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O direito como comunicação produzida por um sistema autopoiético

introdução aos conceitos da teoria sistêmica luhmanniana.

O direito como comunicação produzida por um sistema autopoiético. introdução aos conceitos da teoria sistêmica luhmanniana.

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O direito pode ser compreendido como comunicação produzida por um sistema autopoiético, conforme conceitos fundamentais da teoria luhmanniana.

Sumário: Introdução. 1. Alguns conceitos básicos da teoria dos sistemas de Luhmann. 1.1. Sistema, Entorno e Autopoiese. 1.2. Comunicação, Sentido e Evolução Semântica. Conclusão


 Introdução

O distanciamento entre o direito legislado e a forma como ele se processa fora dos códigos, vem há muito tempo sendo objeto de discussão entre juristas, sociólogos e filósofos do direito, não sendo recente a tese de que o direito deve se adequar ao tempo e ao povo aos quais se aplica.

Dentro deste contexto da chamada “crise da dogmática jurídica”, “crise de legitimidade”, “crise do Judiciário”, o problema da defasagem entre a ordem jurídica e as práticas sociais concretas da dita modernidade - caracterizada, sobretudo, por sua complexidade sempre crescente - não podem ser satisfeitas por juristas da tradicional formação lógico-filosófica (SOUTO e SOUTO, 1981, p. 14).

Com isso, não se quer negar a importância do estudo aprofundado das teorias que tentam explicar e, por muitas vezes, legitimar nosso sistema jurídico, buscando encontrar sua coerência lógico-formal. Contudo, como bem afirma Tercio Ferraz:

(...) a dogmática está ligada a uma abstração dupla: a própria sociedade, na medida em que o sistema jurídico se diferencia como tal, constitui, ao lado das normas, regras para a sua manipulação. Ora, este é o material abstrato num grau de abstração ainda maior. Se isto, de um lado, lhe dá certa mobilidade, certa independência e certa liberdade, como condição de seu próprio trabalho, de outro, paga-se por isso um preço: a abstração e o risco de distanciamento progressivo da própria realidade (FERRAZ, 2003, p. 26).

   O direito é um fenômeno social e por isso sua visualização numa perspectiva sociológica é de todo adequada. Como bem afirma Sánchez de La Torre:

(...) enfrentar os problemas do direito em termos sociológicos é querer conhecer mais sua força e seu poder que suas palavras. A investigação do Direito na conduta humana aclararia muitas coisas aos legisladores, aos políticos, aos governantes, com respeito à natureza dos materiais com que trabalham (SANCHEZ DE LA TORRE, 1965, p. 68-69).

Sendo assim, a observação assume importante papel, mesmo reconhecendo que esta pode produzir mais de uma explicação e sentido, pois cada um "representa uma construção lógica ou mental, produzida em função dos intuitos ou propósitos cognitivos do investigador" (FERNANDES, 1959, p. 38). Contudo, acreditamos que pior é preferir a obscuridade (RIEDL, 1998, p. 76-80).

A observação nas ciências sociais, segundo lição de Florestan Fernandes, abrange três espécies de operações intelectuais:

(...) a) as operações através das quais são acumulados dados brutos, de cuja análise dependerá o conhecimento objetivos dos fenômenos estudados; b) as operações que permitem identificar e selecionar, nessa massa de dados, os fatos que possuem alguma significação determinável na produção daqueles fenômenos; c) as operações mediante as quais são determinadas, isoladas e coligidas – nesse grupo restrito de fatos – as instâncias empíricas relevantes para a reconstrução e a explanação dos fenômenos, nas condições em que forem considerados (FERNANDES, 1959, p. 8).

Sendo assim, a observação não se confunde com a mera “verificação”, pois observar é ir além da mera constatação dos fatos, complementando os sentidos por meios técnicos, constituindo “o processo através do qual as instâncias empíricas, relevantes para a descrição ou a interpretação dos fenômenos sociais, são obtidas, selecionadas e coligidas” (FERNANDES, 1959, p. 6).

Neste contexto, surge uma importante questão: qual deveria ser a postura do cientista do direito diante das incertezas que permeiam seus estudos? Deveria se agarrar à ideia de segurança e universalismo, buscando certezas? Ou deveria reconhecer o estado contingente do seu objeto, identificando a si próprio como sendo também objeto? 

