência de estabilidade, de durabilidade e de irretroatividade do ordenamento jurídico. (ÁVILA, 2012, p. 130-131 e 274-275).

 Já a calculabilidade diz respeito a uma perspectiva dinâmica prospectiva (com foco no futuro), sendo vista como a capacidade de antecipar e medir o espectro reduzido e pouco variável de consequências atribuíveis abstratamente a atos ou fatos e o espectro reduzido de tempo dentro do qual a consequência definitiva será efetivamente aplicada, referindo-se aos elementos que prescrevem o ritmo da mudança, no futuro, daquilo que está sendo realizado no presente. Trata-se, pois, de um estado das coisas em que o cidadão é capaz prever, em grande medida, os limites da intervenção do Poder Público sobre os atos que pratica, conhecendo, antecipadamente, o âmbito de discricionariedade dos atos estatais. (ÁVILA, 2012, p. 131-132 e 274-275).

Quanto ao objeto (aspecto finalístico-objetivo), a segurança jurídica pode referir-se tanto ao ordenamento jurídico como um todo, quanto a uma norma geral ou individual ou, ainda, a um comportamento[15]. No tocante ao sujeito (aspecto finalístico-subjetivo), o princípio deve ser assegurado pelos três poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, e destina-se a proteger o particular, não podendo ser invocado em benefício do Estado. (ÁVILA, 2012, p. 263-264).

Nesse sentido, Misabel Derzi assinala que, em uma relação vertical, como é a do cidadão com o Estado, esse princípio só pode ser aplicado de maneira unilateral em benefício do particular, para protegê-lo da atuação do Poder Público, quando os atos dele emanados são geradores de confiança. Para a autora, apenas admite-se a sua aplicação para favorecer uma pessoa jurídica de direito público contra outra pessoa jurídica de direito público ou contra o Estado, nunca contra o cidadão, pois todo aquele que tem posição soberana em relação aos acontecimentos não tem confiança a proteger. (DERZI, 2009, p. 324, 366 e 395-397).

Ainda no âmbito do aspecto finalístico-subjetivo, a segurança tanto pode ser considerada um princípio objetivo do ordenamento jurídico, em uma dimensão objetiva e impessoal, hipótese na qual se fala em princípio da segurança jurídica em sentido estrito; como também pode experimentar uma aplicação reflexiva relativamente a um sujeito específico, em uma dimensão subjetiva, referindo ao chamado princípio da proteção da confiança legítima (ÁVILA, 2012, p. 267).

Quanto ao momento, aspecto finalístico-temporal, deve-se buscar a segurança jurídica do passado, do presente e do futuro. A aplicação do princípio deve envolver a análise das três dimensões de tempo, não podendo, por exemplo, a pretexto de proteger a segurança do passado, coprometer, em maior medida, a segurança do presente e do futuro. Assim, quando a proteção da segurança jurídica em relação a uma das dimensões temporais ensejar a sua restrição em relação às outras, deve-se optar pela alternativa que, conjuntamente, promova em maior medida os ideais de cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do Direito. O mesmo ocorre em relação aos demais aspectos finalísticos anteriormente mencionados. Por isso, quanto ao aspecto finalístico-quantitativo, deve-se garantir a segurança jurídica total (em todos os seus aspectos), de modo que, no conjunto, ela seja mais promovida do que restringida. (ÁVILA, 2012, p. 270-271).

Em relação aos meios necessários para a promoção da segurança jurídica (aspectos instrumentais), tem-se, como destinatários do dever de agir, os três Poderes e, como beneficiários do dever de agir, os cidadãos (aspecto instrumental-pessal). Já o aspecto instrumental-material refere-se à adoção de comportamentos que provoquem efeitos que contribuam para a promoção de um estado de cognoscibilidade, de confiabilidade e de calculabilidade do Direito. Assim, no aspecto material, a definição dos meios para a promoção da segurança jurídica, por tratar-se de um princípio, se dá, não pela descrição das condutas que devem ser realizadas, mas pelos efeitos dessas condutas. (ÁVILA, 2012, p. 187-188 e 264).

Por fim, segundo Humberto Ávila, a segurança jurídica possui caráter instrumental, pois ela não é um fim em sí mesmo. De um lado, ela serve para garantir os direitos fundamentais de liberdade e de propriedade, pois, sem confiabilidade e calculabilidade da atuação estatal, o indivíduo não tem como exercer o direito de, livremente, planejar e conceber o seu futuro. De outro lado, ela é um instrumento necessário para a realização das finalidades estatais, pois o exercício da ação e do planejamento estatal pressupõe uma permanência de regras válidas. Não se trata, contudo, de um benefício do Estado, mas de um benefício do particular, para que ele possa controlar a atividade estatal. (ÁVILA, 2012, p. 271).

A partir dessas considerações, verifica-se que a segurança jurídica de que se fala neste estudo não estabelece como fim a ser alcançado um estado de completa vinculação, consistência, certeza e previsibilidade do Direito, ideal que, dada a vagueza inerente ao próprio Direito, seria intangível. O que o princípio preconiza é, simplesmente, a aplicação racional e razoável do Direito. (ÁVILA, 2012, p. 283-284). É com base nessa perspectiva que analisaremos a atuação do Supremo Tribunal Federal no caso da Súmula Vinculante n. 3.

2.2. Finalidades da súmula vinculante: segurança jurídica e efetividade

A adoção do sistema da súmula vinculante é justificada, basicamente, por argumentos relacionados a dois objetivos: aumentar a celeridade da prestação jurisdicional, para que esta seja mais efetiva; e uniformizar a jurisprudência, para que a prestação jurisdicional seja mais previsível (calculável), cognoscível e confiável, trazendo, com isso, maior segurança aos cidadãos.[16]

 No presente estudo, optou-se por dar ênfase à segurança jurídica por dois motivos. O primeiro deles decorre do fato de que, no tocante ao objetivo de aumentar a celeridade processual, a verificação do seu alcance dependeria de dados empíricos cuja obtenção, não só seria muito complicada, como também foge ao escopo desta pesquisa. Conforme ressalta Barbosa Moreira, para chegarmos a uma conclusão segura acerca da repercussão da súmula vinculante na duração dos processos, seria necessário estabelecer uma comparação entre o período anterior a sua introdução no nosso ordenamento jurídico e período posterior a ela. Sem essa análise, qualquer afirmação categórica sobre o possível ganho de celeridade proporcionado pela súmula vinculante, está sujeita à crítica de ser “um argumento empírico sem base empírica”. (BARBOSA MOREIRA, 2007, P. 308).[17]

   O segundo motivo está relacionado ao conceito de segurança jurídica adotado neste trabalho. Na acepção ampla aqui empregada, a realização da segurança jurídica pressupõe também a efetividade da prestação jurisdicional. Isso porque, como já mencionado, a calculabilidade (um dos estados ideias parciais da segurança jurídica), determina que o cidadão tenha a capacidade de prever, com grande aproximação, não só as reduzidas consequências alternativamente aplicáveis aos seus atos, como também o espectro de tempo dentro do qual a consequência alternativa será definida, pois, conforme explica Ávila, a perpetuação do estado de indefinição impossibilita o cidadão de planejar seu futuro com segurança (ÁVILA, 2012, p. 629-630).

Assim, para que o Direito seja confiável e calculável, não basta que o cidadão tenha direito à prestação jurisdicional por parte do Estado, nem que ele possa prever, em certa medida, o resultado da prestação jurisdicional. É preciso também que esse resultado seja tempestivo, sob pena de perder a própria utilidade e, com isso, comprometer a credibilidade do Direito.  

Nesse ponto, cabe ressaltar que alguns doutrinadores apontam uma oposição entre as garantias constitucionais que visão a efetividade da jurisdição e àquelas que visão a segurança do procedimento de interpretação e aplicação do Direito[18]. Nesse sentido, Carlos Alberto Alvaro de Oliveira divide em dois grupos os direitos fundamentais originários de as normas jurídicas processuais: um dos direitos pertinentes aos valores da efetividade e o outro dos direitos pertinentes aos valores da segurança jurídica. (OLIVEIRA, 2004, p. 5).

No primeiro grupo despontaria, fundamentalmente, a garantia de acesso à jurisdição (Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988), a qual pressupõe não apenas a abertura da porta do judiciário, mas também a prestação da jurisdição, tanto quanto possível, de forma eficiente, efetiva e justa, mediante um processo sem dilações ou formalismos exagerados. Do lado da eficiência, estariam também os direitos atrelados ao fator tempo, dentro do que está inserida a exigência de uma razoável duração do processo (Art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988). (OLIVEIRA, 2004, p. 5-6).

No segundo grupo, ter-se-iam as normas relacionadas à segurança jurídica, que deriva da própria noção do Estado Democrático de Direito, na medida em que salvaguarda a supremacia da Constituição e os direitos fundamentais, garantindo o cidadão contra o arbítrio estatal. Nesse contexto, estaria o devido processo legal (Art. 5.º, inciso LIV, da Constituição Federal de 1988), a proibição de juízos de exceção e o princípio do juiz natural (Art. 5.º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal de 1988), a igualdade (Art. 5.º, caput, da Constituição Federal de 1988), o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes (Art. 5.º, LV, Constituição Federal de 1988), a proibição das provas obtidas por meios ilícitos (Art. 5.º, LVI, da Constituição Federal de 1988) e o dever de fundamentação das decisões (Art. 94, IX, da Constituição Federal de 1988). (OLIVEIRA, 2004, p. 6).

Esses grupos retratam, segundo Oliveira, um conflito dialético entre duas exigências contrapostas, mas igualmente dignas de proteção, asseguradas constitucionalmente: de um lado, a aspiração de um rito munido de um sistema possivelmente amplo e articulado de garantias “formais” e, de outro, o desejo de dispor de um mecanismo processual eficiente e funcional. Para o autor, esse conflito deve ser resolvido por meio da ponderação desses dois valores fundamentais (efetividade e segurança jurídica), a ser realizado no caso concreto, com vistas ao alcance de um processo tendencialmente justo. (OLIVEIRA, 2004, p. 6).

  Olhando para essas colocações a partir do conceito de segurança jurídica adotado no presente estudo, observa-se que o conflito apontado, embora exista, não se trata, propriamente, de um conflito entre a segurança jurídica, em sentido amplo, e a efetividade. O que se tem, ocasionalmente, é uma tensão, a ser verificada no caso concreto, entre algum dos elementos de algum dos ideais que compõe a segurança jurídica.

   Para melhor ilustrar esse raciocínio, imaginemos, por exemplo, um processo no qual há muitos sujeitos envolvidos, de modo que a realização da intimação de todos eles a cada ato processual demandaria muito tempo e terminaria por comprometer a celeridade do procedimento. Nessa situação, haveria um conflito entre a razoável duração do processo (que demanda um processo eficiente), e a garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (cujo exercício exige um lapso temporal razoável para a tramitação do processo dentro de todas as “formalidades” necessárias para se alcançar um resultado seguro e justo).

