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Garantia contratual e revisão de veículos automotores

um meio eficaz de lesar os consumidores

Garantia contratual e revisão de veículos automotores: um meio eficaz de lesar os consumidores

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É desnecessário o instituto da garantia contratual no âmbito do Direito do Consumidor, sendo suficiente a garantia legal baseada no critério da vida útil do bem como meio apto à proteção do consumidor.

Sumário: 1. Introdução – 2. Garantia contratual: 2.1. A garantia contratual no Código Civil de 2002: 2.1.1. Vícios redibitórios; 2.2.2. Garantia legal; 2.3.3. Garantia contratual; 2.2. A garantia contratual no Código de Defesa do Consumidor: 2.2.1. Vícios e defeitos dos produtos e dos serviços; 2.2.2. Garantia legal: o critério da vida útil do bem; 2.2.3. A garantia contratual e o paradoxo da “importação”; 2.2.4. A garantia estendida – 3. Revisão de veículos automotores: 3.1. Concepção mercadológica; 3.2. Concepção ético-social; 3.3. Concepção jurídica: 3.3.1. Natureza jurídica; 3.3.2. A gratuidade como decorrência lógica do sistema consumerista; 3.3.3. O problema da obsolescência programada – 4. Garantia contratual e revisão de veículos automotores: 4.1. A suposta relação de condicionalidade; 4.2. O enquadramento jurídico: venda casada ou cláusula contratual abusiva – 5. Considerações finais.


1. Introdução

Prescinde-se de maior esforço investigativo para se concluir que o Brasil tem uma das maiores frotas de veículos automotores do planeta. Para tanto, é suficiente tentar transitar por algumas das principais cidades brasileiras, a exemplo de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Goiânia, Salvador ou Recife.

Os números também falam por si. Segundo dados do Departamento Nacional de Trânsito – Denatran, o país fechou 2011 com cerca de 70,5 milhões de veículos, entre automóveis, comerciais leves, caminhões, carretas e motocicletas. Em 2012, o número saltou para pouco mais de 76 milhões, sendo 42 milhões só de automóveis[1].

Não é à toa, portanto, que o Brasil é hoje o quarto maior mercado de carros do mundo, com aquisição pelo consumidor final, só no ano de 2012, de mais de 3,6 milhões de carros de passeio e veículos leves[2]. Com isso, o mercado automobilístico brasileiro está atrás apenas de China, Estados Unidos e Japão e à frente de países como Alemanha, Índia, Rússia, Grã-Bretanha, França e Canadá.

Aliás, o resultado não poderia ser diverso, porque o próprio governo doméstico vem intervindo no setor econômico, a fim de incentivar, com vigor, a aquisição de veículos novos, por meio da redução da alíquota do IPI – Imposto sobre Produtos Industrializados, com o objetivo de alavancar a indústria e impedir o desemprego.

Com isso, além do (i) efeito nefando para o meio ambiente, notadamente em termos de poluição ambiental; (ii) do aumento do número de acidentes de trânsito; (iii) do incremento dos engarrafamentos; e (iv) da intransitabilidade de muitas cidades brasileiras – todas consequências que não serão objeto direto do presente estudo –, concluímos que no Brasil existem dezenas de milhões de consumidores de veículos automotores, especialmente de passeio, os quais, de forma mercadologicamente cíclica, demandarão, por sua vez, outros setores da economia, como os de combustíveis e assistência técnica.

No que diz respeito a esse último aspecto – o da assistência técnica –, especificamente quando prestada pelas próprias concessionárias ou seus autorizados, na modalidade de revisão de veículos automotores, verifica-se uma deletéria relação, no âmbito das relações de consumo, com a garantia contratual. Mas, antes de demonstrá-la, mister bosquejar algo acerca desse secular instituto jurídico.


2. Garantia contratual

2.1. A garantia contratual no Código Civil de 2002

2.1.1. Vícios redibitórios

A garantia contratual ou convencional é categoria jurídica típica do direito civil, onde as relações contratuais ocorrem entre partes presumidamente iguais, ao contrário das relações jurídicas consumeristas, marcadas que são pela nota da desigualdade, já que o consumidor se encontra em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica, fática (socioeconômica) ou informacional, como ensina Cláudia Lima Marques[3].

O conceito de garantia contratual depende, porém, da compreensão do que seja a garantia legal, sendo que ambas estão intimamente relacionadas com a noção de vícios redibitórios nos contratos comutativos - aqueles onerosos em que as prestações são certas, determinadas e equivalentes e que se opõem aos contratos aleatórios.

Os vícios redibitórios encontram previsão no art. 441 do Código Civil:

Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”.

Segundo abalizada abordagem doutrinária de Maria Helena Diniz[4] os vícios redibitórios são:

“defeitos ocultos existentes na coisa alienada, objeto de contrato comutativo, não comuns às congêneres, que a tornam imprópria ao uso a que se destina ou lhe diminuem sensivelmente o valor, de tal modo que o ato negocial não se realizaria se esses defeitos fosses conhecidos, dando ao adquirente ação para redibir o contrato ou para obter abatimento de preço”.

2.1.2. Garantia legal

Já a garantia legal está estampada no art. 445 do mesmo diploma legal:

Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade. § 1º Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis. § 2º Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais, aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a matéria”.

Isso significa que o adquirente de um bem, em contrato comutativo, terá, como garantia legal (art. 445 do Código Civil), o prazo decadencial de trinta dias, se a coisa é móvel, e de um ano, se imóvel, a contar em regra da tradição, para fazer uso das ações edilícias – redibitória ou estimatória (quanti minoris), conforme o caso.

Se o vício oculto, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, fixa a lei civil o limite temporal para o seu aparecimento, sendo de cento e oitenta dias para móveis e de um ano para imóveis. Na verdade, para certa corrente[5], essa é a verdadeira garantia legal – não se confundindo, pois, com o prazo decadencial para o exercício das ações edilícias –, consistindo no interstício mínimo, anterior ao lapso decadencial, durante o qual a responsabilidade pelo aparecimento do vício oculto será imputada ao alienante.

Essa diferença seria mais facilmente notada a partir da análise do art. 618 do Código Civil, que cuida do contrato específico de empreitada:

Art. 618. Nos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis, o empreiteiro de materiais e execução responderá, durante o prazo irredutível de cinco anos, pela solidez e segurança do trabalho, assim em razão dos materiais, como do solo. Parágrafo único. Decairá do direito assegurado neste artigo o dono da obra que não propuser a ação contra o empreiteiro, nos cento e oitenta dias seguintes ao aparecimento do vício ou defeito”.

Alega-se, assim, que a garantia legal é anterior ao prazo decadencial e com este não se confunde, já que o empreiteiro é responsável, durante cinco anos (garantia legal), pelo vício oculto que vulnere a adequação, solidez e segurança da obra, inclusive quanto aos materiais e ao solo, devendo o dono da obra exercer seu direito potestativo no prazo de cento e oitenta dias após o aparecimento do vício (prazo decadencial).

Todavia, parta da doutrina caminha no sentido de que o prazo decadencial, ainda quando não antecedido de prazo especial de garantia, representa, de per si, garantia legal, porquanto a cognição do vício oculto, durante o seu curso, gestaciona igualmente o direito à redibição ou ao abatimento do preço[6].

Vale dizer que o conhecimento do vício não é exigido no momento da tradição, podendo aparecer em qualquer dia do prazo decadencial; afinal, se o fosse – e considerando que a tradição é, em geral, simultânea ao próprio negócio jurídico –, não representaria vício oculto, mas aparente, o qual não dá ensejo às ações edilícias no direito civil.

Desse modo, conclui-se que a garantia legal é o prazo especial ou decadencial mínimo estabelecido pela própria lei durante o qual o lesado por vício redibitório (oculto) poderá fazer uso do seu direito à redibição do contrato ou ao abatimento de preço.

