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Cognição, construção de procedimentos e coisa julgada

os regimes de formação da coisa julgada no direito processual civil brasileiro

Cognição, construção de procedimentos e coisa julgada: os regimes de formação da coisa julgada no direito processual civil brasileiro

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Sumário: 1. Intróito. — 2. Digressão sobre a teoria da cognição judicial. — 3. O regime comum de produção da coisa julgada e o regime de produção da coisa julgada secundum eventum litis.— 4. Os regimes diferenciados de produção da coisa julgada: 4.1 Questão terminológica; 4.2 A coisa julgada erga omnes e secundum eventum probationis. Repercussões no sistema recursal; 4.3 A coisa julgada na ações de investigação ou negatória de paternidade: tendências jurisprudenciais e doutrinárias: 4.3.1 Generalidades; 4.3.2 A demanda de investigação de paternidade como procedimento de cognição exauriente secundum eventum probationis; 4.3.3 Coisa julgada pro et contra et non secundum eventum probationis nas demandas investigatórias. Possibilidade de rescisão; 4.4 A coisa julgada nas ações de alimentos: o regime comum. —5. Conclusões. — 6. Referências bibliográficas.


1 Intróito

Dois assuntos têm recebido, ultimamente, atenção especial dos estudiosos do processo que se têm debruçado sobre temas havidos como resolvidos ou proscritos, respectivamente: a coisa julgada e o procedimento.

Aquela, objeto de empresa revisionista ou relativizadora; este, em pleno resgate dogmático, com nítido intuito de revalorização da sua importância no processo. Este ensaio visa demonstrar o elo entre o fenômeno da coisa julgada e o procedimento —em que medeia o estudo da cognição judicial—, estabelecendo, para a primeira, um esboço de classificação dos regimes de sua produção —necessário para iluminar os caminhos de tantos quantos augurem estudar o assunto.

Ei-lo, o nosso propósito.


2 Digressão sobre a teoria da cognição judicial.

O regime de formação da coisa julgada está intimamente relacionado com o grau de cognição do magistrado a respeito das questões postas para a sua apreciação — visto este fenômeno sob o aspecto vertical, de acordo com a divisão de KAZUO WATANABE, no livro diversas vezes citado ao longo deste ensaio.1

A construção dos procedimentos, de sua banda, é feita mediante a combinação das diversas modalidades de cognição; a partir desta manipulação, o legislador concebe os procedimentos diferenciados e adaptados às várias especificidades do direito ou das pretensões materiais.2 Podem-se criar procedimentos de cognição sumária (ineptos para a produção de coisa julgada) ou procedimentos em que a cognição será sempre exauriente (hábeis, assim, a, preenchidos outros requisitos, gerar a res iudicata).

Deste modo, para que se possam estudar as técnicas de produção de coisa julgada desenvolvidas para os diversos direitos, é absolutamente indispensável uma rápida digressão sobre a teoria da cognição judicial, tarefa para cuja solução nos utilizaremos das preciosas lições de KAZUO WATANABE.

Segundo o professor paulista, considera-se a cognição "prevalentemente um ato de inteligência, consistente em considerar, analisar e valorar as alegações e as provas produzidas pelas partes, vale dizer, as questões de fatoe as de direito que são deduzidas no processo e cujo resultado é o alicerce, o fundamento do iudicium, do julgamento do objeto litigioso do processo." 3

A importância do seu estudo, conforme síntese de A ANTÔNIO CLÁUDIO DA COSTA MACHADO, para além do aspecto da construção dos procedimentos, se revela nas circunstâncias de ser a ponte de contato entre o direito material e o processo que se propõe a realizá-lo, bem como porque a própria classificação dos processos —a distinção ontológica entre as três espécies— reside justamente no objeto cognoscível e na forma que se o conhece.4

O fenômeno cognitivo pode ser visualizado em dois planos, ainda de acordo com o estudo de WATANABE.5

Em primeiro lugar, o plano horizontal, que diz respeito à extensão e à amplitude das questões que podem ser objeto da cognição (no direito brasileiro, o trinômio de categorias processuais: condições da ação, pressupostos processuais e mérito da causa).6 Aqui se definem quais as questões pode o magistrado examinar. A cognição, assim, poder ser: a) plena: não há limitação ao quê o juiz conhecer; b) parcial ou limitada: limita-se o quê o juiz pode conhecer. O procedimento comum é pleno, na medida em que não há qualquer restrição da matéria a ser posta sob apreciação; o rito da desapropriação, no entanto, é de cognição limitada, porquanto não se possa, em seu bojo, discutir a validade do ato expropriatório.

Em segundo lugar, o plano vertical (profundidade), que diz respeito ao modo como as questões serão conhecidas pelo magistrado. Aqui se responde à pergunta: de que forma o órgão jurisdicional conheceu aquilo que lhe foi4 posto à apreciação? Poderá ser, portanto, exauriente ou sumária, conforme seja completo (profundo) ou não o exame.

Combinam-se estas modalidades de cognição, conforme se anunciou, para a formação dos procedimentos.

Há aqueles de cognição plena e exauriente, os quais compõem a regra, sendo principal exemplo o rito ordinário. A solução dos conflitos de interesses é buscada através de provimento que se assente em procedimento plenário quanto à extensão do debate das partes e da cognição do juiz, e completo quanto à profundidade desta mesma cognição. Decisões proferidas aqui são, por exemplo, aquelas dos procedimentos comuns (ordinário, sumário ou o dos Juizados Especiais Cíveis), passíveis de produção de coisa julgada material. Prestigia-se o valor segurança.

A cognição pode ser parcial e exauriente: a limitação é apenas do quê; quanto aos pontos e questões que podem ser resolvidos a cognição é exauriente, de sorte que a sentença (julgado) tem aptidão para produzir coisa julgada material. Ao estabelecer as limitações, o legislador leva em conta (a) as peculiaridades do direito material, e/ou, (b) necessidade de tornar o processo mais célere. Ressalva-se, todavia, o direito de questionar os pontos controvertidos excluídos em ação autônoma. Há o prestígio dos valores certeza e celeridade, na medida em que se permite o surgimento de uma sentença em um tempo inferior àquele que seria necessário ao exame de toda a extensão da situação litigiosa. São exemplos: a) conversão da separação judicial em divórcio (art. 36, parágrafo único, LF 6.515/77); b) embargos de terceiro (art. 1054); c) busca e apreensão da lei de alienação fiduciária; d) desapropriação.

A cognição poderá ser, ainda, plena e exauriente "secundum eventum probationis": sem limitação à extensão da matéria a ser debatida em juízo, mas com o condicionamento da profundidade da cognição à existência de elementos probatórios suficientes. Trata-se de técnica processual para conceber procedimentos simples e céleres, com supressão da fase probatória específica ou procedimento em que as questões prejudiciais são resolvidas ou não conforme os elementos de convicção, ou, ainda, serve como instrumento de política legislativa, pois evita, quando em jogo interesse coletivo e indisponível, a formação de coisa julgada material, a recobrir juízo de certeza fundado em prova insuficiente. A decisão da questão está condicionada à profundidade da cognição que o magistrado conseguir, eventualmente, com base na prova existente dos autos (e permitida para o procedimento), efetivar. À conclusão de insuficiência, o objeto litigioso é decidido sem caráter de definitividade, não alcançando a autoridade de coisa julgada material. São exemplos: a) procedimento de inventário, quando se afirma que a questão prejudicial surgida será decidida se o magistrado dispuser de elementos bastantes para o estabelecimento do juízo de certeza, caso contrário, será considerada questão de alta indagação, devendo ser remetida para os meios ordinários (art. 1.000, CPC); b) mandado de segurança (STF 304; art. 15, LF 1.533/51); c) desapropriação, na fase de levantamento do preço, havendo dúvida fundada sobre o domínio, o magistrado não deferirá a nenhum dos litigantes a entrega do preço, determinando a solução da controvérsia em ação própria (art. 34, caput, e parágrafo único, do Dec.-lei 3.365/41; d) a disciplina da ação popular e das ações coletivas, ambos, anuncie-se de logo, fundadas em direito indisponível.

Pode-se vislumbrar, ainda, a cognição eventual, plena ou limitada, e exauriente (secundum eventum defensionis): somente haverá cognição se o demandado tomar a iniciativa do contraditório, eis porque eventual. São exemplos: a) ação monitória e b) ação de prestação de contas.

Quanto à cognição sumária (possibilidade de o magistrado decidir sem exame completo), tem-se que é permitida, normalmente, em razão da urgência e do perigo de dano irreparável ou de difícil reparação, ou da evidência (demonstração processual do direito) do direito pleiteado, ou de ambos, em conjunto. No plano vertical, a diferença entre as modalidades de cognição está apenas na maneira como o magistrado enxerga as razões das partes (causa de pedir). Exemplo da possessória: o juiz, ao examinar a inicial, analisa, superficialmente, se houve posse (causa remota) e o esbulho (próxima). São ambientes propícios à cognição sumária: a) processo de conhecimento que admite liminar não-cautelar; b) processo cautelar; c) processo de conhecimento com a tutela sumária de mérito genérica. São exemplos: a cognição utilizada nas medidas liminares, antecipatórias ou assecuratórias. Conduz aos chamados juízos de probabilidade e verossimilhança, ou seja, às decisões que ficam limitadas a afirmar o provável. Tem por objetivos assegurar a viabilidade da realização de um direito ameaçado por perigo de dano iminente (tutela cautelar); realizar antecipadamente um direito: a), em vista de uma situação de perigo (tutela de urgência sumária satisfativa); b) em razão das peculiaridades de um determinado direito e em vista do custo do procedimento ordinário; c) quando o direito do autor surge como evidente e a defesa abusiva (art. 273, II, CPC). Caracteriza-se, principalmente, pela circunstância de não ensejar a produção da coisa julgada material.