Essa é a problematização que nos propomos a realizar neste texto, acreditando que a teoria dos sistemas de Luhmann, sobretudo no que diz respeito à obra “A sociedade da sociedade”, funciona como excelente ponto de partida para a discussão dos questionamentos postos. 


1. Alguns conceitos básicos da teoria dos sistemas de Luhmann

A proposta da teoria dos sistemas autopoiéticos é descrever a sociedade complexa atual, distanciando-se, contudo, das concepções que pretendem normatizá-la prescrevendo soluções para os supostos problemas sociais e que desejam ensinar como deve ser.

A concepção luhmanniana representa uma cisão com o modelo clássico de ciência, que pretendeu descrever a vida social orientando-se pela ideia de insatisfação com a realidade, tão característica dos séculos XIX e XX, para, na espera de um melhor futuro, fundamentar suas teorias sociais na ideia de evolução da civilização, sendo o homem o operador central desse sempre aperfeiçoamento da sociedade. (LUHMANN, 2007, p. 10)

Nosso marco teórico, portanto, distancia-se da tradição iniciada no século XVIII, que descreveu o homem apoiando-se em características que o distinguiria dos demais animais, tais quais: emoção, razão, entendimento, moralidade, imaginação, rompendo assim com a tradição cosmológica que se manteve imune por quase dois mil anos. (LUHMANN, 2007, p. 12-13)

Entretanto, nem tudo o que individualiza o ser humano pertence à sociedade, se é que há algo no homem que lhe pertence. Dito de outra forma, a sociedade não é a soma das consciências individuais ou das ações humanas e não muda seu peso por cada um que nasça ou por cada um que morra. “A sociedade não vive”, diz Luhmann (2007, p. 13). Tampouco podem ser entendidos como sociais os processos neurofisiológicos do cérebro, os quais sequer são acessíveis à consciência.

Ao se constatar, pois, que a sociedade não pode ser entendida como a simples soma das consciências individuais que a compõe, não sendo mais tão evidente que esteja naturalmente constituída por seres humanos concretos, surge a teoria do consenso como conceito substituto. Neste diapasão, a sociedade se torna possível “através do consenso dos seres humanos, da concordância de suas opiniões e da complementaridade de seus objetivos”. (LUHMANN, 2007, p. 12)

Contudo, apesar de representar uma recordação valiosa que ilustrou sua própria época, a ideia da sociedade como produto do consenso entre os homens logo foi questionada. A grande problemática consistiu em saber como seria possível existir o consenso em um sentido psíquico atualizável, bem como de que forma seria possível realizar uma retificação suficiente de expectativas entrelaçadas entre si. (LUHMANN, 2007, p. 14)

Para maquiar essa problemática, a sociologia por muito tempo fez uso da generalização e da abstração. Max Weber, por exemplo, reduziu o problema a uma coação tipológica. Já Parsons viu a solução, de forma semelhante a Durkheim, em um consenso de valores que relaciona a crescente diferenciação com uma generalização igualmente crescente. John Rawls, por sua vez, foi impelido a postular um “véu de ignorância” para a situação de partida na qual se fundam os princípios da justiça, o que impede os indivíduos conhecerem sua posição e seus interesses, ou seja, pressupõe indivíduos sem individualidade. O que representa apenas outra forma de fazer invisível o paradoxo. (LUHMANN, 2007, p. 14-15)

O suposto de que os indivíduos materializam a sociedade mediante suas condutas leva a outra implicação: a hipótese de que problemas estruturais da sociedade poderiam expressar-se como condutas individuais desviadas, o que tornaria possível sua investigação empírica. Como se observa no estudo de Durkheim sobre o suicídio.

