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Reforma parcial do Código Penal

Reforma parcial do Código Penal

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Introdução

O Código Penal Brasileiro, nascido com o Decreto - Lei 2848, de 7 de dezembro de 1940, tem sido alterado ao longo do tempo, para colocá-lo em harmonia com as diversas tendências do Direito Penal Moderno, contemplando-o com novos modelos penais, antes mesmo do Projeto do Código Penal, transformar-se em lei. Esta iniciativa nem sempre foi das mais felizes.

Com a Lei 7209, de 11 de julho de 1984, o velho Código experimenta a revisão da parte geral, e, na Parte Especial, dos valores das multas, após amplos estudos de renomados penalistas, antecipando desta forma a adoção de nova política criminal, abrindo as portas para a implementação das reformas do sistema, conforme relata o então Ministro Ibrahim Abi - Ackel, na Exposição de Motivos.

A Lei 9983, de 14 de julho de 2000 [1], altera disposições da Parte Especial e insere novas figuras penais. O artigo 1º acresce ao Código, na Parte Especial, os artigos 168-A(APROPRIAÇÃO INDÉBITA PREVIDENCIÁRIA), 313-A ( INSERÇÃO DE DADOS FALSOS EM SISTEMA DE INFORMAÇÕES ), 313-B (MODIFICAÇÃO OU ALTERAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE SISTEMA DE INFORMAÇÕES), 337-A ( SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA ) e o artigo 2º modifica a redação dos artigos 153 (DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÕES SIGILOSAS OU RESERVADAS), 296 (ALTERAÇÃO, FALSIFICAÇÃO, USO INDEVIDO DE MARCAS), 297 (FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO PÚBLICO - OMISSÃO NA CARTEIRA DE TRABALHO ), 325 ( ACESSO NÃO AUTORIZADO A SISTEMA DE INFORMAÇÕES OU BANCO DE DADOS )e 327 (AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE FUNCIONÁRIO PÚBLICO). Por outro lado, o artigo 3º deu nova redação ao artigo 95 da Lei 8212, de 24 julho de 1991. Essa lei entrou em vigor noventa dias após a data de sua publicação.

Nenhum desses modelos penais prevê a modalidade culposa ou o crime resultante de erro, caso fortuito ou força da natureza. O dolo é o vetor desses delitos.

CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

O direito penal objetivo constitui-se de normas que disciplinam os crimes ou delitos e as contravenções e as respectivas penas e medidas de segurança.

Neste sentido, esse direito é estudado sob a ótica substantiva e adjetiva. No primeiro caso, conceitua os crimes ou os delitos e estabelece as penas, seguindo o sacrossanto princípio de que não há crime nem pena sem prévia lei - nullum crimen, nula pena, sine previa lege, agasalhado pelo Direito Moderno e inserto na Constituição Federal, entre os direitos e garantias fundamentais, com fonte na doutrina traçada por Beccaria e ainda na Carta do Rei João Sem Terra.

Não se admite, disciplina de matéria penal, por medida provisória, consoante doutrina torrencial e jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal. [2]

O direito penal adjetivo ou processual delineia a forma pela qual se há de concretizar o direito penal substantivo.

Sublinhe-se, com Maggiore [3], que as idéias de crime, pena, imputabilidade, culpa, dolo, ação, causalidade, liberdade, erro e outras mais, são conceitos de ordem filosófica, visto que, como ensina, magistralmente, a doutrina do direito sem filosofia assemelha-se a uma daquelas estátuas antigas, que ostentavam belos, mas não tinham pupilas. É um frasco de perfume que se evaporou totalmente, não guardando nada da substância original. Ou, ainda, uma obra de arte sem alma.

O direito deve andar de mãos dadas com a realidade, sob pena de fenecer solitária. Vale dizer: A lei espelha o comportamento e a consciência social de um povo e de uma época e deve-se comungar com as novas realidades e tendências que despontam, para não se afastar de vez do homem e fenecer solitária.

Da vingança privada, evoluiu a humanidade para o estágio mais adiantado da civilização, dito humanitário, elevando-se à defesa e conservação da sociedade, na palavra sábia de Basileu Garcia [4].

Cesare Bonnesana, o Marquês de Beccaria, com sua pequena colossal obra, Dos Delitos e das Penas, no final do século XVIII, causou profunda revolução no campo do direito penal, iluminando, com seu facho de luz, as trevas em que estava mergulhada a civilização, de sorte que o direito penal desde então tomou outra feição, mais humana, menos cruel, mais requintada e, sobretudo, mais generosa.

CULPABILIDADE

A culpabilidade é o nexo causal subjetivo que entrelaça o delito ao seu autor. A coincidência entre o fato e a descrição da norma penal dever ser absoluta. Será crime o comportamento humano que se enquadrar, na plenitude, em um dos figurinos consignados nesta lei.

Mas há que se indagar o elemento subjetivo, isto é, se o agente, sujeito ativo, o autor da ação, quis ou não praticar o ato criminoso, o ato qualificado como crime pela lei. A vontade adquire importância fundamental, na ocorrência do crime.

O dolo e a culpa são os elementos subjetivos, primordiais do direito penal. Somente se punirá a ação humana, ensina o eminente e saudoso Basileu Garcia [5], quando se puder atribuir a culpa, lato sensu, ao autor. Assim, não será culpado o sujeito ativo, se estiver ausente o elemento subjetivo: dolo ou culpa stricto sensu.

O dolo configura-se pela consciência e vontade da realização do ato, tipificado como crime [6]. Para Damásio de Jesus, que adota a teoria finalísta, basta a vontade de concretizar o ato, prescindindo da consciência do ato contrário à lei.

Para o Código Penal, ocorre o crime doloso direto, quando o autor da infração ou o sujeito ativo quer o resultado, quer especificamente realizar aquela conduta. Se apenas assume o risco de produzi-lo, não se importando propriamente com o resultado, há que se falar em dolo eventual. Todavia, ele consente no resultado.

