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A educação de crianças autistas e o papel do Ministério Público

A educação de crianças autistas e o papel do Ministério Público

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É primordial que as crianças autistas, assim como outros portadores de deficiência ou com altas habilidades, tenham meios de acesso ao sistema de ensino regular, já que se deve conferir tratamento igualitário.

1 O direito à educação

O direito à educação, consagrado no artigo 6º, e bem definido no art. 205, ambos da Constituição Federal de 1988[1], é direito de todos e dever do Estado e da família, e visa ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Antes da atual Carta Magna o direito à educação não era obrigação do Estado e o ensino público constituía mero mecanismo de política assistencial, exclusivamente destinado àqueles que não dispunham de condições financeiras para custeá-lo.

Entretanto, a nova concepção do Estado Democrático de Direito ensejou modificações na esfera de atuação do Poder Público, implicando o reconhecimento de algumas garantias essenciais aos cidadãos, considerando-se, a partir de então, como primordial a educação do povo para que se possa exercer plenamente a cidadania.

Já seguindo essa linha de entendimento, o Estatuto da Criança e do Adolescente[2] foi publicado em 1990, com a disposição expressa de que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral, bem como do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação, dentre outros, do direito à educação. Tanto assim, que os pais podem ser responsabilizados caso sejam omissos com relação a esta obrigação (art. 129).

Ao tratar da educação Elson Gonçalves de Oliveira[3] argumenta que:

A lei estabelece como dever do Estado garantir à criança e ao adolescente ensino fundamental obrigatório e gratuito na escola pública. O seu objetivo é assegurar a formação básica do cidadão, mediante o desenvolvimento da capacidade de aprender, de compreender o ambiente natural e social, bem assim formar atitudes e valores, fortalecer os vínculos de família e os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

A inclusão da criança no ambiente escolar é essencial, pois a aquisição de conhecimento e o estabelecimento de vínculos com outros infantes, com professores e educadores, contribuem sobremaneira para a evolução do indivíduo, tornando-o capaz de se relacionar e estar apto para se desenvolver de acordo com a sua faixa etária, podendo galgar todas as etapas até a fase adulta e integrar o meio social em que vive.

Neste tocante, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional[4] (Lei n. 9.394/96), alterada pela Lei n. 12.796/2013[5], dispõe que a educação escolar é constituída do nível básico (pré-escola, ensino fundamental e médio) e superior, abrangendo “os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (art. 1°).

Ainda de acordo com a Lei n. 9.394/96[6], o ensino será ministrado com base nos princípios da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola e da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber.

Do conjunto de normas que tratam da educação no Brasil se pode aferir que em todas as esferas de governo - municipal, estadual ou federal - o ensino e o acesso ao ambiente escolar devem ser oferecidos nos mesmos padrões, evitando disparidades entre as localidades e proporcionando o mesmo nível de aprendizado aos educandos que se encontram com a idade aproximada.

Esse tratamento é reflexo da universalização de acesso, que também não admite diferenciações entre o ensino público ou privado, tampouco entre regiões ou processos pedagógicos, que devem ser implementados de acordo com o norte da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Ao tratar do assunto, Denise Souza Costa[7], em sua Dissertação de Mestrado, ressaltou que:

O ser humano é fonte inesgotável de crescimento e expansão no plano intelectual, físico, espiritual, moral e social. Dessa forma, a educação deve ter de escopo o oferecimento de condições formais e materiais para o desenvolvimento pleno destas inúmeras capacidades, em busca do aprimoramento individual, em condições de liberdade e dignidade. A partir daí a educação deve fomentar valores de cidadania, participação social e econômica, pois no Estado Social, a proteção do direito individual faz parte do bem comum.

Nesse passo, o Supremo Tribunal Federal admitiu a intervenção do Poder Judiciário na atuação do Estado por descumprimento de políticas públicas relacionadas à área da educação. O Relator dessa decisão, o Ministro Celso de Mello, registrou que a educação infantil “representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida, às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola”[8].

E continua o renomado Ministro, exaltando que:

Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito de alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, […] o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se em inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.