Contudo, acreditamos que a reflexão deve ser oposta questionando-se quais problemas estruturais da sociedade são os que se prestam para se converter em conduta individual desviada. Tal questionamento converge a uma versão da teoria dos sistemas que diferencia entre sistema e entorno, devendo o homem fazer parte do sistema ou do entorno, não sendo possível fracioná-lo empiricamente. (LUHMANN, 2007, p. 16)

É a partir da necessidade de se alocar o homem no sistema ou no entorno, que a teoria dos sistemas autopoiéticos propõe que este é o entorno da sociedade. Nada mais lógico, uma vez que se passarmos a compreender o homem como parte da sociedade, a teoria da diferenciação entre sistema e entorno teria que se firmar como teoria da classificação dos seres humanos, seja por estratos sociais, etnias, nações, grupos etc. O que levaria, dentre outras coisas, a uma contradição evidente com os conceitos de direitos humanos, especialmente com o de igualdade, gerando um paradoxo dentro da teoria. Desta forma, “não há outra possibilidade que não a de considerar o homem por inteiro, em seu corpo e alma, como parte do entorno do sistema sociedade”. (LUHMANN, 2007, p. 16)

É neste sentido que acreditamos que a teoria dos sistemas de Luhmann serve como proposta à problematização trazida por esse texto, mas, para tanto, é indispensável revisitar alguns conceitos básicos de forma a aclarar o que pretendemos dizer ao propor que o direito seja entendido como comunicação produzida por um sistema autopoiético de construção de sentido. Claro que não pretendemos ser exaurientes no trato de tais conceitos de reconhecida abstração e complexidade teórica, desenvolvidos durante anos pelo teórico alemão, mas tentaremos elucidar seus significados básicos para compressão do que aqui propomos. Comecemos, pois, com a noção de sistema autoreferente.

1.1 Sistema, Entorno e Autopoiese

De forma bem diversa das concepções sociológicas antropocêntricas, a teoria de Luhmann concebe a sociedade não como um conjunto de homens ou de ações humanas, mas como um sistema autoreferente que cria suas próprias condições de existência e de mudança, sendo a comunicação a célula de todo esse processo de autocriação e de diferenciação do meio.

Por mais estranheza que possa causar a visão de sociedade sem sujeito, logo ela se desvanece ao adentramos na fundamentação extremamente robusta do teórico, que, de forma alguma, olvida dos homens. Pelo contrário, o sistema social luhmanniano pressupõe os homens e as ações humanas, mas entende tanto o sistema social quanto os homens como sistemas autorreferentes, autopoiéticos, independentes.

Luhmann parte do pressuposto de que a sociedade não pode se desenvolver sem que haja uma redução da complexidade, oriunda da multiplicação de comportamentos possíveis. Ora, se o indivíduo tiver que levar em consideração todas as respostas possíveis no âmbito social, haverá, sem dúvida, uma paralisação, um bloqueio na dinâmica social. Sendo assim, a complexidade de uma unidade indica que nem todos os elementos desta mesma unidade podem estar simultaneamente relacionados a eles mesmos. “Complexidade significa que para atualizar as relações entre os elementos é necessária uma seleção” (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 43). A complexidade não é uma operação, mas sim um conceito de observação e de descrição, sendo constituída pela distinção que é a forma de um paradoxo:

(...) a complexidade é uma unidade de uma multiplicidade. Um estado de coisas se expressa em duas versões distintas: como unidade e como multiplicidade – e o conceito rechaça que se trate aqui de algo distinto. Com isto se bloqueia a saída fácil que consistem em falar de complexidade às vezes como unidade e às vezes como multiplicidade (LUHMANN, 2007, p. 101).

A solução para a complexidade paralisante se dá com a criação de subsistemas do sistema social, que permitem delimitar um âmbito de complexidade possível de ser operada, objetivando, por fim, a redução da complexidade. A gênese do sistema, portanto, se dá na necessidade de especialização funcional para redução de complexidade, tornando possível a evolução. É, portanto, a dinâmica do aumento e da redução de complexidade, pois só reduzindo-a é que se torna possível fazê-la mais complexa. (LUHMANN, 2007, p. 400-401)

Sendo assim, o sistema surge não como o resultado de alguma inteligência superior, mas da simples necessidade de resolver o problema da contingência. E contingente é tudo aquilo que não é: nem necessário, nem impossível, mas é simplesmente possível. Como já afirmado, o conceito de contingência representa, de certa forma, um respeito às alternativas possíveis, isto é, a contingência indica que é o atual também se faz possível de outras maneiras. A contingência indica, portanto, a possibilidade de que um dado seja diferente do que é, uma vez que esse “é” deriva de uma seleção que determina seu não ser como ser de outras possibilidades. (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 68)

Pelo exposto, vê-se que os subsistemas sociais nascem em razão de sua função redutora de complexidade do sistema social, contudo, uma vez constituído um subsistema, este permanece como produto de si mesmo. Neste sentido diz-se que os sistemas sociais são autopoiéticos.

