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Aspectos jurídicos da reserva técnica de museus

Aspectos jurídicos da reserva técnica de museus

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Analisa-se, no âmbito dos museus e da importância cultural desses acervos, a sistemática oferecida às reservas técnicas.

Resumo: Análise, no âmbito dos museus e da importância cultural desses acervos, da sistemática oferecida às reservas técnicas.

Sumário: I. Os Museus – um breve contexto; II. As diretrizes internacionais; III. A proteção jurídica nacional; IV. A realidade das reservas técnicas; V. Conclusões; VI. Bibliografia.


I. Os Museus – um breve contexto

A sociedade, desde os primórdios e pelos mais variados motivos, destacadamente no intuito de colecionismo e preservação, mantem acervos de obras de arte, de natureza pública ou privada. São os ambientes conhecidos, na atualidade, como museus ou galerias.

Para o Dicionário de Português Michaelis o termo museu corresponde à “Coleção de objetos de arte, cultura, ciências naturais, etnologia, história, técnica etc. Lugar destinado ao estudo e principalmente à reunião desses objetos. Casa que contém muitas obras de arte. Lugar onde estão expostos objetos de arte referentes à História e que recompõem uma série de fatos.”

No mesmo dicionário a expressão galeria equivale à “Parte de um edifício ... que serve como meio de comunicação ou para a exposição de objetos de arte, colecionados e dispostos artisticamente. Coleção de retratos, estátuas, bustos ou quadros representando personagens ou assuntos históricos, comuns ou da vida real. Lugar onde se acha reunida essa coleção. Coleção de estudos biográficos ou descritivos.”.

Os conceitos se assemelham, são complementares, todavia, no dia a dia convencionou-se denominar de museu os espaços públicos e galeria os particulares.

As primeiras manifestações voltadas à reunião de obras eram conhecidas como “gabinetes de curiosidade”, representados por espaços disponíveis nos palácios ou casas de nobres que reuniam diversos objetos entre pinturas, gravuras, esculturas, mapas, animais empalhados. Espaços que não continham, ainda, organização ou classificação do acervo, como demonstra a imagem representativa:

Imagem que sugere o que seria um Gabinete de Curiosidade (Ferrante Imperato em Dell'Historia Naturale, Nápoles, 1599).

Os gabinetes correspondiam a lugares em que se colecionavam objetos raros, de natureza estética e instrumentos tecnicamente avançados. Material obtido, dentre outras fontes, durante a época de grandes explorações e descobrimentos dos séculos 16 e 17, bem como do colecionismo natural da aristocracia.

Com o tempo os gabinetes foram substituídos por instituições oficiais e coleções privadas. Os objetos considerados mais interessantes foram transferidos para museus de arte e de história natural que começaram a ser fundados.

Estes espaços se desenvolvem da exposição de acervos à concepção efetiva de museu, como conhecida nos últimos duzentos anos. Em que a organização, destacadamente visual, através de classificações específicas, facilitam a apresentação e compreensão dos frequentadores desses espaços. Além do surgimento de uma outra função que é a acessibilidade à sociedade desse patrimônio cultural.

E é com a constituição do primeiro museu aberto ao público, o do Louvre (França) em 1792, que se chega ao conjunto de funções que os museus exercem na atualidade: preservação, instrução e acessibilidade.

Essas funções vinculam-se mais aos acervos públicos, sem excluir os trabalhos desenvolvidos pelas galerias. Não que os espaços privados não exerçam as mesmas funções, mas necessário reconhecer que as galerias se direcionam mais ao mercado ou mesmo à produção de um determinado artista ou período artístico. Ou seja, as galerias possuem irrestrita liberdade na elaboração e administração de seus objetivos. Por exemplo, tem-se a especialidade do colecionismo com a criação de acervos altamente concentrados relacionado a um determinado artista (Ateliê Maria Bonomi, Museu Segall, Instituto Tomie Ohtake) ou movimento artístico (Museu de Arte Moderna, Museu da Língua Portuguesa, Museu Afro Brasil).

Dentre as funções museológicas citadas, a acessibilidade é das mais importantes, mesmo porque as demais são exercidas para que se forneça o acesso da sociedade sobre as obras do acervo. E isto através de ações que viabilizem a gratuidade, o desconto, a mobilidade e a criação de acervo digital.

No Brasil, por exemplo, já se tem museus com conteúdo, total e parcial, digitalizados, minimizando a distância geográfica e temporal desses acervos com a sociedade (Museu da Imigração do Estado de São Paulo e Museu Imperial no Rio de Janeiro).

Esse leque de importância que se destina aos museus se justifica pela alta influência que exercem sobre o desenvolvimento e sustentabilidade social. Evidencia-se esta realidade com a instituição do Conselho Internacional dos Museus (ICOM – International Council of Museums). Organização internacional criada em 1946, vinculada à Organização das Nações Unidas para promover os interesses da museologia e de outras disciplinas relacionadas com a gestão e atividades dos museus.

A sede do ICOM fica em Paris no mesmo edifício da UNESCO. Esta constatação demonstra o absoluto vínculo dos museus com a esfera cultural, eis que a UNESCO corresponde à organização internacional especializada em educação, ciência e cultura. Portanto, os museus representam mais um meio para à satisfação desses direitos.