A educação infantil, por qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe, em seu processo de concretização a avaliações meramente discricionárias da Administração Pública nem se subordina a razões de puro pragmatismo governamental.[9]

Realmente, como exposto pela Corte Suprema, o direito à educação merece especial destaque, e deve ser, inclusive, assegurado aos portadores daquelas doenças que reduzam a capacidade de discernimento ou causem alguma limitação física ou intelectual, bem como aos infantes com altas habilidades. Apesar da previsão do art. 208, inc. III, da Constituição Federal[10] nesse sentido, podemos considerar a educação especial como uma área que reclama muito aperfeiçoamento para que prevaleça o princípio da igualdade de acesso, destacando-se a preferência pelo ensino regular.

Nesse tocante, a Lei 9.394/96[11] estabelece em seus arts. 58 e 59 que deverá haver apoio especializado na escola regular para atender às necessidades dos alunos portadores de deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.

Segundo o § 3° do art. 58 da norma retro mencionada, a oferta de educação especial, que constitui dever constitucional do Estado, deve ter início na faixa etária de zero a seis anos, durante a educação infantil[12].

Essa obrigatoriedade se estende aos portadores de necessidades especiais, e vem ao encontro da classificação da educação como direito público subjetivo, conforme bem consignado por Hélio Xavier de Vasconselos[13]

A educação é a base da construção da cidadania, atributo da dignidade da pessoa humana, bem maior objeto de tutela pelos denominados direitos fundamentais, como brota do próprio art. 1°, inc. III, da CF.

Nessa senda, o atendimento efetivo da criança não pode deixar de ocorrer, sob pena de violação da regra maior da isonomia e do princípio da dignidade da pessoa humana.

No Estado de Santa Catarina, a Resolução n. 112/2006, do Conselho Estadual de Educação Especial[14], prevê que esta modalidade de ensino deve se fundamentar no princípio da inclusão das pessoas com deficiência física, mental ou sensorial, não havendo espaço para outras deliberações da esfera governista.


2 O autismo e o direito à educação no sistema regular de ensino

O Transtorno do Espectro Autista está definido no art. 1° da Lei n. 12.764/2012[15], segundo o qual para a confirmação do respectivo diagnóstico, a pessoa deve apresentar síndrome clínica assim caracterizada:

I - deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;

II - padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos.

De acordo com a Lei supra citada, o portador de transtorno do espectro autista é considerado pessoa com deficiência para todos os efeitos legais.

Por sua vez, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID-10)[16] inclui o Autismo na ordem dos Transtornos Globais do Desenvolvimento (F84), dispondo especificamente que esse tipo de enfermidade é caracterizado por

F 84.0 […] a) um desenvolvimento anormal ou alterado, manifestado antes da idade de três anos, e b) apresentando uma perturbação característica do funcionamento em cada um dos três domínios seguintes: interações sociais, comunicação, comportamento focalizado e repetitivo. Além disso, o transtorno se acompanha comumente de numerosas outras manifestações inespecíficas, por exemplo fobias, perturbações de sono ou da alimentação, crises de birra ou agressividade (auto-agressividade).

Na mesma classificação ainda são disciplinados o Autismo Atípico, a Síndrome de Rett, outro Transtorno Desintegrativo da Infância, Transtorno com Hipercinesia Associada a Retardo Mental e a movimentos estereotipados e Síndrome de Asperger.

Entretanto, a versão V do Manual de Classificação de Doenças Mentais da Associação Americana de Psiquiatria, lançada em maio de 2013, exclui as categorias Autismo, Síndrome de Asperger, Transporto Desintegrativo e define apenas a denominação Transtornos do Espectro Autista, termo já utilizado na Lei n. 12.764/2012[17].

O psicopedagogo Eugênio Cunha[18] ressalta que o autismo pode surgir nos primeiros meses de vida e os sintomas tornam-se aparentes aproximadamente na idade de 3 (três) anos. De acordo com o especialista, percebe-se na criança

[…] o uso insatisfatório de sinais sociais, emocionais e de comunicação, além da falta de reciprocidade afetiva. A comunicação não verbal é bastante limitada, as expressões gestuais são inexistentes, porque a criança não atribui valor simbólico a eles. Quando quer um objeto, utiliza a mão de algum adulto para apanhá-lo. Uma das maneiras mais comuns de identificar casos de autismo é verificar se a criança aponta para algum objeto ou lugar. A criança autista tem dificuldade para responder a sinais visuais e, normalmente, não se expressa mimicamente, mesmo quando é estimulada.