Autopoiesis é um termo de origem biológica, criado pelos chilenos Maturana e Varela, para designar a célula como algo “auto-criado” (LUHMANN, 1992, p. 205). Enquanto Maturana e Varela restringem o conceito da autopoiesis a sistemas vivos, Luhmann o amplia para todos os sistemas em que se pode observar um modo de operação específico e exclusivo, que são, na sua opinião, os sistemas sociais e os sistemas psíquicos. As operações básicas dos sistemas sociais são comunicações e as operações básicas dos sistemas psíquicos são pensamentos. (LUHMANN, 1998, p. 31-32)

Dizer que os sistemas sociais são autopoiéticos, portanto, significa que estes produzem seus próprios elementos, possibilitando a identificação do próprio sistema como unidade. A autopoiese é, dessa forma, um pressuposto para o fechamento operacional ao mesmo tempo em que esta recursividade de autorreprodução é condição de abertura do sistema. Isso quer dizer que aquele pode se relacionar com o seu meio, contudo é o próprio sistema que preordena a forma como essa relação se opera. Sendo assim, toda operação é uma operação dentro do sistema. Dito em outras palavras, não haverá referência externa sem autorreferência. Em sua descrição da sociedade, Luhmann (2007, p. 44) esclarece que:

Os sistemas autopoiéticos são aqueles que por si mesmos produzem não só suas estruturas, mas também os elementos dos que estão constituídos – no interior destes mesmos elementos. Os elementos sobre os que se alcançam os sistemas autopoiéticos (que vistos sob a perspectiva do tempo não são mais que operações) não têm existência independente (...). Os elementos são informações, são diferenças que no sistema fazem uma diferença. Neste sentido são unidades de uso para produzir novas unidades de uso – para o qual não existe nenhuma correspondência no entorno.

O sistema, portanto, percebe seu entorno como correlato negativo de si mesmo e não como sistema, contudo, cada um forma parte do entorno dos outros sistemas. E é assim que, adotando o sistema conceitual de Spencer Brown, Luhmann afirma que o sistema é a forma de uma distinção, uma vez que possui duas faces: o sistema mesmo (como interior da forma) e o entorno (como exterior da forma), sendo o entorno tão importante para esta forma quanto o próprio sistema mesmo. Isto significa que tudo o que pode ser observado ou descrito com esta forma, pertence ao sistema ou ao entorno. Neste contexto, os códigos binários (que são elementos diferenciadores dos próprios sistemas e, por isso, utilizam codificações diversas) ganham relevância, não como representações de uma realidade, mas como simples regras de duplicação. Desta forma, para tudo o que no âmbito de aplicação dos códigos, definido por eles mesmos, aparece como informação, se faz disponível um correlato negativo, como por exemplo: verdadeiro/falso; amado/não-amado; direito/não-direito; etc.

Conseqüentemente, tudo o que está compreendido com a forma do código aparece como contingente, como possível também de outra maneira. Por isso, na prática surge a necessidade de ter regras de decisão que fixem as condições mediantes as quais o valor (ou o valor oposto) esteja associado de maneira correta ou falsa. Chamamos programas a tais regras. A distinção entre código e programas estrutura, agora o podemos dizer, a autopoiese dos sistemas funcionais de uma maneira inconfundível, e a semântica que dali resulta se distingue claramente das representações de perfeição, dos ideais ou das relações de valor tradicionais. Isto se vê não por último na estrutura lógica, já que cada código realiza, ao mesmo tempo, um valor de rechaço com respeito a todos os demais (LUHMANN, 2007, p. 594-595).

Em síntese, os sistemas se estruturam sobre a base de expectativas, uma vez que surgem para reduzir a complexidade das múltiplas possibilidades do social, permitindo a autoprodução dos elementos do sistema, ou seja, a autoprodução das comunicações. É justamente a estrutura que torna possível que umas comunicações se sigam de outras com certa ordem.

