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A coligação contratual em projetos de geração de energia elétrica na modalidade project finance e seus efeitos

A coligação contratual em projetos de geração de energia elétrica na modalidade project finance e seus efeitos

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A importância de caracterização dos contratos coligados se deve às suas consequências jurídicas, identificando-se em quais situações a invalidade ou ineficácia de um contrato deve comunicar-se ao outro.

Sumário: 1. Introdução. 2. Project Finance de Geração de Energia Elétrica – definição, características gerais e contratos envolvidos. 3. Contratos Coligados – definição e classificação; 3.1. Definição; 3.2. Classificação. 4. Caracterização dos Contratos de Project Finance como Contratos Coligados. 5. Conseqüências Jurídicas; 5.1. Interpretação dos Contratos Coligados; 5.2. Efeitos na validade e eficácia dos Contratos Coligados. 6. Conclusões. 7. Bibliografia.


1.Introdução

Estamos vivenciando uma era marcada pela globalização e integração disciplinar, que pode até ser considerada uma mudança de paradigma, “da pirâmide kelseniana à construção do direito em rede”.

É nesse contexto que surge a coligação contratual, diante da necessidade do direito regular as relações e negociações cada vez mais complexas demandadas pela realidade do mundo em que vivemos, em que, diversamente do que acontecia em épocas anteriores, são raras as operações econômicas formalizadas por meio de um contrato isolado.

Trata-se de uma teoria ainda não pacificada, objeto de grandes divergências doutrinárias, a começar pela terminologia adotada - assim como contratos coligados, também se utilizam as expressões “contratos conexos”, “grupos de contratos” ou “contratos em rede”.

No âmbito nacional, ainda não há conceitos e características consolidadas nem opiniões unânimes sobre a teoria da coligação contratual, resumindo-se grande parte dos autores a reproduzir textos e ideias de doutrinadores estrangeiros, em especial da Itália, França, Alemanha, Espanha, Argentina, onde as discussões jurídicas a respeito da teoria já estão em estágio mais avançado, havendo, inclusive, inúmeros precedentes jurisprudenciais e, no caso da Argentina, até tentativa de codificação da definição de contratos coligados e sua interpretação.

Por isso, é fundamental que haja cada vez mais estudos e discussões jurídicas a respeito do assunto, dada a sua atualidade e importância para toda a economia nacional - em especial a área de infraestrutura -, de forma a uniformizar conceitos e características e proporcionar segurança jurídica em operações contratuais coligadas.

As questões que surgem da coligação contratual ainda são novas, o que faz com que haja uma mudança na perspectiva de análise contratual, de uma análise isolada e individualizada de um contrato livre de interferências externas para que se possa então considerar o conjunto de contratos vinculados que compõem uma mesma operação, em que princípios e dispositivos do Código Civil muitas vezes têm que ser analisados sob esse prisma.

A importância de caracterização dos contratos coligados se deve às suas conseqüências jurídicas, identificando-se em quais situações a invalidade ou ineficácia de um contrato deve comunicar-se ao outro, ou seja, quando a anulação, declaração de nulidade ou de inexistência, ou a ineficácia superveniente de um contrato deve ou não surtir efeitos sobre o outro.


2.         Project Finance de Geração de Energia Elétrica – Descrição, Características Gerais e Contratos Envolvidos

A modalidade de financiamento denominada project finance tem origem nos anos 70, no Reino Unido, sendo inicialmente utilizada para a expansão de plataformas de petróleo e gás. No Brasil, vem sendo empregada, especialmente a partir dos anos 90, na implementação de projetos de grande porte, especialmente na área de infraestrutura [1]/.

Quanto à sua definição, project finance é uma modalidade de financiamento de projetos caracterizados por ativos economicamente segregados, com ausência de recursos ou com recursos limitados ao patrimônio dos seus patrocinadores (“sponsors”) [2]/, em que as obrigações assumidas são honradas, de forma exclusiva ou preponderante, pelo fluxo de caixa dos próprios projetos.

Nas palavras de Luiz Ferreira Xavier Borges [3]/, “project finance é uma forma de engenharia/colaboração financeira sustentada contratualmente pelo fluxo de caixa de um projeto, servindo como garantia à referida colaboração os ativos desse projeto a serem adquiridos e os valores recebíveis ao longo do projeto.”

O financiamento de projetos ainda não é um tipo legal, positivado no direito, mas possui características próprias, a começar pela sua finalidade comum (que é a captação de recursos para o desenvolvimento de determinado empreendimento), por meio da segregação de ativos (o que geralmente ocorre com a constituição de uma Sociedade de Propósito Específico – SPE - em inglês, SPC – Special Purpose Company - na forma de sociedade anônima ou limitada) pelos patrocinadores do Projeto para a exploração do empreendimento. A grande vantagem dessa estrutura consiste na responsabilidade limitada dos sócios patrocinadores ao patrimônio da SPE e na ausência de impacto do financiamento obtido no balanço patrimonial desses sócios patrocinadores do projeto (o chamado efeito off-balance).

Outra característica essencial de uma operação de project finance diz respeito à fonte de recursos, constituída de capital dos sócios (por meio de aporte de capital ou dívida subordinada) e de empréstimo principal obtido junto ao financiador (lender), o que geralmente é a maior parcela. A garantia desse financiamento é lastreada, principalmente, pelos recebíveis e ativos do empreendimento (o penhor ou alienação fiduciária são atualmente os instrumentos mais utilizados para tanto), sendo exigida pelo financiador uma rede de contratos interligados, complexos e de longo prazo, que detalham exaustivamente todos os direitos e obrigações da SPE perante não só o financiador, mas seus empreiteiros, parceiros, fornecedores e consumidores.

Dentre os contratos envolvidos em uma operação típica de project finance, destacam-se os contratos societários (constituição da SPE e demais documentos societários correlatos); contratos financeiros (empréstimo-ponte, financiamento, subordinação etc.); contratos de garantia, acessórios aos contratos financeiros (penhor, alienação fiduciária, hipoteca, cessão de contratos, administração de contas, fiança, acordos diretos); contratos pré-operacionais (empreitada global, geralmente na forma de Engineering, Procurement and Construction Agreement - EPC turn-key [4], fornecimento de materiais e equipamentos e outros instrumentos comerciais necessários à construção e implementação do projeto); contratos operacionais, celebrados entre a SPE, fornecedores de insumos, prestadores de serviço e consumidores, com vigência geralmente a partir da entrada em operação comercial do empreendimento (operação e manutenção); e contratos administrativos, que tratam da outorga pelo Poder Concedente necessária para a exploração do empreendimento (contrato de concessão, permissão ou ato autorizativo) [5].

Tais contratos são celebrados quase que simultaneamente, com alto grau de ingerência do financiador, mesmo que não seja parte contratual, haja vista seu interesse em se obter a adequada alocação balanceada dos riscos do projeto, e de intervir em casos de controvérsias e na ocorrência de situações que possam comprometer o andamento empreendimento, hipóteses em que terá a prerrogativa, inclusive, de assumir o seu controle diretamente [6] ou transferi-lo a terceiros por ele indicados, evitando, assim, a rescisão do contrato de financiamento e a conseqüente interrupção do fluxo de caixa necessário à quitação das dívidas do projeto.


3.         Contratos Coligados – Definição e Classificação

A teoria da coligação contratual tem origem no direito estrangeiro, especialmente nos países da Alemanha, França, Itália e Portugal, na tentativa de adaptação, no mundo jurídico, dos princípios e técnicas interpretativas, ao fenômeno da hipercomplexidade das operações econômicas demandadas pela atualidade.

Como já dito, trata-se de uma teoria ainda não pacificada e não regulamentada pelos ordenamentos jurídicos, objeto de grandes divergências doutrinárias, a começar pela terminologia adotada – assim como “contratos coligados” (doutrina italiana), também se utilizam as expressões “contratos conexos” (Espanha), “grupos de contratos” (França), união de contratos (Portugal) ou “contratos em rede” (Argentina).

Em linhas gerais, pode-se dizer que os contratos coligados são necessariamente instrumentos unidos por um vínculo de dependência que caracterize um objetivo único almejado pelas partes. Assim, a comprovação da coligação contratual dependerá sempre da existência de dois ou mais contratos, e do nexo contratual de dependência, capaz de gerar conseqüências jurídicas particulares.