A culpa, no sentido restrito é o elemento subjetivo da infração penal que se caracteriza pela ausência de vontade de produzir o ato. Tampouco, há o risco de assumi-lo. O crime, isto é, a infração consuma-se, em virtude da imperícia (falta de prática ou ausência de conhecimento ), imprudência (imprevidência ) ou negligência ( falta de atenção ou de cuidado) do sujeito ativo (autor do crime ). A culpa pode ser consciente ( o sujeito prevê o resultado mas está certo de que nada aconteça ) e inconsciente ( o sujeito não a prevê, mas ela é perfeitamente previsível ).

A culpa não se presume. O crime culposo será assim punido ser estiver expressamente prevista a culpa. Do contrário, o crime será doloso.

CRIME FORMAL

A consecução do crime formal ou de mera conduta independe dos efeitos que venham a ocorrer. Não há necessidade do resultado para que se consume o crime. [7] É suficiente o eventus periculi ou o dano em potencial, ou seja, a consumação antecede ao eventus damni, daí por que Nelson Hungria cognomina de consumação antecipada. [8]

CRIME COMISSIVO OU OMISSIVO

O crime pode ser comissivo ou omissivo. No primeiro caso, o agente, pratica a ação, tendo um comportamento positivo, de conformidade com o tipo penal. No segundo caso, o comportamento caracteriza-se pela inércia do autor. Não há ação. Assim, no crime de omissão de socorro, o autor deveria prestar socorro e não o fez.

Paulo José da Costa fala também nos crimes comissivos por omissão, que desatendem uma ordem proibitiva.

A PENA [9]

A pena, segundo a doutrina, destacando-se Cuello Calón, é o sofrimento que o Estado, ao executar uma sentença, impõe ao réu, culpado de uma infração penal. Suprimida a pena, deixa de existir a norma penal [10].As penas podem ser corporais, privativas da liberdade, restritivas da liberdade, pecuniárias e privativas de direitos. Hoje, a tendência é a aplicação da pena alternativa, já consubstanciada no direito positivo pátrio [11].

O tema proposto é por demais significativo e está intimamente ligado ao sistema de aplicação da pena. O direito penal desprovido da pena importa simplesmente na negação deste direito, desprotegendo a sociedade e incentivando a criminalidade, gerando o caos, a violência e a destruição da própria sociedade.

Se, de um lado, a doutrina penal tem-se preocupado com essa tormentosa questão da proporcionalidade da pena e, portanto, da sua justa aplicação, o direito positivo moderno impede o juiz de aplicar a pena arbitrariamente, porque é sempre o fraco que sofre. Em assim sendo, surge a doutrina em que o magistrado deverá aplicar a pena, rigidamente, de conformidade com o que está estipulado na lei. Entretanto, devido às injustiças, na sua aplicação, com a Escola Positiva, a pena dosimétrica caiu no descrédito e, então, deu-se mais atenção às condições particulares do criminoso, à sua individualidade física, antropológica e moral.

O Estatuto Penal vigente dá ao juiz amplas possibilidades, no sentido de aferir a personalidade do réu, as agravantes, as atenuantes, a gravidade do fato, pesquisando a vida pregressa do réu.


Novas modalidades criminosas: Apropriação indébita previdenciária

O artigo 168-A está inscrito no Capítulo V, que trata da apropriação indébita, inserta no Título II, referente aos crimes contra o patrimônio.

Apropriar-se de coisa alheia móvel, de quem tem a posse ou a detenção é o conceito do artigo 168. A pena é de reclusão de um a quatro anos, e multa, sendo aumentada, nas hipóteses que menciona ( são as qualificadoras - agravantes).

Se ficar demonstrado que a coisa havida se deu por erro, caso fortuito ou força da natureza, a pena passa a ser de detenção de um mês a um ano, ou multa.

Para a ocorrência do crime, faz-se necessária a existência do dolo genérico, que é a consciência e a vontade de apropriar-se o agente da coisa alheia móvel, e do dolo específico, que, na lição de Paulo José da Costa, é a intenção de ter, gozar e dispor da coisa alheia, como se proprietário fosse, bem como do animus lucrandi, ou seja, do dolo de proveito. [12] Ainda, segundo os ensinamentos deste autor, o dolo é superveniente à posse ou à entrega da coisa.

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa a quem tenha sido entregue coisa móvel, no todo ou em parte, de terceiro ( objeto ). É preciso que o autor se comporte como proprietário da coisa.

Às hipóteses criminosas deste capítulo, aplica-se o disposto no §2º do artigo 155, verbi gratia: se o autor for primário e a coisa furtada for de pequeno valor, a pena de reclusão poderá ser substituída pela de detenção, diminuída de um a dois terços, ou substituída pela pena de multa.

O crime de apropriação indébita previdenciária, insculpida no artigo 168-A, configurar-se-á quando o autor deixar de repassar à Previdência Social as contribuições [13] recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional, desde que o dolo esteja presente.

A pena é de reclusão, de dois a cinco anos, e multa. Portanto, muito superior à da apropriação indébita comum.

O sujeito ativo é todo aquele que não repassar à Previdência Social as contribuições recolhidas dos contribuintes, na forma legal ou convencional e no prazo determinado. O sujeito passivo é forçosamente a Previdência Social.

Incorre nas mesmas penas quem deixar de:

I – recolher, no prazo legal, contribuição ou outra importância destinada à Previdência Social que tenha sido descontada de pagamento efetuado a segurados, a terceiros ou arrecadada do público.

II – recolher contribuições devidas à Previdência Social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços.

III - pagar benefício devido a segurado, quando as respectivas cotas ou valores já tiverem sido reembolsados à empresa pela Previdência Social.