   Contudo, dentro da perspectiva de segurança jurídica aqui proposta, o que se tem nesse caso não é um conflito entre a segurança jurídica e a efetividade, mas uma tensão interna, dentro da própria segurança jurídica. De um lado, tem-se a exigência de que o direito seja aplicado em um prazo razoável, com vistas à realização de um estado ideal calculabilidade, no qual o cidadão tenha a capacidade de prever, com grande aproximação, não só as reduzidas consequências alternativamente aplicáveis aos seus atos, como também o espectro de tempo dentro do qual a consequência alternativa será definida, pois, conforme explica Ávila, a perpetuação do estado de indefinição impossibilita o cidadão de planejar seu futuro com segurança (ÁVILA, 2012, p. 629-630).

Do outro, tem-se a exigência de que o cidadão seja intimado a respeito de atos ou de procedimentos administrativos ou judiciais, como vistas à realização, no plano individual e procedimental, dos estados ideais de confiabilidade, cognoscibilidade e calculabilidade da manifestação judicial ou administrativa do Direito, pois, não havendo intimação, o interessado é surpreendido por decisões ou atos que restringem os seus direitos, não podendo contra aqueles autonomamente reagir (ÁVILA, 2012, p. 309).[19]

 Em outras palavras, o que se quer dizer é que a efetividade não se opõe a segurança jurídica; pelo contrário, faz parte dela, pois, para que o direito seja seguro e, portanto, confiável, calculável e cognoscível, é preciso que ele seja efetivo. É por isso que, ao tratar da segurança jurídica e das condições para a sua realização, Ávila fala não só da razoável duração do processo, como dos meios necessários para que o cidadão possa garantir a efetividade dos seus direitos, dentre os quais aborda o devido processo legal, a inafastabilidade da jurisdição e os respectivos corolários (ÁVILA, 2012, p. 587-595 e 629-631)[20].

Também não é por outro motivo que Heleno Torres, corroborando a ideia aqui defendida de que a efetividade não é algo externo à segurança jurídica, incluiu em sua obra sobre a segurança jurídica um tópico específico para tratar da coisa julgada e da razoável duração do processo, no qual afirma que esta última é uma garantia constitucional à segurança jurídica quanto à duração do processo (TORRES, 2012, p. 392-394)[21].

2.3 A súmula vinculante e o Stare decisis

De modo genérico, a principal distinção entre o nosso sistema, do Civil Law, e o Common Law está na fonte do direito. Enquanto para o nosso sistema romano-germânico a lei é a fonte primeira, para o Common Law a jurisprudência situa-se no mais alto nível das fontes jurídicas. (PORTO, p. 16). É por isso que as discussões sobre a súmula vinculante, seja para elogia-la, seja para criticá-la, normalmente envolvem alguma referência ao sistema jurídico do Common Law e à figura do stare decisis (sistema de precedentes vinculantes do Common Law, desenvolvida originalmente na Inglaterra).

Sérgio Porto, por exemplo, em comentário a proposta de criação da súmula vinculante, afirmou que, ainda que de maneira criticável, isso representaria uma verdadeira “pitada de commonlawlização” no direito nacional, por instituir algo similar ao propósito do stare decisis (PORTO, p. 20).

Existem, é verdade, significativas diferenças entre a nossa súmula vinculante e o sistema de precedentes vinculantes adotado nos países de tradição do Common Law.[22] Contudo, a despeito das inegáveis diferenças, acredita-se que algumas técnicas e conceitos de aplicação e afastamento de precedentes empregados no Common Law podem ser úteis ao sistema da súmula vinculante. Todavia, como adverte Evaristo Aragão Santos, não devemos simplesmente importar uma teoria do precedente formada para a realidade do Common Law, pois é preciso levar em consideração todas as peculiaridades do nosso sistema (SANTOS, 2012, p. 137).[23]

Conforme leciona Sérgio Porto, a doutrina norte-americana elenca uma série de motivos para a utilização do precedente vinculante, dentre os quais se ressaltam cinco: a) decidindo as demandas, os juízes devem dirimir questões de direito e o Direito deve dar a mesma resposta para as mesmas questões legais; para que isso ocorra por meio do sistema judicial, as cortes devem respeitar as resoluções hierarquicamente superiores; trata-se, portanto, nas palavras do autor, “do prestígio ao valor segurança jurídica”; b) uma justiça imparcial e previsível pressupõe que casos semelhantes serão decididos da mesma forma, independentemente das partes envolvidas, numa homenagem ao princípio da isonomia; c) se fosse de outra forma o planejamento nas demandas iniciais seria de difícil concepção; d) o stare decisis representa opiniões razoáveis, consistentes e impessoais, o que incrementa a credibilidade do poder judiciário junto à sociedade; e) além de servir para unificar o direito, o precedente vinculante serve para estreitar a imparcialidade e previsibilidade da justiça, facilitando o planejamento dos particulares, em face de um padrão de comportamento judicial preestabelecido (PORTO, p. 9).

  Observa-se, portanto, que todas as justificativas para a vinculação ao precedente no sistema do Common Law estão, direta ou indiretamente, relacionadas à ideia de segurança jurídica, a qual é inerente à própria existência do Direito (WAMBIER, 2000, p. 5). Seja por meio da codificação, seja por meio do stare decisis, ambos os sistemas buscam, ao fim, criar um mecanismos que traga maior segurança no processo de criação, interpretação e aplicação do Direito, para que os cidadãos possam desfrutar do presente e planejar seu futuro com tranquilidade e responsabilidade.

 Nesse sentido, Luiz Guilherme Marinoni afirma que a segurança e a previsibilidade são valores almejados pelos dois sistemas, Civil Law e Common Law. A diferença é que, no primeiro, imaginou-se que tais valores seriam alcançados por meio da lei e da sua estrita aplicação pelos juízes. Já no segundo, enxergou-se na força vinculante dos precedentes o instrumento capaz de proporcionar a segurança e a previsibilidade que a sociedade necessita para se desenvolver. (MARINONI, 2010, p. 63).

Ressalta-se que, a despeito do papel mais relevante assumido pelo precedente na formação do Direito no Common Law, não se deve pensar que a necessidade de repeito ao precedente é algo exclusivo daquele sistema. Trata-e de uma necessidade dos dois sistemas, pois, como afirma Luiz Guilherme Marinoni, a garantia de previsibilidade das decisões judiciais é algo que diz respeito não só ao Common Law como também ao Civil Law. Tanto as decisões que afirmam direitos independentemente da lei quanto as decisões que interpretam a lei devem gerar previsibilidade aos jurisdicionados, “sendo completamente absurdo supor que a decisão judicial que se vale da lei pode variar livremente de sentido sem gerar insegurança”.  (MARINONI, 2012, p. 565)[24].

  Fábio Monnerat, a partir dos ensinamentos de Mancuso, ressalta o papel da jurisprudência uniformizada, em especial dos enunciados sumulados, nos países da família do Civil Law: ela opera como uma segura diretriz para o judiciário na subsunção dos fatos ao direito, pois sinaliza a interpretação predominante em casos análogos; contribui para uma ordem jurídica justa, ou isonômica, pois casos semelhantes recebem respostas uniformes; e complementa a formação da convicção do magistrado, atuando como fator de atualização do Direito Positivo e como elemento moderador entre o fato e a “fria letra da lei”. (MONNERAT, 2012, p. 345).

A grande diferença é que, no Civil Law, nós temos com o precedente uma relação ontologicamente distinta daquela desenvolvida no Common Law. Uma dessas distinções é que, em regra, nosso precedente tem natureza eminentemente interpretativa (interpretação da lei aplicada); Já no Common Law, embora o precedente interpretativo também deva ser seguido, admite-se que ele seja fonte criadora de direito em caráter ex novo. (SANTOS, 2012, p. 137).

2.4 Técnicas de aplicação e afastamento de precedentes do Common Law

Dentre as técnicas de aplicação e afastamento de precedentes utilizadas no Common Law, quatro conceitos se destacam, os quais podem nos servir de inspiração para solucionar algumas questões relativas ao manejo da súmula vinculante: ratio decidendi (holding), obter dictum, overrruling e distinguish[25].

Conforme lecionam Streck e Abboud, no Common Law, cada precedente tem uma ratio decidendi, a qual, tradicionalmente, configura o enunciado jurídico a partir do qual é decidido o caso concreto, que vincula os casos futuros. Todavia ela não é uma regra jurídica que pode ser considerada por si só, ela deve, obrigatoriamente, ser analisada em correspondência com a questão fático-jurídica (caso concreto) que ela solucionou. A importância de saber qual é a ratio decidendi contribui para se evitar decisões arbitrarias. (STRECK e ABBOUD, 2013, p. 43-44).

 Já a obter dictum representa a argumentação utilizada pela Corte dispensável à decisão, que, por não terem sido fundamentais para o deslinde da questão, não vinculam os casos futuros. Trata-se, portanto, de enunciado, interpretação, argumentação ou fragmento de argumentação jurídica expressos na decisão judicial cujo conteúdo e presença são irrelevantes para a solução final da demanda (STRECK e ABBOUD, 2013, p. 43).[26]

A partir desses conceitos, a doutrina do stare decisis funda-se na seleção de quais precedentes são similares o suficiente para confrontar o caso com as considerações de mérito da cadeia de precedentes; e na identificação e articulação dos elementos contidos nos precedentes, com vistas a identificar a ratio decidendi contida nos casos anteriores que pode ser utilizada para solucionar o caso e examinar as circunstancias que, uma vez presentes permitem que o juiz se afaste da aplicação do precedente, por meio da utilização do distinguishing. (STRECK e ABBOUD, 2013, p. 46).

O overruling e o distinguishing são técnicas de afastamento do precedente utilizadas no Common Law. No primeiro caso, o precedente é afastado e declarado superado, por força de modificações políticas, jurídicas ou sociais, entre o período de sua formação e sua aplicação. No segundo caso, a regra jurídica do precedente continua sendo válida, mas seu sentido se torna menos abrangente. (MONNERAT, 2012, 424-425).

Na aplicação do distinghishing o tribunal diz que, pela literalidade, o precedente se aplicaria ao caso, mas, em razão de alguma peculiaridade do caso novo que não estava presente no caso anterior, a regra deve ser reformulada para se adaptar as circunstâncias. Trata-se de uma diferenciação em relação aos casos nos quais se aplicou a regra do precedente. (MONNERAT, 2012, 424-426).

   Em ambas as situações (overruling ou distinghishing), o juiz precisa motivar sua decisão com argumentos convincentes quando não segue um precedente, conduta que, por ser tratada com estranheza, deve ser bem fundamentada, não podendo decorrer de preferências pessoais dos julgadores. (WAMBIER, 2012, p. 39-40).

   Apresentados brevemente esses conceitos sobre a aplicação e o afastamento de precedentes do Common Law, resta agora investigarmos os requisitos para a aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante.

2.5 Pressupostos para aprovação, aplicação e afastamento da súmula vinculante

A eficácia vinculante prevista no texto da Constituição, tal como resultou da Emenda Constitucional n. 45 de 2004, está rigorosamente limitada às hipotestes previstas no Art. 103-A e subordinada ao concurso, que o STF não pode dispensar, dos pressupostos ali enumerados. A inclusão de qualquer proposição sem observância de tais limites e pressupostos violará a Constituição, conforme ressalta Barbosa Moreira (2005, p. 304).