Deste painel pinçam-se algumas conclusões que nos serão úteis: a) somente os procedimentos que ensejam pronunciamentos fundados em cognição exauriente dão azo ao surgimento da coisa julgada material; b) a lei pode, caso a caso, estabelecer quando se considera completa (exauriente) a cognição, flexibilizando a produção da coisa julgada material; c) a regra, no entanto, é a do procedimento comum, em que a cognição será sempre completa, a ensejar a o surgimento do caso julgado.


3 O regime comum de produção da coisa julgada e o regime de produção da coisa julgada secundum eventum litis.

O regime comum de produção de coisa julgada material, no direito brasileiro, está previsto no Código de Processo Civil. Aplicam-se, em suma, as seguintes regras, já defendidas por CHIOVENDA, 7 no início do século passado: a coisa julgada se opera inter partes et pro et contra.

A coisa julgada somente se opera em relação àqueles que fizeram parte do processo, independentemente do resultado da demanda; uma vez preenchidos os outros requisitos analisados,8 sempre surgirá, tanto para o vencedor como para o vencido. Eis o ponto de diferenciação com o outro sistema de produção de coisa julgada, diferenciado, denominado coisa julgada secundum eventum litis. Neste, a coisa julgada surgirá ou não de acordo com o resultado da demanda. A lei, pelas mais variadas razões, pode entender que tal ou qual resultado (procedência ou improcedência) não autoriza a imunização. É o que acontece, por exemplo, nas demandas que dizem respeito aos direitos individuais homogêneos, quando a coisa julgada será erga omnes, apenas nos casos de procedência do pedido.9

O regramento comum se extrai das duas regras-mãe de nosso sistema: os artigos 468 e 472 do Código de Processo Civil Brasileiro. Nenhum senão, nenhuma ressalva foi feita pelo legislador brasileiro, que considera o seguinte: vencido o procedimento em contraditório, necessariamente se terá ensejado ao magistrado a possibilidade de um exame completo da causa, permitindo, assim, que sobre o seu pronunciamento de mérito incidam as qualidades da autoridade e da imutabilidade. Sentença fundada em falta de prova faz, também, coisa julgada, pois, por este sistema, sendo a prova do fato constitutivo ônus do autor, "actore non probante, reus absolvitur."

A limitação subjetiva aos participantes da causa, a limitação objetiva aos precisos extremos da lide e a sua inevitabilidade (coisa julgada non secundum eventum litis) são as principais características deste sistema.

Concebido como um código apto à tutela de direitos individuais e patrimoniais, nada mais razoável que assim procedesse.

Entrementes, o desenvolvimento dos estudos sobre os direitos coletivos (transindividuais), o prestígio que certos direitos da personalidade têm adquirido, reclamando um repensar dos institutos fundamentais do processo civil, bem como a percepção empírica das injustiças que se vinham ou poderiam vir a ser cometidas,10 tudo isso forçou o legislador e os operadoresdo direito a elaborar novas técnicas de produção de coisa julgada. Havia de se adequar o processo às características de certos direitos materiais, precipuamente quanto à imutabilidade de suas decisões.11

Examinemo-las, as técnicas.12


4 OS REGIMES DIFERENCIADOS DE PRODUÇÃO DA COISA JULGADA

4.1 Questão terminológica.

Ao utilizarmos as expressões "comum" e "diferenciado", conforme pôde ser visto no item anterior, referimo-nos aos regimes de produção da coisa julgada, e não a esta propriamente dita. Os adjetivos dizem respeito ao modo como a coisa julgada surge, pois o produto coisa julgada é sempre o mesmo, com as mesmas características, não havendo que se falar em "comum" ou

"diferenciada". O recurso tem fins didáticos, entretanto, pois desvia a atenção para aquilo que consideramos importante: os modos de produção são distintos; obtém-se o fenômeno da imutabilidade, mas por técnicas diferentes. A primeira, referente à generalidade das situações —e por isso denominada comum; a segunda, gênero de que são espécies algumas técnicas diferenciadas de formação do caso julgado, com derrogações das regrascomuns, e que, por isso, podem ser englobadas sob o rótulo coisa julgada diferenciada.

O estudo destas técnicas diferenciadas é o objeto deste item.

4.2 A coisa julgada erga omnes e secundum eventum probationis. Repercussões no sistema recursal.

Conforme já se disse, nosso sistema veda, como regra, a formação secundum eventum probationis da coisa julgada. O exaurimento ou não das vias probatórias é irrelevante para que a imutabilidade opere sobre o julgado de mérito do qual não caiba mais recurso algum. A improcedência por falta de provas, segundo tais regras, é tão apta à imutabilidade quanto um julgamento pela procedência com o esgotamento de todos os meios de prova em direito permitidos. Do mesmo modo, restringe-se a coisa julgada ao objeto do processo —esta se opera nos limites da lide posta sob apreciação—, o que implica dizer que não poderá afetar a quem não tiver participado do debate (limitação subjetiva). Este regime, conforme acentuamos, não se preocupa com a natureza do direito material tutelado, tendo sido criado em abstrato, ao pressuposto de que os direitos são individuais e patrimoniais —perfeitamente adaptado à regra que prevê a coincidência entre o legitimado para a causa e o titular da pretensão material.

A necessidade de uma melhor tutela jurídica dos direitos transindividuais gerou a percepção de que as regras vetustas de coisa julgada não poderiam ser aplicadas. Haveriam de ser criados novos mecanismos de sua produção, agora sob a ótica coletiva, pois os relativos à individual se tornaram, em relação àquela, absolutamente imprestáveis. Além de reformular o sistema da legitimidade para agir —pois os direitos transindividuais não possuem titular determinado, antes pertencem a uma comunidade ou grupo, o que inviabiliza a aplicação das tradicionais concepções sobre a identidade do titular do direito com o legitimado para a causa—,13 alterou-se, profundamente, o sistema de produção da coisa julgada material. Basicamente, três foram os pontos atingidos: a) a limitação subjetiva, b) a ampliação do objeto do processo, com o transporte in utilibus da coisa julgada e c) a consagração da coisa julgada secundum eventum probationis.

A análise da coisa julgada coletiva, neste momento, não será exaustiva; objetiva-se, tão-somente, apontar as derrogações das regras comuns, demonstrando, com isso, como certos direitos possuem regime diferenciado de produção da coisa julgada.

Duas são as regras básicas que regulam a matéria: art. 18, LF 4.717/65, Lei de Ação Popular,14 e o art. 103, LF 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor.15

Os interesses essencialmente coletivos (difusos e coletivos) são indivisíveis, no sentido de serem insuscetíveis de partição em quotas atribuíveis a determinada pessoa individualmente considerada. A satisfação (ou não) de um implica, de uma só vez, a satisfação (ou não) de todos quantos se encaixem naquela situação; esta caracterização se opera no plano material. O processo, rendendo hosanas ao princípio da adequação,16 não poderia furtar-se a tutelar devidamente esta situação. Assim, surgiu a necessidade de ampliação dos limites subjetivos da coisa julgada, que passam a atingir até quem não foi parte na relação jurídica material.17 Desenvolve-se a técnica da coisa julgada erga omnes ou ultra partes; ampliam-se, consideravelmente, os limites subjetivos da demanda. A diferença entre coisa julgada erga omnes e ultra partes, para além da terminológica, está na circunstância de aquela diz respeito aos direitos difusos (portanto, sem qualquer possibilidade de redução da amplitude subjetiva) e, esta, aos direitos coletivos, situação em que a eficácia restringir-se-á ao grupo, categoria ou classe; a eficácia ultra partes, se poderia afirmar, é menos ampla do que a erga omnes.18

Outra alteração significativa do regime está na ampliação, ope legis, do objeto do processo nas ações coletivas (ações civis públicas), de modo a autorizar o transporte in utilibus da coisa julgada para as demandas individuais. É o que dispõe o §3 º do art. 103 do CDC, quando afirma: "Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste Código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução dos termos dos arts. 97 a 100."

O transporte da coisa julgada, resultante de sentença proferida na ação civil pública para as ações individuais de indenização por danos pessoalmente sofridos, se opera secundum eventum litis, ou seja, só há transporte nas hipóteses de procedência. No entanto, frise-se, a coisa julgada coletiva não é secundum eventum litis; ela se opera pro et contra, mas apenas quando houver exaustão da prova; o que está de acordo com o evento da causa é a extensão da coisa julgada às lides individuais, que apenas se opera em hipótese de procedência.19

O que autoriza o transporte da coisa julgada coletiva para a esfera individual daqueles que foram prejudicados pela violação do direito transindividual, segundo a lição de ADA PELLEGRINI GRINOVER, é a ampliação, por obra da lei, do objeto do processo e a inclusão, na coisa julgada coletiva, do dever de indenizar — assim como ocorre no dano ex delicto, em que a decisão sobre o dever de indenizar integra o julgado penal. Ou seja, acolhido o pedido na ação coletiva, no sentido de determinar a paralisação de certa obra de garimpo, por exemplo, que estava contaminando o rio com mercúrio, poderão os prejudicados se aproveitar desta decisão, para já a partir daí propor as suas respectivas ações individuais; possibilita-se às vítimas e a seus sucessores o benefício da demanda coletiva, sem necessidade de nova sentença condenatória, passando incontinenti às liquidação e execução da sentença.20

Por fim, consagra-se, no plano coletivo, a coisa julgada secundum eventum probationis.

