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Liberdade provisória sem fiança: uma questão de justiça e isonomia social

Liberdade provisória sem fiança: uma questão de justiça e isonomia social

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A lei processual penal prejudica injustamente os pobres quando estabelece o critérios de liberdade provisória sem fiança.

RESUMO: O presente trabalho pretende abordar o tema do direito fundamental da liberdade no campo do direito penal. A abordagem da mitigação da liberdade do indivíduo pelo direito penal será concentrada na prisão em flagrante e sua manutenção, ainda que por curto lapso temporal, frente a ausência de condições financeiras por parte do flagranteado para pagamento de fiança arbitrada pela autoridade policial. Durante esse lapso temporal, entre a prisão em flagrante e análise do pedido de liberdade provisória sem fiança a ser analisada pelo juiz, o indivíduo preso em flagrante, que não possui condições financeiras para arcar com o valor arbitrado como fiança pela autoridade policial, permanece preso. O critério de elaboração da regra penal adotado pelo legislador, baseado única e exclusivamente nas condições financeiras do acusado, parece desarrazoado, fere o princípio da igualdade, da presunção de inocência e atenta contra o princípio maior da dignidade da pessoa humana, além de criar a péssima visão social da ausência de isonomia, de que rico não fica preso e que a lei somente funciona para os pobres. Para atingir seu escopo, o presente trabalho abordará aspectos relevantes da liberdade de locomoção, sua evolução histórica enquanto parte integrante dos direitos do homem, bem como a evolução dos direitos fundamentais no Brasil e sua mitigação frente a evolução na aplicação das penas. Para que se possa traçar um paralelo, será abordada também a liberdade provisória com fiança.           

PALAVRAS CHAVE: Liberdade. direito penal. fiança. isonomia. justiça social.

SUMÁRIO: 1-INTRODUÇÃO, 2- A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, 2.1- A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO BRASIL 3. A EVOLUÇÃO DAS PENAS PUNITIVAS POR DELITOS, 3.1 DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE, 3.2- DA PRISÃO EM FLAGRANTE. 4. DA LIBERDADE PROVISÓRIA. 4.1 LIBERDADE PROVISÓRIA COM FIANÇA, 4.2- LIBERDADE PROVISÓRIA SEM FIANÇA. 5- CONCLUSÃO. 


1-    INTRODUÇÃO 

Liberdade nos dizeres de Aurélio Buarque de Holanda cuida-se da “faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação. Estado ou condição do homem livre.” (AURÉLIO,2009, p.515). Trata-se de um direito inerente ao homem, sendo superado somente pelo direito à vida em grau de importância.

A liberdade, assim como os demais direito humanos, são frutos de uma construção histórica pelo homem. Trata-se de um dos componentes do núcleo básico do indivíduo para uma vida digna.

Historicamente, a aplicação das penas nos delitos penais foi evoluindo, até que se chegou à aplicação da pena restritiva de liberdade como forma de punição, repressão e prevenção dos delitos. Mas durante todo o processo evolutivo dessa forma de punição, percebe-se que a classe mais pobre da sociedade sempre esteve mais a mercê de seus efeitos.


2. A EVOLUÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE

Ao longo dos anos, a sociedade deparou-se com a necessidade de proteção de alguns direitos inerentes à condição humana. Chegou-se à conclusão de que a proteção de alguns direitos relativos ao homem constitui uma necessidade primordial para a construção de uma sociedade justa.

A evolução dos direitos fundamentais, entre eles a liberdade, ganha especial importância com o antropocentrismo, que coloca o homem em primeiro lugar nas reflexões filosóficas, lugar até então ocupado por misticismos religiosos.

O surgimento do cristianismo também teve importante papel na evolução e conquista dos direitos fundamentais ao pregar a limitação do poder político. Criou-se então a distinção entre o que é de “César” e o que é de “Deus”, realçando o direito natural relativo à pessoa humana. O cristianismo considera que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, é considerado pessoa dotadas de eminente valor.

Na antiguidade, embora tenham sido plantadas algumas sementes com relação aos direitos da pessoa humana, a escravidão era prática aceita no meio social.

Já na idade média, começaram a surgir os primeiros documentos formais reconhecendo direitos a determinadas pessoas por meio de forais ou cartas de franquias.