O Art. 130-A, caput e § 1º, da Constituição Federal de 1988, estabelece que:

Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

§ 1º A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Da leitura dos dispositivos acima, é possível extrair os seguintes requisitos para a aprovação de uma súmula vinculante: a) haver voto favorável de dois terços dos membros do Tribunal; b) existirem reiteradas decisões sobre o assunto; c) tratar-se de matéria constitucional; d) ter por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas; e) haver controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública; f) a divergência acarretar grave insegurança jurídica e multiplicação de processos sobre questão idêntica.

 Com relação à exigência de reiteradas decisões sobre o assunto, esta decorre da necessidade de amadurecimento do entendimento antes da edição do enunciado com efeitos vinculante. Não deverá ser no primeiro contato com a matéria que o STF deverá editar uma súmula vinculante. O pressuposto é de que existam reiteradas decisões no mesmo sentido sobre a questão constitucional controvertida (NUNES, 2010, p. 160).[27]

 Conforme observa Daniel Ustárroz, da leitura do texto constitucional, verifica-se que deve haver debates sérios antes da atribuição de eficácia geral a qualquer enunciado, pois são requisitos: tanto a controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública quanto a reiteração de decisões sobre matéria constitucional. É indispensável, portanto, o cotejo de reiterados casos análogos com a maturidade alcançada pela análise de variados pontos de vista. (USTÁRROZ, p. 15-16).[28]

   A controvérsia a que se refere o texto constitucional não deve ser interna ao Tribunal. Como afirma Eduardo Parente, o precedente vinculante bom é o que nasce com a nitidez de que veio para ficar (ainda que possa ser alterado depois), que é fruto do posicionamento totalmente dominante do tribunal (preferencialmente unânime) e em cujo processo de elaboração e aprovação não houve vacilação ou dúvida séria entre os julgadores. (PARENTE, 2006, p. 61).

  James Martins enumera quatro critérios lógico-jurídicos que devem ser observados para assegurar a validade constitucional dos enunciados gerais elaborados pelos tribunais superiores. O primeiro é o de que haja um debate jurisprudencial quantitativa e geograficamente representativo. A atividade pretoriana sobre determinada matéria deve ser suficientemente numerosa para permitir que tenha debatido acórdãos de tribunais a quo de todo o país, de modo que a produção jurisprudencial dos tribunais de todas as regiões geográficas seja objeto de exame e debate suficientes para justificar qualquer enunciação que assuma caráter geral e abstrato. (MARTINS, 2011, p. 196).

O segundo critério é de que o debate jurídico seja qualitativamente completo, ou seja, deve-se poder concluir com segurança que os diversos argumentos doutrinários e jurisprudenciais foram considerados adequadamente, refutados ou acatados expressamente nos acórdãos que formam os paradigmas do enunciado sumular. (MARTINS, 2011, p. 197).

   O terceiro critério é o de que o debate jurisprudencial seja temporalmente maduro. Os enunciados gerais somente podem ser adotados se seu conteúdo estiver suficientemente sedimentado no tempo, ou seja, consolidado por meio de sucessivas apreciações pelo mesmo tribunal, em lapso de tempo adequado para o amadurecimento da posição pretoriana que se pretende enunciar com caráter geral. Nesse sentido, o tempo é elemento da segurança jurídica, especialmente quando se tratam de decisões que deverão amparar súmula com efeito vinculante. O debate jurisprudencial imaturo, utilizado como fundamento para prescrições enunciativas gerais, desafia o princípio da razoabilidade do tempo no processo, invadindo o campo da inconstitucionalidade. (MARTINS, 2011, p. 197).

  Jorge Amaury Nunes, ao discorrer sobre súmula vinculante e segurança jurídica, também ressalta que a formação de enunciados com efeitos vinculantes deve passar por um processo de maturação perante o STF, pois, do contrário, estará aquela Corte fazendo mau uso do instrumento jurídico colocado ao seu dispor pelo constituinte. (NUNES, 2010, p. 156)

Por fim, o quarto critério apontado por Martins é o da adequação prescritiva do enunciado. Significa que enunciado geral deve representar a síntese exata do conteúdo analítico e prescricional dos precedentes. Deve guardar estrita pertinência com o decidido. Além disso, a interpretação do enunciado geral com efeito vinculante, diferentemente da interpretação das normas jurídicas em geral, deve estar vinculada ao teor e ao sentido dos acórdãos ou das peças processuais que o suportam. (MARTINS, 2011, p. 197).

  Esse último critério, envolve um requisito relativo à elaboração do texto do enunciado e outro reletivo à sua aplicação e afastamento na apreciação de casos posteriores. Quanto à elaboração do texto, cabe ressaltar que, além de guardar estrita pertinência com o que foi decidido, o verbete, passando a ter efeito vinculante, deve ser elaborado com muito mais critérios e de forma a não gerar, na medida do possível, problemas interpretativos mais complexos do que gerados pela própria lei. (WAMBIER, 2000, p. 6).[29]

   No que diz respeito à interpretação do enunciado, cabe mencionar os ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni. Este, na mesma linha de James Martins, defende que as súmulas não devem ser vistas como normas gerais e abstratas, compreendidas como se fossem autônomas em relação aos fatos e valores envolvidos nos precedentes que as inspiraram. Para o autor, ao considerarmos os fundamentos e valores que basearam os precedentes, seria possível ao juiz realizar o distinguishing, tomando em conta situação não prevista quando da promulgação dos precedentes da edição da súmula. (MARINONI, 2010, p. 482)

Marinoni, partindo da premissa de que a súmula vinculante é a inscrição de um enunciado a partir da ratio decidendi de precedentes que versaram uma mesma questão constitucional, considera indesculpável pensar em adotá-la, revisá-la ou cancelá-la como se fosse um enunciado geral e abstrato, ou mesmo tentar entendê-la levando em consideração apenas as ementas ou a parte dispositiva dos acórdãos que lhe deram origem. A ratio decidendi nada mais é do que o fundamento determinante ou o motivo essencial da decisão. Ora, se a elaboração da súmula vinculante depende da adequada percepção dos fundamentos determinantes do precedente, é evidente a impossibilidade de aplicá-la, revisá-la ou cancelá-la sem considerar os fundamentos determinantes dos precedentes que deram origem à sua edição. (MARINONI, 2010, p. 489-490).[30]

   Ainda quanto à aplicação da súmula vinculante, entende-se que ela não deve se dar de forma automática e mecânica, sendo necessário cuidado na verificação da identidade entre o caso que está sendo apreciado e os precedentes que motivaram a edição da súmula. Inexiste, portanto, autorização constitucional para a aplicação mecânica de enunciados, exigindo-se reflexão séria quanto à sua correspondência com o caso concreto. (USTÁRROZ, p. 13).

  Por fim, cabe ainda registrar que o afastamento da súmula vinculante, por meio de decisões que impliquem na revisão ou superação do entendimento nela consubstanciado, não pode ser apenas em decorrência de posições pessoais ou mudança de opinião dos julgadores. Tais decisões precisam ser fundamentadas em alterações jurídicas e/ou sociais consideráveis, ou mesmo em pontos jurídicos extremamente importantes não abordados na elaboração dos precedentes que motivaram a edição do enunciado com efeitos vinculantes, pois a sua alteração não pode ser trivial, sob pena de causar incerteza maior que a própria ausência do precedente. (PARENTE, 2006, p. 61). Além disso, é necessário que elas sejam devidamente motivadas, indicando os critérios que levaram ao afastamento da súmula, seja por que a sua orientação ficou ultrapassada, seja porque se está diante de novos critérios. (OLIVEIRA, 2012, p. 719).


3 ANÁLISE DE CASO

Apresentados os pressupostos necessários para que a súmula vinculante seja utilizada de forma adequada e sirva de instrumento para a realização do princípio da segurança jurídica, cabe, agora, com base nas informações colhidas até o momento, verificar se esses pressupostos foram observados pelo STF no caso da Súmula Vinculante n. 3.

3.1 Contextualização

Embora a questão de fundo da Súmula Vinculante n. 3 não seja o obejeto desse estudo, por razões didáticas, é necessário esclarecer alguns pontos sobre o assunto. Em linhas gerais, os precedentes que motivaram a aprovação da referida Súmula tratam dos processos de controle externo por meio dos quais o Tribunal de Contas da União aprecia, para fins de registro, a legalidade das concessões de aposentadorias, reformas e pensões no âmbito da Administração Pública Federal.

Essa tarefa exercida pelo TCU decorre de uma das competências que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal de 1988, mais precisamente do Art. 71, inciso I, nos termos do qual compete ele:

I - apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório.

A Súmula Vinculante n. 3, aprovada em maio de 2007, estabelece que:

Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão. (Relatora: Mina. Ellen Gracie, Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 17/09/2004, grifo nosso).

Assim, a contrário sensu, de acordo com jurisprudência consubstanciada n referido enuciado, tratando se de concessão inicial de aposentadorias, reformas e pensões, não há necessidade de o TCU, antes de determinar a anulação ou revogação do ato, chamar o interessado para se manifestar sobre a ilegalidade apontada no respectivo benefício. Cabe frisar que isso só se aplica quando se trata da primeira apreciação do ato pelo TCU, pois, nos casos da revisão do benefício, pela ilegalidade ou cassação, há necessidade de contraditório prévio.[31]

A exceção acima mencionada decorre do entendimento, ainda dominante no STF, de que as referidas concessões se caracterizam como atos administrativos de natureza complexa, entendidos esses como “aqueles cuja vontade final da Administração exige a intervenção de agentes ou órgãos diversos, havendo certa autonomia, ou conteúdo próprio em cada uma das manifestações” (CARVALHO FILHO, 2005, p. 112). Assim, de acordo com a tese do STF, esses atos só se aperfeiçoam com o respectivo exame e posterior autorização de registro pelo TCU.[32]-[33]

Como consequência da natureza de ato complexo, segundo a jurisprudência do STF, além de não incidir sobre tais atos o prazo decadencial estabelecido no Art. 54 da Lei n. 9.784/1999 antes da respectiva apreciação pelo TCU;[34] também não haveria necessidade de garantir ao interessado o exercício do contraditório e da ampla defesa no processo perante a Corte de Contas, sob o fundamento de que a apreciação pelo TCU seria um “ato de auditoria”, realizado em uma relação “endoadministrativa”, sem o envolvimento dos beneficiários do ato.[35]

Nesse sentido, esclarecem Aguiar, Albuquerque e Medeiros (2011, p. 220) que o TCU pode considerar ilegal uma aposentadoria, determinando a cassação de todos os seus efeitos sem oferecer o contraditório e a ampla defesa ao aposentado, uma vez que o interessado ainda não garantiu por completo a sua aposentadoria, porquanto o ato jurídico ainda não se aperfeiçoou. Para os autores, o registro é, em suma, o último estágio para o aperfeiçoamento dos atos complexos, que produzem efeitos e são eficazes desde a sua emissão.[36]

3.2 A aprovação da Súmula Vinculante n. 3

Apresentados esses breves esclarecimentos sobre a matéria tratada na Súmula Vinculante n. 3, cabe, agora, verificar como se deu a sua aprovação e a partir de que precedentes foi extraído o entendimento nela consubstanciado.