2.1.3. Garantia contratual

Por fim, a garantia contratual recebeu o seguinte tratamento:

Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”.

Com isso, a par da garantia legal:

Podem os contraentes, no entanto, ampliar convencionalmente o referido prazo. É comum a oferta de veículos, por exemplo, com prazo de garantia de um, dois ou mais anos. (...) Essa cláusula de garantia é, pois, complementar da garantia obrigatória e legal, e não a exclui. Em síntese, haverá cumulação de prazos, fluindo primeiro o da garantia convencional e, após, o da garantia legal. Se, no entanto, o vício surgir no curso do primeiro, o prazo para reclamar se esgota em trinta dias seguintes ao seu descobrimento. Significa dizer que, mesmo havendo ainda prazo para a garantia, o adquirente é obrigado a denunciar o defeito nos trinta dias seguintes ao em que o descobriu, sob pena de decadência do direito[7].

Assim, a garantia contratual consiste no prazo adicional, anterior e complementar à garantia legal que, uma vez convencionado pelas partes, objetiva aumentar a proteção do adquirente de um bem quanto ao aparecimento de vícios redibitórios (ocultos).

2.2. A garantia contratual no Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990)

2.2.1. Vícios e defeitos dos produtos e serviços

O direito consumerista apresenta duas ordens de preocupações: a incolumidade físico-psíquica e a incolumidade econômica do consumidor. Daí a possibilidade de dois tipos de vícios: vícios de qualidade por insegurança e vícios de qualidade por inadequação.

Quanto aos vícios de qualidade por insegurança, eles “poderiam ser conceituados como sendo a desconformidade de um produto ou serviço com as expectativas legítimas dos consumidores e que têm a capacidade de provocar acidentes de consumo[8].

Portanto, o conceito de vício de qualidade por insegurança equivale ao de defeito esboçado pelo CDC:

Art. 12. (...) § 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera (...)”.

Por seu turno, os vícios de qualidade por inadequação são aqueles em que “o elemento básico é a carência – total ou parcial – de aptidão ou idoneidade do produto ou serviço para a realização do fim a que é destinado[9]. Significa que não é relevante para o conceito de vício de qualidade por inadequação a aptidão do produto ou serviço para provocar danos à saúde do consumidor – registre-se que, se houver potencialidade de dano à saúde, a hipótese é de vício de qualidade por insegurança.

Os vícios de qualidade por inadequação ou simplesmente vícios – em oposição a defeitos ou vícios de qualidade por insegurança –, são os arrolados no caput do art. 18 do CDC:

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas”.

São, assim, de três espécies: i) vício que torne o produto impróprio ao consumo; ii) vício que lhe diminua o valor; iii) vício decorrente da disparidade das características dos produtos com aquelas veiculadas na oferta e publicidade.

Essa última variante de vício de qualidade por inadequação – o da desconformidade com a oferta ou a publicidade –, que encerra inovação do direito do consumidor em relação aos vícios redibitórios do direito civil, é assim analisada por Paulo Luiz Netto Lôbo[10]:

Nesta espécie de vício, o produto ou o serviço não apresentam defeito intrínseco. O vício é configurado objetivamente pela desconformidade entre os dados do rótulo, da embalagem, ou da mensagem publicitária, e os efetivamente existentes. Não há necessidade de demonstrar a impropriedade ou a inadequação do produto ou serviço ao uso a que se destinam ou mesmo a diminuição de valor. Basta a desconformidade (ou disparidade) entre o anunciado e o existente adquirido ou utilizado”.

Anote-se que, para o sistema consumerista, ao contrário do civil, não se exige que o vício de qualidade por inadequação (ou simplesmente vício) seja grave. É que, conforme o magistério de Odete Novais Carneiro Queiroz[11]:

Dispensa-se no Código de Defesa do Consumidor a característica da gravidade do vício, uma vez criado um regime de responsabilidade por vício de qualidade, por impropriedade ou inadequação, bastando que tal produto se apresente viciado para ser suscetível de garantia”.

No mesmo sentido, Paulo José Scartezzini Guimarães[12], para quem não “só os vícios graves caracterizarão o cumprimento imperfeito, mas também aqueles de menor importância, desde que não sejam insignificantes”.

2.2.2. Garantia legal: o critério da vida útil do bem

Na sistemática consumerista, a garantia legal está estampada no art. 26 do CDC:

Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços”.

Se no sistema do Código Civil a matéria acerca da contagem dos prazos da garantia legal e contratual é pacífica – por força do art. 446, segundo o qual o prazo da primeira não corre em havendo cláusula da segunda –, há, todavia, significativa divergência sobre o tema no direito consumerista.

A propósito, é possível identificar pelos menos quatro correntes:

1ª corrente: primeiro corre o prazo da garantia legal e depois da garantia contratual. Referida teoria se baseia em interpretação literal do art. 50 do CDC, de acordo com o qual a garantia contratual é complementar à legal.

2ª corrente: ambos os prazos correm simultaneamente. É que, consoante Cláudia Limas Marques[13]:

se há garantia contratual (express warranty) e esta foi estipulada para vigorar a partir da data do contrato (termo de garantia), as garantias começam a correr juntas, pois a garantia legal nasce necessariamente com o contrato de consumo, com a entrega do produto, sua colocação no mercado de consumo. Ao consumidor é que cabe escolher de qual delas fará uso. Pode usar a garantia contratual, porque lhe é mais vantajosa, no sentido de não ter de arguir que o vício já existia à época do fornecimento. Mas pode usar a garantia legal, porque, por exemplo, o vício se localiza no motor do produto (geladeira), que não está incluído na garantia contratual, ou porque o consumidor se interessa em redibir o contrato e adquirir outro produto de marca diferente”.

3ª corrente: primeiro corre o prazo da garantia contratual e depois o da garantia legal. É a posição adotada pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual:

O prazo de decadência para a reclamação de vícios do produto (art. 26 do CDC) não corre durante o período de garantia contratual, em cujo curso o veículo foi, desde o primeiro mês de compra, reiteradamente apresentado à concessionária com defeitos. Precedentes[14].

4ª corrente: utiliza apenas a garantia legal, negando utilidade à garantia contratual, com base no critério da vida útil do bem, no atinente aos vícios ocultos. Para seus defensores, como Leonardo Roscoe Bessa[15]:

o art. 50 do CDC não deve ser interpretado no sentido de que os prazos de garantia legal e contratual devem ser somados. Para proteger os interesses patrimoniais e morais do consumidor em relação a vícios ocultos dos produtos, basta utilizar o critério da vida útil dos produtos”.

No mesmo sentido é o escólio de José Carlos Maldonado de Carvalho[16]:

De fato, dúvidas não há de que o critério de vida útil do produto ou do serviço, cujo prazo venha a ser fixado, no caso concreto, pelo juiz, de acordo com as regras ordinárias de experiência, melhor atende aos interesses dos consumidores, sempre a parte mais fraca na relação de consumo”.

De certo modo, é também o pensamento em ascensão no Superior Tribunal de Justiça (REsp nº 984.106, já citado), muito embora ainda sem a posição radical de desconsiderar por completo o instituto da garantia contratual.

Veja-se trecho do voto do relator:

Nesse passo, os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente veio a se manifestar depois de expirada a garantia, como é o caso de edifícios de estruturas frágeis que ruínam a partir de certo tempo de uso, mas muito antes do que normalmente se esperaria de um empreendimento imobiliário, de modo a ficar contrariada a própria essência do que seja um "bem durável". Nessa categoria de vício intrínseco certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até então. Um eletroeletrônico, por exemplo, mesmo depois do seu prazo contratual de garantia, não é feito para explodir, de modo que se tal acidente ocorrer por um erro de concepção nascido ainda na fabricação do produto - e não em razão do desgaste natural decorrente do uso -, é ele defeituoso, independentemente do término do prazo de garantia”.