As principais atividades do ICOM, conforme Estatuto, são a cooperação e intercâmbio profissional; difusão de conhecimentos e aumento da participação do público em museus; formação de pessoal; prática e promoção de ética profissional; atualização de padrões profissionais; e, preservação do patrimônio mundial e combate ao tráfico de bens culturais.

Esclareça-se que o ICOM, como organização internacional, não exerce poder coercitivo sobre os países e entidades que o compõem, em razão do princípio da soberania. Todavia, suas diretrizes são voluntariamente absorvidas por esses.

Observe-se também que o ICOM encontra apoio em outras entidades de nível internacional para a melhor consecução de sua missão como a INTERPOL e a Organização Internacional da Propriedade Intelectual (WIPO). A primeira realiza o trabalho de polícia criminal internacional combatendo os crimes contra o patrimônio cultural como roubo e falsificação. Já a segunda atua na área da propriedade intelectual, no qual as obras artísticas se inserem como resultado da criação intelectual.

O Estatuto do ICOM, no artigo 3, parágrafo 1º, conceitua museu como:

“... uma instituição permanente sem fins lucrativos, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberto ao público, e que adquire, conserva, estuda, expõe e transmite o patrimônio material e imaterial da humanidade e de seu ambiente para fins de estudo, educação e apreciação”

Neste contexto, de modo comparativo, como exercício mesmo de incorporação das diretrizes internacionais, tem-se no Brasil o Estatuto dos Museus (Lei n.º 11.904/2009) que define os acervos como “instituições sem fins lucrativos, que investigam, conservam, comunicam, interpretam e expõem, para o fim de preservação, estudo, pesquisa, educação e contemplação, conjuntos de valor histórico, artístico e científico, de natureza cultural, abertas ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento.”.

O IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional -, define, por sua vez, museu como “uma instituição com personalidade jurídica própria ou vinculada a outra instituição com personalidade jurídica, aberta ao público, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento e que apresenta as seguintes características: I - o trabalho permanente com o patrimônio cultural, em suas diversas manifestações; II - a presença de acervos e exposições colocados a serviço da sociedade com o objetivo de propiciar a ampliação do campo de possibilidades de construção identitária, a percepção crítica da realidade, a produção de conhecimentos e oportunidades de lazer; III - a utilização do patrimônio cultural como recurso educacional, turístico e de inclusão social; IV - a vocação para a comunicação, a exposição, a documentação, a investigação, a interpretação e a preservação de bens culturais em suas diversas manifestações; V - a democratização do acesso, uso e produção de bens culturais para a promoção da dignidade da pessoa humana; VI - a constituição de espaços democráticos e diversificados de relação e mediação cultural, sejam eles físicos ou virtuais.” (https://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12810&retorno=paginaIphan, acesso em 29/04/2014)

Para que estas funções sejam eficientemente exercidas necessária a atitude colaborativa de diversos profissionais, todos sob a coordenação do curador ou conservador. Este equivale ao administrador do museu/galeria ou, especificamente, do acervo ou amostra (profissionais autônomos desvinculados de instituições).

Para Dominique Poulot a curadoria, que representa uma das funções mais importantes no âmbito do museu, de onde pode se depreender qual seja a sua função, tem como enfoque:

“... criar métodos e formas de apresentar um determinado grupo de obras (ou objetos, documentos etc), de maneira a facilitar a compreensão do espectador, buscando acessar a todos e qualquer tipo de público”

(Museu e Museologia, pág. 41)

O curador também tem papel decisivo nos processos de aquisição, descarte e doação de peças. É o responsável pela gestão do acervo segundo o que foi definido no Plano Diretor do respectivo museu, que conta com seção especialmente dedicada à Política de Acervo, como previsto no Código de Ética do ICOM.

Constata-se que a função do curador e, consequentemente, do museu que representa, não pode se restringir à preservação e simples divulgação de obras de arte. Necessário, para cumprimento da acessibilidade, que esta organização produza sobre a sociedade uma determinada mensagem, ou seja, execute o efeito multiplicador.

O mesmo Dominique Poulot, de modo mais enfático, conceitua a função de curadoria:

“O curador de arte, ao pé da letra, seria aquele que está incumbido de cuidar, zelar e defender os interesses do artista e dos trabalhos de arte”

(Museu e Museocologia, pág. 43)

A conclusão mais lógica que se chega deste contexto dos acervos e seus conservadores é a de que abrigam e administram manifestações artísticas, as quais são elementos culturais. E, como tais, devem ser preservadas e divulgadas. Em razão da influência que exercem perante o desenvolvimento sócio, cultural e econômico das nações.

O exercício dessas funções pelo curador compreende uma multidisciplinariedade de ações, as quais podem envolver inclusive designer, arquitetura de ambiente, cenografia, iluminação e métodos de instrução (auditivo, panfletos informativos ou informações em placas ou paredes). Portanto, admissível, em razão da complexidade, que o curador se socorra de assessores ou mesmo da contratação de terceiros para a execução de projeto específico.