Entretanto, a lei prevê, especificamente, a extinção da punibilidade, no caso de o agente, espontaneamente, declarar, confessar e efetuar o pagamento das contribuições, importâncias ou valores e prestar as informações devidas à Previdência Social, na forma indicada em lei ou regulamento. Esta benesse somente poderá ser invocada, se ocorrida antes do início da ação fiscal.

Também fica facultado ao juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa, se o autor do delito for primário e de bons antecedentes, sob a condição de haver ele promovido, após o início da ação fiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamento da contribuição social previdenciária, juntamente com os acessórios.

O pagamento deve ser efetuado, conforme preceituado pelo Código Tributário, não se excluindo a dação em pagamento. [14]Na esfera da Previdência Social, esta modalidade é regulada pela Instrução Normativa n° 40, de 7 de novembro de 2000, que fixa os critérios para a dação em pagamento de imóveis urbanos desonerados para amortização ou quitação de débitos para com a Previdência Social.

O parcelamento do débito não se presta à obtenção desse favor legal, como aliás se manifestou o Presidente da República, ouvido o Ministério da Previdência e Assistência Social, ao vetar o inciso I do § 2º do artigo 337-A, fundado em sólida orientação pretoriana [15].

Se o valor das contribuições e dos acessórios for igual ou inferior ao estabelecido pela Previdência Social, na área administrativa, como sendo o mínimo para o ajuizamento das execuções fiscais, o juiz também poderá deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa, semelhantemente à hipótese analisada acima.

São situações distintas a extinção da punibilidade e a não aplicação da pena ou sua substituição.

A punibilidade é a conseqüência do crime, consoante prelecionam Celso Delmanto, Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Junior e Fabio Machado de Almeida Delmanto [16]. A extinção da pena dá-se pelas causas previstas no artigo 107 do Código Penal e por outras descritas em lei. O Estado deixa então de punir os infratores.


INSERÇÃO DE DADOS FALSOS EM SISTEMA DE INFORMAÇÕES

Esta nova figura delituosa está sediada no Título XI destinado aos crimes contra a Administração Pública e o crime conceituado no artigo 313-A do Código Penal (inserção de dados falsos em sistema de informações) inscreve-se no capítulo específico dos crimes praticados por funcionário público contra a Administração em geral [17]. Este capítulo trata dos crimes de peculato ( artigo 312), extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento ( artigo 314 ), emprego irregular de verbas ou renda pública ( artigo 315 ), concussão ( artigo 316 ), excesso de exação ( artigo 316, § 1º ), corrupção passiva (artigo 317 ), facilitação de contrabando ou descaminho ( artigo 318 ), prevaricação ( artigo 319), condescendência criminosa ( artigo 320 ), advocacia administrativa (artigo 321 ), violência arbitrária ( artigo 322 ), abandono de função ( artigo 323 ), exercício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado ( artigo 324 ), violação de sigilo funcional ( artigo 326 ) e violação de sigilo ou proposta de concorrência (artigo 326 ). [18]

A pena para os crimes catalogados no novo dispositivo ( artigo 313-A) é de reclusão de 2 a 12 anos, e multa.

O legislador é bastante severo, dada a gravidade dos bem tutelado, todavia, esqueceu-se de propiciar ao magistrado a possibilidade de não aplicar a pena ou substituí-la pela de multa, como o fez, com relação a crimes mais graves, como o de apropriação indébita previdenciária ou sonegação de contribuição previdenciária. Nem autorizou o legislador a extinção da punibilidade

Os delitos: inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano.

Note-se que o cerne é obter a vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano e o funcionário deve estar autorizado, para tal.

Modificação ou alteração não autorizada de sistema de informações

O artigo 313-B, paradoxalmente, prevê uma pena mínima, inexpressiva, em relação aos crimes do artigo anterior, de três meses a dois anos de detenção, mais a multa, apesar de, nas hipóteses do artigo 313-A, o funcionário estar a autorizado a fazê-lo e nestas, ele o faz sem autorização ou solicitação da autoridade competente. Se destes comportamentos resultar dano para a Administração ou para o administrado, as penas são acrescidas de um terço até a metade.

Também aqui não se mostrou o legislador propenso a propiciar, expressamente, a faculdade de o juiz não aplicar a pena ou extingui-la, sob determinadas condições.

Há uma disparidade inexplicável no tratamento dessas hipóteses, com penas, sem dúvida, desproporcionais, ferindo o princípio da proporcionalidade das penas.


            SONEGAÇÃO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA

Suprimir (impedir que apareça, anular, extinguir, omitir [19]) ou reduzir (tornar menor [20]) contribuição social [21] previdenciária e qualquer acessório, consubstancia o crime do artigo 337-A, desde que se configurem as seguintes condutas:

*omitir de folha de pagamento da empresa ou de documento de informações previsto pela legislação previdenciária segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou trabalhador autônomo ou a este equiparado que lhe prestem serviços;

*deixar de lançar mensalmente nos títulos próprios da contabilidade da empresa as quantias descontadas dos segurados ou as devidas pelo empregador ou pelo tomador de serviços;

*omitir, total ou parcialmente, receitas ou lucros auferidos, remunerações pagas ou creditadas e demais fatos geradores de contribuições sociais previdenciárias.

A pena é a mesma prevista para o crime de apropriação indébita previdenciária: dois a cinco anos de reclusão, e multa. Equipara-se à pena prevista para o crime de subtração ou inutilização de livro ou documento: reclusão de dois a cinco anos.

Também aqui, a lei permite ao juiz decretar a extinção da punibilidade, nos mesmos casos do crime de apropriação indébita previdenciária. No primeiro caso, além de confessar, deve efetuar o pagamento. Neste, o legislador omitiu esse fato.

O juiz pode deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa, se o valor das contribuições devidas, inclusive acessórios, seja igual ou inferior àquele estabelecido pela Previdência Social, administrativamente, como sendo o mínimo para o ajuizamento de suas execuções fiscais, desde o agente seja primário e tenha bons antecedentes, e reduzir a pena de um terço até a metade, ou aplicar apenas a de multa, se o empregador não é pessoa jurídica e sua folha de pagamento mensal não ultrapassa R$ 1.510,00 (um mil, quinhentos e dez reais).