Segundo Eugênio Cunha[19], a prevalência do Transtorno Autista em estudos epidemiológicos é de cerca de 15 (quinze) casos por 10.000 (dez mil) pessoas, sendo um diagnóstico 4 (quatro) a 5 (cinco) vezes mais comum em meninos do que em meninas.

A criança autista estabelece formas próprias de se relacionar com o mundo exterior, pois não costuma interagir normalmente com familiares ou terceiros, manuseia objetos insolitamente, com problemas evidentes na cognição e reflexos em várias áreas de desenvolvimento.

Ao abordar a questão do aprendizado da criança autista com a influência do mundo exterior, Eugênio Cunha[20] destaca que

O mundo exterior é estimulador para o aprendizado. Por intermédio de suas relações exteriores, a criança aprende os nomes dos objetos, podendo ela utilizá-los de forma funcional ou simbolizar brincadeiras. A informação torna-se conhecimento. Entretanto, no autismo, a sua interação social é prejudicada, esses conhecimentos não são descortinados e os objetos passam a ter funções apenas sensoriais, com pouca contribuição cognitiva; a criança passa a ter dificuldade para simbolizar, nomear e, por conseguinte, passa a ter prejuízos na linguagem. A inteligência não depende somente do que foi herdado, mas soma-se ao indivíduo o que ele adquire nas suas relações com o mundo exterior.

É muito importante a participação efetiva da família e da escola na aprendizagem e no desenvolvimento da criança autista, sendo a atuação dos profissionais da educação essencial, ainda, para o diagnóstico prévio do transtorno, já que podem reconhecer comportamentos que eventualmente não pareçam estranhos aos pais. Além disso, podem estimular o desenvolvimento global do infante, contribuindo para a evolução do quadro clínico e até mesmo superação das limitações do diagnóstico.

Assim é que na escola “devem-se utilizar o afeto e os estímulos peculiares do aluno para conduzi-lo ao aprendizado”, mostrando-se necessário “acuidade para uma precisa avaliação das situações que causam as atitudes prejudiciais, porque elas fomentam o transtorno, limitando o aprendizado”, e o “entendimento preciso dos contextos comportamentais demandará permanente vigilância, sensibilidade e perseverança do educador”[21].

Existem graus de autismo e as limitações podem variar de acordo com o estágio de desenvolvimento da criança. Todavia, a existência de precoce diagnóstico e acompanhamento de profissionais da fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, neurologia e psicopedagogia poderão contribuir no restabelecimento/fortalecimento das funções cognitivas e psicomotoras.

Ante a ausência de um comprometimento severo dessas funções essenciais, é possível incluir o aluno com diagnóstico de transtorno de espectro autista em escolas comuns, utilizando, quando for o caso, os mecanismos elencados no art. 59 da Lei n. 9.394/96[22] para sua plena inserção no ambiente escolar.

O pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa[23] aborda a importância do ensino para o desenvolvimento da pessoa:

O caput do art. 53, ao tratar do direito à educação, hierarquiza os objetivos da ação educativa, colocando em primeiro lugar o pleno desenvolvimento do educando como pessoa, em segundo lugar o preparo para o exercício da cidadania e em terceiro lugar a qualificação para o trabalho. Este é um ordenamento que não pode e não deve ser, em momento algum, ignorado na interpretação deste artigo. Esta hierarquia estabelece o primado da pessoa sobre as exigências relativas à vida cívica e ao mundo do trabalho, reafirmando o princípio basilar de que a lei foi feita para o homem e não o contrário. Isto significa que a pessoa é a finalidade maior, devendo as esferas da política e da produção levarem em conta este fato na estruturação e no funcionamento das suas organizações.