As demandas coletivas (versam sobre direitos coletivos lato sensu), de que são exemplos a ação popular e as que versam sobre direitos difusos, sempre envolvem altíssimo interesse público, com a disputa de, por vezes, vultosas quantias monetárias —já seria o bastante para ensejar uma busca mais sequiosa da verdade, esgotando-se todas as possibilidades probatórias. A par disso, a possibilidade de conluio entre autor (cidadão ou ente legitimado) e réu da demanda sempre existe, e a propositura intencional de uma ação mal formulada, com o objetivo de pô-la, mediante a rejeição do pedido, a salvo de futuros ataques, há de ser combatida.

Mas não se poderia furtar destas demandas a possibilidade de produção da coisa julgada, inclusive quando fossem improcedentes. A segurança jurídica é disputada, assim, como em um cabo de guerra, por dois vetores em sentidos opostos: de um lado, a necessidade de pôr-se fim à controvérsia definitivamente; de outro, o cuidado extremo que tais causas merecem. Eis o que afirma BARBOSA MOREIRA, em lição anterior ao CDC, mas totalmente aplicável em tempos hodiernos: "Em suas linhas gerais, é bastante conhecido o problema, aliás comum à extensa classe de ações, de que a ação popular brasileira apenas um (mais bem característico) exemplo. Ele concerne sobretudo à hipótese de improcedência do pedido, na qual se faz necessário afastar, ou pelo menos abrandar, os riscos das soluções extremas. De um lado, se se limitar o âmbito de atuação da coisa julgada ao cidadão que propôs a ação popular, expõem-se o ato discutido a uma série teoricamente indefinida de impugnações idênticas, como manifesto detrimento para a economia processual e sensível prejuízo para a atividade de pessoa jurídica de que ela emanou, sujeita que fica à perturbação e ao desconforto de sucessivas investidas."21

Para a solução do problema, não se adotou a fórmula da coisa julgada secundum eventum litis, porquanto inviável tendo em vista a indivisibilidade do objeto (imagine-se, com BARBOSA MOREIRA, a hipótese em que se julgue, inicialmente, improcedente um pedido para um determinado autor e, no futuro, esse mesmo pedido, feito por outro legitimado, seja julgado procedente: como o objeto é indivísivel, também em relação ao primeiro autor a decisão do segundo processo beneficiaria; ter-se-ia um conflito de coisas julgadas contraditórias); a coisa julgada coletiva, uma vez produzida, se opera pro et contra.22

Adotou o legislador, nos dispositivos retromencionados, solução interessante: condicionou a formação da coisa julgada ao esgotamento das instâncias probatórias: a coisa julgada somente surge, a favor ou contra, se houver suficiência de prova. Nas demandas transindividuais (em que se inclui a ação popular), é correto afirmar, "portanto, que pode haver sentença de improcedência de cognição não exauriente, ou melhor, sentença de improcedência com carga declaratória insuficiente para a produção de coisa julgada material. Nas ações coletivas que tutelam direitos transindividuais, assim, a sentença de improcedência de cognição exauriente e a sua conseqüência, que é a formação de coisa julgada material, ocorrem secundum eventum probationis."23

Assim, podem ocorrer as seguintes situações: a) demanda procedente: faz coisa julgada material erga omnes; b) a demanda é julgada improcedente, por insuficiência de provas: não faz coisa julgada material erga omnes, autorizada nova propositura, fundada em novas provas, por qualquer legitimado, inclusive aquele que perdeu a causa originária; c) a demanda é julgada improcedente, com suficiência de provas: a demanda produz coisa julgada material erga omnes.

Este regime diferenciado de coisa julgada repercute, sem dúvida, no sistema recursal do Código de Processo Civil. Analisemos os casos da apelação e dos embargos infringentes.

Diz-se, costumeiramente, em sede doutrinária, que não cabem embargos infringentes se a divergência, no acórdão, se deu na fundamentação; fundamentos diferentes, com conclusão semelhante, não autorizam a interposição do mencionado recurso. A divergência deve dizer respeito à conclusão do voto, ao decisum. Se a decisão for unânime, ainda que por motivos diferentes, não há divergência; se a conclusão é a mesma, em nada ajuda o autor a prevalência do voto vencido.24 Esta concepção se justifica no regime comum de produção da coisa julgada material: como a fundamentação é irrelevante para a coisa julgada, pouco importa a sua rediscussão, pois seria absolutamente inútil. De modo semelhante é o que ocorre com a apelação: não se apela para discutir apenas a fundamentação; a irresignação tem que estar centrada no que foi decidido, pois é sobre ele que o manto da coisa julgada cairá. Há, também aqui, falta de interesse.

Não é isto o que acontece, entretanto, com as demandas coletivas, em que a coisa julgada é secundum eventum probationis.

Por certo, haverá oportunidades em que a discussão da fundamentação (embora o recorrente concorde com a conclusão) será da mais alta relevância, pois uma improcedência por falta de provas não gera as mesmas conseqüências de uma improcedência comum. Confira-se o exemplo de um acórdão unânime na decisão de improcedência, mas por maioria quanto ao exaurimento das vias probatórias (prevaleceu a tese de que não houve esgotamento da prova): aquele que venceu terá interesse recursal na interposição dos embargos infringentes, de modo a que prevaleça o entendimento pela possibilidade de produção da coisa julgada. Mutatis mutandis, em se tratando de apelação. Eis porque, no particular, as lições antigas sobre tais recursos hão de ser revistas. Mostra-se, assim, também aqui, o impacto deste regime diferenciado de coisa julgada no ordenamento jurídico.25

4.3 A coisa julgada nas ações de investigação e negação de paternidade: tendências jurisprudenciais e doutrinárias.

4.3.1 Generalidades.

Questão que tem atormentado os operadores jurídicos é a que diz respeito à coisa julgada nas ações de paternidade, notadamente em razão do desenvolvimento tecnológico que permitiu, hoje em dia, que se possa saber, com certeza quase absoluta, a existência biológica do vínculo de filiação.

Além da questão jurídica, está em jogo importante questão social, tendo em vista a prática disseminada, em cantões deste país, do não-reconhecimento oficial da paternidade. É possível que uma decisão possa transformar em pai quem não o seja, ou vice-versa? Aplica-se a regra romana de que a coisa julgada faz do branco, preto, e do quadrado, circular? É possível rescindir-se uma sentença de paternidade, após o lapso de tempo para a rescisória, tendo por base a prova cabal do exame genético (DNA)? É possível aceitar-se, hoje em dia, que um feito desta natureza possa ser decidido por outro meio de prova que não o pericial (DNA)?

Construções doutrinárias e jurisprudenciais têm sido desenvolvidas de modo a, dogmaticamente, resolver o problema. Como estas demandas versam sobre direitos indisponíveis, serão expostas a síntese das correntes de pensamento sobre o assunto, de modo a completar o painel que ora se monta.

4.3.2 A demanda de investigação de paternidade como procedimento de cognição exauriente secundum eventum probationis.

Considera-se que, nas ações investigatórias, somente se produzirá a coisa julgada material se houver exaurimento de todos os meios de prova admitidos em direito, principalmente o exame de correspondência do código genético. Capitaneada por BELMIRO WETER, 26e27 esta corrente, embora bemconstruída, não menciona a técnica procedimental da cognição exauriente secundum eventum probationis, além de possuir algumas contradições em seus termos.28

Também pensa deste modo CÂNDIDO DINAMARCO 29 , que propõe uma relativização da coisa julgada, desenvolvendo a figura da coisa julgada inconstitucional (imunização de decisões aberrantes de valores, princípios, garantias e normas constitucionais). Este critério de relativização da coisa julgada "deve aplicar-se também a todos os casos de ações de investigação de paternidade julgadas procedentes ou improcedentes antes do advento dos modernos testes imunológicos (HLA, DNA), porque do contrário a coisa julgada estaria privando alguém de ter como pai aquele que realmente o é, ou impondo a alguém um suposto filho que realmente não o é..."

O problema deste posicionamento é que a técnica procedimental tem de estar prevista legalmente —ela é plenamente aceitável em nosso ordenamento, conforme visto em itens precedentes, mas tem de estar consagrada em lei. Não se pode alterar a formação da coisa julgada, sem que haja alteração legal na construção do procedimento. Ao garantir-se a prevalência de um valor, violar-se-iam outros, como a segurança e a certeza —estes que, como vimos, também informam o processo jurisdicional.

Bem se posiciona HUMBERTO THEODORO JR: "Acontece que este tipo de subtração da sentença à autoridade de coisa julgada, no todo ou em parte, somente pode provir da lei e não da vontade criativa do intérprete ou do juiz. E não há regra alguma, no direito positivo pátrio, que exclua a sentença da ação de investigação de paternidade do regime geral da res iudicata."30

Não se nega, contudo, uma importante função desta forma de pensar: esses posicionamentos ajudam a que se busque a necessária relativização da coisa julgada, a qual, de fato, vem gerando inúmeros imbróglios e tormentos.