A pluralidade contratual, que consiste na existência de dois ou mais instrumentos contratuais em análise, não necessariamente celebrados entre as mesmas partes, distingue a coligação contratual de outras formas contratuais, também atípicas, como, por exemplo, os contratos mistos ou complexos [7].

A esse respeito, vale a transcrição do texto abaixo, que reproduz o entendimento de Orlando Gomes e Álvaro Villaça sobre as diferenças existentes entre os contratos mistos e coligados: “assim, o Prof. Orlando Gomes (op. cit. p. 104), ao diferenciar os contratos mistos dos contratos coligados, assevera que ´contrato misto é o que resulta da combinação de elementos de diferentes contratos, formando nova espécie contratual não esquematizada na lei. Caracteriza-os a unidade de causa´. E continua, lastreado na lição de Ludwig Enneccerus, acentuando que, em qualquer das suas formas, a coligação dos contratos não enseja as dificuldades que os contratos mistos provocam quanto ao direito aplicável, porque os contratos coligados não perdem a individualidade, aplicando-se-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustem. E, conclui, asseverando que, em resumo, distinguem-se na estruturação e eficácia as figuras dos contratos coligados e dos contratos mistos. Naqueles há combinação de contratos completos. Nestes, de elementos contratuais, enquanto possível a fusão de um contrato completo com simples elemento de outro. Pluralidade de contratos, num caso; unidade, no outro. (GOMES, op. cit., p. 105). Nesse diapasão, o Prof. Villaça (op. cit., p. 138) leciona que os contratos coligados, dois ou mais, guardam sua individualidade própria, sendo várias contratações autônomas, mas ligadas por um interesse econômico específico. Já os contratos atípicos mistos são várias avenças que se somam e que se integram de modo indissociável, não tendo cada qual vida própria; é, portanto, uma contratação única, complexa e indivisível.” [8]

Já o elemento mais importante da coligação contratual é o chamado nexo ou vínculo funcional de dependência entre os instrumentos, que caracteriza uma única operação econômica, com um objetivo comum supracontratual, além do objeto de cada contrato individualmente considerado.

A despeito de algumas críticas existentes a respeito da dificuldade de caracterização da coligação pela presença de um elemento econômico e, portanto, extrajurídico em sua definição, assim como pela abrangência do conceito [9], e pela ausência de regulamentação sobre o assunto, o vínculo que se deve buscar é aquele que produz efeitos jurídicos que ultrapassam os dos contratos isoladamente considerados [10].  

Não obstante a ausência de tratamento legal sobre o assunto, destaca-se a tentativa de inclusão no Código Civil da Argentina, por meio do Projeto de Lei nº. 4956-D-02, de dispositivo legal inovador, que assim dispõe: “Artículo 1.143 bis: Habrá contratos conexos cuando para la realización de un negocio único, se celebran, entre las mismas partes o partes diferentes, una pluralidad de contratos autónomos, vinculados entre sí a través de una finalidad económica supracontractual. Dicha  finalidad puede verificarse jurídicamente en la causa subjetiva u objetiva, en el consentimiento, en el objeto, o en las bases del negocio.” [11]

Feitas as considerações sobre a importância do nexo entre os contratos coligados, passamos a examinar a origem desse vínculo, conforme classificação adotada pela doutrina nacional, que, vale notar, usualmente reproduz a doutrina estrangeira nesse aspecto.

Assim, as diferentes espécies de coligação contratual podem ser classificadas de diversas formas, a saber: quanto à fonte, à reciprocidade, à natureza, e à extensão do vínculo existente entre os contratos [12].

3.1. Fonte do Vínculo

Quanto à fonte do vínculo, a coligação poderá nascer exclusivamente da autonomia das partes (coligação voluntária), ou independentemente da vontade das partes, por meio de dispositivo legal determinante nesse sentido ou da própria natureza dos contratos envolvidos (coligação necessária) [13].

A coligação voluntária pode ser subdividida em coligação voluntária expressa - em que há cláusulas contratuais que determinam expressamente que certos dispositivos de determinado(s) contrato(s) produzam eficácia jurídica em outro(s) -, ou coligação voluntária implícita – que, diante da ausência de dispositivo contratual expresso, depende de dedução em processo de interpretação, do conteúdo contratual implícito capaz de demonstrar o objetivo comum supracontratual almejado pelas partes [14].

A importância dessa subdivisão consiste no fato de que, na coligação voluntária expressa, o vínculo contratual entre as partes torna-se claro na medida em que foi formalizado em instrumento(s) contratual(is), diversamente da coligação voluntária implícita, cuja constatação depende de processo interpretativo criterioso e comprovação de que esta era a intenção das partes quando da celebração dos contratos envolvidos.

São exemplos típicos de coligação voluntária os contratos com cláusula de inadimplemento cruzado (“cross-default”), em que se estipula que o inadimplemento de uma das partes em um contrato resultará na possibilidade de resolução contratual de outro(s) contrato(s) a ele vinculado [15]. Assim defende KATAOKA quando comenta a cláusula de cross default: “trata-se de modalidade de condição (no sentido técnico da parte geral do Direito Civil), em que o inadimplemento de um contrato gera possibilidade de resolver outro(s). É um caso típico de coligação contratual, já que uma circunstância de um contrato produz efeitos em outro.” (op. cit., pág. 112).

Outro exemplo típico dessa espécie de coligação consiste na relação de crédito ao consumo ou compra financiada, em que o consumidor adquire um produto do fornecedor e, para pagar tal produto, celebra contrato de financiamento com uma instituição financeira, supostamente independente da operação de compra e venda, a despeito da finalidade única e comum dessas operações, que é a aquisição do produto [16].

Já a coligação necessária não depende da vontade das partes, sendo conseqüência da natureza acessória de um contrato em relação ao contrato principal a ele coligado, ou de dispositivo legal que determine que dois contratos produzam efeitos um no outro. É o caso, por exemplo, do contrato-base e subcontrato, do contrato principal e o contrato de garantia, ou do contrato preliminar e contrato definitivo.

Para KATAOKA “o negócio, que não pode existir sem outro, figura como caso de coligação necessária. Então, por exemplo, o acordo de acionistas, que, à evidência, só pode existir se houver um contrato de constituição de sociedade, é uma hipótese de coligação necessária. O mesmo se diga em relação à hipoteca no que concerne à dívida garantida.” (op. cit., pág. 142)

3.2. Reciprocidade

Já em relação à reciprocidade, a coligação poderá ser unilateral (em que há uma relação de dependência, na medida em que só um dos contratos é subordinado ao outro) ou bilateral (em que há uma interdependência entre os contratos, com efeitos recíprocos).

Nesse sentido, ensina KONDER: “uma primeira distinção resgatada pela doutrina italiana é aquela entre negócios coligados com ‘dependência unilateral’ e negócios coligados com ‘dependência bilateral’. Enquanto nestes há uma influência recíproca, verdadeira interdependência, naqueles apenas um dos negócios sobre a influência do outro, se subsumindo no mais das vezes em uma relação de acessoriedade entre os contratos, que dispensa maiores discussões por conta da aplicação da regra clássica ´acessorium sequitur principale´. É possível exemplificar o primeiro caso, dependendo do caso concreto, com a venda de um terreno e a empreitada contratada para a sua edificação e o segundo caso com os contratos de garantia tradicionais em relação ao contrato garantido.” (op. cit., págs 103 e 104)

Assim, do exposto acima, em linhas gerais pode-se afirmar que, quanto à definição de contratos coligados, a doutrina identifica pontos em comum, quais sejam: pluralidade de contratos, estruturalmente diferenciados, unidos por um nexo funcional e econômico, com conseqüências jurídicas. Já no que respeita à classificação, há divergências de abordagem dos doutrinadores brasileiros que se dedicaram ao assunto, que reproduzem as dúvidas reproduzidas da doutrina estrangeira, sendo a coligação voluntária implícita a espécie que gera maiores discussões, por depender de análise contratual e trabalho interpretativo dedutivo.