Os debates e a aprovação da Súmula Vinculante n. 3 ocorreram na sessão plenária do STF de 30 de maio de 2007. A Relatora, Ministra Ellen Gracie, levou ao Plenário a proposta da edição ex offício do enunciado.[37] O texto original da proposta era exatamente igual ao que foi aprovado:[38]

Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.

No decorrer dos debates, foram aventadas outras redações. Contudo, a maioria dos ministros optou por aprovar a redação original, por considerarem que as propostas alternativas extrapolavam o que foi decidido nos precedentes da Corte.

Segundo a Ministra Relatora, o enunciado, “relativo a tema atual e capaz de acarretar, inegavelmente, grave insegurança jurídica”, tem como origem o que foi decidido, entre outros precedentes, nos seguintes mandados de segurança: 24.268, 24.728, 24.754 e 24.742. Vejamos o que dizem esses julgados.

Dentre esses julgados, o principal, segundo afirmou a Ministra Relatora, é o Mandado de Segurança 24.268[39], impetrado contra decisão do Tribunal de Contas da União (Decisão n. 270/2001 – TCU – 2ª Câmara)[40] que determinou o cancelamento da pensão especial da impetrante após dezoito da concessão do benefício, em 1984. Alegou a impetrante, em síntese, que o TCU, sem ouvi-la, na condição de beneficiária adotada, em ato atentatório contra os direitos à ampla defesa, ao contraditório, ao devido processo legal, ao direito adquirido, e à coisa julgada, decidiu, unilateralmente, cancelar o pagamento de sua pensão especial, concedida há dezoito anos. O STF, por maioria, deferiu a segurança, nos termos do voto do Ministro Gilmar Mendes, para, em respeito à segurança jurídica, determinar a observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa. Na ocasião, os ministros estabeleceram a distinção entre a atuação administrativa que independe da audiência do interessado (caso da apreciação de concessões iniciais de aposentadorias, reformas e pensões) a e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior.

O segundo precedente apontado como fundamento para a Súmula Vinculante n. 3 é o Mandado de Segurança 24.728[41]. Este tratou de decisão do TCU (Acórdão n. 1.282/2003 – TCU – 1ª Câmara) que, ao apreciar recurso interposto pelo Ministério Público junto ao TCU, considerou ilegal pensão militar concedida à impetrante em 24/10/1989, reformando decisão anterior que havia considerado legal e determinado o registro do ato (Decisão n. 403/2001 – TCU – 1ª Câmara). Ao julgar o caso, o STF, com base na distinção feita no mencionado Mandado de Segurança 24.268, negou a segurança sob o argumento de que, tratando-se da primeira apreciação do ato pelo TCU, o recurso do Ministério Público juto ao órgão, interposto dentro do prazo, impediu que o ato complexo se aperfeiçoasse. O STF decidiu, portanto, que, nesse caso, não existia direito ao contraditório e a ampla defesa, por tratar-se de situação diversa da apreciada no Mandado de Segurança 24.286.

O terceiro julgado (Mandado de Segurança 24.754)[42] foi impetrado contra o Acórdão n. 2.854/2003 – TCU – 1ª Câmara,[43] por meio do qual o TCU considerou ilegal a aposentadoria do impetrante, concedida em 01/10/1996. Na ocasião, o STF, citando o Mandado de Segurança 24.784, reafirmou o entendimento de que, no caso, não existia direito ao contraditório e a ampla defesa, por não se tratar de cassação posterior de aposentadoria após homologação. Contudo, concedeu a segurança, sob o fundamento de que os requesitos para a aposentadoria do impetrante haviam sido devidamente preenchidos, descabendo glosar a aposentadoria concedida.

Por fim, o quarto julgado, Mandado de Segurança 24.742[44], foi impetrado por viúva de militar reformado que havia falecido em 25/10/1998, contra decisão do TCU que considerou ilegal o ato de reforma do marido da impetrante, de 1982, por considerar ilegal a acumulação da remuneração da reforma como os proventos de aposentadoria referente ao cargo de professor de 1º e 2º graus (Acórdão n. 1.909/2003 – TCU – 2ª Câmara)[45].  Ao julgá-lo, o STF, considerando tratar-se da primeira vez que o TCU apreciava o ato de reforma, reafirmou o entendimento de que não se aplicaria ao caso os princípios do contraditório e da ampla defesa. No entanto, concedeu a segurança, sob o fundamento de que a acumulação dos benefícios era legal.

Analisando os julgados apontados como fundamento da Súmula Vinculante n. 3, em cotejo com os textos normativos e com as opiniões doutrinárias apresentadas neste estudo, é possível tecer algumas críticas relativas à aprovação do enunciado.

A primeira refere-se à aparente imaturidade do debate sobre a questão. O texto constitucional fala em reiteradas decisões sobre a matéria constitucional e em relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. Contudo, os quatro precedentes acima, tratam de situações diferentes e receberam decisões diferentes.

Em apenas um dos julgados, a segurança foi concedida para garantir aos interessados o contraditório e a ampla defesa, na linha do entendimento que consta na primeira parte da súmula (Mandado de Segurança 24.268). Também em apenas um dos julgados foi aplicado o entendimento da parte final do enunciado (Mandado de Segurança 24.728).

Nos outros dois, a matéria sumulada foi mencionada, mas não foi fundamental para a solução dos casos. Isso porque, embora o STF tenha reafirmado o entendimento da parte final da Súmula (de que, tratando-se de concessão inicial, não existe direito ao contraditório e à ampla defesa), ele concedeu a segurança por outro fundamento. Isso nos leva a outro problema.

Se levarmos em conta que a súmula é a inscrição de um enunciado a partir da ratio decidendi de precedentes que versaram uma mesma questão, os Mandados de Segurança 24.754 e 24.742 sequer poderiam servir de fundamento para a aprovação da Súmula Vinculante n. 3. Em ambos, a decisão foi de conceder a segurança porque os atos concessivos, na opinião do STF, eram legais. O fato de o STF ter mencionado que os impetrantes não teriam direito ao contraditório e a ampla defesa no processo perante o TCU, não foi essencial para as decisões, cujo fundamento foi a legalidade dos atos.

Além disso, os poucos precedentes invocados como fundamento para a aprovação da Súmula, foram proferidos em Mandados de Segurança, procedimento no qual a discussão fica limitada aos argumentos apresentados pela parte, não havendo a previsão da manifestação de terceiros, ao contrário do que ocorre, por exemplo, no caso do recurso extraordinário com repercussão geral (Art. 543-A, § 6º, do Código de Processo Civil).

Considera-se, nesse contexto, que a aprovação da Súmula Vinculante n. 3 não foi precedida de um debate jurisprudencial quantitativa e geograficamente representativo, tampouco de um debate jurídico qualitativamente completo, não sendo possível concluir com segurança que os diversos argumentos doutrinários e jurisprudenciais foram considerados adequadamente, refutados ou acatados expressamente nos acórdãos que formam os paradigmas do enunciado sumular.

Como isso, há maior possibilidade de que, com o aprofundamento do debate e a apresentação de novos pontos de vista e argumentos sobre o assunto, o entendimento mude, a exemplo do que efetivamente ocorreu no caso. Como consequência, o objetivo da Súmula Vinculante de trazer uniformidade e estabilidade para a interpretação e aplicação do Direito, contribuindo para a realização de um estado de maior cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade do ordenamento jurídico, fica prejudicado.

3.2 O afastamento da Súmula Vinculante n. 3 no julgamento do Mandado de Segurança 25.116

O MS 25.116[46] foi impetrado contra o Acórdão n. 2.087/2004 – TCU – 1ª Câmara, por meio do qual o TCU considerou ilegal o ato de aposentadoria de um servidor do Instituto Brasileiro de Ciência e Estatística – IBGE aposentado em dezembro de 1998, em face do cômputo indevido do tempo de serviço referente a atividades exercidas pelo interessado entre os anos de 1970 a 1973. O impetrante pleiteava a anulação do ato do TCU, sob o argumento de que, passados mais de vinte anos do reconhecimento administrativo do tempo de serviço que prestou em caráter eventual e, ainda, depois de quase seis anos contínuos de inatividade, não poderia ver sua aposentadoria desfeita sem que lhe fosse assegurada a oportunidade do contraditório e da ampla defesa.

Ao julgá-lo, o STF, depois de intenso debate, concedeu a segurança e adotou, por maioria de votos, a tese defendida no voto do Ministro Relator, Carlos Ayres Britto, no sentido de que, transcorridos cinco anos sem a apreciação do ato pelo TCU, haveria a necessidade de se assegurar o exercício do contraditório e da ampla defesa aos interessados.

O STF relativizou, portanto, o entendimento contido na parte final da Súmula Vinculante n. 3. Isso porque ele estabeleceu um limite temporal não existente no verbete, criando exceção à exceção prevista na Súmula, a qual poderia ser reescrita da seguinte forma: nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação, desde que realizada num prazo máximo de cinco anos, da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão. [47]

Utilizando técnicas de afastamento de precedente emprestas do Common Law, verifica-se que o STF empregou um método similar ao distinguishing, o qual é utilizado quando, pela literalidade, o precedente se aplicaria ao caso, mas, em razão de alguma peculiaridade existente no caso novo que não estava presente no anterior, a regra precisa ser reformulada para se adaptar as circunstâncias, permanecendo válida, mas com sentido menos abrangente.

Isso porque, como no caso do Mandado de Segurança 24.728, que serviu de fundamento para a aprovação da Súmula Vinculante n. 3, no Mandado de Segurança 25.116 o impetrante teve seu ato de concessão inicial de aposentadoria considerado ilegal pelo TCU sem que lhe fosse assegurado o exercício das garantias do contraditório e da ampla defesa. Assim, de acordo com o princípio extraído do precedente e consubstanciado na parte final da Súmula, e considerando a identidade entre os casos (ambos tratavam de atos de concessão inicial, um de aposentadoria e o outro de pensão militar) seu mandado de segurança deveria ser denegado.

No entanto, o STF deixou de aplicar o entendimento do enunciado em razão de uma peculiaridade do caso concreto examinado no julgamento do Mandado de Segurança 25.116 (haver se passado mais de cinco anos desde a concessão do ato), restringindo a abrangência da “norma” (segundo a qual em tais situações era dispensado o contraditório e a ampla defesa) às hipóteses em que a apreciação do ato pelo TCU se der num prazo de até cinco anos.

Ocorre que, no caso do Mandado de Segurança 24.728, a decisão do TCU impugnada é de 2003 e o ato concessivo considerado ilegal é de 1989. Ou seja, o prazo entre a concessão e a respectiva apreciação pelo TCU, de cerca de quatorze anos, era bem superir aos cinco anos utilizados como parâmetro no julgamento do Mandado de Segurança 25.116. Também nos casos dos Mandados de Segurança 24.754 e 24.742 (os quais, pelos motivos já explicitados, sequer deveriam ter servido de precedente para justificar a aprovação da Súmula Vinculante n. 3) o prazo entre as concessões a primeira apreciação do ato pelo TCU, eram superiores a cinco anos.

Com isso, partindo-se do conceito de distinguishing adotado no Common Law, não se pode aceitar que o fato supostamente novo considerado pelo STF no julgamento do Mandado de Segurança 25.116 sirva de justificativa para a não aplicação da Súmula Vinculante n. 3.