Segue, entretanto, uma solução dogmática mais aceitável de lege ferenda:31 uma simples alteração legislativa, até mesmo acrescentando-se um parágrafo ao Código de Processo Civil ou na Lei de Investigação de Paternidade (LF 8.560/92), dispondo que, em demandas de investigação de paternidade, o exame genético é obrigatório, é o quanto basta.32 É mais ou menos o quanto previsto no Projeto de Lei nº 116, de 2001, de autoria do Sem. Valmir Amaral, que, embora com algumas imperfeições técnicas, assim dispõe: "Art. 1. A ementa da Lei n. 8560/92 passa a ter a seguinte redação: ‘Regula a investigação de paternidade’. Art. 2 º O art. 8º da Lei n. 8560/92 passa a ter a seguinte redação: (...) Parágrafo Único - A ação de investigação de paternidade, realizada sem a prova do pareamento cromossômico (DNA), não faz coisa julgada. Art. 3. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.’ 33

4.3.3 Coisa julgada pro et contra e non secundum eventum probationis nas demandas investigatórias. Possibilidade de rescisão.

Em um meio termo, plenamente consentâneo com a nossa legislação processual, colocam-se outros doutrinadores, que admitem a formação da coisa julgada material pelo regime comum —pro et contra, produzindo-se a favor ou contra autor e réu, independentemente do material probatório investigado e do resultado da demanda—, mas trazem vários argumentos que autorizariam um futura rescisão do julgamento, acaso não se tenham esgotado os meios de prova aplicáveis à espécie.

Tudo, não se duvida, em razão da revolução científica ocasionada com o surgimento do exame de DNA. A concepção sobre a busca da verdade, relativizada com a constatação de que os fatos são apresentados no processo de acordo com as impressões de cada um dos sujeitos —e, portanto, deformados por seus preconceitos, sua ideologia, seus traumas, sua condição social etc.—, teve de ser repensada, na medida em que, pelo avanço tecnológico, se podem atingir níveis de certeza praticamente absoluta com o exame genético. Existente uma prova capaz de atingir a verdade real, ou o mais próximo possível dela (em se tratando da inteligência humana), poderia o juiz ficar aquém disso na investigação dos fatos trazidos ao processo? E se esta demanda versar sobre um direito constitucionalmente tutelado, tido por imprescritível e indisponível, e que compõe a célula mater da sociedade (família)? Em uma demanda de investigação de paternidade, na qual há uma prova —o exame de DNA— cujo índice de verossimilhança é 99,99% (noventa e nove vírgula noventa e nove por cento), alcançando-se, assim, quase a verdade real, pode o magistrado julgar com base em outras provas, as quais não têm as mesmas capacidade e idoneidade para o conhecimento dos fatos submetidos à sua perquirição, como, por exemplo, testemunhas e fotos? Autorizada está a sua rescisão?

Este posicionamento foi recentemente defendido por HUMBERTO THEODORO JR

Elencam-se como possíveis hipóteses de rescindibilidade destas decisões a violação a literal disposição de lei (CPC 485 V), por prova falsa (CPC 485 VI) e por força de documento novo (CPC 485 VII). Não têm, os argumentos, a mesma força; é fato. Há de se interpretar a lei, nestas hipóteses, com certa indulgência e boa vontade. Nosso direito objetivo não estava (está) preparado para esta revolução, cabendo aos operadores do direito a busca de uma solução dogmaticamente aceitável para o problema, de acordo com as técnicas de integração consagradas.34 A enumeração dos argumentos se justifica, entretanto, pelos fins a que este ensaio se destina.

Primeiramente, os argumentos em prol da rescisão por violação a literal disposição de lei.

Cogita-se de violações aos artigos 226, caput e §7º, e 227, caput, todos da Constituição Federal de 1988. Com o advento da Lei Fundamental de 1988, a percepção sobre o direito de família e, sobretudo, a própria família mudou. As idéias de antanho não foram recepcionadas com a elevação da entidade familiar à categoria de feixe de direitos e obrigações protegido constitucionalmente, merecendo especial atenção do Estado. A família, e tudo o que dela decorrer, foi protegida de modo cuidadoso no texto magno, traçando-se um novo modelo para esta anosa instituição social. Com a proteção constitucional, um dos vínculos presentes em quase toda entidade familiar foi assegurado de modo especial: a filiação.

De fato, com a Constituição de 1988, extirparam-se discriminações existentes na legislação infraconstitucional (mormente na legislação civil), no concernente aos filhos. Acabaram os filhos "legitimados", "espúrios", "ilegitimados", "adulterinos", "incestuosos", "adotivos", enfim, feneceram as ignominiosas nomenclaturas postas no texto da codificação civil. Para a Constituição, são todos filhos.

Erigiu-se, ainda, o princípio da paternidade responsável, concretizado no artigo 226, §7º, da Carta Republicana de 1988. Deve-se entender tal princípio não como uma orientação só para a questão do planejamento familiar, como parece antever após a primeira leitura do artigo anteriormente aludido, mas, precipuamente, como um dever do Estado e de todos perante o trato da instituição família e da paternidade. Assim é que não pode o Estado determinar que alguém é ou não pai de outrem sem um grau de certeza quase que absoluto, obtenível pelo exame de DNA. Não pode o próprio Estado, no exercício da sua atividade judicante, olvidar do princípio posto na Lei Fundamental de 1988, para, de modo tíbio, atribuir a paternidade a alguém sem a mais absoluta certeza possível. Embora outrora isto se justificasse, em razão da insipiência do conhecimento sobre a genética, atualmente isto se mostra absolutamente inadmissível —não se justificam mais sentenças que declarem a paternidade com base em semelhança física (?!), testemunhos (?!), cartas (?!). Vai-se além. Indicar erroneamente o pai é transgredir o dever do Estado em assegurar à criança a sua devida dignidade, como determina o artigo 227, caput, da Carta Política de 1988. 35

A depender do caso concreto, poder-se-ia cogitar de outra causa de rescindibilidade; se fosse negada a um dos demandantes a possibilidade de produção do exame pericial, haveria infração expressa ao artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal de 1988, consagrador da regra do contraditório e da ampla defesa. Tais princípios derivam, em nosso sistema constitucional, do princípio do devido processo legal (due process of law). Representam ambos uma pequena parcela de uma série de princípios e garantias postos tanto na Constituição quanto nas leis ordinárias, que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem os meandros do rio que conduz as partes a desembocar na ordem jurídica justa. Interessa-nos, agora, o princípio do contraditório, cujo um dos corolários é o direito à prova.

O princípio do contraditório possui natureza bifronte, porquanto não consiste tão-só em uma atuação do autor do processo, mas, também, na participação do réu na formação do convencimento do magistrado sobre as alegações feitas na demanda. Ensina NELSON NERY JR.: "O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do estado de direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e o do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação, quanto o direito de defesa são manifestação do princípio do contraditório."36 Surge, assim, o direito à prova, como consectário do contraditório.37 Uma vez tendo sido requerida a produção de prova fundamental —como o é o exame genético nestas causas—, surge o direito subjetivo à prova, a ensejar eventual rescisão se o julgado o desrespeitar.

Estas hipóteses de rescindibilidade com base no texto constitucional trazem consigo a condescendência interpretativa que tem prevalecido ultimamente na exegese do inciso V do art. 485, CPC, quando diante de texto constitucional.38

Um outro fundamento de rescindibilidade, também levantado por BELMIRO WELTER, é a da transgressão ao artigo 27 do Estatuto da Criança e Adolescente, em caso de julgado proferido sem o exame de DNA. Este dispositivo é norma de ordem pública, cujo conteúdo impõe uma série de características ao direito ao reconhecimento do estado filiação. Pela letra da lei,39 extraem-se os seguintes caracteres do direito de filiação, segundo BELMIRO PEDRO: "Ora, a perfilhação é direito natural e constitucional de personalidade, sendo esse direito indisponível, inegociável, imprescritível, impenhorável, personalíssimo, indeclinável, absoluto, vitalício, indispensável, oponível contra todos, intransmissível, constituído de manifesto interesse público e essencial ao ser humano, ou, no do dizer de CARLOS ALBERTO BITTAR, os direitos de personalidade são dotados de constituição especial, para uma proteção eficaz da pessoa, em função de possuir, como objeto, os bens mais elevados do homem. Assim, o ordenamento jurídico não pode consentir que o homem deles se despoje, conferindo-lhes caráter de essencialidade: são, pois, direitos intransmissíveis e indispensáveis, extrapatrimoniais, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes, sob raros e explícitos temperamentos, ditados por interesses públicos. Em vista desses predicados, não se pode aceitar que a personalidade de alguém seja reconhecida apenas com base em verdade formal, denominada ficção jurídica, mas, sim, deve ser buscada, incansavelmente, a verdade material, ou seja, a verdadeira filiação biológica, aliás, exigência fincada na Constituição Federal de 1988 (artigo 227) e Estatuto da Criança e Adolescente (artigo 27)."40