4.         Caracterização dos contratos de Project Finance como Contratos Coligados

Toda operação de project finance tem por finalidade principal a obtenção de recursos de terceiros – órgãos financiadores – para a consecução de um empreendimento de grande porte, que dificilmente seria viabilizado exclusivamente com recursos de seus patrocinadores. Dessa feita, considerando-se todos os riscos envolvidos nesse tipo de operação, os financiadores exigem que o empreendedor beneficiário celebre diversos instrumentos contratuais, tanto na fase de construção (pré-operacional) quanto na fase operacional, para assegurar o andamento regular do projeto e, desse modo, os salvaguardar e minimizar os riscos de inadimplências contratuais.

Não é incomum a apresentação de exigências, pelos financiadores, de inserção de determinadas disposições, ou até de submissão à sua aprovação, dos contratos celebrados entre o empreendedor e terceiros, fundamentais para o sucesso do empreendimento, como, por exemplo, o contrato de construção da obra (que, como já dito, em projetos de geração de energia elétrica, normalmente são celebrados na modalidade de empreitada global EPC turn-key).

Desse modo, constitui característica inerente a uma operação de project finance a valoração global da operação, na medida em que todos os contratos nela envolvidos traduzem uma única operação econômica que visa dividir entre as partes do risco de determinado empreendimento e garantir o fluxo de caixa do projeto que pagará o financiamento obtido.

Nesse sentido, além da finalidade imediata de cada contrato individualmente considerado, há uma finalidade ulterior e sistêmica extraída do conjunto dos contratos do projeto, que é a consecução do empreendimento.

Presentes os elementos que definem os contratos coligados – pluralidade de contratos e nexo funcional, é certo concluir que as operações de project finance constituem um exemplo típico de coligação contratual [17].

Numa operação de project finance, pode-se dizer que o contrato de empréstimo celebrado entre o empreendedor e o órgão financiador é exemplo típico do que se denomina “contrato-quadro” ou “contrato-base” [18], haja vista sua característica de contrato principal que regula o relacionamento entre as partes, determina quais são os contratos que devem ser celebrados pelo empreendedor com terceiros para a consecução do projeto bem como as bases em que se darão tais contratações. Dessa forma, não é difícil constatar a existência de coligação contratual entre os contratos celebrados conforme as condicionantes determinadas pelos órgãos financiadores.

A título de exemplo, cita-se contrato de construção na modalidade EPC de determinada obra de construção de usina hidrelétrica celebrado entre o epecista e o empreendedor, em que consta dispositivo expresso acerca da necessidade de realização de ajustes e/ou requisitos necessários para o atendimento de exigências do órgão financiador, nos termos do contrato de financiamento celebrado entre o empreendedor e o financiador.

Quanto à classificação, com exceção dos contratos de garantia que geralmente são celebrados nessas operações – que configuram coligação necessária, por seguirem a regra de que o acessório segue o principal -, por ser resultado da autonomia da vontade das partes, os demais contratos celebrados no âmbito de uma operação de financiamento de projetos são exemplos de coligação contratual voluntária que, dependendo de cada caso, poderá ser implícita ou expressa.

Será expressa caso haja cláusulas que determinam a transmissão de vícios e clausulas de resolução de um contrato para outro na cadeia negocial, como, por exemplo, a cláusula de cross-default, já estudada no Capítulo 3. Por outro lado, não havendo cláusulas contratuais expressas determinando os vínculos entre os instrumentos celebrados, mas presentes os elementos que a caracterizam, a coligação contratual será implícita.


5.         Conseqüências Jurídicas

Apresentadas as características dos contratos coligados e demonstrada a coligação existente entre os contratos de project finance, passamos a abordar algumas conseqüências jurídicas que podem resultar dessa coligação, no que respeita à interpretação desses contratos, bem como seus efeitos no plano da validade e eficácia contratual – temas que, pela atualidade, suscitam dúvidas e incertezas sobre, por exemplo, a possibilidade da anulação, declaração de nulidade ou ineficácia superveniente de um contrato surtir efeitos sobre o outro.

O processo de interpretação dos contratos coligados depende necessariamente da análise não só de um contrato isolado, mas de todos os contratos envolvidos, para que se possa compreender o contexto do negócio como um todo celebrado entre as partes e o fim comum por elas almejado [19].

Trata-se de um trabalho de extrema importância, sobretudo nos contratos unidos por coligação voluntária implícita, em que, por inexistirem cláusulas contratuais expressas nesse sentido, dependem necessariamente de um intenso processo de interpretação sistemática [20].

Para tanto, o operador do direito deve sempre buscar a intenção das partes com o negócio firmado, ou seja, o que elas pretendiam, partindo-se da presunção da boa-fé, quando da celebração do conjunto de contratos, que prevalece em relação ao sentido literal dos textos dos contratos, consoante prescrevem os arts. 112 e 113 do Código Civil Brasileiro [21].

Nesse sentido, pode haver, por exemplo, dispositivos contratuais que, numa análise isolada de um de seus contratos, onerem excessivamente uma das partes, mas que, analisados conjuntamente com as demais disposições presentes em todos os outros contratos envolvidos, formem um equilíbrio contratual da operação como um todo.

Reforçando a relevância do assunto, numa tentativa de positivação da necessidade de interpretação conjunta de contratos coligados, o Projeto de Código Unificado (Civil e Comercial) da Argentina, de 1998, já previa, em seu art. 1.030, que os contratos vinculados entre si, por terem sido celebrados no âmbito de uma operação econômica global, devem ser interpretados uns pelos outros, atribuindo-lhes o sentido apropriado ao conjunto da operação [22].

Não obstante, é necessário ressalvar que nem todos os dispositivos contratuais existentes em um contrato coligado devem ser interpretados de forma global, na medida em que há aspectos pertinentes a um determinado contrato que, mesmo que coligado, não contaminam os demais. Nesse sentido, reitera-se a importância do trabalho do intérprete que, atento a esse aspecto, sabe distinguir o que é típico de um contrato e o que faz parte do contexto global do negócio celebrado entre as partes [23].

Também no que respeita ao processo de interpretação dos contratos coligados, é necessário tratar de um tema muito discutido pela doutrina que se propôs a estudar a coligação, sobretudo no direito comparado, que é a interpretação desses contratos tendo em vista o Princípio da Relatividade.

Como se sabe, pelo Principio da Relatividade, em sua forma mais tradicional, um contrato só produz efeitos perante aqueles que dele participaram, sendo todos os demais considerados terceiros alheios a tal contratação e que, assim, não seriam de forma alguma afetados (prejudicados ou beneficiados) por quaisquer dos efeitos de tal contratação. Tal princípio vem sendo, de forma geral, objeto de flexibilização, sobretudo em razão da consagração do Princípio da função social do contrato, nos termos do art. 421 do Código Civil Brasileiro [24], em voga nos dias atuais.

Essa questão ganha importância em contratos coligados celebrados com partes distintas, em que, como se poderá constatar, o Princípio da Relatividade deve ser reinterpretado tendo em vista tal mudança de paradigma e a função supracontratual que define os contratos coligados.

Em um exercício de aplicação prática acerca da discussão da amplitude desse princípio, especificamente em relação às operações de project finance de empreendimentos de geração de energia elétrica, imagina-se, por exemplo, a possibilidade de determinados acontecimentos ocorridos no Contrato de Concessão celebrado entre o empreendedor e o Poder Concedente - que regula a outorga da concessão e a exploração do empreendimento de geração – surtirem efeitos ao financiador no âmbito do seu contrato de financiamento celebrado com o mesmo empreendedor, ou, em outro exemplo, possíveis efeitos para um epecista no âmbito de seu contrato de construção da obra celebrado com o empreendedor em razão de acontecimentos existentes no contrato principal de financiamento [25].

É nesse sentido que a discussão acerca da aplicação do Princípio da Relatividade ganha importância na coligação contratual, uma vez que é usual a existência de contratos desse tipo, celebrados com partes distintas no âmbito de uma mesma operação.

Também nesse aspecto, mais uma vez, é o vínculo comum existente no negócio como um todo que justifica a inaplicabilidade do Princípio da Relatividade em sua forma mais tradicional [26].

Assim, dado o interesse comum supracontratual, em regra, as partes distintas em contratos coligados não podem ser consideradas alheias aos acontecimentos ocorridos em outros contratos que por elas não foram celebrados, mas que as afeta diretamente [27].

