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O brasileiro, o Estado e o (des)respeito às instituições.

E aquela história de "homem cordial"?

O brasileiro, o Estado e o (des)respeito às instituições. E aquela história de "homem cordial"?

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O episódio da vaia à Presidente da República na abertura da Copa do Mundo-2014 expôs um lado hostil e revanchista do brasileiro que, cada vez menos crente no valor fundamental das instituições políticas e republicanas, faz-se indiferente e menos cordial.

Pouco menos de dois meses após o fim da Copa do Mundo no Brasil, pego-me pensando nas ideias do Contrato Social, nos ideais republicanos, no princípio da divisão dos poderes numa nação e no quanto tudo isso deveria ser destacado e reconhecido pelo povo brasileiro.

Desde o início se dizia que a Copa do Mundo seria a vitrine do Brasil e do povo brasileiro para o exterior. Faria o Brasil mais e melhor conhecido pelo mundo lá fora e, por isso – e dentre tantas outras promessas – era assaz importante o apoio popular à sua realização.

E agora, passado o tempo, o impacto e a euforia, lembro-me do texto que segue:

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa, fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal.”

Assim, Sérgio Buarque de Holanda começa o trecho em que cunhou a expressão que lhe fez mais famoso, até que passasse de festejado autor de “Raízes do Brasil” a “pai de Chico Buarque de Holanda”, como ele mesmo, Sérgio, assumiu. O brasileiro seria o “homem cordial”.

O início da Copa do Mundo no Brasil mostrou totalmente o contrário. Ao contrário do que possa parecer.

Futebol à parte, em tempos em que se discutem a violência e as injúrias raciais (insistentemente chamadas de “racismo” pela imprensa) nos Estádio de Futebol, lembro que naquele dia do primeiro jogo da Copa do Mundo, vários foram os momentos que me incomodaram. Um desses momentos foi aquele em que a torcida brasileira vaiou o time croata na medida em que o esquadrão ia entrando em campo. E daí a gente vê que, pelo menos nessa geração atual de brasileiros, se há algo que não se pode dizer de nós, é que sejamos cordiais.

No papel de país anfitrião, o mínimo que a torcida – cordial – deveria fazer era aplaudir o time croata de modo a que se sentissem bem-vindos ao nosso país para disputar uma partida de futebol e não uma guerra. Mas cadê a hospitalidade. O curioso é que o próprio autor, a certa altura, afirma nesse mesmo “Raízes do Brasil” que “Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo, expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante.”

Dentro desse jeito emotivo de ser, o brasileiro é desrespeitoso. E ainda que possam haver aqueles que se queixem do mau hábito da generalização, bem me lembro que, no momento da vaia, eram mais de 60 mil pessoas as pessoas que vaiavam.

Dessa mesma data, também podemos nos lembrar do episódio em que um brasileiro se “sentiu no direito” de quebrar o dedo de um argentino que se recusou a soltar a bandeira de seu país.

Sérgio Buarque de Holanda ainda disse que:

“No ‘homem cordial’, a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de expansão para com os outros reduz o indivíduo, cada vez mais, à parcela social, periférica, que no brasileiro – como bom americano – ter a ser a que mais importa. “

Não raro, o ajuntamento de certo grupo de torcedores dá ensejo a reuniões cujo fim tende à desordem, violência, balburdia e tantas outras condutas condenáveis pelo “homem médio”, quanto mais pelo “homem cordial”.

Ao longo da experiência da Copa do Mundo, assistimos estupefatos os torcedores japoneses recolherem os lixos dos estádios, europeus respeitando assentos e filas, como se tudo fosse uma conduta estranha a nós brasileiros. Mas bastava que saíssemos às ruas após cada jogo do Brasil, para que víssemos o resultado de toda “comemoração” dos brasileiros. Lixos e mais lixos lançados ao chão em meio a garrafas quebradas no meio das ruas e calçadas.

É necessário lembrar que éramos os anfitriões? Mostramos mesmo o homem cordial?

Não raro, nos deparamos com torcedores que parecem realmente crer em frases do tipo da que diz que ganhar roubado é mais gostoso. É esse mesmo brasileiro que vai às urnas e que cobra o fim da corrupção? A Copa do Mundo poderia ter sido o momento perfeito a ser aproveitado pelo brasileiro pra gritar ao mundo que ele não transaciona com o erro, mas antes, ele execra e acusa todo o erro e todo o mal feito, que ele prefere as coisas limpas. Mas não foi assim... fizeram pior.

Bastou que a imagem de Sua Excelência, a Presidente da República, aparecesse no telão do Estádio para que, os “cordiais brasileiros”, lhe dirigissem impropérios a plenos pulmões para o mundo inteiro ouvir, todos eles tristemente bem relembrados por todos nós.

Que se ressalte que não se pretende exaltar a pessoa civil que ocupa o cargo, ainda que aqueles maldizeres não são próprios a se dizer a quem quer que seja, quanto mais à uma mulher, mãe e avó. Nesse caso, em questão, não importam as divergências que se tenha com a pessoa da presidente ou com o partido e governo que ela representa: ali, naquele jogo, era a instituição Presidência da República que se encontrava e essa instituição deveria ser vista pelo povo com status semelhante à sacralidade religiosa, até como modo de que esse mesmo povo fosse mais zeloso na hora de escolher seu ocupante. A instituição Presidência da República deveria ser reverenciada e respeitada pelo povo. Não a sra.  Dilma Vana Roussef. Não. Mas sim, a representante maior do Estado brasileiro.

De certo que o mesmo respeito “sacro” deveria ter o eleito ao cargo que representa, de maneira a honrá-lo, não só enquanto instituição, mas também, naquilo que diz respeito à confiança que lhe fora depositada pela maioria do povo. Uma vez que houvesse o Estado cuidando do povo que, por sua vez, fiscaliza o Estado, harmonizaríamos as relações recíprocas de maneira tal que o fim das desigualdades sociais e regionais deixasse de ser “apenas” um objetivo do Estado Brasileiro e se tornasse uma realidade que tingisse de boa sorte toda a sorte de brasileiros.

Por ora, o que se vê é o oposto de tudo. O brasileiro cada vez mais descrente do Estado e suas instituições, fazendo-se indiferente à necessidade de mudanças urgentes no quadro político nacional; de outro lado, confortáveis nas cadeiras que julgam mais suas do que do povo, aqueles que deveriam atender os interesses de uma nação, não se furtam a cuidar dos próprios interesses. E nisso de um não ligar pro outro, a desordem cada vez maior parece sempre próxima e inevitável.

Oxalá Sérgio Buarque ainda se faça certo no futuro que vem. Bom seria se aprendêssemos a receber, a vindicar, a escolher e a suportar consequência, mas sempre no afã de melhorarmos. Porém, em um país em que a devolução de uma carteira de dinheiros achada em algum local público é matéria de destaque, a cordialidade parece ser cada dia menos regra e mais exceção.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAMA, William Ricardo Grilli. O brasileiro, o Estado e o (des)respeito às instituições. E aquela história de "homem cordial"?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4087, 9 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31660. Acesso em: 28 mar. 2024.