Dentre os documentos da idade média podemos citar a Magna Carta Inglesa de 1215, um documento outorgado pelo rei João Sem-Terra, que devido às pressões exercidas pelos barões decorrentes do aumento da carga dos impostos, concedeu alguns direitos aos nobres. Neste documento, já aparece o direito à liberdade de ir e vir.

Nessa época, pode-se destacar a teorização sobre direitos humanos de São Tomás de Aquino, que ressalta o valor da dignidade humana pelo fato do homem ter sido criado à imagem e semelhança de Deus. Para este filósofo, existem 04 tipos de leis: a lei eterna, a lei natural, a lei divina e a lei humana.       

Para São Tomás de Aquino a lei humana era fruto da vontade do poder político soberano atuante, mas que deveria estar de acordo com a razão e limitada pela Vontade de Deus.

Na idade moderna, com o advento do iluminismo, o desenvolvimento do comércio, o surgimento do Estado Moderno, a centralização do poder político o direito passa a ser o mesmo dentro do reino. Ocorre uma uniformização do direito, sem a presença das inúmeras fontes de comando que caracterizava a formação social na idade média.

Houve uma mudança na mentalidade e os fenômenos passaram a ser explicados cientificamente, baseados na razão. Dentro da racionalidade, não se encontrava suporte teórico aceitável para se explicar a restrição da liberdade da pessoa humana no seio social, levando-se em consideração simplesmente sua condição financeira ou origem. Nessa época, os movimentos libertários da Revolução Francesa e Americana influenciaram a maioria das Constituições do século XIX.

Podemos destacar como movimentos e documentos relevantes dentro do processo evolutivo do direito fundamental da liberdade:

1-    Petition of Rights, documento elaborado em 1628 na Inglaterra que tentou incorporar os direitos estabelecidos na Magna Carta. Visava o consentimento do Parlamento para a realização de inúmeros atos por parte do poder soberano.

2-    Habeas Corpus Act, instituído em 1679, institui um dos mais importantes instrumentos de garantia do direito de locomoção que é utilizado até os dias atuais.

3-     Bill of Rights, documento elaborado em 1689, documento inglês que reconhecia a liberdade do indivíduo.

4-    Declaração de Direitos do Povo da Virginia de 1776. Afirmava que todos os seres humanos são livres e independentes. Também nesse ano é elaborada a Declaração de Independência dos Estados Unidos ressaltando a ideia de que todos os homens são livres perante Deus e que este lhe concedeu direitos invioláveis por qualquer poder político.

5-    Em 1789 surge na França a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão que traz em seu bojo a afirmação dos direitos fundamentais e que qualquer sociedade deverá preservar esses direitos em sua constituição.

6-    Em 10 de novembro de 1948, após as atrocidades da 2ª guerra mundial surge outro documento importante na evolução histórica dos direitos humanos, trata-se da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, surgindo assim a internacionalização dos direitos humanos, que passam a ganhar relevância no plano internacional e, consequentemente, refletindo nos ordenamentos jurídicos internos.

Não há como se falar em liberdade sem mencionar o suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). A liberdade foi tema de profunda reflexão pelo filósofo.          Para Rousseau, a desigualdade social teria gradativamente suprimido a liberdade dos indivíduos, que teriam que se adaptar a um modelo que comprometeria a sua liberdade natural. Os indivíduos teriam sua liberdade natural substituída por artifícios sociais como culto às aparências e regras de polidez.

Para Rousseau, ao renunciar a liberdade o homem abre mão da própria qualidade que o define como humano. O filósofo propõe que para o homem recobrar a liberdade perdida ao aderir ao contrato social teria que haver um mergulho interior por parte do indivíduo. Mas isso não se daria por meio da razão, mas por meio da emoção, em uma entrega à natureza. A civilização havia afastado o homem da felicidade. Rousseau se preocupava tanto com a formação do homem, quanto com a formação do cidadão. Para o filósofo suíço, a criança deveria ser educada sobretudo na liberdade e viver cada fase da infância na plenitude de seus sentidos. Para ele, liberdade não significa a realização dos impulsos e desejos, mas uma dependência das coisas, em oposição à dependência dos outros.   