É interessante transcrever o comentário de KONDER a respeito das discussões, no âmbito da doutrina francesa, sobre a natureza da responsabilidade da parte inadimplente perante o “terceiro” que não celebrou contrato diretamente com aquele mas que foi vítima de sua inadimplência contratual: “Enquanto a ênfase da doutrina italiana foi a distinção entre unidade e pluralidade negocial e a contaminação da invalidade ou ineficácia de um negócio sobre o outro, na doutrina francesa o foco situou-se nos efeitos da conexão contratual quando os contratos envolvem partes distintas. (...) Essa questão, de uma maneira geral desprezada pela doutrina italiana, ganha força sob o ordenamento Francês na figura do terceiro vítima do inadimplemento de um contrato do qual ele não foi parte, mas ao qual se encontra de alguma maneira vinculado por conta de um outro contrato, àquele ligado. A mitigação do princípio da relatividade dos efeitos do contrato que viabiliza a ação desse terceiro-vítima em face do devedor inadimplente conduz à indagação acerca da natureza dessa ação: responsabilidade contratual ou extracontratual. A discussão não é desprovida de efeitos relevantes: a responsabilidade extracontratual permitiria ao terceiro vítima ignorar o equilíbrio estabelecido no contrato por meio de cláusulas limitadoras do ´quantum´ indenizatório ou excludentes de responsabilidade e, portanto, garantiria ao terceiro a reparação integral do dano sofrido, atendendo à proteção geral da vítima; de outro lado, a responsabilidade contratual mantém os limites estabelecidos no contrato para a ação do terceiro vítima e, desse modo, protegeria o devedor inadimplente. Nesta segunda linha de entendimento surge, nos anos 70, a teoria francesa dos grupos de contratos, que consiste em reconhecer às partes de contratos distintos, porém ligados, ações de responsabilidade exclusivamente contratual. (op. cit. págs. 114 e 115)

Não obstante o entendimento da doutrina majoritária nacional acerca da necessidade de abrandamento do Princípio da Relatividade na coligação contratual, considerando-se que, em direito, geralmente uma afirmação absoluta pode resultar em conclusões equivocadas, vale destacar as ressalvas apresentadas por KATAOKA a esse respeito, no seguinte sentido: “a relatividade dos contratos constitui, diga-se de passagem, um dos grandes óbices ao reconhecimento de eficácia jurídica aos contratos coligados. Isso porque esses contratos coligados, por maior que seja a respectiva unidade do ponto de vista econômico, estruturalmente preservam a individualidade, considerando-se as partes não participantes como terceiros. (...) Observe-se que o problema se torna ainda mais agudo quando tratamos de coligações contratuais entre partes diferentes. Até que ponto poder-se-á impor a um ´terceiro´ a eficácia de um contrato em que ele não participa? Esta é a principal questão quando se discute a assim denominada ação direta, que é aquela fundada em um contrato, mas que se dirige a um terceiro não participante, que, por algum motivo, particular, legitima-se passivamente para a ação. Este, por sinal, o [sic] principal foco de discussão de nosso tema na doutrina francesa.” (KATAOKA, op. cit., págs 28 a 30).

Feitas as considerações gerais acima sobre a interpretação dos contratos coligados, que, regra geral, deve respeitar as regras hermenêuticas da legislação civil, e considerar a sistemática do negócio como um todo objetivado pelos diversos instrumentos envolvidos, passamos a avaliar, de forma geral, as conseqüências jurídicas em relação aos aspectos de validade e eficácia dos contratos coligados, sempre com foco em exemplos de questões relacionadas às operações de project finance de geração de energia elétrica.

A questão central que surge nesse contexto é a possibilidade de repercussão de nulidades ou ineficácias de um determinado contrato nos demais instrumentos a ele coligados.

Em casos de coligação necessária unilateral, em razão da natureza dos contratos (principal e acessório), tendo em vista a existência de disposição legal expressa determinando que “a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal” (art. 184, in fine, do Código Civil Brasileiro), não há dúvidas quanto à propagação de nulidades do contrato principal no acessório.

Também quando houver disposição contratual determinando expressamente tal interferência entre os contratos coligados (casos de coligação voluntária expressa), tal como ocorre nos casos de cláusulas de inadimplemento cruzado (cross-default) [28], a propagação de ineficácias e invalidades possivelmente não suscitaria muitos questionamentos e divergências de entendimentos [29].

Mas são nos casos de coligação voluntária implícita que tal questão certamente é de extrema relevância, tornando, reitere-se, o trabalho do intérprete mais profundo.  Nesses casos, pode-se dizer que, regra geral, a invalidade (nulidade, anulação ou declaração de inexistência) ou ineficácia de um contrato afetará os demais a ele coligados caso comprovado que o fim concreto do negócio como um todo ficou comprometido pela constatação da sua invalidade ou ineficácia superveniente [30].

Especificamente no que diz respeito aos contratos envolvidos em operações de project finance de geração de energia elétrica, como já dito, com exceção à coligação necessária unilateral existente entre contrato principal de financiamento e os contratos de garantia, a coligação será sempre voluntária, expressa ou implícita, dependendo do caso.

Cláusulas que prevêem a propagação de efeitos de um contrato em outros a ele coligados, a exemplo das cláusulas de cross-default, são muito comuns nesse tipo de operação, inclusive envolvendo contratos com partes distintas, casos em que os próprios instrumentos celebrados reconhecem a afetação de partes contratuais que, apesar de não terem celebrado determinados contratos, são por eles impactadas diretamente, o que reforça a já mencionada necessidade de reinterpretação do Princípio da Relatividade na coligação contratual.

Nesse sentido, a título de exemplo, destaca-se a existência de Contrato de EPC para a construção de usina hidrelétrica, celebrado entre epecista e empreendedor, em que constam dispositivos expressos determinando a suspensão da implantação do empreendimento ou até a possibilidade de rescisão contratual pelo empreendedor, a seu critério, caso o órgão financiador deixe de efetuar desembolsos ou manifestar a intenção de interrompê-los, nos termos do contrato de financiamento celebrado entre o empreendedor e o financiador, o que, além de configurar coligação voluntária expressa, é um exemplo do reconhecimento da afetação direta de “terceiro” (no caso, o epecista), em função da inadimplência contratual de outra parte (financiador) no âmbito de outro contrato do qual esse “terceiro” não é parte (o contrato principal de financiamento) [31].

E, mesmo nos casos de coligação implícita, na ausência de cláusula contratual, não é difícil pensar em determinadas situações em que determinados acontecimentos no âmbito de um determinado contrato envolvido em uma operação de project finance impactam diretamente os demais instrumentos coligados, mesmo que com partes distintas [32].

Imagina-se, por exemplo, uma possível extinção de um Contrato de Concessão para a exploração de determinado empreendimento, pelo Poder Público, por encampação [33]. Nesse caso, a perda da condição de titular dos direitos para a implantação e exploração do empreendimento certamente implicará na extinção de todos os demais contratos celebrados entre o empreendedor e “terceiros”, a princípio estranhos ao Contrato de Concessão, mas que tinham como função supracontratual a implantação do empreendimento (é o caso, por exemplo, do contrato de financiamento do projeto, contratos de construção, contratos de garantia etc.).

É por isso que conclui com convicção Sabina Cavalli, em seu artigo intitulado Project Finance e o princípio da relatividade dos contratos: “... todos os envolvidos na operação deverão ser considerados como partes em relação uns aos outros, e não como partes em alguns contratos e terceiros em outros.” (pág. 253)

Ainda sobre o assunto, vale destacar opinião legal exarada por Orlando Gomes, em caso de reconhecida coligação voluntária implícita com partes contratuais distintas [34]. Trata-se de contrato de financiamento de obra celebrado entre empreiteiro e banco financiador, para o empréstimo de recursos necessários à consecução de obra [35], que também é objeto de contrato de promessa de compra e venda e contrato de empreitada, ambos celebrados entre o empreiteiro e promissário comprador (ou dono da obra). Ocorre que o banco financiador sofreu intervenção do Banco Central, o que obrigou o empreiteiro a buscar novo banco financiador e atrasou o prazo de entrega da obra previsto no contrato de empreitada. Acerca da discussão sobre a aplicação da multa por atraso na obra, também prevista no contrato de empreitada, conclui o parecerista que tal dispositivo contratual perdeu a eficácia devido à impossibilidade de cumprimento do prazo da obra em razão de fato alheio às partes contratuais (intervenção do banco financiador do empreiteiro). Já em função do vínculo existente entre os contratos, conclui Orlando Gomes que se tratam de contratos coligados: “trata-se obviamente de contratos distintos e autônomos. Em face da necessidade econômica do financiamento nas incorporações imobiliárias, poder-se-ia dizer que é um contrato coligado ao da empreitada nesses empreendimentos, na modalidade de união com dependência mediante coligação voluntária.”