A generalização destas estruturas de expectativas possibilita a estabilidade que os sistemas necessitam para evoluírem. Lembrando que o termo evolução em Luhmann está destituído de qualquer caráter valorativo, no sentido de progresso ou melhoria, estando relacionado com a redução da complexidade para possibilitar o aumento desta. Diferentemente das expectativas cógnitas, que se modificam quando defraudadas, as expectativas normativas são uma defesa das estruturas dos sistemas contra as circunstâncias que lhes são contrárias, devendo ser mantidas frente a qualquer frustração, sob pena impossibilitar a orientação intersubjetiva de condutas. Para assegurar essas expectativas normativas é que existe o direito. (LUHMANN, 2007, p. 506)

Inicialmente a teoria dos sistemas propôs a forma de sistemas abertos, entendendo que, devido à lei da entropia, os sistemas que estivessem fechados diante do seu entorno terminariam por se identificar com ele. Sendo assim, os sistemas iriam se desvanecendo ao perder energia, estando determinados pela irreversibilidade termodinâmica do calor. Deste modo, para evitar a perda de energia e identificação com o entorno, possibilitando a construção de complexidade, seria necessário um contínuo intercâmbio do sistema com o entorno. Utilizando-se de uma linguagem mais formal, afirma Luhmann que “os sistemas abertos transformam inputs em outputs segundo a medida de uma função de transformação” (LUHMANN, 2005, p. 97). Esta função de transformação produz um benefício duplo, tanto em favor da sua própria conservação quanto ao nível de complexidade alcançada na evolução. (LUHMANN, 2005, p. 97)

A atual teoria dos sistemas operativamente fechados não contradiz de todo esse entendimento, apenas rearranja algumas conceituações. A teoria dos sistemas fechados avança ao afirmar que, para que o sistema construa sua complexidade, é necessário o fechamento operacional. (LUHMANN, 2005, p. 98)

Esclarece Luhmann (2005, p. 99-100) o que entende por sistema operativamente fechado:

Por operativamente fechado devem definir-se os sistemas que, para a produção de suas próprias operações, remetem-se à rede de suas próprias operações e neste sentido se reproduzem a si mesmos. Com uma formulação um pouco mais livre se poderia dizer: o sistema deve pressupor-se a si mesmo para por em marcha mediante operações suas sua própria reprodução no tempo; ou com outras palavras: o sistema produz operações próprias antecipando e recorrendo a operações próprias e, desta maneira, determina o que pertence ao sistema e o que pertence ao entorno. 

O conceito de autopoiese lança, portanto, nova luz sobre os problemas da relação entre estrutura e operação, norma e ação ou regra e decisão. O conceito de autopoiese afirma que só existem elementos e estruturas no sistema na medida em que esta se mantém constante.

1.2 Comunicação, Sentido e Evolução Semântica

Como consequência da autopoiese, só é possível formar os sistemas sociais por meio da comunicação em meio do sentido, que se produz tão só no momento em que as operações o determinam, nem antes, nem depois. “O sentido é, então, um produto das operações que o usam e não uma qualidade do mundo devido a uma criação, fundação ou origem”. (LUHMANN, 2007, p. 27-28)

Trazendo essa ideia para o direito, este passa a ser entendido como o produto da comunicação realizada por uma comunidade de intérprete; direito é comunicação e não um dever-ser logicamente estruturado nem um caso especial do discurso prático geral (razão).

Entendemos a semântica como sendo o patrimônio conceitual da sociedade, sendo possível defini-la com referência ao conceito de sentido, isto é, o conjunto de formas utilizáveis para a função de seleção dos conteúdos de sentido que surgem da sociedade ou ainda com referência ao conceito de comunicação, podendo ser entendida como a reserva de temas que se conserva a disposição para emissão da comunicação, isto é, o patrimônio de ideias que tem importância do ponto de vista comunicativo. Em síntese, “a semântica é aquela parte de significados de sentido condensados e reutilizáveis que está disponível para a emissão da comunicação”. (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 143-144)

Variação não significa apenas mudança – porque isso já seria evolução – mas também a elaboração de uma variante para uma possível seleção. De forma semelhante – no contexto da teoria da evolução – seleção não indica simplesmente o puro fato de que algo aconteça-assim-e-não-de-outra-maneira. O conceito indica seleção originada como conseqüência de uma variação que acontece no sistema. Trata-se, então, de conceitos em correspondência, que não encontram aplicação fora da teoria da evolução.