Ainda que deixemos de lado os conceitos do Common Law, a situação acima descrita estaria sujeita a critica de que, também no Civil Law, a revisão ou superação de entendimentos jurisprudenciais não deve ocorrer apenas em decorrência de posições pessoais ou mudança de opinião dos julgadores. A não aplicação da súmula vinculante a casos semelhantes àqueles que motivaram a sua aprovação precisa ser fundamentada em alterações jurídicas e/ou sociais consideráveis. Ou então ser justificada por pontos jurídicos extremamente importantes não abordados na elaboração dos precedentes que motivaram a edição do enunciado com efeitos vinculantes. (PARENTE, 2006, p. 61).

No julgamento do Mandado de Segurança 25.116, não se verificou nem uma coisa nem outra. A decisão, proferida cerca de quatro anos após a edição da Súmula Vinculante n. 3, não apontou qualquer alteração jurídica ou social considerável que justificasse a mudança de entendimento. Tampouco foram indicadas diferenças relevantes em relação aos precedentes que motivaram a edição do enunciado. Pelo contrário, o fator que justificou a mudança de entendimento (transcurso de tempo superior a 5 anos entre a concessão e a respectiva apreciação pelo TCU), também estava presente nos precedentes.

Por tudo isso, entende-se que a mudança de entendimento do STF, da forma que ocorreu no julgamento do Mandado de Segurança 25.116, contraria os objetivos do próprio sistema de Súmulas Vinculantes, por prejudicar a uniformidade e estabilidade que a edição do enunciado deveria trazer. Além disso, ainda reforça a crítica anterior relativa à falta de maturidade da jurisprudência no momento da aprovação da Súmula Vinculante n. 3, situação que possibilitou a revisão do entendimento pouco tempo depois, motivada, ao que tudo indica, pela simples mudança de opinião dos julgadores.


4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há quase dez anos a súmula vinculante está em vigor e faz parte da realidade jurídica do Brasil. A adoção desse sistema é justificada, basicamente, por argumentos relacionados a aumentar a celeridade da prestação jurisdicional, para que esta seja mais efetiva; e a uniformizar a jurisprudência, para que a prestação jurisdicional seja mais previsível (calculável), cognoscível e confiável, trazendo, com isso, maior segurança aos cidadãos.

A despeito de alguns doutrinadores apontarem um conflito entre a segurança jurídica e a efetividade da prestação jurisdicional, entende-se que esta não se opõe àquela. Pelo contrário, para que o direito seja seguro e, portanto, confiável, calculável e cognoscível, é preciso que ele seja efetivo.

  Ao trocar as decisões individuais e concretas por enunciados gerais e abstratos, o Poder Judiciário deve adotar novos critérios em suas decisões, que atribuam segurança e razoabilidade à utilização do sistema das súmulas vinculantes.

  Acredita-se que algumas técnicas e conceitos de aplicação e afastamento de precedentes empregados no Common Law – como ratio decidendi (holding), obter dictum, overrruling e distinguish – podem ser úteis ao sistema da súmula vinculante. Todavia, não devemos simplesmente importar uma teoria do precedente formada para a realidade do Common Law. É preciso levar em consideração as nossas peculiaridades.

Da leitura do Art. 103-A da Constituição Federal de 1998, é possível extrair os seguintes requisitos para a aprovação de uma súmula vinculante: a) haver voto favorável de dois terços dos membros do Tribunal; b) existirem reiteradas decisões sobre o assunto; c) tratar-se de matéria constitucional; d) ter por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas; e) haver controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública; f) a divergência acarretar grave insegurança jurídica e multiplicação de processos sobre questão idêntica.

Não é no primeiro contato com a matéria que o STF deverá editar uma súmula vinculante. A formação do enunciado deve passar por um processo de maturação, sendo indispensável o cotejo de reiterados casos análogos.   

A interpretação do enunciado geral com efeito vinculante deve estar vinculada ao teor e ao sentido dos acórdãos o suportam. Além disso, a sua aplicação não deve se dar de forma automática e mecânica, sendo necessário cuidado na verificação da identidade entre o caso que está sendo apreciado e os precedentes que motivaram a edição da súmula.

A revisão ou superação do entendimento sumulado não pode decorrer apenas de posições pessoais ou mudança de opinião dos julgadores, devendo estar fundamentada em alterações jurídicas ou sociais consideráveis, ou em pontos jurídicos importantes não abordados na elaboração dos precedentes que motivaram a edição do enunciado, sob pena de gerar incerteza maior que a ausência do precedente.

Da análise dos precedentes que motivaram a edição da Súmula Vinculante n. 3, verificou-se que sua aprovação não foi precedida de um debate jurisprudencial quantitativa e geograficamente representativo, tampouco de um debate jurídico qualitativamente completo e maduro. Esse cenário aumenta a possibilidade de, com o aprofundamento das discussões e a apresentação de novos pontos de vista sobre o assunto, haver mudança do entendimento sumulado, a exemplo do que, de fato, ocorreu no caso.

No julgamento do Mandado de Segurança 25.116, o STF deixou de aplicar a Súmula Vinculante n. 3 sem apontar qualquer alteração jurídica ou social considerável que justificasse a mudança de entendimento. Também não foram demonstradas diferenças relevantes em relação aos precedentes que motivaram a edição do enunciado. Pelo contrário, o fator que justificou a mudança de entendimento (transcurso de tempo superior a 5 anos entre a concessão e a respectiva apreciação pelo TCU), também estava presente todos os precedentes.

Desse modo, pode-se afirmar que, no caso da Súmula Vinculante n. 3, o Supremo Tribunal Federal fez mau uso do instrumento que lhe foi colocado à disposição pelo Constituinte. Isso porque, tanto na aprovação do enunciado, quanto no seu posterior afastamento, agiu de forma contrária à finalidade do instituto de conferir maior uniformidade e estabilidade para o processo de interpretação e aplicação do direito pelo Poder Público, e, assim, contribuir para a realização do princípio da segurança jurídica.


REFERÊNCIAS

SANTOS, Evaristo Aragão. Em torno do conceito e da formação do precedente judicial, Direito Jurisprudencial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Coord. Tereza Arruda Alvim Wambier.

ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012.

_________Teoria da igualdade tributária. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Súmula, jurisprudência e precedente: uma escala e seus riscos. Temas de Direito Processual - 9ª série. São Paulo: Saraiva, 2007.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros, 2006.

CARVALHO, André Luis de. Súmula Vinculante n.° 3 do STF: considerações e alcance. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 41, maio, 2007. Disponível em:< http://ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_juridica&revista_edicoes=27>. Acesso em: 5 junho 2012.

DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência no direito tributário: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao Poder Judicial de Tributar. São Paulo: Noeses, 2009.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Efeito vinculante das decisões judiciárias. Fundamentos do Processo Civil Moderno, 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

LEAL, Victor Nunes. Passado e futuro da súmula do STF. Revista de Direito Administrativo, n. 145. v.145, p. 1-20, jul./set. 1981.

LEITE, Sandro Grangeiro. Análise da compatibilidade entre o conceito de ato administrativo complexo e os contornos jurídicos dados pelo STF ao registro do ato de concessão de aposentadoria, reforma e pensão. Monografia apresentada no Instituto Brasiliense de Direito Público como requisito para especialização. Disponível na Biblioteca Ministro Ruben Rosa. Brasília, DF, 2009.

HECK, Philipp. El problema de la creación del Derecho. Granada: Comares, 1999.

MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante, 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

MARINONI, Luiz Guilherme. O Precedente na Dimensão da Segurança Jurídica. A força dos precedentes. Salvador: JusPodivm, 2012. Coord. Luiz Guilherme Marinoni.

MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

MARTINS, James. Processo instantâneo versus processo razoável: a dualidade temporal da garantia constitucional. Revista Novos Estudos Jurídicos – Eletrônica, vol. 16, n. 2, p. 188-206, mai-ago 2011, Disponível em: <https://www.univali.br/periodicos>.Acesso em: 16 fev. 2014.

MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. A jurisprudência uniformizada como estratégia de aceleração do procedimento, Direito Jurisprudencial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Coord. Tereza Arruda Alvim Wambier.

NUNES, Jorge Amaury Maia. Segurança jurídica e súmula vinculante. São Paulo: Saraiva, 2010.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Os direitos fundamentais à efetividade e à segurança em perspectiva dinâmica. Revista Jurídica da Seção Judiciária de Pernambuco, n. 1, 2008, Disponível em: <https://revista.jfpe.jus.br/index.php/RJSJPE/article/view/66/67.>. Acesso em: 29 jan. 2014.

OLIVEIRA, Pedro Miranda de. O binômio repercussão geral e súmula vinculante – Necessidade da aplicação conjunta dos dois institutos, Direito Jurisprudencial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Coord. Tereza Arruda Alvim Wambier.

PARENTE, Eduardo de Albuquerque. Jurisprudência: da divergência à uniformização. São Paulo: Atlas, 2006.

PORTO, Sergio Gilberto. Sobre a common law, civil law e o precedente judicial. Disponível em: <http://www.abdpc.org.br>. Acesso em: 12 fev. 2014.

PUGLIESE, William Soares. Teoria dos precedentes e interpretação legislativa. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Direito, Área de Concentração: Direito das Relações Sociais, Linha de Pesquisa: Direito, Tutela e Efetividade, Setor de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Paraná. Curitiba: UFPR, 2011.

SIFUENTES, Mônica. Súmula vinculante: um estudo sobre o poder normativo dos tribunais: São Paulo: Saraiva, 2005.

SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Direito judicial, jurisprudencial e sumular. Revista de Processo, vol. 80. São Paulo: Revista dos Tribunais, Out /1995.

STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto - o precedente judicial e as súmulas vinculantes? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

STRECK, Lenio Luiz. As súmulas vinculantes em face da hermenêutica filosófica e da Jurisdição Constitucional. Acessoà Justiça e efetividade do processo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. Geraldo Luiz Mascarenhas Prado.Coord.

TORRES, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo: uma análise empírica das repercussões do tempo na fenomenologia processual (civil e penal). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

USTÁRROZ, Daniel. A eficácia vinculativa dos verbetes sumulares do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <www.abdpc.org.br>.

WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito, Direito Jurisprudencial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Coord. Tereza Arruda Alvim Wambier.

________ Súmula vinculante: desastre ou solução? Revista de Processo, n. 98. São Paulo: Revista dos Tribunais, Abr/2000.

WOLKART, Erik Navarro. Súmula vinculante – Necessidade e implicações práticas de sua adoção (o processo civil em movimento), Direito Jurisprudencial, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. Coord. Tereza Arruda Alvim Wambier.


Notas

[2] Súmula Vinculante n. 3: “Nos processos perante o Tribunal de Contas da União asseguram-se o contraditório e a ampla defesa quando da decisão puder resultar anulação ou revogação de ato administrativo que beneficie o interessado, excetuada a apreciação da legalidade do ato de concessão inicial de aposentadoria, reforma e pensão.”