Pode-se traçar um comparativo entre a situação acima analisada e os casos de project finance, em que o financiador celebra contrato de financiamento com o empreendedor (dono da obra), e este, por sua vez, celebra contrato de construção (geralmente EPC) com o empreiteiro.

Em ambos os casos, a coligação se dá pelo mesmo motivo, qual seja, a consecução de determinado empreendimento, por meio de recursos do financiador, sem os quais seria senão totalmente, praticamente inviável a sua implantação.

Assim, dada a coligação existente entre os contratos e considerando-se a importância do contrato de financiamento para a consecução do objeto comum [36], pode-se afirmar que, em regra, a invalidade ou ineficácia do contrato de financiamento repercutirá diretamente nos demais contratos celebrados entre o empreendedor e “terceiros”, em princípio alheios ao contrato de financiamento.


6.         Conclusões

Conclui-se, em linhas gerais, que:

(i)            A teoria da coligação contratual tem origem no direito estrangeiro, especialmente nos países da Alemanha, França, Itália e Portugal, na tentativa de adaptação, no mundo jurídico, dos princípios e técnicas interpretativas, ao fenômeno da hipercomplexidade das operações econômicas demandadas pela atualidade.

(ii)           Os contratos coligados são necessariamente instrumentos unidos por um vínculo de dependência que caracterize um objetivo único almejado pelas partes.

(iii)          A comprovação da coligação contratual dependerá sempre da existência de dois ou mais contratos, e do nexo contratual de dependência, capaz de gerar conseqüências jurídicas particulares.

(iv)         O elemento mais importante da coligação contratual é o nexo ou vínculo funcional de dependência entre os contratos, que caracteriza uma única operação econômica, com um objetivo comum supracontratual, além do objeto de cada contrato individualmente considerado.

(v)          Quanto à fonte do vínculo, a coligação poderá nascer exclusivamente da autonomia das partes (coligação voluntária), ou independentemente da vontade das partes, por meio de dispositivo legal determinante nesse sentido ou da própria natureza dos contratos envolvidos (coligação necessária).

(vi)         A coligação voluntária pode ser subdividida em coligação voluntária expressa - em que há cláusulas contratuais que determinam expressamente que certos dispositivos de determinado(s) contrato(s) produzam eficácia jurídica em outro(s) -, ou coligação voluntária implícita – que, diante da ausência de dispositivo contratual expresso, depende de dedução em processo de interpretação.

(vii)        São exemplos típicos de coligação voluntária os contratos com cláusula de inadimplemento cruzado (“cross-default”), em que se estipula que o inadimplemento de uma das partes em um contrato resultará na possibilidade de resolução contratual de outro(s) contrato(s) a ele vinculado.

(viii)       Já a coligação necessária não depende da vontade das partes, sendo conseqüência da natureza acessória de um contrato em relação ao contrato principal a ele coligado, ou de dispositivo legal que determine que dois contratos produzam efeitos um no outro.

(ix)         Em relação à reciprocidade, a coligação poderá ser unilateral (em que há uma relação de dependência, na medida em que só um dos contratos é subordinado ao outro) ou bilateral (em que há uma interdependência entre os contratos, com efeitos recíprocos).

(x)          Constitui característica inerente a uma operação de project finance a valoração global da operação, na medida em que todos os contratos nela envolvidos traduzem uma única operação econômica que visa dividir entre as partes do risco de determinado empreendimento e garantir o fluxo de caixa do projeto que pagará o financiamento obtido. Nesse sentido, além da finalidade imediata de cada contrato individualmente considerado, há uma finalidade ulterior e sistêmica extraída do conjunto dos contratos do projeto, que é a consecução do empreendimento.

(xi)         Presentes os elementos que definem os contratos coligados – pluralidade de contratos e nexo funcional, é certo concluir que as operações de project finance constituem um exemplo típico de coligação contratual.

(xii)        Numa operação de project finance, o contrato de empréstimo celebrado entre o empreendedor e o órgão financiador é exemplo típico do que se denomina “contrato-quadro” ou “contrato-base”, haja vista sua característica de contrato principal que regula o relacionamento entre as partes, determina quais são os contratos que devem ser celebrados pelo empreendedor com terceiros para a consecução do projeto bem como as bases em que se darão tais contratações, fato que caracteriza a existência de coligação contratual entre os contratos celebrados conforme as condicionantes determinadas pelos órgãos financiadores.

(xiii)       Quanto à classificação, com exceção dos contratos de garantia que geralmente são celebrados nessas operações – que configuram coligação necessária, por seguirem a regra de que o acessório segue o principal -, por ser resultado da autonomia da vontade das partes, os demais contratos celebrados no âmbito de uma operação de financiamento de projetos são exemplos de coligação contratual voluntária que, dependendo de cada caso, poderá ser implícita ou expressa.

(xiv)       A coligação voluntária em operações de project finance será expressa caso haja cláusulas que determinam a transmissão de vícios e clausulas de resolução de um contrato para outro na cadeia negocial, como, por exemplo, a cláusula de cross-default.

(xv)        Por outro lado, não havendo cláusulas contratuais expressas nos contratos celebrados no âmbito de uma operação de project finance, determinando os vínculos entre os instrumentos celebrados, mas presentes os elementos que a caracterizam, a coligação contratual será implícita.

(xvi)       Dentre as conseqüências jurídicas que podem resultar da coligação, destacam-se as que respeitam à interpretação desses contratos, bem como seus efeitos no plano da validade e eficácia contratual.

(xvii)      O processo de interpretação dos contratos coligados depende necessariamente da análise não só de um contrato isolado, mas de todos os contratos envolvidos, para que se possa compreender o contexto do negócio como um todo celebrado entre as partes e o fim comum por elas almejado.

(xviii)     Para tanto, o operador do direito deve sempre buscar a intenção das partes com o negócio firmado, ou seja, o que elas pretendiam, partindo-se da presunção da boa-fé, quando da celebração do conjunto de contratos, que prevalece em relação ao sentido literal dos textos dos contratos, consoante prescrevem os arts. 112 e 113 do Código Civil Brasileiro.

(xix)       Nem todos os dispositivos contratuais existentes em um contrato coligado devem ser interpretados de forma global, na medida em que há aspectos pertinentes a um determinado contrato que, mesmo que coligado, não contaminam os demais, devendo o intérprete distinguir o que é típico de um contrato e o que faz parte do contexto global do negócio celebrado entre as partes.

(xx)        No que respeita à interpretação de contratos coligados celebrados com partes distintas, o Princípio da Relatividade deve ser reinterpretado tendo em vista a própria necessidade de flexibilização desse princípio em função de outros atualmente existentes do ordenamento jurídico, como o da função social do contrato, e, sobretudo, o vínculo comum existente no negócio como um todo, o que justifica a inaplicabilidade do Princípio da Relatividade em sua forma mais tradicional.

(xxi)       Em regra, tendo em vista o interesse comum supracontratual, as partes distintas em contratos coligados não podem ser consideradas alheias aos acontecimentos ocorridos em outros contratos que por elas não foram celebrados, mas que as afeta diretamente.

(xxii)      A possibilidade de repercussão de nulidades ou ineficácias de um determinado contrato nos demais instrumentos a ele coligados, deve ser avaliada conforme a espécie de coligação de que se trata.

(xxiii)     Em casos de coligação necessária unilateral, em razão da natureza dos contratos (principal e acessório), tendo em vista a existência de disposição legal expressa determinando que “a invalidade da obrigação principal implica a das obrigações acessórias, mas a destas não induz a da obrigação principal” (art. 184, in fine, do Código Civil Brasileiro), pode-se dizer que é certa a propagação de nulidades do contrato principal no acessório.

(xxiv)    Também quando houver disposição contratual determinando expressamente tal interferência entre os contratos coligados (casos de coligação voluntária expressa), tal como ocorre nos casos de cláusulas de cross-default, a propagação de ineficácias e invalidades possivelmente não suscitaria muitos questionamentos e divergências de entendimentos.