Justamente este estar imanente, referido de sua distinção diretriz, é o que dá forma ao conceito de evolução. (...) A variação produz uma diferença, um desvio do que seria usual. Esta diferença obriga a fazer uma seleção a favor ou contrária à inovação. (LUHMANN, 2007, p. 355-356)

A própria comunicação pressupõe sistemas do entorno inquietos, que se vão colocando em estados diferentes a todo o momento. Dito de outra forma, “a comunicação está preparada para a irritação constante por parte de seu entorno” (LUHMANN, 2007, p. 77), possibilitando a relação entre variação, seleção e estabilização, pensada numa relação circular e não com base em uma causalidade linear. Isto significa que não se pretende aclarar de maneira histórica-causal como o conceito de direito subjetivo chegou ao atual patamar comunicacional, mas investigar que significados de sentido condensados estavam disponíveis para a emissão da comunicação em dados momentos históricos.

Como dito introdutoriamente, a unidade do sistema só se produz e reproduz por meio de operações do sistema. Ocorre que a relação entre o subsistema do direito e o sistema da sociedade se dá de forma ambígua, por um lado, a sociedade é entorno do sistema direito; por outro, todas as operações do sistema jurídico se efetuam dentro da sociedade, sendo, portanto, operações da sociedade. Nas palavras do próprio Luhmann (2005, p. 88-89):

O sistema jurídico realiza a sociedade quando se diferencia dela. Dito de outra maneira, o direito com suas operações (que são operações sociais) introduz um corte na sociedade e com ele se configura um entorno específico do direito, interno à sociedade. Como resultado deste corte, pode-se perguntar como se exercem as influências desse entorno social específico sobre o direito, sem que isto conduza a que direito e sociedade já não se diferenciem.

Transcendendo a polêmica entre estruturalistas e teóricos lingüistas, Luhmann afirma que “na comunicação não se pode prescindir nem das operações comunicativas nem das estruturas” (LUHMANN, 2005, p. 91). Também a comunicação não se reduz à ação comunicativa incluindo, igualmente, a informação e o ato de entender. A teoria dos sistemas é a que melhor respeita tais especificidades, reconhecendo a existência de uma relação circular entre estrutura e operação, uma vez que as estruturas só podem criar e modificar por intermédio daquelas operações que, por sua vez, especificam-se diante das estruturas (LUHMANN, 2005, p. 91).

O elemento constitutivo dos sistemas sociais, portanto, é a comunicação, definida como síntese de três seleções: informação, dar-a-conhecer e compreender (LUHMANN, 1992, p. 151-186). Tais componentes da comunicação se pressupõem mutuamente, não podendo fixar suas externalizações de maneira ontológica, como se fossem atributos do mundo (LUHMANN, 2007, p. 50).

Cada um dos componentes da comunicação é um acontecimento contingente. A informação é uma diferença que transforma o estado de um sistema, que produz uma diferença. Então porque uma determinada informação e não outra influi em um sistema? Também é improvável que, além da preferência por uma determinada informação, esta se dê-a-conhecer e, por último, porque alguém deveria prestar atenção à maneira como o outro dá-a-conhecer, esforçando-se para compreendê-la e orientando seu comportamento pela informação dada-a-conhecer? Se cada um desses elementos isoladamente são improváveis, ainda mais improvável é a própria comunicação (LUHMANN, 2007, p. 146).

Por isso, mesmo ao tentar retomar à história dos conceitos jurídicos, não nos deixemos iludir pela tentadora ideia de que as identidades são produtos da descoberta da coisa em si, posta e acabada no mundo. Não olvidemos que as identidades têm apenas a função de ordenar as recursões de tal maneira, que em todo processamento de sentido possa recuperar-se e antecipar-se o que é utilizado reiteradamente. Isto exige a condensação seletiva e a generalização que corrobora com a ideia de que aquilo que se distingue do outro pode designar-se como o mesmo (LUHMANN, 2007, p. 29).

Sendo assim, na medida em que as recursões remetem a algo passado, ou seja, ao sentido já conhecido, remetem unicamente a operações contingentes, cujos resultados estão disponíveis na atualidade, ou seja, não remetem a origens fundantes. E na medida em que remetem ao futuro, enviam a possibilidade de observações infinitamente numerosas ao mundo como realidade virtual – que não se pode saber se será alimentada por sistemas (e quais sistemas) através de operações de observação. Desta maneira, o sentido nada mais é do que uma forma de operação histórica, e só sua utilização enlaça o surgimento contingente e a indeterminação de aplicações futuras (LUHMANN, 2007, p. 30).