Os avanços dos direitos humanos, com a prevalência dos direitos individuais, estão sempre relacionados com a limitação do poder estatal. No avanço histórico dos direitos fundamentais, entre eles o da liberdade, podemos perceber que as classes economicamente mais frágeis foram as últimas a terem esses direitos reconhecidos. Podemos perceber que ainda que formalmente reconhecido o direito de liberdade para todos, circunstâncias materiais, em especiais as econômicas, limitam o gozo da liberdade pelas classes economicamente menos favorecidas.

2.1- A evolução dos direitos fundamentais no Brasil

No Brasil, assim como no resto do mundo, houve uma paulatina evolução dos direitos fundamentais, dentre eles a liberdade, até que se alcançasse o estágio atual consagrado na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

A Constituição de 1924, outorgada pelo Imperador Dom Pedro I e sofreu forte influência das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), continha importante rol de direitos civis e políticos. Tutelou a liberdade de locomoção em seu art. 179, incisos VI, VIII e IX e também vedou qualquer hipótese de prisão arbitrária. Porém, manteve a escravidão, que só foi abolida em 13 de maio de 1888 pela Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel.

Embora não estivesse previsto o instituto do habeas corpus, principal instrumento jurídico para defesa do direito à liberdade de locomoção, no corpo da Constituição de 1924, o decreto nº 114, de 23/05/1821, Alvará de Dom Pedro I, já proíbia prisões arbitrárias.

O instituto do habeas corpus estava previsto na legislação infraconstitucional do Código Criminal de 1830 e também no Código de Processo Criminal de 1832, sendo tal instituto estendido aos estrangeiros por força da Lei 2.033 de 1871.

A Constituição de 1891 trouxe avanço para os direitos fundamentais, abolindo a pena de galés, a de banimento e a de morte, ressalvados, nesses últimos casos, as disposições das legislações militares em caso de guerra.

Com a revolta de 1930, houve a revogação da ordem constitucional até então vigente.

Na Constituição de 1934 vários direitos clássicos foram mantidos e outros foram incorporados, como o voto feminino de igual valor ao masculino, direitos de ordem econômica e social, da família, educação e cultura. Alguns remédios constitucionais de garantia de direitos fundamentais são constitucionalmente previstos, como o mandado de segurança e ação popular.

A Constituição de 1937, foi outorgada por Getúlio Vargas, sendo influenciada por ideais autoritários e fascistas, instalando-se no país a ditadura.       Nessa Constituição não houve a previsão de mandado de segurança, nem da ação popular. Não se previa a irretroatividade da lei e o princípio da reserva legal. O direito de manifestação de pensamento foi restringido, com a censura prévia.

Estenderam-se os casos de pena de morte para os crimes políticos e nas hipóteses de homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade. Foi declarado o estado de emergência que suspendia direitos e garantias individuais. A tortura foi utilizada como meio de repressão.

Já na Constituição de 1946, consagra-se o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, estabelecendo em seu art. 141 § 4º que “a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.” Vedou-se a pena de morte, salvo em tempo de guerra, a de banimento, a de confisco e a de caráter perpétuo.

Houve um retrocesso no campo dos direitos fundamentais com o golpe militar de 1964, que suplantou a Constituição de 1946. Embora continuasse a existir formalmente, o país passou a ser governado pelos Atos Institucionais e Complementares, em nome de uma suposta contenção comunista.

A Constituição de 1967 trouxe a exagerada possibilidade de suspensão dos direitos políticos por 10 anos..

O ato institucional nº 05 de 1968, foi o mais violento baixado pela ditadura, suprimiu várias garantias constitucionais, comprometendo sobremaneira as liberdades políticas e excluindo do judiciário qualquer apreciação de todos os atos praticados de acordo com este Ato Institucional e seus Atos Complementares. Suspendeu-se o habeas corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, ordem econômica e social e a economia popular.

A Constituição de 1969 apenas vem “constitucionalizar” a utilização dos Atos Institucionais com grande desrespeito aos direitos humanos.

Finalmente surge a atual Constituição de 1988, que traz enormes avanços formais com relação aos direitos fundamentais e ao exercício da cidadania. A Constituição em seu art. 5º, inciso XV, estabelece que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Já no inciso LXI deste mesmo artigo, fica estabelecido que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”. A restrição desses direitos está prevista somente em caso de estado de defesa e estado de sítio.