(xxv)     Nos casos de coligação voluntária implícita, regra geral, a invalidade (nulidade, anulação ou declaração de inexistência) ou ineficácia de um contrato afetará os demais a ele coligados caso comprovado que o fim concreto do negócio como um todo ficou comprometido pela constatação da sua invalidade ou ineficácia superveniente.

(xxvi)    Especificamente no que diz respeito aos contratos envolvidos em operações de project finance de geração de energia elétrica, com exceção à coligação necessária unilateral existente entre contrato principal de financiamento e os contratos de garantia, a coligação será sempre voluntária, expressa ou implícita, dependendo do caso.

(xxvii)   Cláusulas que prevêem a propagação de efeitos de um contrato em outros a ele coligados, a exemplo das cláusulas de cross-default, são muito comuns em operações de project finance, inclusive envolvendo contratos com partes distintas, casos em que os próprios instrumentos celebrados reconhecem a afetação de partes contratuais que, apesar de não terem celebrado determinados contratos, são por eles impactadas diretamente.

(xxviii)  Mesmo nos casos de coligação implícita, na ausência de cláusula contratual, são diversas as possibilidades de acontecimentos no âmbito de um determinado contrato envolvido em uma operação de project finance impactarem diretamente os demais instrumentos coligados, mesmo que com partes distintas.

(xxix)    Dada a importância do contrato de financiamento para a consecução do objeto comum numa operação de project finance, em regra, a invalidade ou ineficácia do contrato de financiamento repercutirá diretamente nos demais contratos celebrados entre o empreendedor e “terceiros”, em princípio alheios ao contrato de financiamento.

(xxx)     Assim, a comprovada coligação contratual em operações de project finance produz inúmeros efeitos jurídicos, que devem ser constatados num processo de interpretação em que princípios de direito muitas vezes têm que ser reavaliados, em função da necessidade de percepção de cada contrato para além de sua estrutura individual e de avaliação de sua estrutura supracontratual.


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Notas

[1] Especificamente a respeito dessa modalidade de financiamento de projetos vale conferir a clássica obra de John D. Finnerty, traduzida para o português: “Project Finance: engenharia financeira baseada em ativos”.

[2] Para José Virgilio Lopes Enei “a idéia de execução de um novo empreendimento nasce, portanto, dos estudos empreendidos por certa sociedade empresária, por isso chamada de patrocinadora do projeto.” (op. cit., pág. 17)

[3] Project finance e infra-estrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, V. 5, N. 9, p. 105-121, jun/1998.

[4] VIRGÍLIO define o contrato EPC turnkey da seguinte forma: “trata-se de um contrato de empreitada global em que a firma contratada, normalmente um consórcio liderado por uma empreiteira de renome, assume a obrigação de realizar o projeto de engenharia, executar todas as atividades de construção civil, fornecer por fontes próprias os de terceiros todos os materiais e equipamentos integrantes do empreendimento e, ainda, instalar, montar, testar e comissionar esses equipamentos de forma que a obra seja concluída num prazo determinado e entregue à sociedade financiada em condições de iniciar imediatamente a operação. Daí por que a expressão ´chave na mão´ ou turn-key. Uma vez entregue a obra, resta à sociedade financiada tão-somente girar as chaves do empreendimento para que ele comece a operar.” (op. cit., págs. 198 e 199).

[5] Conforme Hoffman, The Law (apud José Virgilio Lopes Enei, Project Finance: financiamento com foco em empreendimentos: parcerias público-privadas, leveraged buy-outs e outras figuras afins, 2007, págs. 61 e 62), que divide os contratos compreendidos na rede de contratos de project finance em 6 gêneros contratuais.

[6] Esse mecanismo, conhecido como step-in-rights, é admitido expressamente na Lei de Concessões (Lei nº 8.987, de 1995), em seu art. 27, com redação dada pela Lei nº 11.196, de 2005.

[7] Em linhas gerais, no contrato misto há uma unidade contratual, que formaliza um só negócio jurídico, com elementos de tipos contratuais distintos. De outra forma, no contrato complexo ao menos uma das partes realiza mais de uma manifestação de vontade, existindo diversas manifestações de vontade.

[8] José Alexandre Ferreira Sanches, em artigo intitulado “Os contratos atípicos e sua disciplina no Código Civil de 2002”, disponível no site http://jus.com.br/artigos/5779, acesso em 13/09/2010.

[9] A esse respeito Nelson Konder entende que: “A conexão contratual é normalmente explicada pela singela e demasiado genérica idéia de utilização de vários contratos para a realização de uma mesma operação econômica. As definições, nesse sentido, costumam combinar estes dois elementos: a pluralidade de negócios jurídicos e a unidade de operação econômica. Este tipo de definição, contudo, não passa sem problemas. A centralidade de um elemento extrajurídico na definição – a ‘operação econômica’ – se não é determinante no seu fracasso, já revela a profunda dificuldade de conduzir esta ocorrência a uma conceituação jurídica. A explicação do que seja uma operação econômica – e, em especial, a dificuldade em distinguir a unidade da pluralidade de operações – sugere um desafio aos economistas e priva o direito civil de conferir maior determinação e segurança à configuração do fenômeno.

A extrajuridicidade da definição, contudo, é um obstáculo menor revelador de uma problemática mais grave: a abrangência do conceito. Em uma sociedade como a nossa, a proliferação e a interligação entre as diversas situações jurídicas é um fato recorrente, para não dizer mesmo constante. A dificuldade passaria a ser, então, não a determinação dos contratos que estejam de alguma maneira ligados entre si, mas sim descobrir algum dentre eles que não esteja. Abarcando a imensidão (ou totalidade) dos contratos, o conceito de conexão seria esvaziado de conteúdo e, portanto, de utilidade. Por outro lado, a restrição excessiva abrangência do conceito também destrói sua razão de ser, acabando por reconduzir à visão clássica limitada ao exame dos contratos individualizados.” (op. cit., págs 95 e 96).

[10] E conclui KONDER: “Portanto, diante da presumível inexistência do contrato isolado do resto do mundo jurídico, o que deve ser buscado é aquele vínculo capaz de impor algum tipo de efeito jurídico peculiar aos contratos por ele interligados, um vínculo que possua relevância não apenas econômica, mas especificamente jurídica. No justo-meio estaria, então, uma definição capaz de reconhecer a amplitude inerente a um tal gênero, apontando, contudo, os elementos necessários para a sua identificação.” (op. cit., pág. 96)

No mesmo sentido, Francisco Marino entende que “... não obstante o nexo funcional e finalístico característico da coligação, cada negócio tende a produzir os efeitos que lhe são típicos. Por outro lado, tendo em vista não se tratar de mera soma de contratos, mas sim de uma síntese, verifica-se aqui o mesmo fenômeno existente na composição do texto de cada contrato, correspondente ao surgimento de efeitos irredutíveis aos contratos isoladamente considerados. Estes são os efeitos jurídicos próprios da coligação contratual. (...) Isso posto, é lícito concluir, com BETTI, que cada um dos negócios coligados, por conservar a própria autonomia, produz aqueles efeitos jurídicos conformes à sua finalidade; contudo, ‘os negócios, na sua síntese, são produtores de conseqüências jurídicas que não coincidem com as de cada um deles, isoladamente considerado’. O nexo existente entre negócios jurídicos coligados mostra-se, portanto, dependente da ‘congruência entre as respectivas funções’.” (op. cit., pág. 134)

Para VIRGÍLIO “é defensável até que os contratos preservem a sua causa final individual, mas é certo que na coligação haverá uma causa final sistemática que unirá o conjunto, e que só será alcançável por meio do cumprimento de todos os contratos coligados.” (op. cit., pág. 285)

Eduardo Kataoka entende que: “é preciso que as partes possam atingir um objetivo comum que supere os simplesmente alcançáveis por meio do somatório dos contratos individuais. É necessário que cada contrato desempenhe uma função própria, mas que o conjunto seja mais do que o somatório”. (op. cit., pág. 64)

[11] Consultar <http://www.hcdn.gov.ar/>.