Essa última corrente – a da garantia legal a partir do critério da vida útil do bem – assenta-se na interpretação sistemática das normas sobre o consumidor.

De início, parte-se do pressuposto de que a proteção do consumidor tem sede constitucional, configurando verdadeiro direito fundamental (art. 5º, XXXII, da Constituição Federal).

Segundo Alexandre de Moraes[17]:

Tratando-se de novidade constitucional em termos de direitos individuais, o inciso XXXII do art. 5º da Constituição Federal de 1988 demonstra a preocupação do legislador constituinte com as modernas relações de consumo e com a necessidade de proteção do hipossuficiente economicamente”.

Em seguida, constata-se que o CDC blindou os consumidores contra os vícios de qualidade por insegurança (art. 12) e os vícios de qualidade por inadequação (art. 18), constituindo o fornecimento de produto ou serviço que não atenda aos requisitos de qualidade ou quantidade dos produtos ou serviços verdadeiro inadimplemento contratual, não só pela transgressão da literalidade da lei, como também por inobservância dos deveres anexos da cláusula geral de boa-fé objetiva, notadamente em termos de informação e lealdade[18]. É o que, hodiernamente, se nomina violação positiva do contrato[19].

Assim é que observa Cláudia Lima Marques[20]:

Se o vício é oculto, porque se manifesta somente com o uso, experimentação do produto ou porque se evidenciará muito tempo após a tradição, o limite temporal da garantia legal está em aberto, seu termo inicial, segundo o § 3º do art. 26, é a descoberta do vício. Somente a partir da descoberta do vício (talvez meses ou anos após o contrato) é que passarão a correr os 30 ou 90 dias. Será, então, a nova garantia eterna? Não, os bens de consumo possuem uma durabilidade determinada. É a chamada vida útil do produto”.

Semelhantemente, ensina Antônio Herman Benjamin[21] que, diante “de um vício oculto, qualquer juiz vai sempre atuar casuisticamente. Aliás, como faz em outros sistemas legislativos. A vida útil do produto ou serviço será um dado relevante na apreciação da garantia”.

E fecha o ciclo constitucional o professor Leonardo Roscoe Bessa[22]:

O critério da vida útil confere coerência ao ordenamento jurídico e prestigia o projeto constitucional de defesa do consumidor, considerando sua vulnerabilidade no mercado de consumo. O diálogo das fontes, na hipótese, aponta para a necessidade de congruência entre o CC/2002 e o CDC, o que conduz a uma proteção maior do consumidor, ao projeto constitucional de defesa do sujeito frágil (vulnerável). Esta tutela mais intensa, em relação aos prazos decadenciais, só é possível pelo critério da vida útil dos produtos e serviços. Desse modo, mantém-se a desejada e necessária coerência do ordenamento jurídico, prestigiando-se, em última análise, o princípio da isonomia, o qual, como se sabe, rejeita o tratamento igualitário para situações diferentes. O consumidor, sujeito concreto e diferente (frágil), requer tratamento mais favorável”.

2.2.3. A garantia contratual e o paradoxo da “importação”

A garantia contratual foi incorporada às relações consumeristas – nas quais o produto ou serviço são adquiridos por destinatário final ou por alguém em situação de vulnerabilidade técnica, jurídica, fática (socioeconômica) ou informacional, nesse caso na perspectiva da teoria do finalismo aprofundado –, com o presumido objetivo de ser mais um mecanismo em favor do consumidor.

Com efeito, dispõe o art. 50 do CDC:

Art. 50. A garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito. Parágrafo único. O termo de garantia ou equivalente deve ser padronizado e esclarecer, de maneira adequada em que consiste a mesma garantia, bem como a forma, o prazo e o lugar em que pode ser exercitada e os ônus a cargo do consumidor, devendo ser-lhe entregue, devidamente preenchido pelo fornecedor, no ato do fornecimento, acompanhado de manual de instrução, de instalação e uso do produto em linguagem didática, com ilustrações”.

Aliás, tamanha a força da ideia incorporadora, que o CDC tipifica como crime deixar de entregar ao consumidor o termo de garantia adequadamente preenchido e com especificação clara de seu conteúdo, cominando pena de um a seis meses de detenção e multa (art. 74).

Contudo, os resultados não são alvissareiros. Primeiro porque o prazo da garantia contratual é fixado de modo unilateral pelo fornecedor, inexoravelmente no bojo de contrato de adesão, sem qualquer possibilidade de interferência do consumidor; segundo porque o fornecedor não vem cumprindo o seu dever legal de correta informação (art. 6º, III, CDC), no sentido de esclarecer o consumidor sobre a circunstância de que a garantia contratual não se confunde com a garantia legal.

Desse último aspecto resulta que o consumidor, em seu estágio quase invariável de vulnerabilidade, tem por ética ou jurídica a convenção mercadológica segundo a qual os vícios ou defeitos de produtos ou serviços fornecidos em relação de consumo são imputáveis ao fornecedor tão somente na exata medida em que verificados no curso do prazo de garantia contratual. É dizer, ignorando inclusive a garantia legal (art. 26, CDC), a massa de consumidores foi educada, condicionada e instrumentalizada pelo mercado, que aspira por inculcar-lhes a falsa ideia de que a única garantia possível e imaginável é aquela entabulada no respectivo contrato de consumo. Ultrapassado o prazo desta, deduz o consumidor, automaticamente, que a única solução possível que se lhe afigura é arcar sozinho com o ônus, mesmo que ainda em curso a garantia legal.

Veja-se este exemplo, que muito provavelmente está ocorrendo neste momento em alguma loja país afora: o consumidor compra uma roupa no departamento físico da empresa e é informado de que o prazo de troca da mercadoria é de sete dias (espécie de garantia contratual). Ao chegar a casa, ele guarda a vestimenta e, após dez dias, torna a pegá-la para fins de uso. Então, ao vesti-la, descobre que está rasgada. Ao procurar o fornecedor, é comunicado de que seu prazo expirara há três dias. Ademais, não é de todo improvável que o atendente lhe atribua a falha na veste ou afirme que o consumidor é que foi negligente na escolha, por não ter detectado o vício, em completa inversão do sentido da vulnerabilidade. Como isso é a praxe do mercado e muitos vizinhos – também vítimas – já o haviam avisado de que não seria possível a troca em razão da perda do prazo da garantia contratual, é significativa a chance de que o consumidor em questão assuma solitariamente os prejuízos, muito embora ainda esteja em curso o prazo da garantia legal de noventa dias (art. 26, II, CDC). Tudo isso sem sequer adentrar-se o mérito da possibilidade de soma das garantias (art. 50, CDC).

E o que dizer da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem? Ora, se o consumidor mal conhece a garantia legal expressa na lei (art. 26, I e II, CDC), a fortiori, desconhecerá por completo a garantia legal implícita (art. 26, § 1º, CDC), só cognoscível por efeito de elaborada construção doutrinária e vagaroso assentamento jurisprudencial. Aliás, segundo Boaventura de Sousa Santos (Introdução à Sociologia da Administração da Justiça, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 21, novembro de 1986):

"Caplowitz (1963), por exemplo, concluiu que quanto mais baixo é estrato social do consumidor maior é a probabilidade que desconheça os seus direitos no caso de compra de um produto defeituoso". 

Some-se a isso uma terceira causa – talvez a mais preocupante – para o insucesso da garantia contratual como instrumento de proteção do consumidor. Trata-se do fato de aquela garantia ter se convolado, em certos setores do mercado – como o automotivo, por exemplo –, em eficiente (como meio) e eficaz (quanto ao resultado) instrumento de intimidação do consumidor, obrigando-o a submeter-se rotineiramente, a título de alegada manutenção do produto ou serviço, a procedimentos de assistência técnica – não raro desnecessários, mas cujos preços são sabidamente escorchantes –, como conditio sine qua non para a vigência da garantia contratual. Essa temática, por representar mesmo o nosso próprio objeto de estudo, será aprofundada adiante.