O parcelamento do débito não é meio hábil, para o juiz deixar de aplicar a pena ou aplicar somente a de multa. [22]

A lei manda, que, neste caso, se faça o reajuste do valor acima, nas mesmas datas e nos mesmos índices do reajuste dos benefícios previdenciários.

Estes crimes inserem-se no Título XI referentes aos crimes contra a Administração Pública, mas no capítulo destinado aos crimes praticados por particular contra a Administração em geral. O intuito é resguardar a Administração.


ALTERAÇÕES DE FIGURAS DELITUOSAS: DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÕES

O legislador, no Título I, da Parte Especial, dos crimes contra a pessoa, no Capítulo VI, que trata dos crimes contra a liberdade individual, na Seção IV, acrescentou o § 1º-A ao artigo 153, que prevê o crime de divulgação de segredo.

Interessante é o comentário procedido por Paulo José da Costa, ao artigo 153, citando Soler. Afirma que, se o destinatário da carta é o remetente, o conteúdo intelectual pertence naturalmente ao titular daquela [23].

Exige a lei a consciência da potencialidade do dano, para a configuração do crime, ou seja, o dolo. Exclui-se o crime na ausência do dolo.

A pena para este crime é de detenção de um a seis meses, ou multa, procedendo-se somente mediante representação.

Já para o crime de divulgação, sem justa causa, de informações sigilosas ou reservadas, tal qual definidas em lei, contidas ou não nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública, a pena é de detenção de um a quatro anos, mais a multa, sendo incondicionada a ação penal, se resultar prejuízo para a Administração Pública.

Divulgar é tornar público ou notório, propagar, difundir. Paulo José da Costa ensina que a divulgação se faz por qualquer meio idôneo. Sem dúvida, esta pode dar-se por exposição à platéia, rádio, televisão, internet etc. Nélson Hungria assevera que a divulgação deve ser extensiva [24].

Também aqui é essencial o dolo, ou seja, a vontade consciente e livre de divulgar. O crime é excluído se a divulgação ocorrer com justa causa. Hungria entende por justa causa " toda causa explícita ou implicitamente, direta ou indiretamente aprovada pela ordem jurídica" [25]. Se a informação não for sigilosa ou reservada, não se caracterizará o crime e deve estar aquela contida nos sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública. São várias as condições exigidas pela lei, que deverá definir quais sejam as informações.


Dos crimes contra a fé pública

O Título X cuida dos crimes contra a fé pública. O Capítulo III, da falsidade documental, ficou enriquecido, com novos enquadramentos penais, em vista da alteração do § 1º. do artigo 296 e acréscimo do § 3º ao artigo 297.

A fonte do reconhecimento da fé pública como bem juridicamente tutelado, penalmente, sedia-se no direito romano.


Falsificação de selo ou sinal público

O artigo 296 insculpe o crime de falsificação de selo ou sinal público, fabricando-os ou alterando-os.

O dolo é genérico. Deve o agente ter a consciência de falsificar e conhecer-lhe a destinação: autenticação de atos oficiais (da União, Estado, Município e acrescente-se ainda o Distrito Federal, parte integrante da Federação).

A pena é de reclusão de 2 a 6 anos, mais a multa. Paulo José da Costa lembra, com muita pertinência, que as Ordenações Filipinas puniam o crime de falsificação de sinal ou de selo do rei ( crime de lesa majestade ) com a pena capital. [26]

O § 1º prevê mais duas hipóteses criminosas, cujas penas são as mesmas: fazer uso de selo ou sinal falsificado e utilizar de forma indevida o selo ou sinal verdadeiro, desde que cause prejuízo a outrem ou utilizem em proveito próprio ou alheio.

Qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo, entretanto, se o crime for praticados por funcionário público, prevalecendo-se do cargo, a pena é aumentada da sexta parte ( figura qualificada). O sujeito passivo é o Estado. O selo a que se refere o dispositivo é o sinete com as armas ou emblemas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

A Lei 9983, de 2000, acrescentou mais uma hipótese, incluindo o inciso III. O crime concretiza-se, quando o agente altera, falsifica ou faz uso indevido de marcas, logotipos, siglas ou quaisquer outros símbolos utilizados ou identificadores de órgãos ou entidades da Administração Pública, compreendendo-a no sentido amplo.

O dolo é fundamental. Não há que se falar em culpa stricto sensu.

As penas, para estes crimes, também são as mesmas.


Falsificação de documento público

O crime do artigo 297 corporifica-se, mediante a falsificação, no todo ou em parte, de documento público ou pela alteração de documento público verdadeiro. São duas condutas típicas: falsificação e alteração. O objeto é a fé pública.

Qualquer pessoa poderá ser o sujeito ativo. Todavia, se o crime for praticado por funcionário público e este o faz prevalecendo-se do cargo, a pena é aumentada da sexta parte ( figura qualificada).

O sujeito passivo é o Estado em primeiro plano e secundariamente a pessoa contra quem se operou o prejuízo em virtude da falsificação. Pode haver a tentativa de crime.

O objeto material é o documento público, isto é aquele feito pelo funcionário público, no desempenho de suas funções, segundo as formalidades legais. Para os efeitos penais, a lei equipara a documento público o elaborado por entidade estatal, o título ao portador ou transmissível por endosso, as ações de sociedade comercial, os livros mercantis e o testamento particular.

Exige-se a existência do dolo. Não é punível o crime culposo, porque a lei não prevê essa modalidade. Segundo Celso Delmanto et alia, trata-se de dolo genérico [27], isto é, o autor deve ter a consciência de que pode causar prejuízo a terceiro e tem a vontade de falsificar documento público ou alterar documento público verdadeiro.