Sobre o aspecto educacional tem-se a importância cada vez maior dos catálogos, em que alguns se assumem como verdadeiras obras complementares à obra de arte na concepção natural do termo.

Esses catálogos para Dominique Poulot são:

“...a realização de tais obras parece indispensável ao inventário patriótico das riquezas do país, mas faz parte também da agenda de uma democratização dos saberes e do gosto, única capaz com o vandalismo”

(Museu e Museocologia, pág. 24)

O curador, portanto, para o mais eficiente exercício de suas funções, pode fazer uso de diversos métodos de comunicação, em que todos se voltam para à consecução das finalidades dos respectivos acervos, quais sejam, preservação, divulgação e acessibilidade.

Como se observará a seguir, consequentemente à importância insculpida aos museus, responde a instituição e os conservadores perante a ordem internacional e jurídica nacional, seja pelo exercício de funções constitucionais, seja pelo exercício de funções que se originam na satisfação dos Direitos Humanos.


II. As diretrizes internacionais

No âmbito internacional, dentre os diversos instrumentos que buscam a harmonização, bem como além dos instrumentos do ICOM, tem-se o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Este tratado reforça, complementa, especifica, detalha, aperfeiçoa e amplia o rol dos direitos econômicos, sociais e culturais, inscritos na Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Em seu artigo 15 define a importância da cultura para o desenvolvimento humano, o que justifica sua origem na construção da proteção humanista:

1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem a cada indivíduo o direito de:

a) Participar da vida cultural;

2. As medidas que os Estados Partes do presente Pacto deverão adotar com a finalidade de assegurar o pleno exercício desse direito aquelas necessárias à conservação, ao desenvolvimento e à difusão da ciência e da cultura.

4. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem os benefícios que derivam do fomento e do desenvolvimento da cooperação e das ralações internacionais no domínio da ciência e da cultura. (destacou-se)

Os verbos utilizados remetem à realidade do indivíduo em ter garantida a proteção da cultura, todavia, vai além, pois, necessário que ele faça parte dessa realidade cultural, por meio, essencialmente, da acessibilidade. Não basta a existência de acervo para proteção desse patrimônio cultural, imprescindível que esteja disponível à sociedade.

As orientações do Tratado devem direcionar os estados partes a tornarem efetivas essas sugestões no território de cada país. E esta sistemática deve ocorrer através da incorporação legislativa dessas orientações nos respectivos ordenamentos jurídicos como atos legais de natureza constitucional ou infraconstitucional.

A origem do Pacto, conforme mencionado, é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em 10 de Dezembro de 1948, no item XXVII:

1. Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.

Destaque-se que o direito à acessibilidade é progressivo, ou seja, na eventualidade do Estado pretender reduzir a esfera de proteção, este ato é repudiado pela proteção oferecida aos Direitos Humanos. Eis que estes são extensivos, jamais redutíveis.

No Brasil a progressividade está inserida no artigo 60, § 4º, inciso IV da Constituição Federal:

Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:

(...)

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

(...)

IV - os direitos e garantias individuais.

Nos termos constitucionais os direitos e garantias individuais, inclusive que possam ser exercidos individualmente, não podem ser abolidos ou reduzidos, em razão mesmo da relevância para a esfera da dignidade humana.

A progressividade, inicialmente, referia-se à gradação por vários instrumentos internacionais e por textos constitucionais à aplicação dos direitos humanos, conforme estabelecia o artigo 427 do Tratado de Versalhes.

O princípio da progressividade deve ser conjugado com outro princípio que é o da vedação do retrocesso social. Este confere aos direitos fundamentais, dentre eles os vinculados à cultura/patrimônio cultural, estabilidade nas conquistas dispostas na Carta Política, proibindo o Estado de alterar, quer seja por mera liberalidade, ou como escusa de realização de outros direitos, ainda que também humanos/fundamentais.

Estabilidade essa que não pretende tornar a Constituição e as normas infraconstitucionais imutáveis, mas dar segurança jurídica e assegurar que se um direito for alterado, que passe por um longo processo de análise para que venha beneficiar seus destinatários. Além do que, quando se tratar de direito eleito como humano que exista uma espécie de procedimento mais vigoroso a justificar sua alteração.

Neste contexto Sarlet defende:

“ ... a segurança jurídica, na sua dimensão objetiva, exige um patamar mínimo de continuidade do (e, no nosso sentir, também no) Direito, ao passo que, na perspectiva subjetiva, significa a proteção da confiança do cidadão nesta continuidade da ordem jurídica no sentido de uma segurança individual das suas próprias posições jurídicas”.

(SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006)

Para Jorge Coli a cultura equivale a uma das esferas do Direito mais abrangentes:

“... a palavra cultura é empregada não no sentido de um aprimoramento individual do espírito, mas do “conjunto complexo dos padrões de comportamento, das crenças, instituições e outros valores espirituais e materiais transmitidos coletivamente e característicos de uma sociedade””.