Assim, a aplicação da garantia contratual no direito consumerista conspira contra aquilo que foi inicialmente almejado pelo legislador, seja porque seu prazo de vigência é fixado unilateralmente pelo fornecedor; seja porque o consumidor, à míngua da correta informação do fornecedor, ver nela a única garantia possível, desprezando, por consequência, a garantia legal explícita ou implícita; seja ainda porque a garantia contratual se transformou em poderoso instrumento de coerção da parte vulnerável das relações de consumo, nesse caso atrelada umbilicalmente à assistência técnica periódica, notadamente no setor automobilístico da economia. Em tudo isso consiste o paradoxo da “importação” precipitada da garantia contratual do seio do direito civil – que regula relações entre iguais – para o campo do direito do consumidor – aplicável que é a partes inquestionavelmente desiguais. O instituto, em vez de proteger, desprotege, vulnerando ainda mais o já combalido consumidor.

2.2.4. A garantia estendida

Além da garantia contratual tradicional, o tino mercadológico irrompeu ainda com a já propalada garantia estendida ou adicional.

Nas palavras de Leonardo Roscoe Bessa[23]:

Tem sido cada vez mais frequente no comércio, no momento de aquisição de bens duráveis, principalmente eletrodomésticos e eletroeletrônicos, o oferecimento do que se tem denominado garantia estendida. Pagando-se determinado valor, o estabelecimento comercial estende a garantia de fábrica, normalmente de um ano, para dois ou três anos”.

Não obstante, apesar do atrativo nome, a natureza jurídica da garantia estendida se aproxima mais do conceito de serviço securitário de assistência técnica (seguro), inclusive com pagamento de prêmio pelo consumidor, do que propriamente da ideia inicial do instituto da garantia contratual, que se apresenta, no direito civil, como cláusula negocial inerente ao próprio contrato de alienação, não raro o condicionando – ou seja, o adquirente só realiza o contrato se o alienante comprometer-se a garantir o seu objeto por tempo maior do que o previsto a título de garantia legal dos vícios redibitórios; e mais: geralmente sem preço extra.

A propósito, ambos os instrumentos – a garantia contratual e a garantia estendida – são ontologicamente antagônicos, uma vez que o aumento do prazo de uma acarretará, em tese, a diminuição do prazo da outra. Significa dizer que, se a garantia contratual tiver prazo dilatado, não haverá razão para a contratação da garantia estendida; por outro lado, se a garantia contratual contiver átimo menor, então será interessante para o consumidor, nessa hipótese, aderir à garantia adicional. Não precisa ir longe, todavia, para perceber que, sendo essa última garantia de natureza lucrativa – porque há contraprestação do consumidor, ou seja, o pagamento de preço –, a tendência do mercado será cada vez mais no sentido de diminuir o prazo da garantia contratual, sempre unilateral, para forçar a aquisição, como serviço de seguro, da garantia estendida.

Para quem acredita que a garantia legal baseada no critério da vida útil do bem é suficiente para proteger o consumidor, negando importância inclusive para a garantia contratual tradicional, não existe dúvida de que a garantia estendida ou adicional lhe é também de todo desnecessária.

Nesse norte, arremata o mesmo Leonardo Roscoe Bessa[24]:

Realmente, como já esclarecido, o CDC, independentemente de garantia do fabricante (denominada, também, de garantia contratual), obriga solidariamente todos os fornecedores (tanto o fabricante como o comerciante), em caso de vícios de qualidade (aparentes ou ocultos), a realizarem o reparo do bem, promoverem a substituição do produto por outro (em perfeitas condições de uso), ou darem abatimento proporcional do preço, em razão de eventual diminuição do valor da coisa decorre do defeito, além de indenização por perdas e danos (art. 18, § 1º, do CDC). (...) Ora, justamente em razão do critério da vida útil, a garantia legal, ou seja, aquela que decorre do CDC, pode chegar a dois ou três anos após a data de aquisição do bem, sem necessidade de pagamento de qualquer valor adicional. Portanto, não se vê qualquer vantagem em adquirir a garantia estendida. Se a contagem do prazo para reclamar dos vícios do produto for realizada corretamente – considerando o critério da vida útil –, o CDC já oferece proteção adequada e suficiente aos interesses do consumidor. É incorreto, inclusive, falar-se em extensão de garantia”.

Do exposto, constata-se que a garantia estendida limita-se a ser mais um serviço posto à venda no mercado de consumo, sobre o qual atua poderoso marketing, porém nada tendo que ver com o instituto da garantia contratual, este mesmo despiciendo no seio das relações consumeristas, como decorrência lógica do sistema do CDC.


3. Revisão de veículos automotores

3.1. Concepção mercadológica

A revisão periódica de veículos automotores representa para o mercado um lucrativo serviço posto à disposição dos consumidores, pelo qual estes desembolsam certa quantia em dinheiro, que varia conforme determinados referenciais (marca, modelo, ano de fabricação, quilometragem etc.). No mais das vezes, está também relacionada com a venda de variados produtos, notadamente as chamadas peças de reposição.

Significa dizer que a relação do fornecedor de veículos com o respectivo consumidor não se esgota no negócio jurídico de compra e venda. Ao contrário, este é apenas o começo de um íntimo e constante relacionamento, pelo menos no que depender da vontade do agente econômico, que não disfarça seu desejo de fidelização da clientela. Mas a fidelidade pretendida – e se trata de dado fundamental – é menos direcionada para a aquisição de novos veículos do que para o fornecimento dos produtos e serviços que serão utilizados nos veículos já adquiridos (revisões, trocas de óleos e de pneus, reposição de peças etc.).

O grande interesse na manutenção dos veículos vendidos, como se nota, não decorre da preocupação do alienante em cumprir seu dever de assegurar o uso e a utilidade do produto alienado durante prazo minimamente razoável – o da vida útil do bem –; ao revés, o que o motiva – como não poderia deixar de ser – é exclusivamente o intento de lucro. E essa é a concepção mercadológica da revisão de veículos.

3.2. Concepção ético-social

O mercado engendra e condiciona os comportamentos. Nas palavras do cada vez mais esquecido Karl Marx[25]:

o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.

Assim é que, muito embora os fornecedores de veículos sejam legalmente responsáveis por garantir sua utilidade durante o respectivo prazo de vida útil, são os milhões de consumidores brasileiros que pagam o preço da manutenção dos seus produtos. Verifica-se, desse modo, inequívoca inversão da responsabilidade pela garantia legal, que passa dos fornecedores para os consumidores, a partir de um condicionamento conscientemente imposto pelo mercado e inocentemente aceito pela sociedade.

A revisão de veículos automotores significa, pois, do ponto de vista ético-social, um dever moral e – falsamente – jurídico de pagar pela manutenção do produto, cuja pena, em caso de descumprimento, é a perda da garantia contratual fixada unilateralmente pelo fornecedor.

3.3. Concepção jurídica

3.3.1. A natureza jurídica

Sob a perspectiva jurídica, a revisão de veículos automotores, nos termos em que posta hoje no mercado, pode ser considerada um serviço, a teor do art. 3º, § 2º, do CDC, segundo o qual “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração”. Sem maior esforço reflexivo, percebe-se que essa concepção jurídica se coaduna com a concepção mercadológica, atribuindo a esta juridicidade e, por consequência, legitimidade.