Talvez o mais forte dos argumentos a favor da rescisão da sentença (julgado), nestas hipóteses, seja o da violação ao art. 130 do CPC. Enfraquece-se, a cada dia, a noção dispositiva do processo civil; o juiz não é mais um mero espectador do embate, não fica mais sentado à mesa, observando a batalha entre as partes. Assume uma postura mais ativa, dirigindo o processo de modo a tornar efetivo o acesso à justiça. Emblemática, em relação a esta mudança de perspectiva, a posição de THEODORO JR: "Quero começar e sta exposição confessando que irei proceder à revisão de uma posição doutrinária que esposei e venho defendendo desde a primeira edição de meu manual de direito processual civil, fato ocorrido há mais de vinte anos. Trata-se do problema relativo ao caráter dispositivo do processo civil brasileiro em cotejo com os poderes de iniciativa do juiz na condução do processo e, particularmente, na instrução probatória."41

Nota-se, então, nas palavras do mestre mineiro, a aspiração da moderna doutrina processual, que confere ao magistrado, com base no art. 130 CPC, amplos poderes instrutórios, qualquer que seja a natureza do litígio, máxime — e isto é induvidoso—, se versar sobre direitos indisponíveis. É como afirma JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE "As partes podem perfeitamente manter o pleno domínio sobre os interesses em litígio; mas jamais sobre o desenvolvimento técnico e formal do processo. A maneira como a jurisdição realiza seu mister não pertence à esfera de disponibilidade das partes, pois o processo não pode ser visto apenas como um instrumento de composição de conflitos, de pacificação, mas meio pelo qual se busca a justiça substancial."42 Esta a conclusão a doutrina processual moderna: busca-se a verdade mais próxima o possível da real e, para tanto, conferem-se ao magistrado amplos poderes instrutórios. Em se tratando de direito indisponível, então, o destemor na produção da prova mais se justifica; em sendo direito indisponível de fundo constitucional, tanto melhor; havendo a possibilidade de atingimento da certeza, dela não se poderá prescindir.43 e 44

Do mesmo modo, para o caso de o julgado fundar-se em prova testemunhal —ausente o exame pericial—, poderia haver a rescisão com base na violação do art. 400, II, do CPC. Considerando que, para a proficiente imposição do vínculo filiação, seria necessário provar a existência de uma relação sexual (normalmente, pois é possível inseminação artificial, p. ex.) e, além disso, de fenômenos biológicos internos, cuja percepção humana não se dá sem aparelhos técnicos próprios, testemunhas e fotos seriam meios de prova idôneos?

Nas demandas de investigação de paternidade, atualmente, a produção da prova testemunhal há de ser indeferida (artigo 400, II, do CPC), porquanto só o exame do DNA pode comprovar a existência do vínculo de filiação. A prova testemunhal não tem o condão, por absoluta impossibilidade física, de comprovar a paternidade, fato que somente pode ser constatado com a prova técnica. A prova testemunhal, aqui, só poderia ser aceita, como indiciária, à falta de outros elementos.

São estes os principais argumentos que autorizariam uma rescisória de um julgado por violação a literal disposição de lei (CPC 485 V), segundo expõe a doutrina

O Tribunal de Justiça do Espírito Santo, no entanto, conforme lembrança de THEODORO JR, chegou a admitir a possibilidade de rescisória por força de documento novo (o exame de DNA). Baseou-se na dificuldade de acesso e de compreensão da prova genética pela parte ao tempo da instrução da investigatória. Embora bem intencionado, estamos com autor mineiro, quando afirma que "não há como tratar um exame pericial posterior à coisa julgada como documento novo."45

Há ainda o argumento da rescisão por prova falsa.

Ensina HUMBERTO THEODORO JR: "De minha parte, penso que, conforme as circunstâncias da ação primitiva, o posterior exame do DNA pode servir de meio para demonstrar que a sentença da ação de paternidade se lastreou em falsa prova. De fato, se os elementos de convicção do processo autorizavam a conclusão a que chegou o sentenciante, e se prova técnica posterior evidenciou, com certeza plena, que a verdade dos fatos era em sentido oposto, não é difícil afirmar o defeito do substrato probatório do julgamento rescindendo."46 Trata-se de um bom argumento.

Eis, assim, resumidamente, o elenco dos argumentos possivelmente utilizáveis para a rescisão de um julgado, em ação investigatória, que se não tenha baseado em prova genética; trata-se de construção que, antes de tudo, visa salvaguardar o direito à filiação, indisponível em essência, e que merece, portanto, a lembrança em qualquer painel que verse sobre a coisa julgada e estes direitos.

A necessária adaptação do processo ao direito material (e também à realidade) impõe, entretanto, uma imediata reforma legislativa, de modo a que se consagre, de lege lata, a técnica da coisa julgada secundum eventum probationis para as demandas de paternidade. As peculiaridades deste direito (indisponível e constitucionalmente protegido) conspiram, também, a favor da diferenciação da tutela.

4.4 A coisa julgada na ação de alimentos: o regime comum.

Consoante bem pondera A ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, circula na doutrina nacional, com certa desenvoltura, a idéia de que o provimento jurisdicional na ação de alimentos não faz coisa julgada material, apenas formal.47e48

A força desta tese adquiriu fumos de legalidade com a promulgação da Lei Federal 5.478/68, que, em seu artigo 15, expressamente dispõe: "A decisão judicial sobre alimentos não transita em julgado e pode a qualquer tempo ser revista em face da modificação da situação financeira dos interessados."49 De outro lado, se apregoa, com razão, que a obrigação alimentar, ao menos em razão do parentesco, é exemplo de direito indisponível, conforme letra expressa do art. 404, do Código Civil. Assim, sem examinar a fundo a enorme discussão sobre o assunto, pela impertinência em relação ao tema deste trabalho, cabem algumas indagações: o regime da coisa julgada na ação de alimentos é diverso em relação às demais ações?

Alguns doutrinadores entendem que as sentenças proferidas em relações jurídicas continuativas não produzem coisa julgada. Asseveram que a modificabilidade a todo tempo da sentença de alimentos não se poderia compatibilizar com a idéia da imutabilidade ínsita no conceito de coisa julgada.50 Essa conclusão pode ser resultado, também, do quanto previsto no art. 471, I, CPC. Por um motivo ou por outro, trata-se, entretanto, de concepção equivocada.

Consideram-se relações jurídicas continuativas "aquelas reguladas por regras jurídicas que projetam no tempo os próprios pressupostos, admitindo variações dos elementos quantitativos e qualificativos."51 Para dar atuação a tais regras, a sentença atende aos pressupostos do tempo em que foi proferida, sem extinguir a relação jurídica, que continua sujeita a variações dos seus elementos constitutivos. A lei admite a revisão da sentença, embora transitada em julgado, por haver sobrevindo modificação no estado de fato ou de direito, por meio da chamada ação de revisão. A nova sentença não desconhece nem contraria a anterior. Sucede que toda sentença proferida em tais situações contêm em si a cláusula rebus sic standibus, adaptando-a ao estado de fato e ao direito supervenientes. A sentença fará coisa julgada material normalmente. Trata-se de duas normas individuais concretas que regulam situações diversas. A ação de revisão que poderá ser interposta é uma outra ação (elementos distintos), porque fundada em outra causa de pedir; a nova sentença, nesta demanda, alteraria ex nunc a regulação jurídica da relação, nem de perto tocando na primeira. A sentença proferida no segundo processo não ofenderá, sequer substituirá, a que fora proferida no primeiro, que tem a sua eficácia condicionada à permanência das situações de fato e de direito —imaginar que a primeira sentença não ficaria acobertada pela coisa julgada, seria o mesmo de defender que ela estaria desprotegida do influxo de lei nova, por exemplo.52

Não há, assim, regime jurídico diferente para a coisa julgada na ação de alimentos. Também não se justifica a terminologia ‘coisa julgada rebus sic standibus",53 pois a coisa julgada sempre operará naquelas circunstâncias específicas —o que é rebus sic standibus é a decisão, que em seu bojo traz esta cláusula.

Estes esclarecimentos, aparentemente ociosos, têm por objetivo compor o quadro normativo sobre os regimes de produção da coisa julgada no direito brasileiro. A diferenciação da tutela alimentar não se efetiva por alteração no regime da produção da coisa julgada material, que segue o padrão de toda e qualquer sentença que regule relação jurídica continuativa —guarda, interdição etc.—, sentença esta que também submete-se ao regime comum. A conclusão de A ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, assim, é absolutamente correta, nos servindo como arremate: "A verdade é que nada já de particular ou de especial com as sentenças ‘determinativas’, ou mais restritamente com as de alimentos, e com sua aptidão para a constituição de coisa julgada. Não há exclusão ou sequer, como algumas vezes sugerido, atenuação do princípio geral, submetendo-se essas decisões ao regime comum dos julgamentos de mérito no que concerne à res iudicata."54


5. CONCLUSÕES

I. Os procedimentos são construídos a partir da combinação das diversas técnicas de cognição. II. A coisa julgada material possui, como requisitos fundamentais para a sua ocorrência: natureza jurisdicional do provimento, cognição exauriente, análise de mérito e preclusão máxima (coisa julgada formal).

III. A coisa julgada comum caracteriza-se pela limitação inter partes de seus efeitos, pela inevitabilidade e por ser pro et contra.