A pena para o crime de falsificação de documento público, no todo ou em parte, ou alteração de documento público verdadeiro, desenhado pelo artigo 297, do Capítulo III, do Título X, é também de 2 a 6 anos de reclusão, e multa.

O documento, segundo um julgado do STF, é aquele formado por funcionário público com competência ou atribuição para tal, em função da matéria, lugar e ofício. [28]


Inserir ou fazer inserir informações

A lei, sob comento, introduziu o § 3º, fazendo incorrer nas mesmas penas - reclusão de 2 a 6 anos, e multa, quem inserir ou faz inserir:

1. na folha de pagamento ou em documento de informações que seja destinado a fazer prova perante a previdência social, pessoa que não possua a qualidade de segurado obrigatório;

2. na Carteira de Trabalho e Previdência Social do empregado ou em documento que deva produzir efeito perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter sido escrita; em documento contábil ou em qualquer outro documento relacionado com as obrigações da empresa perante a previdência social, declaração falsa ou diversa da que deveria ter constado.


Carteira de trabalho ou previdência social

A seu turno, o § 4º acrescido ao artigo 297 criou esta nova figura penal e manda aplicar as mesmas penas dos crimes capitulados no caput e no § 1º a quem:

omitir, nos documentos mencionados no § 3º, nome do segurado e seus dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços.

Omitir ( do latim omittere ) é deixar de fazer, dizer ou escrever, não mencionar, preterir, postergar [29].

As penas, rigorosíssimas, de 2 a 6 anos de reclusão, e multa não se coadunam com a realidade nem com o sistema punitivo do Código e a melhor doutrina.

O crime é doloso. Não há que falar em culpa stricto sensu. A lei não a menciona.

O autor deve ter a consciência e a vontade de deixar de inserir ou mencionar nos documentos referidos no parágrafo anterior o nome do segurado, os dados pessoais, a remuneração, a vigência do contrato de trabalho ou de prestação de serviços. A conduta é omissiva. Aurélio define, com precisão, a omissão, como sendo o ato ou efeito de não fazer aquilo que jurídica ou moralmente se devia fazer [30]. Nelson Hungria preleciona que não há crime sem uma vontade objetivada, sem a voluntária conduta do homem [31].

Pesquisar o elemento subjetivo é fundamental. Deve o agente ter a vontade livre e consciente de não fazer [32]. Não basta a simples omissão. O parágrafo único do artigo 18 é bastante claro. Ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente, ressalvados os casos expressos.

A parte geral do Código, obviamente, não pode ficar sem a leitura adequada, quando da aplicação da parte especial.

O aplicador da norma penal terá que levar em conta sempre as disposições do Título II da Parte Geral, assim que é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Hungria, com excepcional acuidade, lembra que o direito penal moderno repeliu a chamada responsabilidade objetiva e um mínimo de culpabilidade deve forçosamente existir [33].

Suponhamos um empresário que não tenha registrado, na carteira de trabalho e Previdência Social, um representante comercial, com quem mantenha um contrato de representação comercial, regido pela Lei 4896, de 1965, e suas alterações posteriores. Não obstante, o agente da Previdência ou do Ministério do Trabalho entende o contrário. A quem deverá o empresário obediência? Àquele ou à lei? Não há dúvida de que a norma jurídica vigente será seu sustentáculo.

A jurisprudência a respeito da representação comercial é conflitante. Se, em primeira instância, o juiz reconhece a relação de emprego, terá o empresário agido em conflito com a lei penal e, portanto, sujeito às agruras de um processo penal. Todavia, imagine-se se o Tribunal reformar a decisão de primeiro grau, existirá a final a omissão marcada pela lei penal? Certamente, não. Pense-se, ainda, no que descreve o Código Penal, ao isentar de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima.

Ora, o mesmo empresário não registrou o representante legal, porque está consciente da legalidade de sua postura.

E, mais ainda, com as disposições introduzidas pela Lei 9958, de 12 de janeiro de 2000 [34], que alteraram a Consolidação das Leis do Trabalho, prevendo as comissões de conciliação prévia, com competência para conciliar os conflitos individuais do trabalho, em caso de conciliação, com certeza não se há de falar sequer em prejuízo, para a Previdência, que é o mote principal da lei comentada, porque a esta estará assegurado o pagamento do que lhe for devido [35].

Uma dona de casa que não registrar a secretária do lar ou empregada doméstica [36], seja por ignorância ou porque esta não quer ser registrada ou por qualquer razão relevante, deverá ser apenada da mesma forma que um homicida ou até mais intensa e severamente?

A resposta é não. Absolutamente, não.

A propósito, convém citar o insigne criminalista Luiz Flávio Borges D´Urso que lamenta se tenha de assistir à ânsia punitiva do Estado, com o objetivo de aumentar a arrecadação, em detrimento das vidas desestruturadas de empresários que lutam com muita dificuldade para permanecer trabalhando ou daqueles que, em face da estupenda carga tributária, encontram apenas na informalidade trabalho digno, gerador de emprego informal, que oferece aos famintos, miseráveis e deserdados pela sorte algo para sobreviver [37].

Ora, se, para os crimes de apropriação indébita e sonegação previdenciária, sem dúvida, de suma gravidade, mercê dos bens tutelados, o legislador permitiu, expressamente, a extinção da punibilidade e a faculdade de não aplicar a pena ou aplicar somente a de multa, é de se estranhar não tenha feito o mesmo, com relação às penas dos crimes do § 3º comentado, idênticas em tudo. O paradoxo e o absurdo kafkaniano estão patentes.

Não se trata, in casu, absolutamente, da responsabilidade objetiva, como por equivoco se poderia imaginar, de modo que o aplicador da lei deverá levar sempre em conta o elemento subjetivo. A mera omissão do registro da carteira não pode conduzir a este raciocínio, sob pena de rasgar-se a Carta Magna e espezinharem-se os princípios maiores, em que se abebera o moderno direito penal.