[3] A despeito da impropriedade apontada por alguns autores, utilizaremos o termo súmula vinculante neste estudo por ser a nomenclatura empregada pelo texto Constitucional. Contudo, cabe deixar registrada a crítica feita por José Carlos Barbosa Moreira. Este registra que a palavra súmula, inclusive em documentos oficiais, não é empregada com referência a cada uma das proposições ou teses jurídicas consagradas pela Corte, se não para designar o respectivo conjunto, que lhe resume a jurisprudência; essa é, aliás, a etimologia acolhida pelos dicionários que definem súmula como um breve resumo, uma sinopse. (BARBOSA MOREIRA, 2007, p. 303, nota n. 6).

[4] Como exemplo de autores que entendem haver uma tendência de aproximação do nosso sistema com o Common Law, cita-se: Sergio Gilberto Porto, Pedro Miranda de Oliveira (2012), Eduardo de Albuquerque Parente (2006), Fábio Victor da Fonte Monnerat (2012, p. 422).

[5] Essa controvérsia é ressaltada, por exemplo, por Barbosa Moreira (2007, p. 303), e por Erick Navarro WolkArt. Este último apresenta um resumo dos argumentos contrários e favoráveis à súmula vinculante. No primeiro grupo, indica os seguintes: a) incompatibilidade com o princípio da separação dos poderes; b) estancamento da evolução da jurisprudência e, consequentemente, do Direito; c) restrição à liberdade de decidir; d) indevida substituição da fundamentação das decisões judiciais pela mera referência à súmula vinculante; e) violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa; f) fracasso da adoção da medida por outras democracias constitucionais; e violação do princípio democrático. Do outro lado, aponta: a) falta de incompatibilidade com a cláusula da separação dos poderes; b) não engessamento da evolução jurisprudencial; c) ausência de restrição à liberdade de decidir do juiz; d) respeito ao princípio da motivação das decisões judiciais; e) sucesso da adoção em diversos países; f) compatibilidade com o princípio democrático; g) maior previsibilidade das decisões judiciais, proporcionando segurança e isonomia; h) descongestionamento do poder judiciário, inclusive por meio da diminuição da litigiosidade; e i) instrumento para o alcance da razoável duração do processo. (WOLKART, 2012, p. 279-283).

[6] Dentro os seus defensores, cita-se, a título de exemplo, o posicionamento de Eduardo Parente (2006, p. 91), Pedro Miranda de Oliveira (2012), Mônica Sifuentes (2006), Daniel Ustárroz, Luiz Guilherme Marinoni (2012), Teresa Arruda Alvim Wambier (2000), Cândido Rangel Dinamarco (2000), e Rodolfo de Camargo Mancuso (2001).

[7] Com opiniões contrárias à súmula vinculante, ver Lenio Streck (2005) e Lenio Streck e Georges Abboud (2013).  Estes apresentam crítica interessante ao qualificarem a súmula vinculante como uma pretensão anti-hermenêutica. Isso porque, explicam, a hermenêutica é exatamente a construção que visa demonstrar a impossibilidade do legislador antever todas as hipótese de aplicação da lei e a súmula vinculante nada mais é do que uma tentativa do intérprete de antever casos futuros, de antecipar todos os sentidos possíveis e imagináveis da lei. (STRECK E ABBOUD, 2013, p. 31).  

[8] Para uma maior compreensão sobre o problema dessa imprecisão e sobre as diversas possibilidades de exame que a Segurança Jurídica comporta, ver ÁVILA, 2012, p. 39-189.

[9] Um bom exemplo disso é demonstrado por Inocêncio Martires Coelho quando, ao tratar das teorias de Ferdinand Lassalle, Konrad Hesse e Peter Haberle sobre a Constituição, observa que o pensamento desses autores possui muito em comum e que aparente divergência entre suas teorias decorre, principalmente, da diferença de perspectivas por meio da qual cada um deles examinou a Constituição: Lassalle pela sociológica, Hesse pela jurídica, e Haberle pela hermenêutica. (COELHO, Inocêncio Mártires. Konrad Hesse/Peter Haberle: um retorno aos fatores reais de poder. Brasília: Revista de Informação Legislativa, ano 25, n. 138, abril/junho, 1998, p. 185-191).

[10] Essa curiosidade foi provocada durante a atuação profissional da autora, que, por ser servidora do Tribunal de Contas da União, tem seu trabalho diretamente impactado pelos desdobramentos da Súmula Vinculante n. 3.

[11] A reforma mencionada na Súmula, baseada na redação do Art. 71, inciso III, da Constituição Federal de 1988, é uma das formas, similar à aposentadoria dos Civis, de transferência do militar da ativa para a inatividade.

[12] Por razões didáticas, optou-se por transcrever a ementa dos Mandados de Segurança 24.268 e 25.116 na parte relativa à análise do caso.

[13] Sobre a matéria, ver: LEITE, 2009, p. 10; e CARVALHO, André Luis de, 2012, p. 6-20.

[14] Essa acepção é utilizada em estudo no qual o autor trabalha com muita profundidade o conceito de segurança jurídica, tratando dos diversos significados com que ela pode ser empregada e das perspectivas sob as quais pode ser examinada, a fim de, por meio um procedimento analítico, reduzir as ambiguidades do princípio da segurança jurídica e, assim, poder definir os fins e os meios necessários a sua realização. (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2012, p. 39-189).

[15] Para Humberto Ávila, o comportamento objeto de proteção pela segurança jurídica seria notadamente um comportamento Estatal (ÁVILA, 2012, p. 263). Contudo, em nossa opinião, não há essa restrição, podendo referir-se também a atos entre particulares. Exemplo disso é a aplicação dos princípios civilistas do venire contra factum proprium, da supressio e da surrectio, variações do princípio da boa-fé objetiva, o qual, conforme ressalta Heleno Torres, possui íntima relação com a proteção da confiança, vertente subjetiva da segurança jurídica (TORRES, 2012, p. 218). Entendemos, assim, que, nas relações privadas, o princípio da segurança jurídica também pode incidir sobre o comportamento de particulares.

[16] Nesse sentido, Dinamarco afirma que a insegurança jurídica e a relevante multiplicação de processos são as razões de ser e os fatores que legitimam a ideia de instituir a súmula vinculante (DINAMARCO, 2000, p. 1.145).

Wambier, na mesma linha, defende que o tema “súmulas vinculantes” se constitui numa das possíveis saídas para o problema do assoberbamento de trabalho do Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, é um método que contribui para o prestígio de valores como o da estabilidade e o da previsibilidade. Para a autora, pareceu conveniente a adoção do sistema de súmulas vinculantes, pois, de um lado, acaba contribuindo para o desafogamento dos órgãos do Poder Judiciário e, de outro lado, desempenha papel relevante no que diz respeito a valores prezados pelos sistemas jurídicos: segurança e previsibilidade. (WAMBIER, 2000, p. 245).

James Martins ressalta que a legislação processual, paulatinamente, incorporou ao sistema brasileiro diversos mecanismos de standartização das decisões, dentre eles o regime da súmula vinculante, com o escopo de atingir dois objetivos nucleares: conferir celeridade aos processos e dotar de estabilidade as interpretações jurisprudenciais (segurança). (MARTINS, 2011, p. 194-195).

Segundo Pedro Miranda de Oliveira, o legislador privilegiou o binômio segurança/efetividade com a implementação da repercussão geral combinada com a súmula vinculante (OLIVEIRA, 2012, p. 729).

Marinoni, referindo-se a instituição da súmula vinculante pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004, afirma que “Esta nova ‘modalidade’ de súmula surgiu da percepção de que as súmulas vinham sendo tratadas como enunciados gerais e abstratos, descompromissados com os casos precedentes que lhes deram origem e com a metodologia capas de permitir a sua adequada aplicação num sistema preocupado em tutelar a coerência da aplicação do direito e a segurança jurídica.” (MARINONI, 2010, p. 487).

Por fim, cita-se ainda, a título de exemplo, o posicionamento de Mônica Sifuentes, segundo a qual, ao aplicar o precedente nas situações análogas, os tribunais, a par de preservar a estabilidade do ordenamento jurídico, contribuem para a certeza jurídica e para a proteção da confiança dos operadores do direito e ao comércio jurídico. (SIFUENTES, 2005, p. 295).

[17] No mesmo sentido parece ser a opinião de Eduardo Parente. O autor coloca em dúvida a celeridade processual proporcionada pela súmula vinculante ao afirmar que “A segurança jurídica decorrente da redução de expectativas e da implementação de situações qualitativamente isonômicas legitima a escolha pelo procedimento da súmula obrigatória. Embora ainda pouco abordados pelos comentadores da mudança, tais benefícios superam em relevância eventual celeridade na prestação jurisdicional – que é o argumento mais utilizado pelos defensores da vinculação.” (PARENTE, 2006, p. 91, grifo acrescido).

[18] O conflito entre segurança e efetividade é vislumbrado por outros autores, como José Rogério Cruz e Tucci, o qual tece a seguinte afirmação: “Não se pode olvidar, nesse particular, a existência de dois postulados que, em princípio, são opostos: o da segurança jurídica, e o da efetividade deste, reclamando que o momento da decisão final não se procrastine mais do que o necessário. Obtendo-se um equilíbrio destes dois regramentos – segurança/celeridade —, emergirão as melhores condições para garantir a justiça no caso concreto, sem que, assim, haja diminuição no grau de efetividade da tutela jurisdicional.” (TUCCI, 1997, p. 66).

Outro processualista que também trabalha com essa ideia de oposição, é José Roberto dos Santos Bedaque, ao afirmar que “De nada adianta um processo seguro e justo, mas demorado; também não pode ser cultuada apenas a celeridade, gerando risco de decisões injustas. É preciso buscar o tempo razoável a que se refere o art 5º, LXXVIII, da CF, suficiente para conferir segurança e eficácia prática ao resultado. Afinal de contas, a efetividade da tutela jurisdicional constitui direito fundamental, assegurado também em sede constitucional.” (BEDAQUE, 2006, p. 78).

James Martins, referindo-se à legislação processual e aos mecanismos de standartização das decisões judiciais incorporados ao sistema brasileiro, dentre eles a súmula vinculante,também menciona um “conflito permanente entre os valores celeridade/garantia e segurança/justiça”. (MARTINS, 2011, p. 194).

Por fim, vale trazer ainda as considerações de Carlos Alberto Alvaro de Oliveira nesse sentido: “A aceleração do processo (uma das variáveis do valor efetividade) implica sempre risco ao resultado qualitativo pretendido alcançar. Portanto, incrementar a segurança pode comprometer a efetividade, e, em contrapartida, incrementar a efetividade pode comprometer a segurança. De tal sorte, o grande desafio do legislador ou do aplicador do direito processual é compor de maneira adequada esses dois valores em permanente con'ito, e, nada obstante, complementares.” (OLIVEIRA, 2008, p. 71).