3.3.2. A gratuidade como decorrência lógica do sistema consumerista

Mas essa interpretação da revisão como serviço não é de todo inquestionável. Veja-se que o direito consumerista, como já assentado, caminha, em matéria de proteção do consumidor contra os vícios ocultos dos produtos e serviços, na direção da suficiência da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem. A partir dessa compreensão, a responsabilidade pela manutenção do produto é conferida a quem realmente a detém, ou seja, ao fornecedor, sob pena de responder pelos vícios descobertos durante o prazo de garantia.

Isso porque, nas expressões de Antônio Herman Benjamin[26]:

A durabilidade, apesar de não presente entre as preocupações da teoria dos vícios redibitórios, é um dos princípios que deve orientar o trabalho do aplicador do Código (art. 4º, II, d). É que a teoria da qualidade, funcionando como verdadeira garantia de qualidade, ao lado da adequação e da segurança, também abarca uma garantia de “durée raisonnable”, conforme assevera Nicole L’Heureux, ao analisar a legislação do Québec 23 e 24”.

Com essa abordagem, a revisão de veículos deixaria de ser um serviço (remunerado) para transformar-se em mero procedimento de prevenção, a ser executado gratuitamente pelo fornecedor, a fim de evitar prejuízos futuros. Entenda-se que não se está dizendo com isso que o fornecedor deva arcar com o ônus do desgaste natural do produto, como ocorreria se lhe fosse exigida a reposição de peças e componentes deteriorados pelo uso. Não, o consumidor é que deve responder pelos gastos que fizer. A gratuidade é possível, portanto, tão somente quanto ao procedimento revisional em si, consistente na verificação do estado do veículo (motor, amortecedores, lubrificantes etc.). Havendo a necessidade de substituição de peças ou componentes, desde que em razão do desgaste normal advindo do uso (pneus, óleos, baterias etc.), é evidente que os gastos devem ser suportados pelo consumidor, sob pena do seu enriquecimento ilícito à custa do fornecedor. Nesse caso, não se trata de revisão – que deve ser gratuita –, mas de autêntica prestação de serviço ou fornecimento de peças de reposição – que são onerosos.

Aliás, eis aí outra diferença decorrencial: em sendo a substituição de peças desgastadas pelo uso a prestação de um serviço ou o fornecimento de um produto, não se admite a exclusividade de uma empresa na sua disponibilização no mercado, ou seja, o consumidor não está obrigado a repor as peças e os componentes de seu veículo apenas na concessionária ou noutro autorizado do fornecedor de quem o adquiriu, podendo fazê-lo onde achar maior conveniência, ainda que em estabelecimento pertencente a fornecedor diverso; entender de modo contrário significaria o referendo a infrações à ordem econômica, nos termos determinados no art. 36 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011:

Art. 36. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:  I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;  II - dominar mercado relevante de bens ou serviços; III - aumentar arbitrariamente os lucros; e IV - exercer de forma abusiva posição dominante”.

Já a revisão, todavia, por não constituir serviço, mas sim procedimento de prevenção do interesse do fornecedor, só por este pode ser executada ou ainda por alguém autorizado a fazer as suas vezes, não dispondo o consumidor de discricionariedade na escolha do revisor.

O que não se pode negar, todavia, é que o fornecedor é obrigado a garantir o uso e a utilidade do bem fornecido, durante prazo razoável. E é daí que exsurge cristalina a irracionalidade de ele cobrar por algo que é o seu dever. Com efeito, o interesse na revisão é também do fornecedor, para que não venha a ser responsabilizado pelo aparecimento de um vício que poderia ter sido evitado.

A propósito, o fornecedor não só deve realizar gratuitamente a revisão, como também está impedido de cobrar pela reposição de peças e componentes cujo vício ou defeito não provenham do uso regular feito pelo consumidor.

Veja-se o caso do já citado REsp nº 984.106, em que a empresa vendedora de uma máquina agrícola ajuizou ação de cobrança em face do consumidor, para reembolsar-se do valor de R$ 6.811,97 (seis mil, oitocentos e onze reais e noventa e sete centavos), relativo a gastos com o reparo do produto vendido, ocorrido três anos e quatro meses após a aquisição. Nas três instâncias por onde tramitou a ação (Juízo, Tribunal e STJ), o fornecedor teve reconhecida a sua responsabilidade pelos gastos, sob o argumento de que os vícios ou defeitos verificados não provieram da ação do consumidor, mas de problemas de fabricação do produto.

Atente-se para a ementa do didático julgado:

DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO E RECONVENÇÃO. JULGAMENTO REALIZADO POR UMA ÚNICA SENTENÇA. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO CONHECIDO EM PARTE. EXIGÊNCIA DE DUPLO PREPARO. LEGISLAÇÃO LOCAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280/STF. AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA PELO FORNECEDOR. VÍCIO DO PRODUTO. MANIFESTAÇÃO FORA DO PRAZO DE GARANTIA. VÍCIO OCULTO RELATIVO À FABRICAÇÃO. CONSTATAÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. EXEGESE DO ART. 26, § 3º, DO CDC. 1. Muito embora tenha o art. 511 do CPC disciplinado em linhas gerais o preparo de recursos, o próprio dispositivo remete à "legislação pertinente" a forma pela qual será cobrada a mencionada custa dos litigantes que interpuserem seus recursos. Nesse passo, é a legislação local que disciplina as especificidades do preparo dos recursos cujo julgamento se dá nas instâncias ordinárias. 2. Portanto, a adequação do preparo ao recurso de apelação interposto é matéria própria de legislação local, não cabendo ao STJ aferir a regularidade do seu pagamento, ou se é necessário ou não o recolhimento para cada ação no bojo da qual foi manejada a insurgência. Inviável, no ponto, o recurso especial porquanto demandaria apreciação de legislação local, providência vedada, mutatis mutandis, pela Súmula n. 280/STF: "Por ofensa a direito local não cabe recurso extraordinário". Ademais, eventual confronto entre a legislação local e a federal é matéria a ser resolvida pela via do recurso extraordinário, nos termos do art. 102, inciso III, alínea "d", da Constituição Federal, com a redação que lhe foi conferida pela E.C. n. 45/04. 3. No mérito da causa, cuida-se de ação de cobrança ajuizada por vendedor de máquina agrícola, pleiteando os custos com o reparo do produto vendido. O Tribunal a quo manteve a sentença de improcedência do pedido deduzido pelo ora recorrente, porquanto reconheceu sua responsabilidade pelo vício que inquinava o produto adquirido pelo recorrido, tendo sido comprovado que se tratava de defeito de fabricação e que era ele oculto. Com efeito, a conclusão a que chegou o acórdão, sobre se tratar de vício oculto de fabricação, não se desfaz sem a reapreciação do conjunto fático-probatório, providência vedada pela Súmula 7/STJ. Não fosse por isso, o ônus da prova quanto à natureza do vício era mesmo do ora recorrente, seja porque é autor da demanda (art. 333, inciso I, do CPC) seja porque se trata de relação de consumo, militando em benefício do consumidor eventual déficit em matéria probatória. 4. O prazo de decadência para a reclamação de defeitos surgidos no produto não se confunde com o prazo de garantia pela qualidade do produto - a qual pode ser convencional ou, em algumas situações, legal. O Código de Defesa do Consumidor não traz, exatamente, no art. 26, um prazo de garantia legal para o fornecedor responder pelos vícios do produto. Há apenas um prazo para que, tornando-se aparente o defeito, possa o consumidor reclamar a reparação, de modo que, se este realizar tal providência dentro do prazo legal de decadência, ainda é preciso saber se o fornecedor é ou não responsável pela reparação do vício. 5. Por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia. 6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente veio a se manifestar depois de expirada a garantia. Nessa categoria de vício intrínseco certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até então. 7. Cuidando-se de vício aparente, é certo que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual. Porém, conforme assevera a doutrina consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. 8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem. 9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo. 10. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido[27].