IV. As demandas coletivas versam possuem regime de produção da coisa julgada material próprio, sendo pro et contra, secundum eventum probationis, erga omnes e com possibilidade de extensão, in utilibus e secundum eventum litis, pela ampliação ope legis do objeto do processo, dos efeitos da decisão, nas demandas coletivas em ações civis públicas, para as causas individuais.

V. O regime da coisa julgada material nas demandas de paternidade é o comum, a despeito da existência de exame genético de DNA.

VI. É possível, entretanto, a rescisão de julgado, em demanda investigatória ou negatória, que se não tenha valido do exame genético pericial, com fundamento em violação a literal disposição de lei, ou por prova falsa. Não é possível a rescisão com base em documento novo.

VII. É indispensável, de le ge ferenda, que se imponha às demandasinvestigatórias o regime da coisa julgada secundum eventum probationis, como homenagem ao princípio da adequação.

VIII. O regime da coisa julgada material na ação de alimentos é o comum, produzindo-se normalmente, devendo ser desconsiderada a literalidade do art. 15 da Lei Federal 5.478/68. (Cidade do Salvador, Bahia, julho de 2001).


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Notas

1 Para que determinado provimento esteja apto a adquirir a qualidade da coisa julgada, terá ele de preencher quatro requisitos: a) provimento há de ser jurisdicional (a coisa julgada é característica exclusiva desta espécie de ato estatal); b) o provimento há que versar sobre o mérito da causa (objeto litigioso), pouco importa se o mérito tem natureza material (regra) ou processual (rescisória ou embargos à execução, p. ex.), bem como se o provimento é sentença, acórdão ou decisão interlocutória (não se desconhece a possibilidade de decisão interlocutória estar apta à produção de coisa julgada material, como são exemplos o reconhecimento de prescrição parcial e o julgamento antecipado parcial da lide, inovação dos projetos de reforma da reforma do CPC); c) mérito este analisado em cognição exauriente; d) tenha havido a preclusão máxima (coisa julgada formal), seja pelo esgotamento das vias recursais, seja pelo não-uso delas.

2 WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. São Paulo: RT, 1987, p. 84.

Sobre o princípio da adequação do procedimento, cf. o nosso "Sobre dois importantes, e esquecidos, princípios do processo: adequação e adaptabilidade do procedimento", a ser publicado na Revista dos Mestrandos da UFBA, v. 9, com publicação marcada para novembro de 2001.

3 Ob. cit., p. 41.

4 MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Tutela Antecipada. 2 ª ed. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, pp. 73/83. Cabe a transcrição de excerto, porquanto elucidativo da importância do estudo do fenômeno cognitivo: "Na verdade, a cognição funciona como um ponto de contato, ou uma ‘ponte’, que permite a ligação entre a realidade do direito material e a de um processo que proponha a realizá-lo o mais plenamente possível. Talvez, melhor do que ‘ponte’ seja a idéia culinária de ‘ingrediente’ para identificar a cognição como elemento integrante do modus faciendi dos procedimentos judiciais, uma vez que o fenômeno cognitivo, ao se expressar ritualmente desta ou daquela maneira por meio da regulamentação dos atos do juiz, dará este ou aquele colorido ao procedimento como um todo, tornando-o mais ou menos habilitado para a realização satisfatória da vontade do direito material, numa ótica sócio jurídica." (p. 74)

5 Ob. cit., pp. 84/94.

6 Adotando posicionamento peculiar aparece CELSO NEVES, que vislumbra um quadrinômio de questões. Além dos pressupostos, haveria os supostos processuais: pressuposto é só o de existência (para o autor, o exercício do direito de ação); uma vez preenchido, o processo passa a existir e os problemas atinentes à sua validade já pertencem ao plano da sua estrutura, não podendo ser considerados como pressupostos seus, mas verdadeiros supostos, de que depende o seu desenvolvimento ulterior. Admite como pressupostos os requisitos que devem preexistir para que a relação jurídica processual exista; supostos seriam os requisitos que deveriam coexistir para lhe determinarem validade (1995:199-200).

7 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas: Bookseller, 1998, v. 1, p. 463.

8 Cf., supra, nota 22.

9 Art. 103, III, CDC: "III – erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81."

10 "...a doutrina e os tribunais começam a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização de incertezas."

(DINAMARCO, 2001a:36) Neste interessante trabalho, o catedrático do Largo de São Francisco expõe uma série de concepções doutrinárias que têm por objetivo relativizar os rigores da autoridade da coisa julgada. Menciona, por exemplo, o pensamento do Min. José Delgado, quando afirma que a autoridade da coisa julgada está sempre condicionada aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sem cuja presença a segurança jurídica imposta pela coisa julgada não é tipo de segurança posto na Constituição Federal. (2001a:36) Sobre o tema da relativização da coisa julgada, que extravasa os limites de ensaio, é muito importante a leitura deste trabalho, no qual DINAMARCO desenvolve a noção de coisa julgada inconstitucional. Ainda sobre o ponto, é de se ressaltar a importância do novel parágrafo único do art. 741 do CPC, que modificou bastante o sistema brasileiro de imunização das decisões judiciais: "Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal."

11 Sobre o princípio da adequação, podem ser consultados: LACERDA, Galeno. O Código como Sistema legal de Adequação do Processo. Em: Revista do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul — Comemorativa do Cinqüentenário. Porto Alegre, 1976; MARINONI, ob. cit.; OLIVEIRA, ob. cit. Também nosso modesto trabalho, a ser publicado na Revista dos Mestrandos em Direito da UFBA, v. 9, novembro de 2001, que aborda especificamente o tema: Sobre dois importantes, e esquecidos, princípios do processo: adequação e adaptabilidade do procedimento.

12 Extrapola os limites deste trabalho a análise minuciosa do complexo tema da coisa julgada. Inúmeros são os trabalhos que se propuseram a desvendar as tormentosas questões a ela atinentes, e não nos consta que já se tenha por pacificada a refrega doutrinária. As menções à coisa julgada como qualidade dos efeitos da sentença se fazem, portanto, brevitatis causa, em razão de ser esta a concepção doutrinária mais corrente. Não se desconhecem outras concepções, como a que identifica a coisa julgada como uma situação jurídica (BARBOSA MOREIRA), para nós a mais interessante de todas elas. Sobre o assunto, podem ser consultadas, com proveito, os magníficos trabalhos de BARBOSA MOREIRA (Coisa Julgada e declaração Temas, 1 ª série; Os Limites Objetivos da Coisa Julgada no Sistema do Novo Código de Processo Civil. Temas, 1 ª série; A eficácia preclusiva da coisa julgada material. Temas, 1 ª série; Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. Temas, 3 ª série); o livro de LIEBMAN citado ao final, o ensaio de ADROALDO FURTADO FABRÍCIO, o curso de OVÍDIO BAPTISTA (Curso de Processo Civil, 5 ª ed., RT, 1999) e a tese de CELSO NEVES (Coisa julgada civil. São Paulo, RT,

1971).

13 A calhar, o enunciado do parágrafo único do art. 1 º da LF 8.884/1994, que regula a proteção ao abuso de concorrência: "A coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos por esta Lei."

14 "Art. 18. A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova; neste caso, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova."

15 "Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I – erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II – ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso II do parágrafo único do art. 81;"

16 Sobre o tema o nosso "Sobre dois princípios..., com ampla fundamentação.

17 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Direito e Processo. Ob. cit., p. 95.

18 Criticando a distinção entre ultra partes e erga omnes, GIDI (1995:108-112).

19 Apontando esta sutil diferença, com toda razão, ANTÔNIO GIDI: "Rigorosamente, a coisa julgada nas ações coletivas do direito brasileiro não é secundum eventum litis. Seria, assim, se ela se formasse nos casos de procedência do pedido, e não nos de improcedência. Mas não é exatamente isto o que acontece. A coisa julgada sempre se formará, independentemente do resultado de o resultado da demanda ser pela procedência ou pela improcedência. A coisa julgada nas ações coletivas se forma pro et contra./ O que diferirá, de acordo com o evento da lide, não é a formação ou não da coisa julgada, mas o rol de pessoas por ela atingida. Enfim, o que é secundum eventum litis não é a formação da coisa julgada, mas a sua extensão "erga omnes" ou "ultra partes" à esfera jurídica individual de terceiros prejudicados pela conduta considerada ilícita na ação coletiva (é o que se chama de extensão in utilibus da coisa julgada)." (Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 73)

20 Cf., por todos, GRINOVER, Ada Pellegrini e outros. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 6 ª edição. São Paulo: Forense Universitária, 1999.

21 A Ação Popular do Direito Brasileiro como Instrumento de Tutela Jurisdicional dos Chamados ‘Interesses Difusos’. Em: Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1977, 1 ª

série, p. 122.

22 Ob. cit., p. 123.

23 MARINONI, Luiz Guilherme. Ob. cit., p. 94. 12

24 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 8 ª ed. Rio de Janeiro: Forense, passim.

25 Cf., a propósito, o belo trabalho de Flávio Cheim Jorge, Embargos Infringentes: uma visão atual. Em: Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis de acordo com a Lei 9.756/98. Coordenação Teresa Wambier e Nelson Nery Jr. São Paulo: RT, 1999, pp. 266/267. No mesmo sentido, ALVIM, Eduardo Arruda. Curso de Processo Civil. São Paulo: RT, 2000, v. 2, pp. 194/195; ZARIF, Cláudio. Sistema Recursal nas Ações Coletivas. Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: RT, 2001, pp. 211/212.