Aliás, em nenhuma das hipóteses da lei examinada se vislumbra a responsabilidade objetiva.

O inciso LV do artigo 5º do Documento Maior da República dá a resposta incisiva, quando assegura aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, o contraditório e a ampla defesa, com os meios a ela inerentes. Nesta cláusula final, situa-se o núcleo do ideário democrático, consubstanciado no Preâmbulo e na descrição dos Princípios Fundamentais, que, em poucas, mas soberbas palavras, traduzem sem rodeios a cristalização do ponto fulcral, porque os meios e recursos inerentes à ampla defesa são todos sem exceção, notadamente, a pesquisa do elemento subjetivo em matéria criminal. O mandamento constitucional deve ser interpretado, não de forma linear, mas sim atentando-se para o verdadeiro conteúdo da garantia constitucional [38].

Ou, como discursa Celso Bastos, "a acusação é sempre uma irrogação a alguém da prática de um ato condenável, no caso de um ilícito penal. Enquanto não advenha este ato estatal, que impute a uma determinada pessoa a prática do delito, esta não pode ser tida por acusada" [39].

O Desembargador Celso Limongi, do TJSP, apreciando o cerceamento de defesa, à luz do artigo 5º, LV, da CF, proclamou que a supressão de fases do processo implica no cerceamento de defesa e essa ofensa atinge a Constituição, no que tange à ampla defesa [40].


Acesso não autorizado a sistema de informações ou banco de dados

O crime insculpido no artigo 325, inscrito no Título XI - dos crimes contra a Administração Pública - é o praticado por funcionário público contra a Administração em geral, inserido no Capítulo I: violação de sigilo funcional.

O sujeito ativo é o funcionário público e o delito é revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação. Celso Delmanto et alia dissertam que, para a maioria dos autores, o funcionário público aposentado ou posto em disponibilidade também pode ser sujeito ativo. Cita: Mirabete, Hungria, Stocco, Magalhães Noronha e Sérgio Rezende [41]. Ao funcionário demitido ou que se exonerou poderá imputar-se o crime do artigo 154 (revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja divulgação possa produzir dano a outrem ), segundo opina Paulo José da Costa.

Duas podem ser as condutas: revelar e facilitar. O sujeito passivo, o Estado e também o particular prejudicado. Esta é a orientação da doutrina.

O elemento subjetivo corporifica-se através do dolo genérico. Não há crime culposo.

A pena é relativamente branda e alternativa: detenção de seis meses a dois anos ou multa, se o fato não constituir crime mais grave.

Dois parágrafos foram introduzidos pela Lei 9983/2000. 0 § 1º determina que, às mesmas penas, está sujeito quem:

I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informações ou banco de dados da Administração Pública.

II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito.

A pena, porém, é drasticamente aumentada, se houver dano para a Administração ou para outrem, variando de dois a seis anos de reclusão, mais multa. É o comando do § 2º.

As condutas do sujeito ativo traduzem-se na permissão ou facilitação de fornecimento e empréstimo de senha ou qualquer forma, para o acesso de pessoas não autorizadas a sistemas de informação ou banco de dados da Administração Pública.

A lei sabiamente prevê que o crime pode também ocorrer por omissão, ao facilitar o fornecimento e empréstimo da senha ou de qualquer outra forma.

Assim, se deixar a senha à disposição de qualquer pessoa, sem tomar as cautelas elementares, certamente estará infringindo a lei penal.


Funcionário público

Funcionário público, na dicção do caput do artigo 327, para os efeitos penais, é todo aquele que, conquanto transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, função, emprego ou função pública.

O legislador alterou o § 1º deste artigo, para tornar mais elástico o conceito das pessoas equiparadas a funcionário público, para os efeitos penais, de sorte que não só aquele que, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública em entidade paraestatal, mas também o é quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública.

Esta ampliação é absurda e malvada, pois equipara a funcionário público aquele que não tem vínculo direto ou indireto com a Administração Pública. Para a lei, basta que alguém trabalhe para empresa privada que preste serviços à Administração ou com ela faça convênio, para atividade típica da Administração. Pergunta-se o que entende a lei por atividade típica? A lei penal não pode gerar dúvidas. Deve, seguindo o princípio da tipicidade cerrada, conter definições precisas, sob pena de violar frontalmente a Constituição e os princípios maiores que fundamentam o Direito Penal. As distorções não são admitidas, neste campo. A equiparação ditada pela lei é simplesmente teratológica e merece, por óbvias razões, a repulsa.

Esta definição aplica-se a todas as disposições do Código Penal e também às leis extravagantes. Esta é também a abalizada opinião de Heleno Fragoso [42].


Conclusão

O legislador pretendeu com essas modificações atualizar o vetusto Código Penal, de 1940, em face das inovações tecnológicas e mudanças de costumes, enquanto o projeto do Código Penal não é aprovado. Mais de meio século decorreu, desde a sua implantação, e as conquistas científicas e o progresso, no campo tecnológico, superam as expectativas e colocam o ser humano numa encruzilhada atroz, porque nem o homem feroz das cavernas nem o Caim bíblico foram superados e o aprimoramento moral e espiritual custam a chegar. De certo, devido ao desencontro e ao abismo entre a matéria e o espírito.

A violência, o desamor à vida e ao próximo, a falta de solidariedade, a corrupção, o cinismo, a mentira fazem o homem retroceder milhares de anos de civilização. Estupidamente. Curiosamente, a maior parte da humanidade é boa. Todos querem viver e realizar suas aspirações. Paradoxalmente, a minoria malévola impõe-se e vem produzindo a deterioração da convivência humana, de forma a exigir da sociedade e do legislador medidas coercitivas, concretas e urgentes, visando contornar tudo isso, através das constrições penais, e restaurar a harmonia social.