Portanto, é primordial que as crianças autistas, assim como outros portadores de deficiência ou com altas habilidades, tenham meios de acesso ao sistema de ensino regular, já que se deve conferir tratamento igualitário, com a ressalva de serem respeitadas as suas limitações, incentivando-se, sempre, o seu desenvolvimento de maneira plena e sadia.

Em razão da dificuldade de se implementar políticas sociais nessa área, o Programa de Ação Mundial para as Pessoas Deficientes, de 1992[24], orienta que para se alcançar os objetivos de "igualdade" e "participação plena"

[…] não bastam medidas de reabilitação voltadas para o indivíduo portador de deficiência. A experiência tem demonstrado que, em grande medida, é o meio que determina o efeito de uma deficiência ou de uma incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa. A pessoa vê-se relegada à invalidez quando lhe são negadas as oportunidades de que dispõe, em geral, a comunidade, e que são necessárias aos aspectos fundamentais da vida, inclusive a vida familiar, a educação, o trabalho, a habitação, a segurança econômica e pessoal, a participação em grupos sociais e políticos, as atividades religiosas, os relacionamentos afetivos e sexuais, o acesso às instalações públicas, a liberdade de movimentação e o estilo geral da vida diária.

Especialmente sobre o ensino, o referido Programa[25] alerta que:

64. Pelo menos 10% das crianças têm alguma deficiência e não têm o mesmo direito à educação que aquelas que não a têm. Elas necessitam de uma intervenção ativa e de serviços especializados. Mas, nos países em desenvolvimento, a maioria das crianças deficientes não recebem nem educação especializada nem educação convencional.

65. A situação varia consideravelmente de acordo com os países; em alguns deles, as pessoas deficientes podem atingir um nível elevado de instrução; em outros, suas possibilidades são limitadas ou inexistentes.

66. O estágio atual dos conhecimentos registra uma grande amplitude no que diz respeito às capacidades potenciais das pessoas deficientes. Além disso, freqüentemente não existe legislação que trate de suas necessidades e da falta de pessoal docente e de instalações. Na maioria dos países, as pessoas deficientes ainda não dispõem de serviços de educação para as diferentes fases da vida.

67. No campo da educação especial, tem-se conseguido progressos significativos e inovações importantes nas técnicas pedagógicas, havendo ainda muita coisa que pode ser feita em prol da educação das pessoas deficientes. Porém, na maioria das vezes, os progressos limitam-se somente a um número muito reduzido de países ou a alguns centros urbanos.

68. Tais progressos referem-se à detecção precoce, à avaliação e intervenção contínua nos programas de educação especial em situações diversas, tornando possível que muitas crianças com deficiências incorporem-se aos centros escolares comuns, enquanto outras crianças requerem programas especiais.

Logo, não se pode medir esforços para que o processo de inclusão dessas crianças tenha início já nos primeiros anos de vida, na pré-escola, porquanto esta intervenção poderá contribuir para melhora do quadro geral do transtorno. Esta medida torna-se mais eficaz ao tratamento porque é na primeira e na segunda infância que a criança revela o interesses por outros infantes e as habilidades motoras simples e complexas aumentam, com a aquisição de habilidades físicas e o seu aperfeiçoamento[26].

Em sua dissertação de Mestrado, Élida Tamara Prata de Oliveira Praça[27] destaca que “os resultados do Censo Escolar da Educação Básica vêm apontando um crescimento significativo no número de alunos com necessidades especiais, matriculados nas classes comuns do ensino regular dos estabelecimentos públicos de ensino”.

Nesse rumo, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)[28] em articulação com os sistemas de ensino implementa políticas educacionais nas áreas de alfabetização e educação de jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação especial, do campo, escolar indígena, quilombola e educação para as relações étnico-raciais, tendo como objetivo principal contribuir para o desenvolvimento inclusivo dos sistemas de ensino.

E para que esses ideais sejam alcançados, a SECADI lançou em 2012 uma Cartilha direcionada aos pais, sobre a inclusão das crianças com deficiências em escolas comuns de ensino regular, destacando que elas não podem ser alvo de discriminação ou serem [des]qualificadas pela sua capacidade de compreensão e aprendizado. Também há previsão para adaptação do Projeto Pedagógico e a criação de ambientes adaptados para alunos com necessidades físicas ou sensoriais.