O artigo 5º, em seu inciso LVII, traz importante premissa de presunção de inocência para preservar a liberdade do individuo frente ao poder punitivo estatal. Estabelece que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Tal princípio afasta a restrição da liberdade do indivíduo sem que se estabeleça sua culpa ou que esta se torne de alta relevância para a ordem pública.


3. A EVOLUÇÃO DAS PENAS PUNITIVAS POR DELITOS

Na antiguidade não havia a privação da liberdade como sanção penal. Nessa época as penas restringiam-se à pena de morte, mutilações e açoites. Embora os delinquentes já permanecessem presos aguardando a aplicação dessas penas.

Na idade média a lei penal tinha como objetivo provocar o medo coletivo, as punições eram públicas, a liberdade era restringida somente até a aplicação da pena corporal. Porém, nessa época surge outro tipo de prisão criada pelo Estados. Cuida-se da prisão dos inimigos do rei, que cometiam o delito de traição. Ficavam presos perpetuamente ou até receberem o perdão real.

Ainda na idade média, surge também a prisão eclesiástica que se destinava aos cléricos rebeldes, que insurgiam contra as ideias de caridade e fraternidade da Igreja. O objetivo era segregar o rebelde como forma de penitência, para que o mesmo pudesse meditar sobre seus atos considerados profanos.

A restrição de liberdade passa a ser então um avanço na aplicação das penas, pois vem substituir a pena de morte, mutilações e açoites. A prisão canônica serve de inspiração para sua aplicação pela sociedade civil.

Outro fator determinante para a implantação da pena restritiva de liberdade foi o aumento considerável no número de delitos na Europa durante os séculos XVI e XVII devido a pobreza generalizada devido às guerras religiosas. Não se mostrava cabível a aplicação da pena de morte tamanha a quantidade de delinquentes.

Já em sua origem, a pena restritiva de liberdade parecia pré-destinada a ser aplicada na parcela mais pobre da sociedade que cometesse delitos.

Cesare Beccaria (1738- 1794), conhecido como Marquês de Beccaria, era um jurista, filósofo, economista e literato italiano, que em sua principal obra “Dos delitos e das penas”, traz importantes reflexões e ensinamentos humanitários precursores na aplicação das penas. Expressou mudanças apoiadas pela opinião pública e reforçou valores até então pouco observados na imposição das penalidades aos delitos criminais. Ao ler a obra de Beccaria percebe-se como o aspecto humanitário foi abordado de uma forma inovadora para sua época.

Beccaria compreendeu que os processos de que se valiam o legislador e o juiz não contribuíam para a solução do gravíssimo problema da criminalidade. Ao contrário, contribuíam para o agravamento da situação em virtude das inúmeras injustiças que se praticavam em nome da lei ou da vontade do príncipe. Questionava a barbaridade usada na aplicação de penas desproporcionais, desmoralizadoras e torturantes, as quais, desgraçadamente, eram infligidas antes da condenação, a pretexto de se esclarecer o crime e sua autoria.

Para Beccaria, já que houve um contrato social em que ficou definido que os crimes seriam punidos para que houvesse segurança no meio social, para o efetivo cumprimento do contrato deveria ter uma igualdade absoluta entre  todos os homens.

Beccaria defendia que a melhor forma era previnir o delito do que puni-lo, na concepção deste filósofo a igualdade social seria uma forma de prevenção dos delitos. Mas que se o delito ocorresse deveria ser aplicada uma pena proporcinal ao dano causado à sociedade.

3.1- Da pena privativa de liberdade

 Fernando da Costa Tourinho Filho conceitua a prisão como sendo “a supressão de liberdade do indivíduo. É a privação da liberdade individual de ir e vir.” (TOURINHO, 2013, p. 431). Considerando que existe a prisão nos regimes aberto e semiaberto, o conceituado doutrinador acrescenta que “podemos afirmar que a prisão como a privação, mais ou menos intensa, da liberdade de locomoção.”(TOURINHO, 2013, p. 431).

Na seara penal encontramos várias modalidades de prisão: prisão preventiva, prisão temporária, prisão com vistas ao efetivo cumprimento da pena e prisão em flagrante. Vamos nos ater à prisão em flagrante, que é a que mais nos interessa no presente trabalho.

3.2- Da prisão em flagrante

 Nos dizeres de Fernando da Costa Tourinho Filho, prisão em flagrante é “a prisão daquele que é surpreendido no instante mesmo da consumação da infração penal.”(TOURINHO, 2013, P. 488). O principal objetivo da prisão em flagrante é a necessidade de conservar e restabelecer a ordem jurídica ameaçada de violação ou violada pelo acontecimento.