(O que é Arte, São Paulo: Editora Brasiliense, 15ª ed., pág. 8)

Além do Pacto e da Declaração Universal tem-se, devidamente incorporado na esfera nacional, através do Decreto Legislativo 74/1977, a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, a qual no artigo 7º abrange o patrimônio cultural:

“Para os fins da presente Convenção, entender-se-á por proteção internacional do patrimônio mundial, cultural e natural o estabelecimento de um sistema de cooperação e assistência internacional destinado a secundar os Estados Partes na Convenção nos esforços que desenvolvam no sentido de preservar e identificar esse patrimônio.”

Da mesma forma, o Decreto Legislativo 22/2006 que incorporou a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, que em seu artigo 2º define o que seja patrimônio cultural imaterial (intelectual):

“Entende-se por “patrimônio cultural imaterial” as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Para os fins da presente Convenção, será levado em conta apenas o patrimônio cultural imaterial que seja compatível com os instrumentos internacionais de direitos humanos existentes e com os imperativos de respeito mútuo entre comunidades, grupos e indivíduos, e do desenvolvimento sustentável.”

Ao final a Convenção indica, de modo enumerativo, jamais taxativo, as seguintes finalidades: a salvaguarda do patrimônio cultural intelectual; o respeito ao patrimônio cultural das comunidades, grupos e indivíduos envolvidos; a conscientização no plano local, nacional e internacional da importância do patrimônio cultural e de seu reconhecimento recíproco; e, a cooperação e a assistência internacionais.

Esta sistemática internacional presta-se, destacadamente, para evitar ou reduzir ao máximo as falsificações promovidas por quadrilhas que agem além das fronteiras nacionais.

A sistemática apresentada pela esfera internacional se presta à redução de diferenças no tratamento que se oferece ao contexto dos museus ou acervos de uma forma geral. Prestando-se, portanto, à harmonização das regras incidentes sobre a museologia. E esta sistemática é relevante porque a área das artes é das mais cosmopolitas, conforme ilustrado pelo Professor Jorge Coli na citação em epígrafe, necessitando de regras com o menor grau de diferenciação entre os países.

E isto ocorre porque obras de arte são comercializadas, doadas, emprestadas e/ou divulgadas por meio impresso e/ou digital. Necessitando, derradeiramente, de facilitadores para a circulação e divulgação desse bem cultural. E para tal, o meio mais comumente utilizado são os convênios estabelecidos entre os interessados, os quais assumem a forma permitida em suas respectivas ordens jurídicas.

No âmbito nacional, em matéria jurídica, observa-se que a legislação é suficiente, exigindo muito mais interpretação do que preenchimento de lacunas ou omissões. E esta realidade ocorre porque o Brasil incorporou as orientações internacionais, na esfera constitucional e infraconstitucional, além de promover legislação específica sobre esta realidade cultural. É o que se passa a demonstrar.


III. A proteção jurídica nacional

Além da esfera internacional, que se presta a demonstrar a relevância da temática para os países, o Brasil possui legislação constitucional e infraconstitucional acerca da temática museológica, como decorrência mesmo da construção internacional.

Inicialmente, a Constituição Federal estabelece que a educação e a cultura são direitos de todos e dever do Estado de os fornecer e aprimorar. Justifica-se esta sistemática devido ao reconhecimento de que esses direitos produzem e promovem o desenvolvimento sustentável.

A Constituição Federal, assim como a ordem internacional, além de elencar como direitos assegura a acessibilidade, para que desta forma, os museus não correspondem somente à reunião de obras em acervo:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

(...)

§ 3º A lei estabelecerá o Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do país e à integração das ações do poder público que conduzem à:

(...)

II – produção, promoção e difusão de bens culturais;

(...)

IV – democratização do acesso aos bens de cultura;

(destacou-se)

Evidencia-se que o Estado deve produzir bens culturais, assim como, em nome do Direito à Acessibilidade e do Estado Democrático de Direito, preservar, incentivar e difundir esse genêro de bens.

Compreende-se no conceito de patrimônio cultural brasileiro todos os bens materiais e intelectuais que sejam reconhecidos pela sociedade, dentro de um determinado lapso temporal, como identificadores de sua história:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

(...);

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

(...)

§ 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.

(destacou-se)

Por patrimônio cultural, conforme Chauí apud Rangel, entende-se “Assim, hoje toma-se a cultura como a transformação, pelo homem, das coisas naturais através das invenções coletivas, num tempo determinado, de práticas, valores, símbolos e ideias. Além disso, é uma avaliação pelo homem de seu próprio mundo das obras do pensamento e da arte.” (Educação patrimonial: conceitos sobre patrimônio cultural. In: MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Reflexões e contribuições para a educação patrimonial. Belo Horizonte, 2002)

Dos artigos 215 e 216 da Constituição conclui-se que é apresentada uma classificação enumerativa dos bens que compõem o patrimônio cultural, ou seja, podem outros serem inclusos, no sentido de que a enumeração apresentada não se esgota. Tanto é verdade que o artigo 216 indica gêneros – modos de criar, fazer e viver e criações artísticas. E como criações artísticas compreende-se todas as obras que derivem da concepção intelectual humana.