[19] Nesse ponto, cabe rememorar a definição empregada neste estudo para os termos cognoscibilidade, confiabilidade e calculabilidade. O ideal de cognoscibilidade refere-se a uma perspectiva estática e atemporal, significando a possibilidade, formal ou material, de conhecimento dos sentidos possíveis de um texto normativo, a partir de núcleos de significação que possam ser reconstruídos por meio de processos argumentativos intersubjetivamente controláveis. assim, em uma perspectiva estática, para o direito ser seguro, é preciso que o indivíduo tenha capacidade de compreender o seu conteúdo. A confiabilidade, por sua vez, refere-se a uma perspectiva dinâmica retrospectiva (voltada para o passado), denotando a exigência de estabilidade na mudança, como a proteção de situações subjetivas já garantidas individualmente e a exigência de continuidade do ordenamento jurídico por meio de regras de transição de cláusulas de equidade, abrangendo os elementos que proíbem a modificação ou determinado tipo de modificação no presente daquilo que foi conquistado no passado. Nessa perspectiva, a segurança jurídica estabelece a promoção de um estado das coisas em que os atos de disposição dos direitos fundamentais de liberdade são respeitados graças a exigência de estabilidade, de durabilidade e de irretroatividade do ordenamento jurídico.  Já a calculabilidade diz respeito a uma perspectiva dinâmica prospectiva (com foco no futuro), sendo vista como a capacidade de antecipar e medir o espectro reduzido e pouco variável de consequências atribuíveis abstratamente a atos ou fatos e o espectro reduzido de tempo dentro do qual a consequência definitiva será efetivamente aplicada, referindo-se aos elementos que prescrevem o ritmo da mudança, no futuro, daquilo que está sendo realizado no presente. Trata-se, pois, de um estado das coisas em que o cidadão é capaz prever, em grande medida, os limites da intervenção do Poder Público sobre os atos que pratica, conhecendo, antecipadamente, o âmbito de discricionariedade dos atos estatais. (ÁVILA, 2012, p. 128-132 e 274-275).

[20] Nessa linha, Carlos Aurélio Mota de Souza, afirma que “se a lei não for eficaz não será segura”. (Souza, 1995, p. 2).

[21] Em nota sobre essa afirmação (nota 502 daquela obra), Torres traz uma citação de José Rogério Cruz e Tucci muito semelhante à citação que fizemos logo acima (nota 18), contudo, não chega a adentrar na discussão sobre o conflito entre a segurança jurídica e a efetividade do processo apontado por Tucci.

[22] Sobre as diferenças entre a súmula vinculante e o stare decisis, Streck e Abbaud observam que a aplicação do precedente no Common Law não se dá de forma automática, como se pretende com a súmula vinculante, pois depende da extração de um princípio da decisão anterior, a ratio decidendi. Essa não é uma regra jurídica que pode ser considerada por si só, ela deve, obrigatoriamente, ser analisada em correspondência com a questão fático-jurídica (caso concreto) que ela solucionou. Além disso, precedentes são formados para resolver casos concretos e eventualmente influenciam casos futuros, ao contrário das súmulas, enunciados gerais e abstratos voltados à solução de casos futuros. No stare decisis, não existe uma prévia e pronta regra jurídica apta a solucionar por efeito cascada diversos casos futuros. Pelo contrario, a própria regra jurídica (precedente) é fruto de intenso debate e atividade interpretativa, e, após ser localizado, passa-se a verificar se ele se amolda ao caso concreto ou se causará distorções nessa aplicação. O precedente é o ponto de partida para a discussão de novos casos. Ele dinamiza o sistema jurídico, não o engessa, podendo se ajustado a cada nova decisão. Assim, concluem os autores, que a regra da vinculação no satere decisis não é inexorável como se pretende a vinculação idealizada pela Emenda Constitucional n. 45, que permite a cassação de toda decisão judicial por meio da reclamação ao STF, não permitindo a necessária problematização e o ajuste jurisprudencial pelos juízes a ponto de podermos afirmar que no Brasil a súmula vinculante pretende capturar a racionalidade, a partir de um retorno a uma espécie de “essencialismo jurídico” em que cada súmula contenha a substancia de todos os casos. (STRECK E ABBOUD, 2013, P. 30-48).

Também Sérgio Porto ressalta que, no stare decisis, o precedente representa um ponto de partida para a análise e julgamento do caso concreto, não uma restrição ao poder de julgar, a decisão de adotar o precedente, cabe ao juiz posterior, ou seja, aquele que esta no momento julgando e não se constitui numa imposição do juízo anterior como no caso da edição de súmula vinculante. (PORTO, p. 11).

Já Evaristo Aragão Santos, pontua que, no Common Law, os precedentes são obedecidos não por imposição do legislador, como ocorre no caso da súmula vinculante, mas porque isso é moralmente correto, trata-se de uma tradição histórica, cultural. (SANTOS, 2012, p. 150).

[23] Nessa linha, Monnerato defende o emprego de técnicas e conceitos de afastamento e aplicação de precedentes emprestadas do Common Law, em razão da crescente valorização da estabilidade dos precedentes no nossos sistema, mas ressalta que esses conceitos do Common Law devem ser pensados e introduzidos no nosso país por meio de adaptações (MONNERAT, 2012, p. 422).

[24] Conclusões semelhantes são as de William Soares Pugliese (2011, p. 93).

[25] Com posicionamento contrário ao uso desses conceitos emprestados do Common Law, William Soares Pugliese afirma que se o método para a identificação de ratio decidendi e obiter dictum tem como critérios a busca por fatos e a solução direta de casos, esta discussão pouco contribui para a Civil Law. É preciso buscar outra visão para o tema que contemple a interpretação legislativa. (PUGLIESE, 2011, p. 85). Não vemos, contudo, a incompatibilidade apontada pelo autor, pois, o fato de, no Civil Law, as decisões judiciais possuírem caráter interpretativo, não as dissocia da análise e da interpretação dos fatos objeto do julgamento. Ora, a aplicação da norma ao caso concreto envolve, além da interpretação do texto normativo, também a interpretação dos fatos e a seleção das circunstâncias que são consideradas relevantes para que se decida se eles se amoldam ou não a hipótese de incidência da norma. Além disso, como já ressaltado, o que se propõe é a busca de inspiração nesses conceitos e técnicas empregadas no Common Law, para encontrar soluções que atendam às nossas necessidades. Não se trata, pois, de uma simples importação da teoria do stare decisis.

Na linha ora defendida, cita-se Fábio Monnerat (2012, p. 422), favorável ao uso de conceitos do Common Law e Luiz Guilherme Marinoni, o qual, ao tratar da súmula vinculante, emprega as expressões como ratio decidendi e distinguishing (MARINONI, 2010, p. 548 e 482).

[26] Sobre esses conceitos, ver também Sérgio Porto, Fábio Monnerat (2012, p. 422-430), Luiz Guilherme Marinoni (2010, p. 221-258), e Teresa Arruda Alvim Wambier (2012, p. 40-52).

[27] Em sentido diverso, Pedro Miranda de oliveira, embora ressalte a importância de haver a maturação do entendimento jurisprudencial sumulado, defende que, no caso de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, bastaria uma única decisão do Supremo Tribunal Federal para justificar a aprovação de súmula vinculante sobre a matéria. (OLIVEIRA, 2012, P. 715-718). Trata-se, em nossa opinião, de tese questionável, dada a literalidade do próprio texto constitucional. Contudo, mesmo que se admita esse posicionamento, isso só seria aplicável às decisões proferidas em sede de recurso extraordinário e ainda permaneceria a necessidade do amadurecimento do debate sobre o tema bem como do respeito aos demais requisitos estabelecidos aqui mencionados.

[28] A necessidade de reiteradas decisões no mesmo sentido sobre a matéria também é considerada pressuposto para a aprovação de Súmulas Vinculantes por outros autores, como WAMBIER (2000, p. 6), Eduardo Parente (2006, p. 96) e James Martins (2011, p. 194-198).

[29] A propósito, cabe registrar que a necessidade de clareza do texto das súmulas já era ressaltada por Victor Nunes Leal muito antes da instituição do sistema de súmulas vinculantes pela Emenda Constitucional 45 de 2004. Para ele, se for preciso interpretar ou aclarar o enunciado, então deve-se cancelá-lo e substituir por outro, sob pena de voltar-se ao estado de insegurança que se quis remediar. (LEAL, 1981, p. 22).

[30] No mesmo sentido, Daniel Ustárroz entende que para o “verbete vinculante” ter condições de germinar adequadamente, inúmeras condições devem ser impostas, a começar pelo hábito de análise dos precedentes. Cada operador, diante da possibilidade de aplicação de um enunciado sumulado deve explorar detalhadamente as razões que levaram o Supremo Tribunal Federal a editar tal norma, e não simplesmente pretender sua eficácia a partir da redação do verbete. (USTÁRROZ, p. 13).

Eduardo Parente também considera inegável que o mero texto sumulado é absolutamente insuficiente, sendo necessário, quando da feitura da súmula, a indicação dos casos sobre os quais ela foi elaborada, seus pontos fáticos e as premissas de direito. (PARENTE, 2006, p. 100).

Com posicionamento divergente, Jorge Amaury Nunes, entende que só o enunciado da súmula vincula, não cabendo fazer a distinção entre ratio decidendi e obter dicta (NUNES, 2010, p. 146). Não consideramos, todavia, que seja esse o melhor entendimento. Nos parecerem mais convincentes os argumentos dos outros autores acima mencionados (James Martins, Luiz Guilherme Marinoni, Eduardo Parente e Daniel Ustárroz). Se o texto da Súmula é redigido a partir de casos concretos, e se o objetivo de criá-la é reduzir as ambiguidades da lei, de nada adiantaria se ela fosse interpretada de forma autônoma, pois causaria as mesmas dificuldades interpretativas da lei.

[31] Sobre a matéria, ver: LEITE, 2009, p. 10; e CARVALHO, André Luis de. Súmula Vinculante n.° 3 do STF: considerações e alcance. Revista Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 41, maio, 2007. Disponível em: < http://ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_juridica&revista_edicoes=27>. Acesso em: 5 jun. 2012, p. 6-20.

[32] Nesse sentido, são os seguintes precedentes do STF: Mandado de Segurança 28.929/DF (Relatora: Min. Cármen Lúcia, DJ 16/11/2011), Mandado de Segurança 25.697/DF (Relatora: Min. Cármen Lúcia, DJ 05/03/2010), Mandado de Segurança 25.552/DF (Relatora: Min. Cármen Lúcia, DJ 30/05/2008), Mandado de Segurança 25.409/DF (Relator: Min. Sepúlveda Pertence, DJ 18/05/2007), Mandado de Segurança 25.072/DF (Relator: Min. Marco Aurélio, DJ 27/04/2007), RE 195.861/ES (Relator: Min. Marco Aurélio, DJ 17/10/1997), entre outros.

[33] Sobre a classificação das concessões de aposentadorias e pensões como sendo atos complexos, cabe registrar que, embora essa seja a tese ainda dominante no STF, a matéria não é pacífica entre os membros daquele Tribunal e também encontra divergências na doutrina. No âmbito da Suprema Corte, existem manifestações de ministros que questionam essa premissa, como se observa, por exemplo, nas considerações feitas pelos Ministros Ayres Britto, Sepúlveda Pertence e Cesar Peluso no julgamento do Mandado de Segurança 25.116/DF (inteiro teor do julgado, p. 172 e 205-209, Relator: Min. Ayres Britto, DJ 10/02/2011), bem como nos debates orais do julgamento do Mandado de Segurança 24.781/DF (inteiro teor, p. 55, Relator: Mina. Ellen Gracie, Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 09/06/2011).