[12] O presente estudo aborda apenas a classificação da coligação quanto à fonte e à reciprocidade, usualmente adotadas pelos doutrinadores, cuja distinção é importante especialmente com vistas à análise de seus efeitos. No que respeita às demais classificações - quanto à natureza do vínculo (coligação horizontal ou vertical), extensão do vínculo (coligação genética ou funcional) e finalidade (coligação associativa ou por mera delegação) -, vide VIRGÍLIO, op. cit., págs. 288 e 289.

[13] Essa é a classificação adotada por KATAOKA (op. cit., págs 23 e 24, 131), VIRGÍLIO (op. cit., pág. 289) e KONDER (op. cit., págs 105 e 106). Já para MARINO, a coligação que independente da vontade das partes é chamada de coligação natural (quando advém de imposição da natureza acessória do tipo contratual envolvido), ou coligação ex lege ou legal, por força de disposição legal determinante (op. citada, págs. 104 e segs.).

[14] Essa subdivisão é defendida por MARINO, que entende que “pode advir de cláusulas contratuais que expressamente disciplinem o vínculo intercontratual (‘coligação voluntária expressa’), ou pode ser deduzida a partir do fim contratual concreto e das circunstâncias interpretativas (‘coligação voluntária implícita’).”(...)

“A distinção traduz-se em um problema de interpretação, dado que, nos casos de coligação implícita, será necessário recorrer a um processo interpretativo mais profundo a fim de delimitar o vínculo existente entre os contratos.” op. cit., pág. 107.

[15] Sobre esse assunto, vale transcrever a definição trazida por Adriana Giffoni, em seu artigo “As Cláusulas de cross default em contratos financeiros”. Revista de Direito Mercantil, industrial, econômico e financeiro, v. 121, pág. 148: “A expressão ‘cross default’ é proveniente da língua inglesa e significa ‘falha cruzada’. No meio financeiro refere-se àquelas cláusulas presentes em contratos que determinam que o devedor estará em situação de falha (‘default’) no contrato em questão toda vez que deixar de cumprir quaisquer outras obrigações em outros contratos.”

[16] Note-se que esse tema é objeto de amplas discussões tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais, especialmente no que se refere à influência da resolução de um contrato sobre outro, celebrado entre partes distintas.

[17] Parece-nos que esse é o mesmo entendimento dos poucos doutrinadores nacionais que se dedicaram ao assunto. Nesse sentido, vale transcrever: “... o financiamento de projetos é um exemplo supremo de coligação contratual, haja vista a íntima conexão dos diversos contratos que o compõem e a multiplicidade de vínculos entre eles estabelecidos. Mais do que isso, como veremos, há uma finalidade comum, sistêmica, que suplanta a finalidade individual de cada contrato isoladamente considerado (...) apesar de os contratos individualmente considerados possuírem sua causa-finalidade imediata, vale dizer, o suprimento de matéria-prima , a venda do produto final ou a construção de uma obra, os contratos que compõem o financiamento de projetos comungam, em última instância, de uma causa-finalidade sistêmica, que lhes orienta o vínculo de coligação. Essa finalidade sistêmica passa pela adequada alocação de riscos entre os partícipes do financiamento de projetos, para alcançar a liberação dos recursos financiados e para, em última instância, viabilizar o sucesso do empreendimento, que a todos interessa.” (VIRGÍLIO, op. cit., págs. 302 e 305).

“O project finance é uma modalidade de financiamento em que há um enorme complexo de contratos ligados entre si pela sua finalidade econômica comum, e que podem vir a sofrer uma coligação voluntária. A cláusula de cross default a que aludiremos mais à frente é um exemplo marcante de possibilidade”.(KATAOKA, op. cit., pág. 102)

[18] Para VIRGÍLIO, “contrato-quadro ou base é aquele celebrado por duas ou mais partes com a intenção de instituir regras que governarão durante certo período a celebração de outros contratos com vistas à realização de uma operação econômica comum”. (op. cit., p. 293).

Consoante KONDER, “o termo contrato-quadro é utilizado por parte da doutrina para referir a um contrato que atua como marco central de uma ligação entre as partes, predeterminando os parâmetros do envolvimento entre elas, mas que não exaure as prestações concretas a serem exigidas por esta relação. Neste sentido, uma série de outros contratos mais específicos serão celebrados com vistas a realizar finalidades mais concretas daquela ligação.” (op. cit., pág. 161).

[19] Para KONDER, “a consideração dos demais contratos envolvidos pode servir a esclarecer pontos obscuros do contrato isolado ou, ao contrário, pode deixar transparecer contradições entre negócios que, isoladamente, pareciam claros – o dever de prover uma interpretação condizente com a totalidade negocial, contudo, persiste.” (KONDER, op. cit., pág. 195)

[20] Nesse sentido, entende MARINO que: “Na coligação ‘voluntária’, por sua vez, o processo de interpretação atingirá grau máximo de profundidade. Mesmo em casos de coligação expressa, a reconstrução do conteúdo dos contratos será decisiva para determinar as conseqüências jurídicas da coligação, raramente previstas pelas partes em toda a sua possível extensão.” (op. cit., pág. 147)

[21] “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

Para VIRGÍLIO, “há ainda que reconhecer um importante efeito das redes de contratos coligados, qual seja a necessidade de interpretação sistemática destas, em oposição a uma interpretação isolada de cada contrato.

Relevante aqui é o princípio básico de interpretação dos contratos, expresso no art. 112 do nosso Código Civil brasileiro, de que a intenção das partes deve prevalecer sobre o sentido literal das palavras. Como o que move as partes integrantes de uma rede contratual é uma finalidade sistêmica, supracontratual – normalmente a realização de uma única embora complexa operação econômica – a intenção das partes, consubstanciada nos diversos instrumentos contratuais, só poderá ser verdadeiramente compreendida mediante a leitura e interpretação do conjunto contratual.” (VIRGÍLIO, op. cit. pág. 301)

[22] “Artículo 1.030. Grupos de contratos. Los contratos que están vinculados entre sí por haber sido celebrados en cumplimiento del programa de una operación económica global son interpretados los unos por medio de los otros, y atribuyéndoles el sentido apropiado al conjunto de la operación”.

[23]          Vale transcrever o comentário de KATAOKA a esse respeito: “Parece claro que é questão dogmática relevantíssima a determinação de certos indícios que possam orientar o intérprete no tratamento dessa importante questão: como determinar o conteúdo do aspecto supercontratual da coligação? E que cláusulas aplicar em caso de perturbações da coligação contratual?” (KATAOKA, op. cit., pág. 178)

“... como determinar o que é próprio de um dos contratos específicos e o que é próprio da coligação contratual. Ora, parece claro que os negócios jurídicos integrantes da coligação, não resultantes de cláusula geral expressa ou da lei, preservam a respectiva independência estrutural. Se isso é assim, nem todas as cláusulas ali previstas referir-se-ão a toda a coligação, mas apenas a um dos contratos específicos, não produzindo efeitos gerais, mas apenas particulares. Caso contrário, estaríamos cuidando de um só contrato.” KATAOKA, op. cit., pág. 177

[24] “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”

[25] Transcrevemos outro exemplo interessante trazido por Wanderley Fernandes e Jonathan Mendes Oliveira, em artigo intitulado “Contrato Preliminar: Segurança de Contratar”, do livro “Fundamentos e Princípios dos Contratos Empresariais”, sobre a coligação existente entre um contrato de compra e venda de energia celebrado entre empreendedor e a PETROBRÁS e contrato de financiamento celebrado entre o mesmo empreendedor e o BNDES: “vejamos um exemplo bastante simples (ou nem tanto): determinada empresa assina um contrato de fornecimento de energia pelo prazo de 15 anos para a Petrobras. Tendo assegurado a remuneração pela disponibilidade de energia (energia garantida), o mesmo agente econômico obtém um financiamento do BNDES e dá em garantia do pagamento do financiamento os créditos vencidos e a vencer decorrentes do contrato de fornecimento de energia. Note-se que nasce, neste caso, um fenômeno interessantíssimo, ou seja, um contrato torna-se para outro uma garantia de adimplemento. Nos bancos escolares, aprendemos que as garantias são instrumentos acessórios, mas, no caso em tela, um contrato torna-se a própria garantia do cumprimento de outro contrato. Há um vínculo necessário entre os contratos. O intérprete jamais poderia analisar o contrato de financiamento sem que o contrato de fornecimento de energia fosse avaliado.” (destaques nossos, pág. 297)