Extrai-se dessa Cartilha[29] que

O Atendimento Educacional Especializado tem por objetivo identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos estudantes, considerando suas especificidades. Dentre as atividades do AEE são disponibilizados programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização e tecnologia assistiva.

É preciso, pois, que seja contínuo o investimento na qualificação dos professores, que devem estar preparados para esse atendimento especializado e também para a integração desses educandos em classes comuns, tal como disciplinado no art. 59 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação[30]. Somente quando não for possível a sua integração no ensino regular, é que o aluno portador de deficiência será direcionado para classes, escolas ou serviços especializados.

Élida Tamara Prata de Oliveira Praça[31] registra que o importante é que “mesmo tendo suas diferenças, sua limitações, o aluno com deficiência seja tratado igualmente perante os outros colegas, pois as pessoas deficientes possuem os mesmos direitos de um 'cidadão comum', inclusive o direito de não serem discriminados”.

O profissional da educação deve trabalhar habilidades específicas para a inclusão de crianças autistas em classes de ensino regular, dispondo de serviços de apoio pedagógico especializado, e instruindo os demais colegas de sala de aula a respeitar as diferenças e a incentivar o desenvolvimento do portador de deficiência. Este será um passo importante para que o direito à educação seja pleno e acessível e transforme a realidade social do nosso País.


3 A legitimidade do Ministério Público para atuar na efetivação do direito à educação da criança autista

O art. 127 da Constituição Federal[32] estabelece que o “Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” e constitui uma das suas funções “zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias à sua garantia”.

No mesmo sentido, a Lei 8.069/1990[33] dispõe que ao Ministério Público compete zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis (art. 201, inc. VIII).

A legitimidade do Ministério Público resta bem definida na Carta Magna e no Estatuto da Criança e do Adolescente, com previsão específica para atuar em defesa de interesses individuais indisponíveis, como a educação.

Adão Bonfim Bezerra[34] leciona sobre o tema, ressaltando:

Interesse individual - diz-se daquele que se refere a um só indivíduo e, por isso, sujeito, quase sempre à manifestação do próprio interessado diretamente em juízo. Os interesses individuais relativos à infância e à adolescência são indisponíveis, por isso compreendidos na esfera de atribuição do Ministério Público, à luz do art. 201, V, do ECA, e - veja-se - com exclusividade, porquanto o ECA, em seu art. 210, ao elencar os legitimados para a ação civil concorrentemente com o Ministério Público, limitou-se às ações fundadas em interesses coletivos e difusos, coerentemente com a linha adotada pela Lei 7.347, de 24.7.85. Isto faz concluir que a única legitimação para a ação civil fundada em direito individual relativo à infância e à juventude é estabelecida com exclusividade para o Ministério Público, ao cotejo da regra de legitimação do art. 210 c/c o art. 201, V, do ECA, consonantemente com o art. 127, caput, da CF, mesmo que a indisponibilidade seja por inferência legal, isto é, se algum interesse relativo à criança e à juventude não for indisponível conceitualmente, sê-lo-á por ficção legal.

O renomado Hugo Nigro Mazzilli[35], por sua vez, disserta que

As funções institucionais do Ministério Público devem ser iluminadas pelo zelo de um interesse social ou individual indisponível, ou então, pelo zelo de um interesse difuso ou coletivo. Sua atuação processual dependerá ora da natureza do objeto jurídico da demanda, ora se ligará à qualidade de uma das partes, quer porque de seus interesses não possam elas dispor, senão limitadamente, quer porque seus titulares padecem de alguma forma de acentuada deficiência, que torna exigível a intervenção protetiva ministerial.

Reforçando essa legitimidade do Ministério Público, o art. 5° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional[36] dispõe que o acesso à educação básica obrigatória é direito público subjetivo, “podendo qualquer cidadão, grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou outra legalmente constituída e, ainda, o Ministério Público, acionar o poder público para exigi-lo”.