Da mesma forma, na doutrina encontram-se posicionamentos contrários a essa classificação, como o de Flavio Germano de Sena Teixeira, para quem o ato concessório não é complexo, pois nele não há a confluência de vontades de fim e de conteúdo dos órgãos manifestantes inerente aos atos complexos, uma vez que o ato do órgão de controle não visa à concessão da aposentadoria ou pensão, mas o exame de sua legalidade, fim diverso da manifestação do órgão que emite o ato (TEIXEIRA, 2004, p. 199-200). Lafayette Pondé também defende a incompatibilidade do conceito de ato complexo com o ato de aposentadoria, ressaltando que o ato de controle não participa da natureza do ato controlado (PONDÉ, 1998, p. 132-133). Nessa linha, ver ainda: FURTADO, 2007, p. 288-290; MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Ato Administrativo Complexo. Disponível em: <http://sisnet.aduaneiras.com.br/lex/doutrinas/arquivos/110406j.pdf>. Acesso em: 8 jan. 2013. CUSTÓDIO, 2008; e LEITE, 2009.

[34] Nessa linha, os seguintes precedentes: 25.256/PB (Relator: Min. Carlos Velloso, DJ 24/03/2006), Mandado de Segurança 25.192/DF (Relator: Min. Eros Grau, DJ 06/05/2005), 25.090 (Relator: Min. Eros Grau, DJ 01/04/2005), Mandado de Segurança 24.859 (Relator: Min. Carlos Velloso, DJ 27/08/2004), entre outros.

[35] Esse entendimento foi registrado, por exemplo, nos seguintes julgados: Mandado de Segurança 25.409/DF (Relator: Min. Sepúlveda Pertence, DJ 18/05/2007), Mandado de Segurança 25.440 (Relator: Min. Carlos Velloso, DJ 28/04/2006) e Mandado de Segurança 25.256 (Relator: Min. Carlos Velloso, DJ 24/03/2006).

[36] Cabe esclarecer que a produção de efeitos desde a sua emissão é uma característica desses atos de concessão, não fazendo parte, contudo, do conceito de ato complexo consagrado na doutrina. Aliás, é por causa dessa característica das concessões de aposentadoria, reforma e pensão, que alguns autores questionam se, efetivamente, elas seriam atos complexos.

[37] Informações extraídas do inteiro teor dos debates, publicado no DJe n. 78/2007, de 10 de agosto, p. 39-43.

[39] EMENTA: “Mandado de Segurança. 2. Cancelamento de pensão especial pelo Tribunal de Contas da União. Ausência de comprovação da adoção por instrumento jurídico adequado. Pensão concedida há vinte anos. 3. Direito de defesa ampliado com a Constituição de 1988. Âmbito de proteção que contempla todos os processos, judiciais ou administrativos, e não se resume a um simples direito de manifestação no processo. 4. Direito constitucional comparado. Pretensão à tutela jurídica que envolve não só o direito de manifestação e de informação, mas também o direito de ver seus argumentos contemplados pelo órgão julgador. 5. Os princípios do contraditório e da ampla defesa, assegurados pela Constituição, aplicam-se a todos os procedimentos administrativos. 6. O exercício pleno do contraditório não se limita à garantia de alegação oportuna e eficaz a respeito de fatos, mas implica a possibilidade de ser ouvido também em matéria jurídica. 7. Aplicação do princípio da segurança jurídica, enquanto subprincípio do Estado de Direito. Possibilidade de revogação de atos administrativos que não se pode estender indefinidamente. Poder anulatório sujeito a prazo razoável. Necessidade de estabilidade das situações criadas administrativamente. 8. Distinção entre atuação administrativa que independe da audiência do interessado e decisão que, unilateralmente, cancela decisão anterior. Incidência da garantia do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal ao processo administrativo. 9. Princípio da confiança como elemento do princípio da segurança jurídica. Presença de um componente de ética jurídica. Aplicação nas relações jurídicas de direito público. 10. Mandado de Segurança deferido para determinar observância do princípio do contraditório e da ampla defesa (CF Art. 5º LV)” (Relator: Mina. Ellen Gracie, Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 09/06/2011).

[40] EMENTA: “Pensão Especial da Lei 6.782/80. Filha adotiva. Ausência de comprovação legal da adoção da interessada. Ilegalidade. Aplicação da Súmula 106 do TCU.” (Relator: Ministro Ubiratan Aguar, DOU 23/10/2001).

[41] EMENTA: “Mandado de Segurança. 2. Pensão por morte de ex-militar. 3. Decisão do Tribunal de Contas da União, que considerou legal a concessão de pensão à impetrante e determinou o registro do ato respectivo. 4. Decisão impugnada, no prazo legal, pelo Ministério Público da União, por meio de Pedido de Reexame. 5. Recurso com efeito suspensivo, que impediu se perfizesse o ato complexo de registro da pensão militar. 6. Pedido de Reexame provido para tornar insubsistente a decisão anterior e declarar ilegal a concessão da pensão. 7. Art. 71, III, da Constituição. Tribunal de Contas da União. Controle externo. Julgamento de legalidade de concessão de aposentadoria ou pensão. Inexistência de processo contraditório ou contestatório. Precedentes. 8. Não se trata, portanto, de revisão de pensão. Inaplicabilidade do precedente MS 24.268-MG, Pleno, DJ 05.02.04, Gilmar Mendes, redator para o acórdão. 9. Mandado de Segurança indeferido, cassada a liminar anteriormente concedida.”

[42] EMENTA: “APOSENTADORIA - HOMOLOGAÇÃO - ATO COMPLEXO - CONTRADITÓRIO - IMPROPRIEDADE. O processo de aposentadoria revela atos complexos, sem o envolvimento de litigantes, ficando afastada a necessidade de observância do contraditório, isso em vista do ato final, ou seja, a glosa pela Corte de Contas. APOSENTADORIA - CARGO EM COMISSÃO - REGÊNCIA NO TEMPO. Tratando-se de situação concreta em que atendidos os requisitos para a aposentadoria em data anterior à alteração do artigo 183 da Lei nº 8.112/90 pela Lei nº 8.647/93, descabe glosar a aposentadoria concedida considerada a ocupação de cargo em comissão. Precedente: Mandado de Segurança nº 24.024-5, Pleno, cujo acórdão, redigido pelo ministro Gilmar Mendes, foi publicado no Diário da Justiça de 24 de outubro de 2003.” (Relator: Min. Marco Aurélio, DJ 18/02/2005).

[43] EMENTA: “Aposentadoria. Servidor ocupante de cargo comissionado sem vínculo com a administração pública. Ilegalidade. - Aposentadoria de servidor sem vínculo com a administração pública. Considerações.” (Relator: Ministro Marcos Vinicius Vilaça, DOU 27/11/2003).

[44] EMENTA: “APOSENTADORIA - REGÊNCIA. A aposentadoria é regida pelas normas constitucionais e legais em vigor na data em que o servidor preenche as condições exigidas - Verbete nº 359 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. APOSENTADORIA EM CARGO CIVIL - MILITAR REFORMADO. A Carta da República de 1967 bem como a de 1988, na redação primitiva, anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, não obstaculizavam o retorno do militar reformado ao serviço público e a posterior aposentadoria no cargo civil, acumulando as vantagens respectivas.”

[45] EMENTA: “Reforma. Processo consolidado. Acumulação de proventos de aposentadoria com reforma. Ilegalidade. Aplicação da Súmula 106 do TCU. Opção pelos proventos de reforma por um dos interessados. Legalidade desse ato. - Acumulação de proventos. Considerações.” (Relator: Min. Benjamin Zymler, DOU 22/10/2003).

[46] EMENTA: “Mandado de Segurança. 2. Acórdão da 2ª Câmara do Tribunal de Contas da União (TCU). Competência do Supremo Tribunal Federal. 3. Controle externo de legalidade dos atos concessivos de aposentadorias, reformas e pensões. Inaplicabilidade ao caso da decadência prevista no Art. 54 da Lei 9.784/99. 4. Negativa de registro de aposentadoria julgada ilegal pelo TCU. Decisão proferida após mais de 5 (cinco) anos da chegada do processo administrativo ao TCU e após mais de 10 (dez) anos da concessão da aposentadoria pelo órgão de origem. Princípio da segurança jurídica (confiança legítima). Garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. Exigência. 5. Concessão parcial da segurança. I – Nos termos dos precedentes firmados pelo Plenário desta Corte, não se opera a decadência prevista no Art. 54 da Lei 9.784/99 no período compreendido entre o ato administrativo concessivo de aposentadoria ou pensão e o posterior julgamento de sua legalidade e registro pelo Tribunal de Contas da União – que consubstancia o exercício da competência constitucional de controle externo (Art. 71, III, CF). II – A recente jurisprudência consolidada do STF passou a se manifestar no sentido de exigir que o TCU assegure a ampla defesa e o contraditório nos casos em que o controle externo de legalidade exercido pela Corte de Contas, para registro de aposentadorias e pensões, ultrapassar o prazo de cinco anos, sob pena de ofensa ao princípio da confiança – face subjetiva do princípio da segurança jurídica. Precedentes. III – Nesses casos, conforme o entendimento fixado no presente julgado, o prazo de 5 (cinco) anos deve ser contado a partir da data de chegada ao TCU do processo administrativo de aposentadoria ou pensão encaminhado pelo órgão de origem para julgamento da legalidade do ato concessivo de aposentadoria ou pensão e posterior registro pela Corte de Contas. IV – Concessão parcial da segurança para anular o acórdão impugnado e determinar ao TCU que assegure ao impetrante o direito ao contraditório e à ampla defesa no processo administrativo de julgamento da legalidade e registro de sua aposentadoria, assim como para determinar a não devolução das quantias já recebidas. V – Vencidas (i) a tese que concedia integralmente a segurança (por reconhecer a decadência) e (ii) a tese que concedia parcialmente a segurança apenas para dispensar a devolução das importâncias pretéritas recebidas, na forma do que dispõe a Súmula 106 do TCU.” (Relator: Mina. Ellen Gracie, Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 09/06/2011).

[47] Posteriormente, foram proferidos os seguintes precedentes na mesma linha: MS 25.403/DF (Relatora: Min. Ellen Gracie, Relator para Acórdão: Min. Gilmar Mendes, DJ 10/2/2011), Agravo Regimental no Mandado de Segurança 28.711 (Relator: Min. Dias Toffoli, DJ 24/09/2012), Mandado de Segurança 25.568 (Relatora: Min. Rosa Weber, DJ 10/05/2012), Mandado de Segurança 28.520/PR (Relator: Min. Ayres Britto, DJ 02/04/2012), Mandado de Segurança 28.720 (Relator: Min. Ayres Britto, DJ 02/04/2012), Mandado de Segurança 27.640 (Relator: Min. Ricardo Lewandowski, DJ 19/12/2011) e Mandado de Segurança 28.333 (Relator: Min. Ricardo Lewandowski, DJ 27/02/2012), entre outros.


Autor


Informações sobre o texto

Texto elaborado a partir das leituras da disciplina "O Precedente e o Direito Jurisprudencial", do programa de Mestrado em Direito do Uniceub, ministrada pelo Prof. Dr. Jefferson Carús Guedes no segundo semestre de 2013.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Ana Paula Sampaio Silva. Súmula vinculante e segurança jurídica. Uma análise do caso da Súmula Vinculante nº 3. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4070, 23 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29319. Acesso em: 26 abr. 2024.