Nas duas últimas décadas do século findo, concomitantemente com a radical transformação da sociedade, pelos avanços tecno - científicos jamais concebidos, as relações humanas tornaram-se cada vez tensas. Novos comportamentos criminosos são concebidos, porque não encontram resposta adequada na arcaica legislação.

Em 1960, foi promulgado, por decreto, o novo Código Penal, fruto de trabalho intenso de Nélson Hungria, que jamais entrou em vigor e foi revogado pela Lei 6578, de 11 de novembro de 1978.

Leis esparsas surgem, a cada momento, alterando ou introduzindo novas figuras criminais e penas.

A mais expressiva é a Lei 7209, de 11 de julho de 1984, aprovada juntamente com a Lei de Execução Penal ( Lei 7210, de 11 de julho de 1984). A parte geral do Código mereceu notável aperfeiçoamento, destacando-se a alternância das penas e dando-se preferência às penas restritivas da liberdade, e a pena de multa. Entre essas, citem-se as de prestação de serviços à comunidade, a interdição temporária de direitos, a limitação de fim de semana.

Pois bem, o legislador, não atentando ou ignorando essa nova tendência da moderna ciência penal acatada pela lei de 84 e aprovada pela ONU, vem repetindo, na legislação esparsa, o que se pensava superado.

Supõe-se que a vida humana valha menos que qualquer coisa.

Observe-se, exemplificadamente: a pena prevista para o homicídio simples é de seis a vinte anos de reclusão, mas pode ser diminuída de um sexto a um terço, se o homicida praticar o crime movido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção.

No homicídio culposo, a pena é de detenção de um a três anos, no entanto, o juiz pode deixar de aplicar a pena, na hipótese do § 5º do artigo 121 do Código Penal. Entretanto, quantas e quantas vezes, nos crimes contra a vida, praticados por perversos motoristas, configura-se o dolo eventual, já acatado por alguns juízes. A maioria dos criminosos, porém, fica enquadrada, no crime culposo, o que representa verdadeira impunidade.

A liberdade é o bem mais precioso do homem, contudo, constranger alguém mediante violência ou grave ameaça ou, depois de haver-lhe reduzido, por qualquer meio a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que ela não manda, está capitulado como crime de constrangimento ilegal. A pena é de detenção, de três meses a um ano, ou multa. Para o seqüestro e o cárcere privado, a pena é de reclusão de um a três anos. Esta pena passa a ser de dois a oito anos, se resultar à vítima, em razão de maus tratos, ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral.

Compare-se, porém, com a severidade das penas impostas, para os crimes desenhados pela citada Lei 9983, de 2000: de dois a seis anos de reclusão e multa, sem qualquer condescendência, a ponto de alguns juristas vislumbrarem haver a lei adotado a responsabilidade objetiva.

Esta, inequivocamente, constitui um atentado violento não só à Constituição e à legislação penal pátria, mas também à Declaração dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia - Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, in verbis: "Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa"( artigo XI, I). Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no artigo 8º, § 2º, declara que: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:...." [43]. O artigo 14 do Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos, no artigo 14, inciso 2, sinaliza que: "Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa". [44]

O comportamento pernicioso, reprovado pela citada lei, merece inteira reprovação e criminalização. Quanto a isso, há não qualquer questionamento.

Entrementes, fica a indagação: será que a vida humana e a liberdade são menos importantes e sua supressão causa menos sofrimento que os produzidos pelos crimes inscritos naquele diploma legal? Será que o Estado tem o direito de impor o castigo, nem sempre proporcional ao delito cometido, sem o mínimo de segurança, desatendendo os postulados maiores do Direito?

Não é preciso muito para se concluir ser a postura do legislador perversa e iníqua. Sem dúvida, é o momento de repensar essa realidade, para que injustiças não se cometam, em nome do bem que se quer tutelar, com resultados nefastos, contrários às aspirações sociais e aos fundamentos do Estado democrático de direito encampados pela Constituição de 1988.

22/05/2001 13:15:16


Notas

1. Cf Projeto de Lei do Sendo Federal nº 23, de 2000 ( nº 933/99, na Câmara dos Deputados), que se transformou na Lei 9983/2000. Cf. Mensagem 961, do Presidente da República, justificando o veto parcial do inciso I do § 2º do artigo 337-A..

2. Citem-se entre, outros: Michel Temer, Leon F. Szklarowsky, Silva Franco, Luiz Flávio Gomes, Baracho, Fran de Figueiredo, Clemerson Cleve, Greco, Ivo Dantas, Humberto Ávila, Alexandre de Moraes, Leomar Amorim, Ives Gandra. Cf., entre outros acórdãos: RE 254818-9 PR, Relator Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 26.4.2001, Ata nº 12.

3. Cf. Principii di Diritto Penale, Bolonha, 1957.

4. Cf. Instituições de Direito Penal, Max Limonad, 1954.

5. Cf. Instituições de Direito Penal, Max Limonad, Rio de Janeiro, 1954, pp. 322 e segs.

6. Neste sentido, Francisco de Assis Toledo, in Direito e Justiça, Correio Braziliense, de 26 de maio de 1977, p.3.

7. Cf., de Basileu Garcia, op. cit., Tomos I e II, e, de Paulo José da Costa Júnior, Comentários ao Código Penal, Saraiva, 1996.

8. Cf. opus cit., tomo II, pp. 41-41.

9. Cf. Lei 9714, de 25 de novembro de 1998, que alterou o Código Penal, na parte relativa às penas.

10. Cf., de Antonio Miguel Feu Rosa, Casuísmo e Finalismo em Direito Penal, Editora Consulex, Brasília, 1993, p. 59.

11. Cf. George Leite, Nélson Jobin, Sebastião Coelho, Vera Müller, Márcia de Alencar, Fernando da Costa Tourinho Filho, Paulo da Costa Leite, Luiz Flávio Gomes, Penas e Medidas Alternativas, in Revista Consulex, nº 105, de 31 de maio de 2001.