Nos termos do art. 302 do Código de Processo Penal, considera-se em flagrante delito quem está cometendo a infração penal ou acaba de cometê-la, ou ainda, aquele que é perseguido em situação que faça presumir ser ele autor da infração. Ainda existe a possibilidade do flagrante para aquele que é encontrado, logo depois do crime, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

A prisão em flagrante tem o condão de preservar a materialidade do fato e estabelecer autoria, constituindo forte fator de evidência probatória. Justifica-se a detenção daquele que é surpreendido cometendo uma infração penal, a fim de que a autoridade competente, possa colher a prova da infração.

Com o passar do tempo, a prisão em flagrante, malgrado se trate da certeza visual do crime, não é encarada com o rigorismo de outrora, face ao princípio da presunção de inocência.

A prisão em flagrante encontra seu fundamento na Constituição Federal no art. 5º, inciso LXI e no Código de Processo Penal no art. 301 do Código de Processo Penal. Nos termos do art. 306, § 1º deste mesmo código, a prisão em flagrante deverá ser comunicada à autoridade judiciária e, caso o acusado não tenha advogado, comunicada também à defensoria pública mediante remessa de cópia do auto de prisão em flagrante.


4. DA LIBERDADE PROVISÓRIA

A liberdade provisória é sucedânea da prisão provisória. A prisão provisória é a medida cautelar que mais gravemente lesiona a liberdade individual, pelos intensos sofrimentos físicos, morais e materiais a que sujeita o preso, pela sua irreparabilidade, por sua larga duração e porque fere um homem ainda não definitivamente culpado. A liberdade provisória vem harmonizar essa situação. Assegura a presença do réu no processo, sem enfrentar os infortúnios do cárcere antes de condenação definitiva.

Liberdade provisória é um estado de liberdade limitada aos fins do processo. E para tal desiderato impõe ao beneficiário a condição de não fugir, limitando sua liberdade de locomoção. Cuida-se da providência com a qual o juiz ou o Ministério Público concede eventualmente ao imputado detido a liberdade sob determinadas condições. O réu ou indiciado gozará da liberdade pessoal limitada para defender-se ou livrar-se solto, mas subordinado a imperativos que, sob a forma de ônus processuais, procuram vinculá-lo de modo estreito ao desenrolar do processo. A liberdade provisória pode ser tida como um medida intermediária entre a prisão provisória e a liberdade completa.

Pode-se dizer que não se trata de uma liberdade completa devido a dois aspectos. O primeiro é que se o autor da infração, que estava provisoriamente em liberdade , vier a ser punido com pena privativa de liberdade sem sursis ou qualquer medida alternativa, cessa a liberdade, sendo recolhido à prisão. O segundo aspecto é que durante o tempo em que o indiciado ou réu estiver em liberdade provisória, essa liberdade não é completa. Existem restrições a serem observadas nos termos do art. 310, II, 319, 327, 328 e 343 do Código de Processo Penal.

No caso de prisão em flagrante, a liberdade provisória será concedida se no auto de prisão ficar comprovado que o agente agiu em legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de direito, ou seja, amparado por alguma das excludentes de ilicitudes previstas no art. 23, incisos I, II e III do Código Penal. Tal previsão de soltura encontra previsão legal no art. 310, parágrafo único do Código de Processo Penal.

Outra possibilidade de soltura do flagranteado se dá por força do art. 304, § 1º do Código de Processo Penal, que estabelece que quando da lavratura do auto de prisão em flagrante não resultar suspeita contra o conduzido este deverá ser solto pela própria autoridade policial.

Outras duas hipóteses do flagranteado se ver livre são a liberdade provisória com e sem fiança.

4.1 Liberdade provisória com fiança

Fiança criminal, conforme definida por Heráclito Antônio Mossinm “ é uma garantia real e não pessoal, prestada pelo indiciado ou acusado ou terceiro para que se responda o processo em liberdade, desde que o fato punível por ele praticado a admita.” (MOSSIN,2012, P.761) Os casos em que se admite fiança são elencado pelo legislador processual penal, tratando-se de casos numerus clausus. Assim, cuida-se de uma garantia patrimonial, consistente em dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública ou até mesmo hipoteca de primeiro grau.

