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Sobre a ementa dos atos normativos

Sobre a ementa dos atos normativos

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Em meados do século passado, um estudioso brasileiro, Hésio Fernandes PINHEIRO (1), preocupado com a investigação da evolução da técnica legislativa no Brasil, publicou excelente obra, que denominou Técnica legislativa, hoje um clássico de nossa literatura nesse campo do conhecimento. Referindo-se à ementa das leis e de outros atos normativos delas decorrentes, como o são os decretos, as portarias e as resoluções, mostrava os cuidados que devem ser tomados em sua redação, ressaltando que "o objetivo da ementa ou rubrica é o de permitir, em simples golpe de vista, o conhecimento do ato consultado", além de favorecer os trabalhos de indexação, para tanto se valendo da seguinte passagem que colheu na literatura francesa:

Um chapeleiro, no desejo de intitular sua casa recém-inagurada, recorre, para a solução desse problema, às objeções de diversos amigos. Ele próprio redigira o seguinte: John Thomson, chapeleiro, fabrica e vende chapéus a vista, tudo isso sob um grande chapéu pintado.

A primeira pessoa consultada fez ver que a palavra chapeleiro era absolutamente supérflua e, por isso, foi ela suprimida.

A segunda pessoa observou que, a vista era desnecessário. Geralmente, ponderou, ninguém solicita crédito para adquirir um chapéu; se alguém o fizesse, entretanto, talvez fosse conveniente concedê-lo, em certos casos. A expressão foi riscada e o título primitivo ficou reduzido ao seguinte: John Thomson fabrica e vende chapéus.

Submetida ao exame de uma terceira pessoa, disse ela: quando se compra um chapéu, raramente interessa saber quem o fabricou. Desapareceu com isso a palavra fabrica.

Um último crítico consultado exclamou: Vende Chapéus, meu caro! Quem iria supor que você os desse! Ainda duas palavras foram cortadas.

E do título originário, restou apenas: um chapéu pintado sobre o nome John Thomson. (grifos do autor)

Já por aí se vê que a ementa dos atos normativos tem que ser sintética, precisa e informadora, para cumprir sua função no corpo dos atos normativos. E tanto assim dever ser que a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que, sem poder ser considerada um primor no aspecto técnico-legislativo, ao dispor "sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal, e estabelece normas para a consolidação dos atos normativos que menciona", preceitua que:

Art. 5º A ementa será grafada por meio de caracteres que a realcem e explicitará, de modo conciso e sob a forma de título, o objeto da lei.

No Brasil, apesar de já termos avançado muito no plano das elaborações doutrinárias, o trabalho das equipes técnicas que assessoram os responsáveis pela produção de atos normativos e uma certa desatenção ou rebeldia dos agentes políticos ao apuro técnico, está a merecer meditação, no tocante ao segmento ementa.

Observe o leitor que só estou a me referir ao anúncio da lei, do decreto, da portaria ou da resolução, não à parte dispositiva de cada um deles, que isso é mérito, para dizer que, se não estamos bem quando cuidamos do acessório, mas tem sua serventia, também não devemos estar bem no substancial, na construção do articulado.

Para exemplificar o que estou a comentar, menciono alguns fatos registrados pelo Diário Oficial da União. Vejamos.

LEI Nº 9.999, DE 30 DE AGOSTO DE 2000.

(DOU de 31.8.2000)

Altera o inciso VIII do art. 5º da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, alterada pela Lei nº 9.312, de 5 de novembro de 1996, que restabelece princípios da Lei nº 7.505, de 2 de julho de 1986, institui o Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC e dá outras providências, aumentando para três por cento da arrecadação bruta das loterias federais e concursos de prognósticos destinados ao Programa.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º O inciso VIII do art. 5º da Lei nº 8.313, de 23 de dezembro de 1991, alterada pela Lei nº 9.312, de 5 de novembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art.5º....

VIII – três por cento da arrecadação bruta dos concursos de prognósticos e loterias federais e similares cuja realização estiver sujeita a autorização federal, deduzindo-se este valor do montante destinado aos prêmios;" (NR)

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 30 de agosto de 2000; 179º da Independência e 112º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

Pedro Malan

Francisco Weffort

O que indica a ementa da lei transcrita? Indica que o legislador, sujeito ativo do manicômio legislativo que caracteriza a república democrática brasileira, quis ser suficientemente claro, a ponto de fazer ementa mais ampla e informativa que o texto normativo, só porque preferiu fazer lei avulsa, quando o recomendado era o caminho da consolidação.

Alguns dias depois, surge a seguinte lei, pois na dezena de milhar chegamos:

LEI Nº 10.000, DE 04 DE SETEMBRO DE 2000.

(DOU de 05.9.2000)

Dispõe sobre a criação do "Dia Nacional do Choro" e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º É instituído o "Dia Nacional do Choro", a ser comemorado anualmente no dia 23 de abril, data natalícia de Alfredo da Rocha Viana Júnior, Pixinguinha.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 4 de setembro de 2000; 179º da Independência e 112º da República.

FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

José Gregori

Francisco Weffort

A ementa da Lei nº 10.000, de 2000, contém 13 palavras, 63 caracteres sem espaços e 75 caracteres com espaços. Tratando-se de lei brasileira, no meu modo de pensar melhor seria que dissesse: Institui o ‘O Dia Nacional do Choro’, em homenagem a Pixinguinha. A ementa seria mais precisa, concisa e esclarecedora, com a economia de 3 palavras, 9 caracteres sem espaços e 12 caracteres com espaços, e a vantagem de jogar fora a inútil expressão "e dá outras providências". De fato, o dia 23 de abril de cada ano não é dia em que todos estejam obrigados a chorar, pois a todos, em qualquer dia, independente de lei, não podem ser proibidas as lágrimas de saudade despertada pela musicalidade do fantástico patrono do chorinho carioca-brasileiro.

Outro fato recente, também referente a ementas e caracterizador de situação anômala, pode ser tomado no plano das portarias. Curo da situação em que uma portaria ministerial, cuja ementa não merece crítica, é revogada por outra, esta sem ementa, tudo indicando que havia questões de mérito não examinadas a tempo. Os textos são os seguintes:

PORTARIA Nº 1.945, DE 29 DE AGOSTO DE 2001.

(DOU de 31.8.2001)

Estabelece prazos para a solicitação de reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores.

O MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, no uso de suas atribuições legais, resolve:

Art. 1º Todos os cursos superiores integrantes do Sistema Federal de Ensino reconhecidos por prazo indeterminado deverão solicitar, no prazo de 30 (trinta) dias a contar da publicação desta Portaria, abertura de processo de renovação de reconhecimento, nos termos do Decreto nº 3.860, de 9 de julho de 2001.

Art. 7º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

PAULO RENATO SOUZA

PORTARIA Nº 2.026, DE 12 DE SETEMBRO DE 2001.

(DOU de 13.09.2001)

O MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, no uso de suas atribuições legais, resolve:

Art. 1º Revogar a Portaria 1.945, de 29 de agosto de 2001, publicada no D.O de 31 de agosto de 2001, seção 1, página 89.

Art. 2º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

PAULO RENATO SOUZA

O que se constata do acima transcrito? Constata-se que a autoridade produtora de um ato normativo publicado no final do mês de agosto, com ementa clara, reconhecendo que havia incorrido em erro e talvez não querendo chamar muito a atenção deixou a portaria revogadora sem ementa. Todavia, para confirmar que o recuo era para valer, sentiu-se obrigada a especificar, na parte dispositiva, a data, a seção e a página do Diário Oficial da União em que publicado o ato revogado, o que não é usual.

À portaria criticada deveria ter sido dada a seguinte redação, mais técnica e transparente:

PORTARIA Nº 2.026, DE 12 DE SETEMBRO DE 2001.

Revoga a Portaria nº 1.945, de 29 de agosto de 2001, que "Estabelece prazos para a solicitação de reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores".

O MINISTRO DE ESTADO DA EDUCAÇÃO, no uso de suas atribuições legais, resolve:

Art. 1º É revogada a Portaria nº 1.945, de 29 de agosto de 2001.

Art. 2º Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

Esse último exemplo põe em evidência que a ementa dos atos normativos, para cumprir seus fins, às vezes precisa ser mais extensa do que a parte normativa do ato. É preferível fazer assim do que omitir a ementa. Os atos normativos sem ementa pertencem à categoria ato envergonhado.

Em certos casos, o descuido do legislador resulta na elaboração de ementa que pouco ou nada informa e submete os destinatários de lei a uma verdadeira tortura para ter acesso a seu texto. Vale como exemplo disso a recente alteração promovida na tabela de incidência do imposto de renda das pessoas físicas, fruto de demorados debates dentro e fora do Congresso Nacional, acompanhados com o maior interesse pelos largos segmentos da sociedade brasileira submetidos a uma carga tributária deveras injusta. A lei resultante dos trabalhos legislativos é a seguinte:

LEI Nº 10.451, DE 10 DE MAIO DE 2002.

(DOU de 13.5.2002)

Altera a legislação tributária federal e dá outras providências

Trata-se de erro crasso que vem sendo cultivado pelo legislador tributário, acostumado, quem sabe, com uma perniciosa falta de transparência:

LEI Nº 10.426, DE 24 DE ABRIL DE 2002.

(DOU de 25.4.2002)

Altera a legislação tributária federal e dá outras providências.

LEI Nº 9.959, DE 27 DE JANEIRO DE 2000

(DOU de 28.1.2000)

Altera a legislação tributária federal e dá outras providências.

A respeito da arte de elaborar leis, anotou Victor Nunes LEAL (2):

Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As conseqüências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis.

Essa advertência se aplica à elaboração dos atos normativos das diferentes modalidades e os cuidados a serem tomados pelo redator alcançam também a ementa.

Florianópolis, junho de 2002


NOTAS:

1. PINHEIRO, Hesio Fernandes. Técnica legislativa. 2. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Freitas Bastos, 1962, p. 48-50.

2. LEAL, Victor Nunes. Problemas de direito público. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 8.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COLLAÇO, Flávio Roberto. Sobre a ementa dos atos normativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3100. Acesso em: 28 mar. 2024.