Na espécie, resta patente que o Superior Tribunal de Justiça, refutando a tese da responsabilidade do fornecedor tão somente até o fim da garantia contratual, aplicou a garantia legal baseada no critério da vida útil do bem, de modo a responsabilizar o fornecedor pela reparação dos vícios e defeitos surgidos durante o prazo razoável (“durée raisonnable”) referido por Nicole L’Heureux[28].

Tem-se, pois, que é da responsabilidade do fornecedor, sem custos para o consumidor, a realização do procedimento revisional e a reparação de vícios ou defeitos ocultos surgidos no curso do prazo da garantia legal, desde que, nesse caso, não sejam imputáveis ao consumidor em razão do uso regular do bem, hipótese em que o ônus da reposição deve ser suportado por quem lhe deu causa.

3.3.3. O problema da obsolescência programada

Não se pode perder de vista, pela grande pertinência com o tema ora em estudo, um fenômeno ainda pouco debatido no Brasil. Cuida-se da intitulada obsolescência planejada ou programada.

No escólio de Antônio Herman Benjamin[29]:

O consumidor é induzido a adquirir um produto ou serviço que, em pouco tempo, será considerado obsoleto, seja porque sua utilidade decai rapidamente, seja porque o fornecedor, intencionalmente, deixou de lhe dar certas características que já conhecia, apenas para lançar um “novo” produto em seguida. E o consumidor queda-se completamente alheio a todo esse processo, embora pagando, por inteiro, seus custos”.

A obsolescência planejada se afigura, assim, como um instrumento de sobrevivência mercadológica, com o qual o fornecedor programa unilateralmente o prazo de utilidade de um produto ou serviço, obrigando o consumidor a adquirir uma nova versão ao final do espaço de tempo estipulado. Não se trata aqui da obsolescência decorrente da natural evolução tecnológica, mas daquela intencionalmente provocada pelo fornecedor, da qual são exemplos: o emprego de pneus de fácil corrosão pelo asfalto, a fim de que o consumidor realize a troca o quanto antes; o uso de baterias de pequena vida útil, para forçar a troca precoce nas próximas revisões; o uso de óleos de baixa eficiência, para aumentar a rotatividade etc.

Nesse cenário, embora seja do consumidor a responsabilidade pelos gastos advindos do uso regular do produto ou serviço, é preciso perquirir se o desgaste verificado decorreu, de fato, da sua conduta, ou se, ao contrário, não é resultado do fenômeno da obsolescência programada. Se o for, deve ser suportado pelo fornecedor, e não pelo consumidor. Observe-se este exemplo: se a bateria utilizada em determinado veículo tem, por hipótese, vida útil média de dois anos e, no entanto, deixou de funcionar no primeiro ano de aquisição, sem que se possa imputar seu esgotamento ao uso regular do bem, então a responsabilidade pela troca é do fornecedor, que deve garantir a utilidade do produto pelo ano faltante para completar o biênio.

A grande questão, porém, está em determinar o prazo de vida útil do bem. É estreme de dúvida que, se tal tarefa for deixada a cargo do mercado, este fará uso constante do mecanismo da obsolescência programada, a fim de reduzir cada vez mais a durabilidade dos produtos e serviços e, com isso, maximizar os seus lucros. Há quem defenda, assim, que a vida útil do bem seja determinada casuisticamente pelos juízes, conforme o pensamento já referido de BENJAMIN (2005, p. 134/135). Referida posição, todavia, é temerária, porquanto nem todos os consumidores têm acesso ao Poder Judiciário. Ademais, não se descura da possibilidade de o mercado condicionar a convicção dos próprios magistrados, tendo em vista que buscarão subsídios para suas decisões no mesmo ambiente mercadológico responsável pela irregularidade.

Desse modo, melhor alternativa talvez seja a criação de uma entidade autárquica federal, destinada à fixação do prazo de vida útil dos produtos e serviços comercializados no Brasil, em proteção dos consumidores. Tal medida é consentânea com o comando do art. 170, V, da Constituição Federal, que reza:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V – defesa do consumidor”.

Cuida-se da espécie de intervenção do Estado na economia a que Eros Grau[30] denomina de “intervenção por direção”, pela qual o Estado exerce pressão sobre a economia mediante mecanismos impositivos de comportamentos obrigatórios para os agentes econômicos.

Poder-se-ia arguir a impossibilidade de se catalogar todos os produtos e serviços postos no mercado, estabelecendo-se o respectivo prazo de durabilidade. Entretanto, não se impõe idêntico óbice quando se trata de atender aos fins arrecadatórios do mesmo Estado. Veja-se, a título de singelo exemplo, a recente Lei Complementar nº 116/2003, na qual foram facilmente arrolados todos os serviços sujeitos à incidência do ISSQN – Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal.

Diante disso, sob o ponto de vista jurídico, têm-se algumas conclusões acerca da revisão de veículos automotores: i) o mercado, que a quase tudo engendra e condiciona, encontra eco às suas pretensões lucrativas na interpretação que atribui à revisão de veículos automotores a natureza jurídica de serviço (art. 3º, § 2º, CDC); ii) se for adotada, porém, a teoria da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem, a revisão deixa de ser serviço e passa a ser mero procedimento de prevenção dos interesses do fornecedor, a fim de poupá-lo de eventual responsabilidade posterior pelo aparecimento de vício ou defeito oculto no curso do “durée raisonnable”; iii) o consumidor não se exime, todavia, da reposição das peças ou componentes consumidos ou deteriorados por força do uso regular do bem, sob pena de enriquecimento ilícito à custa do fornecedor; iv) é possível, ainda, que o desgaste do produto não decorra exclusivamente do uso feito pelo consumidor, sendo atribuível ao fenômeno da obsolescência planejada ou programada, hipótese em que a responsabilidade será do fornecedor; v) para assegurar maior proteção ao consumidor, seria adequado criar, com base na intervenção estatal por direção (art. 170, V, CF), uma autarquia federal destinada a catalogar e agrupar todos os bens e serviços disponíveis no mercado, inclusive com fixação do respectivo prazo de vida útil.


4. Garantia contratual e revisão de veículos automotores

4.1. A suposta relação de condicionalidade

O mercado transformou em senso comum algo que não corresponde à realidade jurídica. Trata-se da convicção generalizada de que a realização das revisões periódicas de veículos automotores, nos prazos e moldes fixados unilateralmente pelo fornecedor, se afigura como conditio sine qua non para a subsistência da garantia contratual. Por outros termos, poder-se-ia dizer que, no imaginário popular, o consumidor perderá a garantia consensual, se deixar de proceder às revisões sob comento nos termos estabelecidos pelo vendedor.

Fossem as revisões gratuitas, como já ficou defendido alhures, não se vislumbrariam maiores problemas. Todavia, como visto, a prática corrente no mercado é a cobrança pelos serviços revisionais. Aliás, os preços são inclusive tabelados pelas diversas empresas do setor automobilístico, não havendo qualquer margem de discricionariedade deixada ao consumidor, que apenas se submete domesticadamente à prestação de tais serviços, sob a ameaça de perda da garantia contratual.

Tem-se, assim, que o mercado criou uma espécie própria de sistema punitivo. Neste, como em qualquer outro, há um dever e sua respectiva punição, para a hipótese de descumprimento. Aquele consiste na obrigação de revisar; esta, na perda da garantia consensual. Constata-se, pois, certa coatividade exercida pelo mercado sobre a coletividade e que tão bem caracteriza a relação deletéria existente entre a revisão de veículos e a garantia contratual em sede contratual.