[26] Como poderá KONDER, “com maior força, nos contratos conexos que envolvam as mesmas partes, a consideração de um deles na interpretação do outro é absolutamente inafastável e os efeitos mútuos são limitados apenas pela sutil fronteira entre a unidade e a pluralidade negocial. Mas mesmo naqueles que envolvam partes diversas, a conexão decorrente do compartilhamento de uma função unitária impõe a referida consideração. (op. cit., págs 197 e 198)

Para VIRGILIO, “o tema dos contratos coligados é um exemplo do abrandamento e releitura dos princípios contratuais convencionais. Representa exceção bastante justificada ao princípio clássico da relatividade do contrato, segundo o qual os efeitos contratuais se limitariam às partes, não alcançando terceiros, seja para beneficiá-los, seja para impor-lhes obrigações. A aceitação absoluta do princípio da relatividade dos efeitos contratuais nos conduziria à conclusão de que, mesmo diante de um sistema de contratos coligados, cada parte só responderia pelas obrigações constantes dos contratos por ela assinados. Obviamente, tal conclusão não mais se coaduna com a nova interpretação dos clássicos princípios contratuais, nem muito menos com os princípios mais modernos da função social e da boa-fé objetiva.” (op. cit. págs. 294 e 295)

MARINO entende que “isto posto, cabe indagar acerca da relação da oponibilidade do inadimplemento do ´terceiro´, em sede de coligação contratual, com o princípio da relatividade dos efeitos do contrato. Como se sabe, referido princípio vem sendo objeto de revisão doutrinária, pela qual se busca compatibilizá-lo com os novos princípios contratuais (boa-fé, equilíbrio econômico e função social) e com as diversas e cada vez mais freqüentes situações nas quais o contrato produz efeitos perante terceiros. Terceiros em relação ao contrato são todos aqueles que não participaram de sua formação (...) O terceiro interessado não é parte, contudo ´detém posição jurídica afim a uma das posições jurídicas das partes´ ou está em situação tal que o suceder de acontecimentos no interior da relação obrigatória pode claramente lhe provocar efeitos prejudiciais.” (op. cit., págs. 208 e 209)

[27] Willie Tavares, em sua dissertação “A aplicação da exceção do contrato não cumprido aos contratos conexos”, examina essa questão: “em relação ao envolvimento de partes distintas nos contratos conexos, é importante destacar que esses contratantes não podem ser considerados alheios aos eventos ocorridos nos negócios vinculados, mesmo nos quais não figurem formalmente. Isso porque todas as partes possuem o mesmo interesse principal e colaboram, de alguma forma, para a consecução da finalidade supracontratual. Assim, a conexão contratual põe em cheque a construção dogmática clássica do efeito relativo dos contratos, determinando o alargamento do conceito de parte, que passa a ser aquele que está submetido ao efeito obrigatório do negócio, seja por força da vontade, seja por determinação legal, e não mais aquele que por sua vontade se obriga.” (pág. 47)

“Na maior parte das vezes ... as partes envolvidas numa rede de contratos coligados deverão ter consciência dos contratos integrantes do sistema, e por isso estarão sujeitas a deveres laterais de conduta – extraídos dos próprios princípios da boa-fé e da função social do contrato – cujo descumprimento importará em responsabilização que não encontrará limites apenas nos contratos assinados pelas partes.” (VIRGILIO, op. cit., pág. 296).

[28] Sobre a cláusula de cross-default, vide comentários no Capítulo 3.

[29] Nesse sentido, VIRGÍLIO entende que “outras vezes, as próprias partes envolvidas estabelecerão contratualmente, por meio de condições resolutivas ou outras cláusulas que façam referência aos outros contratos integrantes do grupo, a propagação de invalidades e ineficácias. Tais previsões contratuais são bastante comuns, por exemplo, em contratos de empréstimo e financiamento internacionais. São exemplos as chamadas cláusulas de ‘cross-default’, segundo as quais o inadimplemento da parte em um contrato por ela integrado constituirá inadimplemento em outros contratos (op. cit. pág. 298).

[30] A esse respeito:

“Em conclusão, pode-se afirmar que, a priori, a invalidade de um dos contratos afeta os demais, a ele coligados. Somente quando o fim concreto não for comprometido pela invalidade do contrato é que os demais poderão ser mantidos, cabendo à parte, que alega a possibilidade de alcançar o fim concreto, o ônus de prová-lo.” (MARINO, op. cit. pág. 197).

“A propagação também poderá ter lugar, normalmente, quando a invalidade ou ineficácia de um dos contratos impossibilitar a consecução da função sistêmica da rede de contratos, ou seja, quando a finalidade comum, vale dizer, a operação econômica almejada, não mais puder ser alcançada com sucesso. (...) A moderna teoria recomenda que o exame do vínculo entre os contratos coligados seja feito de modo a identificar os riscos assumidos por cada parte envolvida. Se a parte conhecia e aceitou, ainda que tacitamente, o risco de que seu contrato pudesse se tornar inválido ou ineficaz em razão de vícios no conjunto, não pode ela negar esse efeito. (...) De modo geral, todavia, a conclusão acerca da propagação ou não de certos efeitos entre dois ou mais contratos componentes de uma rede contratual dependerá da análise do caso concreto, na qual possam ser valorados os diversos princípios contratuais, à luz da causa individual, causa sistêmica, intenção das partes e alocação de riscos.” (VIRGILIO, op. cit., págs 299 a 300)

[31] Sobre a função do empreiteiro/epecista em operações de project finance, entende VIRGÍLIO que “... quando um empreiteiro assume um Contrato de EPC em regime de chave-na-mão, ele deve saber que deverá entregar a obra no prazo previamente acordado, pelo preço fixado, em condições de operar em perfeitas condições, sem poder invocar dificuldades supervenientes que, em outros contextos, poderiam até justificar a revisão do preço ou a extensão do prazo de entrega. A transferência do risco da SPE para o empreiteiro é da essência de um contrato EPC celebrado no âmbito do um financiamento de projetos, sobretudo daquele chave-na-mão, e portanto cabe ao empreiteiro embutir os riscos em seu preço, criando as reservas que julgar adequadas para remunerar o maior grau de risco assumido.” (op. cit., pág. 308)

[32] Nesse sentido, “muito embora as partes, sobretudo o financiador, preocupem-se em estabelecer vínculos contratuais diretos com todos os partícipes julgados mais relevantes (e daí a razão de o financiador exigir acordos diretos com o empreiteiro, o supridor de insumos, os clientes etc.), mesmo na omissão das partes, é lícito concluir que a coligação contratual e a finalidade sistêmica poderão fundamentar ainda, muitas vezes, o reconhecimento de diretos e obrigações de natureza contratual diretamente entre partes que não estejam formalmente vinculadas.” (VIRGÍLIO, op. cit., págs 306 e 307)

[33]  Conforme art. 35, II da Lei n° 8.987, de 1995 (Lei de Concessões).

[34] In “Novíssimas questões de direito civil”, págs. 129 a 136.

[35] Tal necessidade é tratada pelo parecerista da seguinte forma: “... o capital necessário à construção, tão necessário que se torna tal financiamento uma condição indispensável à execução e conclusão de obras de tal porte e de tal estrutura.”

[36] Nas palavras de VIRGÍLIO, “embora todos os contratos sejam importantes ao empreendimento, o contrato de financiamento (ou equivalente) assume um grau de primazia em relação aos demais, haja vista que, em última instância, tem-se como objetivo maior a liberação dos recursos que viabilizarão a implantação do empreendimento e o cumprimento dos demais contratos. (...) num projeto estruturado sob a premissa, conhecida de todos os participantes e por estes aceita como um risco inerente ao todo, de que a planta industrial seria financiada na sua quase-totalidade, a ineficácia superveniente do contrato de financiamento que impede a conclusão da planta poderá propagar-se aos demais contratos do projeto, os quais, em razão da ineficácia do primeiro, tornaram-se inviáveis.” (Virgílio, op. cit. págs. 304 e 308)


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLI, Ana Amélia Santos. A coligação contratual em projetos de geração de energia elétrica na modalidade project finance e seus efeitos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4009, 23 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29624. Acesso em: 26 abr. 2024.