Diante desse conjunto de normas, evidente a legitimidade do Ministério Público para atuar em defesa do direito da criança autista que tem recomendação para integrar turmas de ensino regular, desde que não apresente severa limitação cognitiva que a impeça de participar do ambiente escolar comum.


Considerações finais

O atual estágio de desenvolvimento do Estado Democrático de Direito não pode admitir que infantes portadores de deficiência sejam alvo de discriminação por parte das próprias políticas públicas voltadas à educação. É inconcebível que lhes seja negado o direito à instrução e à convivência com outras crianças da mesma faixa etária no ambiente de aprendizagem.

Ao Ministério Público compete, inclusive, fiscalizar as instituições de ensino e também exigir que os professores sejam qualificados para trabalhar com alunos com necessidades especiais, utilizando, quando recomendado, as salas de apoio multifuncional.

É importante, ainda, que as instituições de ensino tenham em seu quadro profissionais da psicologia para que auxiliem na orientação dos professores e dos alunos no processo de inclusão de crianças autistas, e o Ministério Público atue de modo efetivo, disseminando a aceitação das diferenças, com respeito às idiossincrasias, para que a escola seja um ambiente de aprendizagem e de desenvolvimento.

A necessidade de atuação do Parquet é reforçada pelo fato de que em um Estado Democrático de Direito recentemente criado e em consolidação é de se admitir que os portadores de deficiência ainda se encontram em fase de integração na sociedade, justificando a implementação e a cuidadosa fiscalização das políticas sociais específicas.

Não é tão histórica em nosso país a condição de enclausuramento daquelas pessoas que eram consideradas “especiais” e que, portanto, em razão destas “anormalidades” deveriam ser retiradas do convívio e marginalizadas por revelarem, aos olhos do senso dito comum, a incapacidade de integrar o meio social.

Foi com a publicação da Constituição Federal de 1988, e posteriormente da Lei n. 7.853/89, que foi disciplinada a integração social das pessoas portadoras de deficiência. Integrar, no sentido de juntar-se tornando parte integrante, é muito mais amplo do que apenas inserir esses indivíduos na sociedade. É preciso reconhecer as suas habilidades e a capacidade de serem, sim, sujeitos de direitos, em razão do primado da igualdade.

Perante a lei, somos todos iguais, e cada um deve ser respeitado de acordo com os seus atributos pessoais, proporcionalmente considerados em relação aos direitos e às garantias fundamentais que nos são assegurados.

E é com esse afinco que este trabalho destaca a necessidade de o Poder Público e a sociedade dispensarem maiores cuidados às crianças portadoras de transtorno do espectro autista e que tenham condições de integrar classes regulares de ensino. Não basta a criação da Lei n° 12.764/2012, sem, contudo, implementar-se mecanismos para efetivação da política correspondente, com a preparação dos profissionais que lidarão com essas pessoas em desenvolvimento.

Como sujeitos de direitos, os autistas merecem igual oportunidade de se prepararem para a vida plena em sociedade, ainda que não seja em condição de independência total. Não é por outra razão que a educação deve ser assegurada em sua condição absoluta.

Portanto a educação especial, disponibilizada em unidades próprias, deve ser resguardada para aqueles que possuem indicação médica expressa e que necessitam de acompanhamento de equipe multidisciplinar para desenvolvimento das suas habilidades. Como consequência, é preciso preservar a individualidade do atendimento e também a seletividade dos casos clínicos que não têm sugestão para ensino regular.

Nesse cenário, em havendo a cultura arraigada da inferiorização da pessoa portadora de deficiência, num momento de evolução da sociedade em que ainda há discriminação e rejeição à integração desses indivíduos, compete ao Ministério Público, como defensor dos interesses sociais e individuais indisponíveis, atuar para que o direito à educação seja garantido em sua plenitude às crianças autistas.


Notas

[1]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[2] BRASIL. Lei n. 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em 5 de ago. De 2013.

[3]OLIVEIRA, Elson Gonçalves de. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. Campinas: Servanda Editora, 2011.

[4]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[5]BRASIL. Lei n. 12.796/2013. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para dispor sobre a formação dos profissionais da educação e dar outras providências.. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12796.htm#art1>. Acesso em 5 ago. 2013.