O conceito de contingência representa, de certa forma, um respeito às alternativas possíveis, quer dizer, a contingência indica que: o que é atual também se faz possível de outras maneiras. A contingência indica, portanto, a possibilidade de que um dado seja diferente do que é já que esse “é” deriva de uma seleção que determina seu não ser como ser de outras possibilidades. Contingência em última análise, significaria a possibilidade de desilusão e necessidade de correr riscos. Na dimensão social, este problema se manifesta como dupla contingência, isto porque, para cada Ego, alter é um alter ego, imprevisível e capaz de variar. “A dupla contingência é o problema basal da ordem social: o problema da coordenação das seleções, imprevisíveis e contingentes, de um ego e de um alter que se observam reciprocamente” (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 68). Isto porque, a comunicação vai de alter para ego, o primeiro dando-a-conhecer algo, para que assim ego possa entender e aceitar ou rechaçar.

Esta unidade basal se alcança por abstração, apesar de que a dupla contingência se constrói sempre como círculos e de que a comunicação se produz como unidade de informação, dar-a-conhecê-la e entendê-la em entrelace recursivo com outras comunicações. (LUHMANN, 2007, p. 261)

Como pretendemos demonstrar no decorrer do texto, o uso da linguagem sempre atualiza também o âmbito de seleção e, desse modo, inclui-se o excluído, aquilo que não se disse. Não sendo possível prescindir do fato de que todas as formas de sentido têm um lado oposto que inclui o que – no momento de serem utilizadas – se exclui. Por isso, tomaremos em consideração o que se exclui através do conceito de sentido, bem como por intermédio do conceito de forma (do conceito matemático de re-entry da forma na forma) e, de maneira central, através de uma abordagem da teoria baseada na diferença. (LUHMANN, 2007, p. 21-23)

O conceito de re-entry é adotado para descrever a capacidade dos sistemas autopoiéticos diferenciados com base em uma específica distinção, de reintroduzir tal distinção em seu interior e utilizá-la para a estruturação das próprias operações. “O problema da re-entry é precisamente a diversidade do igual, a necessidade de tratar a mesma distinção como se fosse uma distinção diferente” (CORSI; ESPOSITO; BARALDI, 1996, p. 135). A diferença sistema/entorno, por exemplo, se dá duas vezes: como “distinção produzida pelo sistema e como distinção observada no sistema”. (LUHMANN, 2007, p. 28)

Em síntese, partimos do pressuposto de que sem fazer uso do sentido nenhuma operação da sociedade pode surgir, pois este se produz exclusivamente como sentido das operações que o utilizam, “se produz tão só no momento em que as operações o determinam, nem antes, nem depois”. O sentido é, então, um produto das operações que o usam e não uma qualidade do mundo devido a uma criação, fundação ou origem. Crer na existência de identidades que perduram no tempo é uma autoilusão dos sistemas que formam sentido. (LUHMANN, 2007, p. 27-28)

Ao aceitarmos essa concepção teórica abandonamos a concepção de um mundo pré-existente de coisas, substâncias, ideias, bem como de um conceito de mundo universalista. Para os sistemas de sentido, “o mundo não é mecanismo imerso que produz estados de coisas a partir de outros estados de coisas, e que com isso determina os próprios sistemas”. Na realidade, afirma Luhmann, “o mundo é um potencial de surpresas ilimitadas”. (LUHMANN, 2007, p. 29)

Pressupomos, como já dito, que a possibilidade de reconstruir divisões históricas se dá exclusivamente em razão da evolução socioestrutural, ou seja, em razão da prevalência de certos tipos de diferenciação, que podem coordenar-se com determinadas formas semânticas. A evolução das ideias, neste contexto, depende, em seu mecanismo seletivo, da plausibilidade, podendo ganhar um potencial crítico ou inovador, ou ainda, seguir a sua própria tradição, mesmo que obsoletas, como por exemplo, a ideia de que se vive em uma sociedade estratificada com transições lineares entre “acima” e “abaixo”. Isso significa que a semântica não é forte o suficiente para produzir divisões de épocas, mas “observa – com distinções próprias, construtiva e reconstrutiva, incluindo conceitos de época como ‘moderno’, ou com divisões como Antiguidade/Idade Média/Modernidade – o que se produz na autopoiese da sociedade”. (LUHMANN, 2007, p. 439)