A proteção não se encerra com as obras colecionadas, mas, envolve o incentivo a nova produção artística, que é, hoje, a representação do modernismo e, amanhã, fará parte da história da cultura. Por isto mesmo especial atenção é oferecida no artigo 215 à democratização do acesso aos bens de cultura.

O incentivo deve seguir também aos artistas nacionais e locais, na tentativa de fomentar com maior empenho a cultura brasileira, inserindo-se os modos de vida e produção. Por exemplo, a gravura (a arte de sulcar e imprimir a imagem pretendida) como arte é uma realidade internacional e nacional. Todavia, o Brasil apresenta uma metodologia específica sobre essa produção, merecendo, especificamente, o incentivo e proteção.

Exemplifica-se a importância dessas políticas de incentivo com o edital que o SESC – Serviço Social do Comércio -, unidade Belenzinho, em São Paulo, mantém, referente ao projeto “VÃO”. Esta unidade possui um átrio que tem sido ocupado, de modo rotativo e periódico, com obra de arte eleita por convite. No primeiro semestre de 2014, em sua quarta edição, teve como vencedora do respectivo edital a artista plástica Maria Bonomi, que instalou a obra “Circumstantiam”.

Trata-se de magnífica obra, que pode ser inclusa no conceito de criação moderna, que fez uso de xilogravuras na sua concepção, que ao final transformou-se em enormes placas através de processo de digitalização, podendo ser visualizada de todos os andares do edifício no qual se encontra. Este exemplo permite que todos os frequentadores e demais interessados visitem a obra gratuitamente e tenham acesso à criação artística de uma das maiores artistas plásticas, destacadamente gravadora, dos últimos sessenta anos (https://www.sescsp.org.br/programacao/29853_CIRCUMSTANTIAM+MARIA+BONOMI?o=homebelenzinho, acesso em 16/05/2014).

O diferencial da iniciativa do SESC é exatamente o fato de ter provocado não a aquisição da obra, mas a elaboração da mesma, ou seja, a criação de arte para ocupação de espaço determinado.

E neste âmbito apresenta-se o Estado como o responsável pela proteção e, de modo precedente, incentivo da cultura e das obras que esta produza. Proteção feita, destacadamente, através dos acervos, sejam eles municipais, estaduais, federais ou particulares.

Faz-se necessário esclarecer, quanto aos acervos particulares, que esses devem ser mencionados neste contexto porque há a previsão legal, por meio do Decreto n.º 8.124/2013, de que, na íntegra ou parcialmente, podem sofrer a intervenção estatal com a possibilidade de se declarar obras de arte de seu acervo como de interesse público.

Destaque-se que a declaração de interesse público alcança somente obras particulares, isto porque o acervo público é de interesse estatal naturalmente, independentemente de declaração.

Esse Decreto evidencia a importância que o Estado oferece ao patrimônio cultural, certo que se permite, por ato legislativo, a declaração de interesse público de obras de terceiros, em suma sobre a propriedade particular. Situação que poderá estabelecer ônus para a comercialização, doação, empréstimo, circulação e preservação da obra de arte objeto da declaração.

Em outra face, tem-se que mesmo estando a obra sob a guarda do Estado, em razão de sua relevância cultural e social, também à sociedade é permitido exercer a proteção, ainda que contra o ente estatal. É o que prevê a Constituição Federal no artigo 5º, em seu inciso LXXIII:

LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Isto porque o artigo 23 determina que ao Estado imputa-se a obrigação da proteção:

Art. 23. É competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios:

[...]

III – proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV – impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural;

V – proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

(destaca-se)

Proteção que pode ser exercida pela sociedade de modo direto ou por meio da intervenção do Ministério Público:

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

[...]

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Esta realidade exige do Estado e possibilita à sociedade a fiscalização para a prevenção de danos, em virtude da responsabilização solidária:

“O princípio da responsabilização decorre do que dispõe a Constituição Federal em seu art. 225 § 3º, verbis: As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. A ampla responsabilidade pelos danos causados ao patrimônio cultural está relacionada com a autonomia e independência entre os três sistemas existentes: civil, administrativo e criminal, de forma que um mesmo ato de ofensa a tal bem jurídico pode e deve acarretar responsabilização, de forma simultânea e cumulativa, nas três esferas, nos exatos termos do que determina a nossa Constituição Federal.”

(Jorge Miranda, Mestres e Conselheiros: manual de atuação dos agentes do Patrimônio Cultural, Belo Horizonte: IEDS, 2009)

A solidariedade se justifica pela identidade de responsabilidades entre as partes envolvidas e em razão da importância do direito tutelado. No sentido de não se perquirir quem é o responsável, mas sim, no âmbito da relação jurídica estabelecida, a forma de se satisfazer um direito prioritário.

Vale transcrever o conceito americano, no qual se evidencia que qualquer parte pode ser obrigada ao cumprimento da obrigação:

“No Direito Civil americano, a obrigação solidária é denominada de “joint obligation”, sendo a obrigação pela qual vários devedores prometem ao credor cumprir o acordo. Quando a obrigação é estipulada apenas como solidária e os devedores não pagam inteiramente aquilo que se comprometeram, eles poderão ser forçados judicialmente a cumprir o acordo.”