26 WELTER, Belmiro Pedro. Investigação de Paternidade. Porto Alegre: Síntese, 1999, t. II.

27 "Será que essa sentença, mesmo transitada em julgado, pode prevalecer?" Esta indagação é do Min. JOSÉ DELGADO, referindo-se às sentenças anteriores às modernas técnicas biológicas de constatação da paternidade que houvessem declarado uma paternidade irreal. (apud DINAMARCO, 2001a:36) "Aqui tem pertinência o reclamo, já feito por estudiosos do tema, à razoabilidade interpretativa como indispensável critério a preponderar quando tais valorações são feitas nos pronunciamentos judiciais: o logos de lo razonable, da notória e prestigiosa obre de Recaséns Siches, quer que se repudiem absurdos agressivos à inteligência e aos sentimentos do homem comum, sendo absurdo eternizar injustiças para evitar a eternização de incertezas. O jurista jamais conseguiria convencer o homem da rua, p. ex., de que o não-pai deva figurar como pai no registro civil, só porque ao tempo da ação de investigação de paternidade que lhe foi movida, inexistiam testes imunológicos de hoje e o juiz decidiu com base na prova testemunhal. Nem o contrário: não convenceríamos o homem de rua de que o filho deve ficar privado de ter um pai, porque ao tempo da ação movida inexistiam aquelas provas e a demanda foi julgada improcedente, passando inexoravelmente em julgado. / Homem de rua é o homem simples, ingênuo e destituído de conhecimentos jurídicos, mas capaz de distinguir entre o bem e o mal, o sensato e o insensato, o justo e o injusto, segundo a imagem criada por Piero Calamandrei." (DINAMARCO, 2001b:25)

28 Embora defenda que a sentença lastrada em parca prova não faça coisa julgada, admite o autor como meio hábil de impugnação a ação rescisória, medida que tem por pressuposto, exatamente, a existência de coisa julgada a ser dissolvida. Se não faz coisa julgada, basta que se intente nova ação, fundada em nova prova; despicienda a propositura de ação rescisória.

29 DINAMARCO, 2001b:25.

30 Prova — Princípio da Verdade Real — Poderes do Juiz — Ônus da prova e sua Eventual Inversão — Provas Ilícitas — Prova e Coisa Julgada nas Ações relativas à Paternidade (DNA). Em: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, 1999, n. 03, p. 20.

31 Menciona THEODORO JR.. julgado do TJ/GO, ap. 48.900-6/188, rel. Des. Felipe Batista Cordeiro, Ac. 27.04.1999, em que se adotou este posicionamento.

32 Com conseqüências práticas e fundamentos semelhantes, um tanto peculiar a solução proposta por MARIA BERENICE DIAS, que defende a extinção do processo sem julgamento do mérito, por falta de pressuposto processual necessário ao eficaz desenvolvimento do feito, quando não houver prova suficiente nas ações investigatórias. (Investigação de Paternidade, Prova e Ausência de Coisa Julgada Material. Em: Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, 1999, n. 01, pp. 18/21). Continuamos a entender que a solução mais adequada é a extinção por improcedência, pois a coisa julgada secundum eventum probationis pressupõe autorização legal, conforme será demonstrado adiante.

33 Eis a justificação do Projeto: "O Código de Processo Civil, no artigo 469, determina que não faz coisa julgada a verdade do fatos, estabelecida como fundamento da sentença, assim como não o fazem os motivos para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo (CPC, incisos I, II e III do artigo 469). Assim, tem--se o paradigma segundo o qual a verdade deve ser revelada. Em alguns registros de nascimento, porém, essa verdade aguarda a oportunidade de ser lançada, sem mais embutir o medo da ilegitimidade ou do preconceito, e sem prejudicar as partes investigadas, como ocorria antes da Constituição Federal de 1988.A sociedade deste novo século não aceita mais a dúvida sobre a paternidade, que, no século passado, por ser motivo de vergonha, alcançava na jurisprudência sua principação. Primeiro, foi proibido questionar e , depois, foi proibido rever os julgados sobre a paternidade, sempre baseados em frágil prova testemunhal. (Senador Valmir Amaral, Diário do Senado Federal, junho/2001, Sala das Sessões, 22/06/01)

34 Merece transcrição literal as considerações do Prof. HUMBERTO THEODORO JR., em tudo conforme o nosso posicionamento: "Podem, à primeira vista, aparentarem novidades pouco ortodoxas tanto a tentativa de rescindir a sentença de paternidade por violação ao art. 130, do CPC, como por uso de prova falsa. O certo, porém, e que a estrutura legal da rescisória foi construída em época na qual não existia a proteção constitucional ampla e irrestrita ao direito à paternidade biológica que hoje vigora. Impõe-se, então, ao juiz de nossos tempos adequar os instrumentos processuais antigos e, às vezes, anacrônicos, às necessidades do direito material de hoje, já que, reconhecidamente, o direito processual não é um fim em si mesmo e só se justifica como instrumento de acesso e garantia da realização plena dos direitos que emergem da ordem jurídica material. (...) A coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão." (Ob. cit., pp. 22/23) Ainda, eis o que assevera o MINISTRO WALDEMAR ZVEITTER, "mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que com clarividência pôs o constituinte de modo mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao que incumbe a composição dos litígios, com olhos postos na realização da Justiça, limitar-se á aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustam à modernidade." (Acórdão da 3ª Turma do STJ, em 03.04.90. RSTJ 40/236)

35 "Não se pode conceber, por exemplo, a não-produção da prova pericial, especialmente o exame genético DNA, porque esse exame, segundo proclamam os peritos genéticos e os próprios tribunais pátrios, tem o poder científico de excluir e afirmar a paternidade em 99,9999999%. Além de não ser justo ao investigante e ao próprio investigado, ofende frontalmente a Constituição Federal (artigos 1 o , III, e 227) e nega vigência à Lei Federa n º 8.069/90 (ECA, artigo 27) o reconhecimento de uma paternidade com base em indícios (ex., amizade) ou em presunções (casamento, união estável, namoro ou negativa em se submeter a exame genético). É manifesto o dever constitucional e legal de serem produzidas todas as provas, documental, testemunhal, pericial e, evidentemente, o exame genético DNA, e o depoimento pessoal. É claro que os custos podem ser elevados, mas é preferível gastar uma vez e, com isso, excluir uma paternidade duvidosa, do que a ser reconhecida por presunção, como, por exemplo, em vista da recusa de se submeter ao exame, ou, ainda, quando é provada a simples amizade entre a mãe do investigante e o investigado". (Investigação de Paternidade. Porto Alegre: Síntese, tomo II, p. 57)

36 Princípios do processo civil na Constituição Federal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 128.

37 Eis a prédica de LUIZ GUILHERME MARIONNI: "Como adverte TROCKER, o objetivo central da garantia do contraditório não é a defesa entendida em sentido negativo, isto é, como oposição ou resistência ao agir alheio, mas sim a ‘influência’, entendida como Mitwirkungsbefugnis (Z ZE EU UN NE ER R) ou Einwirkungsmölichkeit (B BA AU UR R), ou seja, como direito ou possibilidade de influir ativamente sobre o desenvolvimento e o resultado da demanda. De nada adianta, de fato, garantir uma participação que não possibilite o uso efetivo, por exemplo, dos meios necessários à demonstração das alegações. O direito à prova é resultado da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo. Como demonstra VIGORRITIV, a estreita conexão entre as alegações dos fatos, com que se exercem os direitos de ação e de defesa, e a possibilidade de submeter ao juiz os elementos necessários para demonstrar os fundamentos das próprias alegações tornou clara a influência das normas em termos de prova sobre os direitos garantidos pelo due process of law. A mesma conexão impõe o reconhecimento, em nível constitucional, de um verdadeiro e próprio direito à prova (right to evidence) em favor daqueles que têm o direito de agir ou de se defender em juízo." (Ob. cit., pp. 258/259.)

38 Eis a razão da relativização da STF 343, quando a situação envolve matéria constitucional. Conferir, por todos, o belo trabalho de T TE EO OR RI I Z ZA AV VA AS SC CK KI I: Ação Rescisória em matéria constitucional. Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis e de outras formas de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: RT, 2001, 1041/1066.