4. Conclusão

Em síntese, nossa proposta é a de que o cientista do direito não atue como o personagem de Bosh, lembrado por Maturana e Varela, que tenta aprisionar o Cristo na obra “Cristo coroado de espinhos”, fixando sua perspectiva, com a tentação da certeza. Tal compromisso, sabemos, não representa tarefa das mais fáceis, vez que tendemos a viver num mundo de certezas e de solidez, “em que nossas convicções provam que as coisas são somente como as vemos e não existe alternativa para aquilo que nos parece certo. Essa é nossa situação cotidiana, nossa condição cultural, nosso modo habitual de ser humanos” (MATURANA E VARELA, 2001, p. 22).

Contudo, sem que se suspenda esse hábito de pensar: “mas eu sei, já o sei”, não é possível comunicar nada que fique incorporado à experiência como uma compreensão efetiva do fenômeno do conhecimento (MATURANA E VARELA, 2001, p. 22).

O chamado fenômeno do conhecimento, ao ser estudado de perto, demonstra que toda experiência cognitiva inclui aquele que conhece de um modo pessoal, “enraizado em sua estrutura biológica, motivo pelo qual toda experiência de certeza é um fenômeno individual cego em relação ao ato cognitivo do outro, numa solidão que (como veremos) só é transcendida no mundo que criamos junto com ele” (MATURANA E VARELA, 2001, p. 22).

Levando em consideração a ideia de que a certeza é um fenômeno individual, que depende da estrutura biológica e social de cada ser humano, a aparente solidez de nosso mundo experiencial se torna rapidamente suspeita quando o observamos de perto, nas palavras de MATURANA e VARELA:

(...) quando examinamos mais de perto como chegamos a conhecer esse mundo, descobrimos sempre que não podemos separar nossa história das ações – biológicas e sociais – a partir das quais ele aparece para nós. O mais óbvio e o mais próximo são sempre difíceis de perceber (2001, p. 28).

Essa perspectiva de Matura e Varela, que adicionamos à guisa de conclusão, é de uma sinceridade incômoda, pois sempre nos parece difícil abrir mão das certezas que nos rodeiam, do mundo exterior fixo, seguro, universal, da coisa em si, ao mesmo tempo em que não nos é possível negar a verdade da afirmação de que “o mais óbvio e o mais próximo são sempre difíceis de perceber”. Como se portar e como conviver com as incertezas é questionamento difícil de ser respondido, e pretendemos apenas iniciar o debate com esses escritos e não apresentar uma resposta pronta e acabada.

Uma coisa que nos parece clara é a afirmação de que não se pode tomar o fenômeno do conhecer como se houvesse objetos ou fatos fora do observador, que apenas os apreende e introduz na cabeça. “A experiência de qualquer coisa lá fora é validada de uma maneira particular pela estrutura humana, que torna possível ‘a coisa’ que surge na descrição”. Ou seja, ao mesmo tempo em que há a experiência com o objeto, há a própria criação do objeto. Essa circularidade entre ação e experiência nos diz que “todo ato de conhecer faz surgir um mundo”, raciocínio que desemboca na ideia de que: “todo fazer é um conhecer e todo conhecer é um fazer” (MATURANA e VARELA, 2001, p. 31-32).

É válido salientar que a experiência não se restringe apenas ao plano físico, mas às várias dimensões do viver, aplicando-se em particular à linguagem. Toda reflexão ocorre necessariamente na linguagem, por isso ela é “nosso ponto de partida, nosso instrumento cognitivo e nosso problema”. Na linguagem, não podemos esquecer, também está presente a circularidade entre ação e experiência, ou seja, “tudo o que é dito é dito por alguém”. Um mundo surge a cada reflexão que é feita, ou seja, a reflexão é um fazer humano, realizado por alguém em particular em um determinado lugar (MATURANA e VARELA, 2001, p. 32).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMOS, Chiara. O direito como comunicação produzida por um sistema autopoiético. introdução aos conceitos da teoria sistêmica luhmanniana.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4015, 29 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29639. Acesso em: 28 mar. 2024.