(https://www.lectlaw.com/def2/o001.htm, acesso em 16/05/2014)

Em que pese toda a regulamentação constitucional, tem-se, ainda, a esfera infraconstitucional que oferece os meios para a execução da proteção, divulgação e acessibilidade. Inicialmente, tem-se o Decreto-lei n.º 25/1937 estabelece que enumera o que se inclui no conceito de patrimônio artístico:

Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

(destacou-se)

Art. 2º A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessoas naturais, bem como às pessoas jurídicas de direito privado e de direito público interno.

Por sua vez, o Decreto-lei 2.848/1940 acrescenta à temática a abordagem criminal, quando da ocorrência de dano sobre bem de valor artístico:

Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico

Art. 165. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

(destacou-se)

Da legislação infraconstitucional é importante reconhecer que o mal uso ou a inutilização de obras de arte podem ensejar desapropriação, quando a titularidade for do particular, transferindo a obra para acervo público que tenha condições de oferecer à criação os meios necessários de preservação e acessibilidade à sociedade. Por isto, inclusive, o âmbito legislativo penal.

Sabe-se que juridicamente o ato de desapropriação é uma das exceções do Direito sobre a propriedade, e, ainda assim, esta sistemática pode ser aplicada sobre obras de arte, em conformidade ao artigo 5º, inciso XXIV:

XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Após discorrer-se sobre a proteção nacional ao patrimônio cultural, constata-se que, quanto as reservas técnicas, equivocadamente, não têm sido tratadas nos mesmos termos que o acervo “oficial” dos museus. Afetando, sobremaneira, a acessibilidade as obras que são nesses espaços “depositadas”.

No contexto cultural a omissão de atos e posicionamentos, seja por parte do Estado como da sociedade, corresponde a ação mais prejudicial que possa ser exercida (agir pela omissão), certo que afeta o âmbito educacional e do desenvolvimento social. E esta realidade deve ser aplicada ao contexto da existência das reservas técnicas, conforme na sequência se analisa.


IV. A realidade das reservas técnicas

Do até então exposto conclui-se que o acervo museológico possui amparo internacional e nacional. Da mesma forma, constata-se que exerce função primordial voltada à colaboração com o desenvolvimento sócio, econômico e cultural e, ainda, de modo sustentável. E diante desta relevância diferenciada deve ser prestado pelo Estado à sociedade, especialmente quanto à acessibilidade. Por sua vez, à sociedade permitido é fiscalizar e demandar o Estado, seja diretamente, seja por meio do Ministério Público.

Neste contexto, oferece-se destaque à realidade das reservas técnicas. Estas, precedentemente, surgiram como os espaços para as obras em restauro. Todavia, com o tempo, assumiram a função de “depósito”, ou seja, área das obras que não estão em exposição.

Até, então, sem problemas. Contudo, necessário reconhecer que existem museus que mantem como que um segundo acervo através das reservas técnicas. Sem que a sociedade tenha conhecimento e acesso sobre essas obras ou sem previsão para que as mesmas sejam expostas à sociedade. Aliás, algumas entidades nem mesmo obedecem ao princípio da transparência, ao deixarem de levar ao conhecimento da sociedade quais obras integram o seu acervo completo.

Para Antônio Mirabile, as reservas técnicas correspondem a:

“Um local que nos parece particularmente importante para a preservação dos bens culturais é a reserva técnica, onde, com muita frequência, cerca de 95% do patrimônio do museu é conservado”.

(A reserva técnica também é museu, Antônio Mirabile, Boletim Eletrônico da ABRACOR, n. 1, junho/2010)

A criação e manutenção de um acervo museológico é uma tarefa trabalhosa, dispendiosa, complexa e ainda em processo de estudo e aperfeiçoamento. Muitas questões fundamentais ainda estão sendo discutidas pelos especialistas, e em muitas delas ainda não se formaram consensos ou regulamentações definitivas. Todo esse campo está em rápida expansão e contínua transformação. O acervo representa o núcleo vital de todo museu, e em torno do qual giram todas as suas outras atividades.

A reserva técnica, como acervo que é, é gerida pelo curador, o mesmo do acervo “oficial”, que tem a função de manter organizada e em bom estado a coleção em seus depósitos. É claro que a depender do tamanho de alguns museus ou acervos algumas estruturas podem ter diversos conservadores com atividades diferenciadas. Contudo, o que importa é a compreensão de que as obras constantes nas reservas técnicas merecem o mesmo nível de proteção e acessibilidade.

Em certas situações a atenção deve ser até majorada, eis que pode se tratar de obras destinadas à restauração e conservação e não apenas para aguardar a agenda de exposição. Agenda que depende da vontade, muitas vezes, “política” ou de interesses particulares sobre quais obras devem se manter acessíveis ao público.

Imagens de obras em reserva técnica (Museu Paranaense)

Atualmente, ao se analisar o conteúdo das chamadas reservas técnicas, depara-se com obras depositadas que aguardam a restauração, mas também, a agenda de exposição.