É como se, paralelamente às normas jurídicas, a ambiência econômica forjasse os seus próprios “imperativos autorizantes”, para usar expressão da lavra do saudoso professor Goffredo Telles Júnior[31]. Com isso, o mercado fica por si mesmo autorizado não apenas a exercer coerção psíquica sobre o consumidor, como também a fazer uso da respectiva coação, na hipótese de descumprimento das suas regras impositivas de conduta. Dizendo de outro modo, os fornecedores têm o poder de intimidar e punir os consumidores, sob o falso pretexto do exercício genuíno da autonomia da vontade.

Sob o prisma jurídico, contudo, tal relação de condicionalidade entre a revisão veicular e a garantia contratual é absolutamente inexistente. Primeiro porque a garantia em referência é de todo despicienda no átrio das relações consumeristas, conforme já restou assentado. Segundo porque a revisão de veículos automotores, sendo também do interesse do fornecedor – para fins de evitar eventual responsabilidade pelos vícios ocultos descobertos no período da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem –, deve ser gratuita, não se prestando ao auferimento de lucro fácil pelo fornecedor. Não há, portanto, dever de revisar imputável ao consumidor, cabendo este ao fornecedor, de modo que se torna desarrazoada qualquer manobra intimidatória ou punitiva em face de alguém a quem não compete a obrigação revisional. 

4.2. O enquadramento jurídico: venda casada ou cláusula contratual abusiva

O condicionamento da garantia contratual à realização de revisões veiculares periódicas exclusivamente na rede autorizada pelo fornecedor configura autêntica venda casada, vedada pelo art. 39, I, do CDC.

Com efeito, enuncia o referido preceptivo legal:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: I – condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos”.

Segundo a lição de Antônio Herman Benjamin[32], na venda casada, “o fornecedor nega-se a fornecer o produto ou serviço, a não ser que o consumidor concorde em adquirir também um outro produto ou serviço”.

Na mesma linha, veja-se o entendimento do STJ:

A denominada ‘venda casada’ tem como ratio essendi da vedação a proibição imposta ao fornecedor de, utilizando de sua superioridade econômica ou técnica, opor-se à liberdade de escolha do consumidor entre os produtos e serviços de qualidade satisfatória e preços competitivos[33].

No atinente à relação entre garantia contratual e revisão de veículos automotores, tem-se que a subsistência daquela depende da aquisição desta pelo consumidor, o que denota a nítida ocorrência do condicionamento proibido pelo CDC.  Assim, entre outras medidas, a prática abusiva atrai a incidência da norma do art. 84 do mesmo diploma consumerista, com possibilidade de emanação de ordem judicial para fins de abstenção da conduta, sob a batuta de preceito cominatório. Isso tudo sem prejuízo do dever de reparação de eventual dano, moral ou material, a teor do art. 6º, VII, do CDC.

Além da configuração da prática abusiva consubstanciada na venda casada, deve-se anotar que eventual cláusula contratual que estabeleça o sobredito condicionamento está inexoravelmente fadada à nulidade de pleno direito, por força do art. 51, IV, do CDC.

Atente-se para o dispositivo:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”.

É que fere o dever de boa-fé objetiva e de equidade a cláusula contratual que condiciona a garantia consensual à revisão veicular. Isso porque não se trata de simples negociação proveniente da autonomia da vontade das partes. Ao contrário, está-se diante de uma astuta manobra ou subterfúgio usados pelo fornecedor para fisgar o consumidor, praticamente o obrigando a adquirir o seu serviço assistencial (revisão), sem qualquer poder de escolha por parte do sujeito mais frágil da relação de consumo. Aliás, o consumidor não detém sequer a prerrogativa de regatear o preço do serviço revisional, uma vez que este é tabelado potestativamente pelo alienante do veículo.

Nesse cenário, vem a calhar o ensinamento do professor Nelson Nery Júnior[34]:

sempre que se verificar a existência de desequilíbrio na posição das partes no contrato de consumo, o juiz poderá reconhecer e declarar abusiva determinada cláusula, atendidos os princípios da boa-fé e da compatibilidade com o sistema de proteção ao consumidor”.

Na verdade, o magistrado deverá declarar a nulidade, ainda que não suscitada pelas partes, porquanto as normas de proteção ao consumidor são de ordem pública e interesse social, como estabelece o CDC já no seu artigo inaugural.

Sobre o tema, pontifica Sérgio Cavalieri Filho[35]:

As normas do CDC, como reiteradamente enfatizado, são de ordem pública e interesse social, o que autoriza a declaração de ofício da abusividade de qualquer cláusula que se aplique submetida à apreciação judicial”.

No STJ, todavia, a despeito da grande divergência, tem prevalecido a corrente que defende a necessidade de provocação do interessado (consumidor) para fins de declaração de nulidade. Observe-se o excerto de sintomática ementa:

Em março de 2006, a 2ª Seção da Corte, considerando a existência de divergência interna no STJ, posicionou-se, por maioria, no sentido de que “não é lícito ao STJ rever de ofício o contrato, para anular cláusulas consideradas abusivas com base no art. 51, IV, do CDC[36].

Sufragando em parte tal posicionamento, foi editado em 2009 o enunciado sumular nº 381, segundo o qual “Nos contratos bancários, é vedado ao julgador conhecer, de ofício, da abusividade das cláusulas”.

Em todo caso, afora a discussão acerca do modo de declaração da nulidade, dúvida não existe de que a condicionalidade fixada pelo mercado entre garantia consensual e revisão periódica veicular é exemplo eloquente de prática mercadológica ou cláusula contratual abusivas, exigindo-se do Poder Judiciário que afaste a venda dos olhos de Themis, de modo a poder enxergar essa dura e triste realidade.


5. Considerações finais

De tudo quanto exposto, extraem-se estas conclusões:

  1. A garantia legal é o prazo especial ou decadencial mínimo estabelecido pela própria lei durante o qual o lesado por vício redibitório (oculto) poderá fazer uso do seu direito à redibição do contrato ou ao abatimento de preço;
  2. A garantia contratual consiste no prazo adicional, anterior e complementar à garantia legal que, uma vez convencionado pelas partes, objetiva aumentar a proteção do adquirente de um bem quanto ao aparecimento de vícios redibitórios (ocultos);
  3. No âmbito do direito consumerista, a garantia legal baseada no critério da via útil do bem, em franca ascensão na doutrina e na jurisprudência, é suficiente para proteger o consumidor contra os vícios e defeitos ocultos dos produtos e serviços, não havendo necessidade de utilização da garantia contratual;
  4. A aplicação da garantia contratual no direito consumerista conspira contra aquilo que foi inicialmente almejado pelo legislador (a proteção do consumidor), seja porque seu prazo de vigência é fixado unilateralmente pelo fornecedor; seja porque o consumidor, à míngua da correta informação do fornecedor, ver nela a única garantia possível, desprezando, por consequência, a garantia legal explícita ou implícita; seja ainda porque a garantia contratual se transformou em poderoso instrumento de coerção da parte vulnerável das relações de consumo, nesse caso atrelada umbilicalmente à assistência técnica periódica, notadamente no setor automobilístico da economia. Em tudo isso consiste o paradoxo da “importação” precipitada da garantia contratual do seio do direito civil – que regula relações entre iguais – para o campo do direito do consumidor – aplicável que é a partes inquestionavelmente desiguais. O instituto, em vez de proteger, desprotege, vulnerando ainda mais o já combalido consumidor;
  5. Além da já desnecessária garantia contratual, criou-se ainda a famigerada garantia estendida, que configura serviço autônomo de seguro, afastando-se do caráter geralmente incidental da garantia contratual com relação ao negócio jurídico principal subjacente;
  6. Aliás, foi visto que ambos os instrumentos – a garantia contratual e a garantia estendida – são ontologicamente antagônicos, uma vez que o aumento do prazo de uma acarretará, em tese, a diminuição do prazo da outra. Significa dizer que, se a garantia contratual tiver prazo dilatado, não haverá razão para a contratação da garantia estendida; por outro lado, se a garantia contratual contiver átimo menor, então será interessante para o consumidor, nessa hipótese, aderir à garantia adicional. Não precisa ir longe, todavia, para perceber que, sendo essa última garantia de natureza lucrativa – porque há contraprestação do consumidor, ou seja, o pagamento de preço –, a tendência do mercado será cada vez mais no sentido de diminuir o prazo da garantia contratual, sempre unilateral, para forçar a aquisição, como serviço de seguro, da garantia estendida;
  7. A revisão de veículos automotores representa, para o mercado (concepção mercadológica), um lucrativo serviço posto à disposição dos consumidores, pelo qual estes desembolsam certa quantia em dinheiro, que varia conforme determinados referenciais (marca, modelo, ano de fabricação, quilometragem etc.), associando-se, no mais das vezes, com a venda de variados produtos, notadamente as chamadas peças de reposição; para a sociedade (concepção ético-social), denota um dever moral e até – falsamente – jurídico de pagar pela manutenção do produto, cuja pena, em caso de descumprimento, é a perda da garantia contratual fixada unilateralmente pelo fornecedor; sob a perspectiva do direito (concepção jurídica), tem-se que o mercado, que a quase tudo engendra e condiciona, encontra eco às suas pretensões lucrativas na interpretação que atribui à revisão de veículos automotores a natureza jurídica de serviço (art. 3º, § 2º, CDC); ii) se for adotada, porém, a teoria da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem, a revisão deixa de ser serviço e passa a ser mero procedimento de prevenção dos interesses do fornecedor, a fim de poupá-lo de eventual responsabilidade posterior pelo aparecimento de vício ou defeito oculto no curso do “durée raisonnable”; iii) o consumidor não se exime, todavia, da reposição das peças ou componentes por força do uso regular do bem, sob pena de enriquecimento ilícito à custa do fornecedor; iv) é possível, ainda, que o desgaste do produto não decorra exclusivamente do uso feito pelo consumidor, sendo atribuível ao fenômeno da obsolescência planejada ou programada, hipótese em que a responsabilidade será do fornecedor; v) para assegurar maior proteção ao consumidor, seria adequado criar, com base na intervenção estatal por direção (art. 170, V, CF), uma autarquia federal destinada a catalogar e agrupar todos os bens e serviços disponíveis no mercado, inclusive com fixação do respectivo prazo de vida útil.
  8. No atinente à associação da revisão veicular com a garantia contratual, viu-se que inexiste relação de condicionalidade entre os dois institutos. A uma, porque a garantia em referência é de todo despicienda no átrio das relações consumeristas, conforme já restou assentado. A duas, porque a revisão de veículos automotores, sendo também do interesse do fornecedor – para fins de evitar eventual responsabilidade pelos vícios ocultos descobertos no período da garantia legal baseada no critério da vida útil do bem –, deve ser gratuita, não se prestando ao auferimento de lucro fácil pelo fornecedor; não há, portanto, dever de revisar imputável ao consumidor, cabendo este ao fornecedor, de modo que se torna desarrazoada qualquer manobra intimidatória ou punitiva em face de alguém a quem não compete a obrigação revisional;
  9. O condicionamento da garantia contratual à realização de revisão de veículos automotores dá ensejo à configuração da venda casada do art. 39 do CDC, com possibilidade de emanação de ordem judicial para fins de abstenção da conduta, sob a batuta de preceito cominatório, sem prejuízo do dever de reparação de eventual dano, moral ou material, a teor do art. 6º, VII, do CDC; eventual cláusula contratual da mesma natureza está sujeita, ainda, à nulidade de pleno direito, podendo esta ser reconhecida inclusive de ofício pelo juiz, com base no art. 51, IV, do CDC, em razão da sua abusividade, embora se ressalve entendimento divergente do STJ, conforme enunciado sumular nº 381.

Notas

[1] Dados disponíveis em: <http://www.denatran.gov.br/frota.htm>. Acesso em: 05 out. 2013.

[2] Disponível em: <http://economia.terra.com.br/carros-motos/brasil-fecha-2012-como-4-maior-mercado-de-carros-do-mundo,a77b028fe09fc310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html >. Acesso em: 05 out. 2013.

[3] MARQUES, Cláudia Lima (coautoria de BENJAMIN, Antônio Herman V. e BESSA, Leonardo Roscoe). Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 94 e ss.

[4] DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 1, p. 128.

[5] STJ, REsp 984.106, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 04/10/2012, DJe de 20/11/2012.

[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Contratos e Atos Unilaterais. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, v. 3, p. 136.

[7] GONÇALVES, op. cit. p. 136.

[8] BENJAMIN, Antônio Herman V. (coautoria de MARQUES, Cláudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe). Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 148.

[9] BENJAMIN, op. cit., p. 143.

[10] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Responsabilidade por vício do produto ou do serviço. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 66.

[11] QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. Da responsabilidade por vício do produto ou do serviço. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 114.

[12] GUIMARÃES, Paulo José Scartezzini. Vícios do produto e do serviço por qualidade, quantidade e insegurança: cumprimento imperfeito do contrato. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 228.

[13] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 1196.

[14] REsp nº 547.794-PR, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 15/02/2011, DJe de 22/02/2011.

[15] BESSA, Leonardo Roscoe et al. Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 214.

[16] CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Garantia legal e garantia contratual: vício oculto e decadência no CDC. Disponível em: <http://www.tjrj.jus.br/c/document_library/get_file?uuid=1296b43c-e9fd-4905-9632-a6da3616d852&groupId=10136>. Acesso em: 05 out. 2013.

[17] MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil interpretada e legislação complementar. São Paulo: Atlas, 2006, p. 287.

[18] NERY JUNIOR, Nelson. Contratos no Código Civil – Apontamentos gerais. In: O novo Código Civil: estudos em homenagem ao Professor Miguel Reale. Coord. De Domingos Franciulli Netto, Gilmar Ferreira Mendes e Ives Gandra da Silva Martins Filho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 435.

[19] GONÇALVES, op. cit., p. 59.

[20] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, pp. 1196-1197.

[21] BENJAMIN, Antônio Herman V. e MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pp. 134-135.

[22] BESSA, op. cit., pp. 205.

[23] BESSA, op. cit., p. 214.

[24] Bessa, op. cit., pp. 214-215.

[25] MARX, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. Trad. Edgar Malagodi. Coleção Os Pensadores. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

[26] BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, pp. 138-139.

[27] REsp 984.106, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. em 04/10/2012, DJe de 20/11/2012.

[28] L’HEUREUX, Nicole. Droit de la consommation. Montreal: Wilson & Lafleur Itée, 1986, p. 45, apud BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

[29] BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 138.

[30] GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 147.

[31] TELLES JÚNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. 4ª ed. São Paulo: Ed. Saraiva, 2008, p. 103.

[32] BENJAMIN, Antônio Herman V., MARQUES, Cláudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 269.

[33] REsp 744.602-RJ, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 01/03/2007, DJ de 15/03/2007.

[34] NERY JUNIOR, Nelson et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 573.

[35] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008, pp. 165-166.

[36] EREsp 702.524, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, julgado em 08/03/2006, DJ de 09/10/2006.


Autor

  • Edvanilson de Araújo Lima

    Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Bacharel em Direito pela Universidade do Estado da Bahia, com início do curso na Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Público. Foi Professor de Direito Penal, Direito Processual Penal e Direito Eleitoral da Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina-PE (Facape). Foi professor de Direito Penal e Filosofia Jurídica e Geral da Faculdade Maurício de Nassau em Petrolina-PE. Ex-servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás e do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Edvanilson de Araújo. Garantia contratual e revisão de veículos automotores: um meio eficaz de lesar os consumidores . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4221, 21 jan. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30526. Acesso em: 26 abr. 2024.