Encontramos no ordenamento jurídico pátrio dois tipos de fiança. A fiança concedida por autoridade policial, nos crimes cuja pena máxima não ultrapasse os quatro anos de prisão e a fiança determinada pelo juiz competente nos crimes com pena superior a quatro anos de prisão. Estas modalidades de fiança estão previstas no art. 322, caput e seu parágrafo único do Código de Processo Penal.

Os limites dos valores da fiança são estabelecidos pelo art. 325, inciso I, II, III. IV.

Essa possibilidade de arbitramento de fiança por parte da autoridade policial de imediato após a prisão em flagrante pode evitar a prorrogação da prisão desde que o flagranteado possua condições para pagá-la.

Justamente nesse ponto é que identificamos a injustiça social que o legislador cometeu. Se o flagranteado não tem condições de pagar a fiança arbitrada pelo delegado, este será conduzido a prisão até que o caso seja apreciado pela autoridade judicial, que fatalmente concederá sua liberdade provisória sem fiança, diante de sua precária condição financeira.

O próprio art. 350, em seu inciso I e II, do Código de Processo Penal prevê a dispensa ou redução de até 2/3 da fiança em caso de assim recomendar a situação econômica do réu. Mas, para que a fiança seja dispensada faz-se necessário que o juiz se manifeste. Até a manifestação do juiz, o flagranteado pobre permanecerá preso durante este intervalo de tempo entre sua prisão em flagrante e a manifestação.

Nesse ponto defendemos que o réu pobre, a despeito de não possuir condições financeiras para pagar a fiança arbitrada pela autoridade policial, mediante simples declaração de pobreza, sob as penas da lei, e mediante assinatura de termo de compromisso de comparecimento a todos os atos processuais, deveria ser posto imediatamente em liberdade. Dessa forma, estaria estabelecido uma justiça social que levaria a pôr em xeque o critério econômico que desiguala pessoas em uma condição onde não cabe tal distinção.

A situação econômica do indivíduo não pode ser definidora de quem deve se ver livre imediatamente de uma prisão em flagrante ou aguardar a decisão da autoridade judicial preso. Decisão que fatalmente será pela liberdade provisória, visto que o único elemento que a manteve foi a insuficiência econômica do flagranteado.

Nesse diapasão, faz-se pertinente lembrar dos dizeres do Ministro do Supremo Tribunal Federal Luiz Roberto Barroso quando do julgamento da ADI- 4650, que envolvia decisão sobre o poder econômico nas campanhas eleitorais. O eminente ministro sentenciou: “O papel do Direito e da sociedade é respeitar as liberdades individuais. Procurar minimizar o impacto do dinheiro na criação de desigualdades na sociedade”.

Na questão ora levantada e debatida é flagrante que o legislador processual equivocou-se ao permitir que o flagranteado pobre aguardasse na prisão sua soltura pelo magistrado, ao passo que o flagranteado rico pague a fiança arbitrada pela autoridade policial e se veja livre de imediato, sem sequer passar pelo constrangimento do encarceramento, ainda que durante curto lapso temporal entre o envio do auto de prisão em flagrante e a soltura sem fiança que será ordenada pela autoridade judiciária.

Porém, percebe-se que nesse caso, o flagranteado pobre ficará sujeito à prisão única e exclusivamente pelo fato de não possuir dinheiro para pagar de imediato a fiança arbitrada pela autoridade policial. Identifica-se, nessa situação, a mitigação do direito fundamental de liberdade da pessoa pobre única e exclusivamente por sua condição econômica dentro da sociedade, pois ao apreciar o caso o juiz não poderá manter o réu pobre preso porque não possui condições financeiras para pagar a fiança.

É certo que o magistrado, nos termos do art. 350, poderá impor ao flagranteado, além do compromisso de comparecimento a todos os atos processuais e não mudar de residência sem prévia autorização da autoridade processante, poderá impor outras medidas cautelares ao flagranteado. Porém, a soltura imediata do flagranteado pobre pela autoridade policial, mediante assinatura de termo de compromisso de comparecimento ao atos processuais e não mudança de residência, não obsta que o magistrado aplique, posteriormente, outras medidas prevista no art. 319 do Código de Processo Penal. A intenção é não deixar o flagranteado preso somente por não ter condições econômicas de pagar a fiança arbitrada pela autoridade policial, até sua soltura pela autoridade judiciária.