Necessário que os acervos identifiquem, em nome do princípio da transparência, qual a motivação de uma obra não estar em exposição, ainda que de modo temporário. Ou ao menos, o curador ou conservador deve fornecer o cronograma de exposição, no qual se constate o período de exposição das referidas obras.

O princípio da transparência dos atos administrativos, aqueles praticados por funcionários públicos ou a serviço da administração pública, em conformidade ao artigo 37 da Constituição, corresponde a administração do acervo cultural de modo claro, induvidoso. No sentido mesmo da sociedade conhecer quais obras na íntegra pertencem ao museu, ainda que não todas em exposição.

Faz-se necessária esta sistemática porque as obras públicas ou declaradas como de interesse público são bens estatais ou de interesse estatal, exigindo, assim, o tratamento destinado por todo e qualquer ato administrativo. Por outro lado, esta sistemática evita o desaparecimento de obras de arte, bem como o locupletamento ilícito com a venda de obras no “mercado negro”.

O mau uso pode ser ilustrado, por exemplo, com a constatação de que obras de arte, um total de 15 (quinze), foram encontradas em uma lixeira próxima ao Departamento de Química da Universidade de São Paulo (!). Dentre as obras estavam trabalhos de Edgar Degas, Maurice de Vlaminck, Maurice Utrillo, Paul Gauguin, Maurice Utrillo e Belmonte. (https://www.estadao.com.br/noticias/impresso,marceneiro-acha-obra-de-arte-no-lixo-da-usp,704272,0.htm, acesso em 20/05/2014).

Em outra face, um exemplo de transparência e atividade voltada à acessibilidade: entre 2013 e 2014 o Museu de Arte de São Paulo realizou programação específica, além do acervo permanente, com obras do acervo não exposto, especialmente voltada aos desenhos e gravuras internacionais e nacionais – “Papeis Estrangeiros da Coleção MASP” e “Papeis Brasileiros da Coleção MASP”.

O ideal, efetivamente, seria que o curador indicasse os motivos para que as obras estejam nas chamadas “reservas”, sendo que se deve aceitar apenas, desde que comprovadamente, a finalidade de restauro, conservação ou rotatividade de exposição. Quanto a esta última justificativa, a resposta deve se fazer acompanhar da previsão para inclusão em agenda de exposição.

Percebe-se mesmo, em algumas exposições, que os museus têm um verdadeiro acervo oculto, sobre o qual não se conhece o motivo da ocultação, do porquê não existirem exposições constantes que divulguem todo o acervo, do porquê estarem em separado do acervo oficial, do porquê do acervo técnico ser tratado como um segundo museu ou mesmo depósito, do porquê da dificuldade de se criar o acervo virtual dessas obras, dentre outros questionamentos.

Dominique Poulot esclarece sobre a reserva técnica que:

“Em um tempo em que a exigência da exposição se assimila a um direito democrático, a reserva de museu, que não deixa de ser requerida pela necessidade de estocagem – parece materializar em confisco intelectual (...) Além desse registro museográfico sob a forma de descoberta do tesouro -, aliás, fórmula utilizada abusivamente por alguns estabelecimentos -, a questão das obras não expostas é uma preocupação legítima”

(Museu e Museocologia, pág. 29)

O correto, legalmente falando, seria que o acervo em reserva técnica o fosse por um curto espaço de tempo, o suficiente para restabelecer as condições de uso da obra ou até que se cumprisse a rotatividade do acervo em demonstração. Caso contrário, a medida mais eficiente é a doação do respectivo acervo ou obras para entidades que possam realizar melhor uso sobre essas criações. Isto porque a acessibilidade é o princípio que deve prevalecer.

Na realidade, o que acontece é que alguns museus e galerias mantem em reserva técnica parte do acervo, independentemente de estarem para restauro ou conservação.

Necessário, nesse sentido, que sejam criadas novas categorias de museus que possam abranger esse acervo; revisão dos métodos de pesquisa, preservação e comunicação; ação de comunicação dos técnicos e grupos sociais, visando o entendimento, a transformação e o desenvolvimento social; e incentivo à apropriação do patrimônio cultural, para que a identidade seja vivida na pluralidade social.

Repita-se, não basta a existência de acervos, necessário, primordialmente, que sobre estes ocorra a acessibilidade.

Cristina Bruno sintetiza a transformação vivenciada e necessária dos museus, repercutindo diretamente sobre as obras dispostas em reservas:

"De instituições elitistas, colonizadoras, sectárias e excludentes, os museus têm procurado os caminhos da diversidade cultural, da repatriação das referências culturais, da gestão partilhada e do respeito à diferença de forma objetiva e construtiva. De instituições paternalistas e autoritárias, os museus têm percorrido os árduos caminhos do diálogo cultural e da convivência com o outro. De instituições isoladas e esquecidas, os museus têm valorizado a atuação em redes e sistemas, procurando mostrar a sua importância para o desenvolvimento socioeconômico. De instituições devotadas exclusivamente à preservação e comunicação de objetos e coleções, os museus têm assumido a responsabilidade por ideias e problemas sociais".