39 Art. 27, ECA. "O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça."

40 Ob. cit., p. 42.

41 Ob. cit., p. 06.

42 Poderes Instrutórios do Juiz. 2ª edição. São Paulo: RT, 1991, p. 110.

43 Sucede que a verdade real é algo, do ponto de vista lógico-temporal, inatingível; não deixa de ter um caráter mitológico. É utopia imaginar que se possa, com o processo, atingir a verdade real sobre determinado acontecimento, até porque a verdade sobre algo que ocorreu outrora é idéia antitética. Não é possível a verdade sobre o que ocorreu; ou algo aconteceu, ou não. O fato não é verdadeiro ou falso; ele existiu ou não. O algo pretérito está no campo ontológico, do ser. A verdade, por seu turno, está no campo axiológico, da valoração: ou são verdades, ou são mentiras —conhecem-se os fatos pelas impressões (valorações) que as pessoas têm deles. Daí porque não se pode dizer se tal fato é/foi verdadeiro, ou não, porque ele apenas existe/existiu, ou não existe/existiu; pode imprecar-se, isso sim, que a alegação ou proposição sobre tal fato seja verdade ou mentira, em razão das alegações serem suscetíveis de apreciação valorativa. Para o processo, parafraseando JOÃO UBALDO RIBEIRO, o negócio é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias; só existem alegações (A frase correta, posta como epígrafe de Viva o Povo Brasileiro: "O segredo da Verdade é o seguinte: não existem fatos, só existem histórias."). Desta arte, a prova não tem o condão de reconstituir em evento pretérito; não se pode voltar no tempo. Assim é que a verdade real é meta um tanto quanto inatingível, até porque, além da justiça, há outros valores que presidem o processo, como a segurança a e efetividade: o processo precisa acabar (OLIVEIRA 1996:145-148). Calcar-se a teoria processual sobre a idéia de que se atinge, pelo processo, a verdade material, é mera utopia (ARENHART 1996:688). O mais correto, mesmo, é entender a verdade buscada no processo como aquela mais próxima possível do real, própria da condição humana. (OLIVEIRA 1996:148) Esta, sim, é capaz de ser alcançada no processo, porquanto há verdadeiro exercício da dialética durante o procedimento, com a tentativa das partes de comprovarem, mediante a argumentação, a veracidade de suas alegações. "O juiz não é —mais do que qualquer outro— capaz de reconstruir fatos ocorridos no passado; o máximo que se lhe pode exigir é que a valoração que há de fazer das provas carreadas aos autos sobre o fato a ser investigado não divirja da opinião comum média que se faria das mesmas provas." (ARENHART 1996:688- 689). A verdade buscada no processo é, assim, a verdade mais próxima possível da real. Em se tratando de paternidade, entretanto, consegue, o ser humano, realizar um de seus maiores desejos: voltar ao passado. De fato, 99,99999% de probabilidade de verdade é, para fins da inteligência humana, certeza absoluta.

44 O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o magistrado deve determinar a produção do meio de prova quando ele for necessário ao deslinde do feito: "As regras contidas nos arts. 130 e 437, do CPC, não conferem ao juiz poderes meramente discricionários. A determinação de novas diligências pode apresentar-se como impositiva conforme as circunstâncias da causa." (STJ, 3 ª T., REsp. 85.883/SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, Ac. 16.04.1998); Processual civil — perícia imprescindível — determinação ‘e x officio’. Sendo a prova pericial imprescindível, cabe ao juiz, de ofício, determinar a sua realização, e não, julgar o pedido improcedente por ausência de prova técnica. Recurso improvido." (REsp 186854/PE, STJ, 1ª Turma, Ministro Relator Garcia Vieira, DJ 05/04/1999, p. 86); "Direito Civil – Ação Negatória de Paternidade — Presunção Legal (CC, art. 204) — Prova — Possibilidade — Direito de Família — Evolução — Hermenêutica — Recurso Conhecido e provido. I - Na fase atual da evolução do direito de família, é injustificável o fetichismo de normas ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo quando em prejuízo de legítimos interesses de menor. II - Deve-se ensejar a produção de provas sempre que ela se apresentar imprescindível a boa realização da justiça. III - O Superior Tribunal de Justiça, pela relevância da sua missão constitucional, não pode deter-se em sutilezas de ordem formal que impeçam a apreciação das grandes teses jurídicas que estão a reclamar pronunciamento e orientação pretoriana." (REsp. 4987/RJ, 4ª Turma, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ de 28/10/1991, p. 15259)

45 TJ/ES, Ação rescisória 930016447, Ac. 01.02.1995; ob. cit., p. 21. Aliter: "Investigação de paternidade. Coisa julgada. — Mera indicação de novo meio de prova não justifica ajuizamento de nova ação investigatória quando outra já foi julgada improcedente. A existência de exames sofisticados não podem agasalhar a negação dos postulados dogmáticos do direito, entre os quais a coisa julgada, que foi concebida para assegurar a segurança jurídica e o estabelecimento de uma situação de tranqüilidade social. Recurso desprovido. (TJRS, AC 598.192.318, 7 ª C. Cível, Rel. Sérgio Fernandes, 19.08.1998)

46 Ob. cit., p. 22.

47 A coisa julgada nas ações de alimentos. Em Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, 1991, 52/6. Como sói ocorrer com os trabalhos do professor gaúcho, trata-se de ensaio de consulta obrigatória. Aborda as diversas teorias que buscavam justificar a suposta inexistência de coisa julgada material nestas situações; os objetivos deste trabalho impedem maiores discussões a respeito do assunto.

48 EDUARDO COUTURE, por exemplo, singelamente afirma que as sentenças, em tais situações, estão acorbertadas apenas com o manto da denominada coisa julgada formal (1999:344-345).

49 A redação deste artigo 15 é mais um equívoco perpetrado pela lei alimentária (verifique-se, a propósito, a injustificada desnecessidade de distribuição da ação); verdadeira heresia jurídica, nas palavras de WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL (1979:531). Assim se posiciona FURTADO FABRÍCIO "O texto do art. 15 da Lei n. 5.478 implica renúncia a qualquer veleidade de solucionar a questão no plano da dogmática jurídica ou do enquadramento técnico da situação proposta. O legislador optou pelo corte do nó górdio, face à aparente impossibilidade de seu desate. Acomodou-se, de resto, à doutrina anteriormente aludida, que seguia a mesma linha de menor resistência consistente em contornar o problema sem solucioná-lo..." (ob. cit., p. 15)

50 GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 2, p. 247.

51 MIRANDA, Francisco Cavalcante Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. 3 ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, v. V.

52 NERY JR., Nelson Nery e NERY, Rosa Maria Andrade. Código de Processo Civil Comentado e a Legislação Processual Civil Extravagante em Vigor. 3 ª ed. São Paulo: RT, 1997, p. 1.288. A doutrina praticamente se pacificou neste sentido: Adroaldo Furtado Fabrício, ob. cit.; FIDÉLIS, Ernane. Manual de Direito Processual Civil. 7 ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, v. I, p. 539; PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: RT, 2000, v. 6, pp. 207/208; RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de Direito Processual Civil. São Paulo: RT, 2000, v. 2, pp. 280/281; LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e Autoridade da Sentença. 2 ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981, pp. 25/26; ASSIS, Araken de. Breve contribuição ao estudo da coisa julgada. Em Revista da AJURIS. Porto Alegre: 1989, 46/90; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Eficácia da Sentença e Autoridade da Coisa Julgada. Em Temas de Direito Processual. São Paulo: Saraiva, 1984, 3 ª série, p. 111.; SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil. 17 ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 3, p.

57; CAHALI, Yussef Said. Dos Alimentos. 3 ª ed. São Paulo: RT, 1999, 865. Também o Superior Tribunal de Justiça: "As sentenças proferidas em ações de alimentos, como quaisquer outras, referentes ou não a relações jurídicas continuativas, transitam em julgado e fazem coisa julgada material, ainda que igualmente como quaisquer outras possam ter a sua eficácia limitada no tempo, quando fatos supervenientes alterem os dados da equação jurídica nelas traduzida. O disposto no art. 15 da Lei 5.478/68, portanto, não pode ser tomado em sua literalidade." (STJ, 4 ª T., Resp 12.047, 18.02.1992, DJU 09.03.1992).

53 Terminologia empregada por MACELO ABELHAROD RODRIGUES, na obra citada.

54 Ob. cit., p. 24. Também conforme, o texto irônico e jovial de BARBOSA MOREIRA: "Mas é patente que se tomou a nuvem por Juno. A segunda parte do dispositivo espelha uma realidade que não precisava, para sustentar-se, da ‘explicação’ manifestamente excessiva que se entendeu de dar, na parte inicial. Que a sentença de alimentos, como qualquer outra, a certa altura, transita em julgado, é coisa que salta aos olhos, nada obstante os dizeres do texto legal. Mais dia menos dia, ficam preclusas as vias recursais, extingue-se o processo e, nele, já não se pode exercer qualquer atividade cognitiva. O que se poderia pôr em dúvida, mas ainda aqui sem razão, é a aptidão da sentença para revestir-se da autoridade da coisa julgada material. Para dissipar o equívoco, basta ver que seria impraticável a emissão de nova sentença relativamente à mesma situação contemplada na outra —como, por exemplo, se o condenado à prestação alimentar viesse a pleitear a declaração judicial de que, já ao tempo da primeira sentença, ele nada devia a este título. (...) Não há tal necessidade: os princípios comuns atuam normalmente, e qualquer esforço suplementar de explicação é de todo em todo supérfluo." (1984:111-112).


Autor

  • Fredie Didier Jr.

    Fredie Didier Jr.

    Coordenador do curso de pós-graduação em Direito Processual Civil da LFG-Anhanguera Uniderp. Livre-docente (USP), Pós-doutorado (Universidade de Lisboa), Doutor (PUC/SP) e Mestre (UFBA). Professor-associado de Direito Processual Civil da Universidade Federal da Bahia. Diretor Acadêmico da Faculdade Baiana de Direito. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual, do Instituto Ibero-americano de Direito Processual, da Associação Internacional de Direito Processual e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo. Advogado e consultor jurídico.

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DIDIER JR., Fredie. Cognição, construção de procedimentos e coisa julgada: os regimes de formação da coisa julgada no direito processual civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3202. Acesso em: 29 mar. 2024.