Cabe ressaltar que, sempre que concorrem os requisitos objetivos e subjetivos para a outorga da fiança, essa deverá ser concedida pela autoridade policial ou judiciária, sob pena de constrangimento ilegal amparável pelo writ of habeas corpus. Cuida-se de um mandamento de ordem constitucional trazido no bojo do art. 5º, inciso LXVI que estabelece “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”.

4.2- Liberdade provisória sem fiança

Liberdade provisória sem fiança é aquela que somente pode ser concedida pela autoridade judiciária. Nesta modalidade de liberdade não se exige do réu ou acusado qualquer garantia de natureza pecuniária, exigindo apenas que o mesmo, assuma o compromisso de comparecer a todos os atos do processo sob pena de revogação.

Sua concessão não é mera faculdade do juiz, mas cuida-se de verdadeiro direito subjetivo do indiciado ou réu.

Para fazer jus a esta liberdade provisória sem fiança e não tê-la revogada, o réu pobre deverá comparecer a todos os atos do inquérito (se for o caso) ou da instrução criminal, quando regularmente notificado. Também não poderá mudar de residência sem a prévia permissão da autoridade processante. Somente não perderá o benéfico, sendo recolhido à prisão, se as faltas do beneficiário forem justificadas com motivo justo e outras medidas cautelares, que não a prisão, se mostrarem suficientes.


5. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, conclui-se que houve uma evolução do direito à liberdade durante a história da humanidade.

A liberdade foi uma conquista paulatina, mas que durante todo o fluxo da história da humanidade as classes mais pobres sempre foram as mais sujeitas a terem sua liberdade restrita. Seja porque sujeita a escravidão, seja porque não dispõe dos meios materiais para fazer sua liberdade.

Na seara penal, pode-se concluir que o critério adotado pelo legislador processual pátrio, da capacidade econômica do flagranteado, influi diretamente na restrição da liberdade das pessoas economicamente menos favorecidas.

Ao se manter preso o flagranteado que não possui condição de pagar a fiança arbitrada pela autoridade policial nos crimes com pena de até 04 anos de privação de liberdade, cria-se uma desigualdade de tratamente pura e simplesmente baseada em aspectos econômicos.

Por fim, conclui-se que para que haja uma isonomia de tratamento do homem no meio social, visando a preservar sua liberdade, frente a sua falta de condições financeiras, torna-se necessário uma reforma processual penal pequena, mas de grande relevância para aquele que são presos em flagrantes acusados de cometer delitos de pequena ou média gravidade.

Nessa reforma proposta, o ideal seria que o flagranteado, nos crimes e situações que admitissem fiança, assinasse perante a autoridade policial um documento de declaração de pobreza e se submetesse às demais regras inerentes à liberdade provisória. E que não fossem simplesmente trancafiados em uma cela, simplesmente pelo fato de não possuírem dinheiro para pagar a fiança. A falta de dinheiro não deve servir como único critério para que a liberdade do indivíduo seja restringida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das penas, São Paulo, editora RT; 2º Ed.1997.

BITENCOURT, Cesar Roberto, Falência da Pena de Prisão, São Paulo, editora Saraiva, 3ª Ed. 2001.

GONÇALVES, Suellem da Costa. Liberdade Provisória: das distorções no campo da fiança criminal a serem corrigidas pelo intérprete, Jus Navegandi, Teresina, ano 19, nº 3843, 08 jan 2014. Disponível em HTTP://jus.com.br/artigos/26327. Acesso em 02 de maio de 2014.

BUSANA, Dante. O Habeas Corpus no Brasil, São Paulo, editora Atlas,1ª Ed. 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado, São Paulo, Editora Saraiva, 14 ed. Ver. Atual e ampl. 2010.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, São Paulo, Editora Saraiva, 35


Autor

  • Ailton José Teixeira

    Acadêmico do VIII período do Curso de Direito do Centro Universitário do Cerrado de Patrocínio-MG- Unicerp. Oficial de Justiça Avaliador no Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

    Textos publicados pelo autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Ailton José. Liberdade provisória sem fiança: uma questão de justiça e isonomia social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4080, 2 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29386. Acesso em: 28 mar. 2024.