(Museu e Patrimônio Universal, Pernambuco: Encontro do ICOM Brasil, 2007, pág. 6/7)

Outros espaços dispõem em reserva técnica parte do seu acervo como forma de se criar um espaço expositivo próprio e diferenciado. Colocando ao acesso de uma parcela mínima da sociedade (associados, mantenedores) ou cobrando, de modo diferenciado, sobre o acesso a essas obras. Sistemática que pode ser declarada ilegal no caso de ser o acervo público ou parcialmente financiado pela esfera pública (local de instalação, por exemplo, parque ou praça estatal).

Esta situação, diante do amparo legal apresentado, é ilegal e, absolutamente distante das orientações dos tratados internacionais e da ordem jurídica nacional. Representando mal uso do erário e do patrimônio público. Passível, por exemplo, de ação civil pública ou mesmo da impetração de mandado de segurança contra ato da autoridade coatora. Porém, se o acervo for privado e sem o incentivo financeiro público a acessibilidade pode sim ser restringida.

O permissivo para a temática do patrimônio cultural poder ser objeto das duas espécies de acionamentos supracitadas é mais um indicativo de sua relevância internacional e nacional. Isto porque, a ação civil pública é o instrumento a ser utilizado pelo Ministério Público e outras entidades (associações e partidos políticos) para a defesa de direitos indisponíveis, em razão de sua importância à ordem pública. Já o mandado de segurança pode ser utilizado pelo cidadão para a defesa de direito afrontado pela autoridade coatora, ou seja, o próprio Estado.

Como resultado desses acionamentos, pode-se ser determinada a imediata transferência da obra para o acervo oficial do museu ou o afastamento da entidade do espaço público ou a perda do incentivo financeiro recebido pelo Estado.

À reserva técnica, pode-se, ao menos, ser exigida a prestação de contas no sentido de se demonstrar os motivos do afastamento da obra das regras expositivas do museu e a obtenção de uma agenda de compromisso para a sua acessibilidade.

Necessário, portanto, que a reserva técnica seja ocupada apenas com obras que estejam para restauro e conservação. Enquanto que áreas próprias sejam criadas, identificadas e inclusas na agenda de exposição para as obras que abrigam.

O Brasil, infelizmente, não possui uma relação das obras artísticas que estão na posse dos museus. Esta situação leva ao mal uso desse acervo, inclusive com o desvio de obras para acervos particulares ou mesmo comercialização ilícita. Bem como, afasta da sociedade o direito de acesso as mesmas. Esta situação é de interesse público e deve ser o quanto antes equacionada como tema de ordem nacional.


V. Conclusões

Derradeiramente, recomenda-se, como prática estatal e social, que os museus apresentem periodicamente, relatório das obras em acervo, oficial e técnico; indiquem quais obras encontram-se no acervo permanente; indiquem a agenda de exposição da obras que se encontram na reserva técnica; indiquem quais obras encontram-se na reserva técnica para restauro e conservação; e, que se determine que os museus aloquem de modo diferenciado as obras que aguardam restauração e conservação, daquelas que aguardam a agenda de exposição.

Recomenda-se ainda que, em razão do princípio da transparência, essas informações estejam atualizadas para acesso dos interessados, especialmente nos endereços eletrônicos dos museus e galerias, ao menos as que possuem obras declaradas como de interesse público ou que façam jus a alguma espécie de financiamento público.

Desta forma, os museus se apresentam de modo mais organizado para eventuais fiscalizações estatais, inclusive do Ministério Público, e para apresentação de prestações de contas, quando requeridas.

Por outro lado, ter-se-á o melhor acesso a todo o acervo museólogo e melhor e efetivo uso sobre o patrimônio cultural, atingindo ele as missões de preservação, divulgação e acessibilidade.


VI. Bibliografia

BRUNO, Cristina. Museu e Patrimônio Universal. Pernambuco: Encontro do ICOM Brasil, 2007.

COLI, Jorge. O que é Arte. São Paulo: Editora Brasiliense, 15ª ed., 1995.

Dicionário de Português Michaelis. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2014.

IMPERATO, Ferrante. Dell'Historia Naturale. Itália: Nápoles, 1599.

IPHAN - https://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=12810&retorno=paginaIphan, acesso em 29/04/2014.

LECTLAW - https://www.lectlaw.com/def2/o001.htm, acesso em 16/05/2014.

MIRABILE, Antonio. A reserva técnica também é museu. Boletim Eletrônico da ABRACOR, n. 1, junho/2010.

MIRANDA, Jorge. Mestres e Conselheiros: manual de atuação dos agentes do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.

POULOT, Dominique. Museu e Museologia. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013.

RANGEL, M. M. Educação patrimonial: conceitos sobre patrimônio cultural. In: MINAS GERAIS. Secretaria de Estado da Educação. Reflexões e contribuições para a educação patrimonial. Belo Horizonte, 2002.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6ª. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.

SESC - https://www.sescsp.org.br/programacao/29853_CIRCUMSTANTIAM+MARIA+BONOMI?o=homebelenzinho, acesso em 16/05/2014.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Patrícia Luciane de. Aspectos jurídicos da reserva técnica de museus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4055, 8 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30598. Acesso em: 29 mar. 2024.