[6]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[7]COSTA, Denise Souza. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-RS, intitulada “O Direito Fundamental à Educação no Estado Constitucional Contemporâneo e o Desafio da Universalização da Educação Básica”.

[8]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 639.337 AgR/SP. Segunda Turma. 23/08/2011. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428>. Acesso em 5 ago. 2013.

[9]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARE 639.337 AgR/SP. Segunda Turma. 23/08/2011. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=627428>. Acesso em 5 ago. 2013.

[10]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[11]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[12]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[13]VASCONSELOS, Hélio Xavier de. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado – comentários jurídicos e sociais. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.

[14]SANTA CATARINA. Resolução n. 112/2006. Fixa normas para a educação especial no Sistema Estadual de Educação de Santa Catarina.

[15]BRASIL. Lei n. 12.764/2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3o do art. 98 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[16]ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID-10. Disponível em: <www.datasus.gov.br/cid10/v2008/cid10.ht Acesso em: 5 ago. 2013.

[17]BRASIL. Lei n. 12.764/2012. Institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista; e altera o § 3o do art. 98 da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12764.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[18]CUNHA, Eugênio da. Autismo e inclusão: psicopedagogia, práticas educativas na escola e na família. 4. ed. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2012.

[19]CUNHA, Eugênio da. Autismo e inclusão: psicopedagogia, práticas educativas na escola e na família. 4. ed. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2012.

[20]CUNHA, Eugênio da. Autismo e inclusão: psicopedagogia, práticas educativas na escola e na família. 4. ed. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2012.

[21]CUNHA, Eugênio da. Autismo e inclusão: psicopedagogia, práticas educativas na escola e na família. 4 ed. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2012.

[22]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[23]COSTA, Antônio Carlos Gomes da. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado – comentários jurídicos e sociais. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010.

[24]ONU. Programa de Ação Mundial para as Pessoas Deficientes. Disponível em: <http://www.educacao.salvador.ba.gov.br/site/documentos/espaco-virtual/espaco-educar/educacao-especial/documentos/programa%20de%20acao%20mundial%20para%20pessoas%20deficientes.pdf>. Acesso em 5 ago. 2013.

[25]ONU. Programa de Ação Mundial para as Pessoas Deficientes. Disponível em: <http://www.educacao.salvador.ba.gov.br/site/documentos/espaco-virtual/espaco-educar/educacao-especial/documentos/programa%20de%20acao%20mundial%20para%20pessoas%20deficientes.pdf>. Acesso em 5 ago. 2013.

[26]TRINDADE, Jorge. Manual de Psicologia para Operadores do Direito. 4 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

[27] PRAÇA, Élida Tamara Prata de Oliveira. Uma reflexão acerca da inclusão de aluno autista no ensino regular. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Matemática, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática. Universidade Federal de Juiz de Fora.

[28]SECADI/MEC. Cartilha BPC na escola – 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17009&Itemid=913>. Acesso em 5 ago. 2013.

[29]SECADI/MEC. Cartilha BPC na escola – 2012. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=17009&Itemid=913>. Acesso em 5 ago. 2013.

[30]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[31] PRAÇA, Élida Tamara Prata de Oliveira. Uma reflexão acerca da inclusão de aluno autista no ensino regular. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Educação Matemática, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação Matemática. Universidade Federal de Juiz de Fora.

[32]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[33] BRASIL. Lei n. 8.069/1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.

[34]BEZERRA, Adão Bonfim. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

[35]MAZZILLI, Hugro Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989.

[36]BRASIL. Lei n. 9.394/1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 5 ago. 2013.


Autor

  • Naiara Czarnobai Augusto

    SECRETARIA DE INTEGRIDADE E GOVERNANÇA no Governo do Estado de Santa Catarina. Peofissional bacharel em Direito, e pós-graduada em Direito Penal e Processual Penal, em Propriedade Intelectual, em Compliance e Direito Corporativo. Possui Certificação internacional em compliance público.

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AUGUSTO, Naiara Czarnobai. A educação de crianças autistas e o papel do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4137, 29 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30697. Acesso em: 28 mar. 2024.