12. Cf. Comentários ao Código Penal, Saraiva, 4ª edição, 1996, p. 515.

13. Cf. Título VIII, Capítulo II, da Constituição Federal.

14. Cf., de Aliomar Baleeiro, Direito Tributário Brasileiro, Forense, 1981, p. 551, e Antônio Fellipe Gallo, Código Tributário Nacional, Malheiros Editores, 9/1998, p. 73.

15. Cf. Mensagem do Presidente da República ao Presidente do Senado Federal 961, de 14 de julho de 2000. Cf. STF, INQO 1028/RS, Pleno, Relator Ministro Moreira Alves, DJ 30.8.96; STJ, RESP 119358/DF, 2ª Turma, Relator Ministro Ari Pargendler, DJ 6.12.99,

16. Cf. Código Penal Comentado, Renovar, 5ª edição, 2000.

17. Vide artigo 3º da Lei 8137, de 27 de dezembro de 1990, e a Lei 8429, de 2 de junho de 1992. Vide Os crimes contra a Administração Pública e Improbidade Administrativa, de Leo da Silva Alves, Leon Frejda Szklarowsky e Alson Pereira da Silva, textos organizados por Daniella Oliveira Batista, Editora Brasília Jurídica, Brasília, 2000.

18. Consulte-se nosso trabalho sobre crimes contra a Administração Pública, in REVISTA LICITAÇÕES E CONTRATOS 18, DE DEZEMBRO DE 1999, REVISTA TRIBUTÁRIA E DE FINANÇAS PÚBLICAS 32, MAIO – JUNHO 2000, no Boletim de Direito Administrativo, número 7, julho 2000, ADCOAS, 11, novembro, 2000. Idem no BLC Boletim de Licitações e Contratos . Editora NDJ, 3, março de 2001).

19. CF. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição, Editora Nova Fronteira.

20. Idem.

21. Cf. Título VIII, Capítulo II, da Constituição Federal.

22. Cf. remissões 15 e 16.

23. Cf. op. cit. p.455.

24. Cf. Comentários ao Código Penal, Revista Forense, Rio de Janeiro, 3ª edição, 1955, VI, p. 242/3.

25. Cf. op. p. cits.

26. Cf. op. cit., p. 924.

27. Cf. op. cit., p. 526.

28. Cf. RTJ 86/291.

29. Cf. Novo Dicionário Aurélio cit.

30. Cf. aut. e op. cits.

31. Cf. op. cit., p. 8. Consulte-se também Heleno Fragoso, in op. cit., pp. 237 a 248.

32. Esta também é a opinião do eminente Promotor de Justiça e Professor da UCB, Diaulas Ribeiro.

33. Cf. aut. cit., p. 23.

34. A respeito dessa profunda reforma, consulte-se, de José Alberto Couto Maciel, Comentários às Novas REFORMAS DO JUDICIÁRIO TRABALHISTA, Editora Consulex, 2000;

35. Cf. Lei 10035, de 25 de outubro de 2000, e os comentários de Sérgio Pinto Martins, in Revista Meio Jurídico, nº 43, de 31 de março de 2001, pp. 54 e segs.

36. Cf. Leis 5859, de 11.2.72, 7195, de 12.6.84, 10208, de 23.3.2001 ( originária da Medida Provisória 2104.16, de 2001), e Decreto 71885, de 9.3.73.

37. Cf., in Meio Jurídico cit., O crime da Carteira de Trabalho Não Anotada, pp. 42/3.

38. Neste sentido, leiam-se A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos.

39. Cf., de Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, Saraiva, 1989, 2º volume, pp. 268/9.

40. Cf. Acr 126177, JTJ/SP. LEX, 153/277,. in A Constituição na Visão dos Tribunais, TRF 1ª, Saraiva, 1977, vol. I, p. 125.

41. Cf. op. cit., p. 575.

42. Cf. Lições de Direito Penal, Parte Especial, Forense, 5ª edição, 1986, p. 383.

43. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi aprovada na Conferência de São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, O Brasil aderiu à Convenção em 25 de setembro de 1992, pelo Decreto de Promulgação 678, de 6 de novembro de 1992 ( cf. Direito e Relações Internacionais, de Vicente Marotta Rangel, Editora Revista dos Tribunais, 5ª edição, 1997.

44. Este Documento foi adotado pela Assembléia - Geral das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966, O Brasil ratificou-o e promulgou-o, pelo Decreto 592, de 16 de fevereiro de 1992. Cf. Direito e Relações Internacionais, de Vicente Marotta Rangel cit.


Autor

  • Leon Frejda Szklarowsky

    Falecido em 24 de julho de 2011. Advogado, consultor jurídico, escritor e jornalista em Brasília (DF), subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, editor da Revista Jurídica Consulex. Mestre e especialista em Direito do Estado, juiz arbitral da American Association’s Commercial Pannel, de Nova York. Membro da membro do IBAD, IAB, IASP e IADF, da Academia Brasileira de Direito Tributário, do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, da International Fiscal Association, da Associação Brasileira de Direito Financeiro e do Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Integrou o Conselho Editorial dos Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, da Editora Revista dos Tribunais, e o Conselho de Orientação das Publicações dos Boletins de Licitações e Contratos, de Direito Administrativo e Direito Municipal, da Editora NDJ Ltda. Foi co-autor do anteprojeto da Lei de Execução Fiscal, que se transformou na Lei 6830/80 (secretário e relator); dos anteprojetos de lei de falências e concordatas (no Congresso Nacional) e autor do anteprojeto sobre a penhora administrativa (Projeto de Lei do Senado 174/96). Dentre suas obras, destacam-se: Execução Fiscal, Responsabilidade Tributária e Medidas Provisórias, ensaios, artigos, pareceres e estudos sobre contratos e licitações, temas de direito administrativo, constitucional, tributário, civil, comercial e econômico.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SZKLAROWSKY, Leon Frejda. Reforma parcial do Código Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3073. Acesso em: 26 abr. 2024.